Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JSTJ00040543 | ||
Relator: | ABÍLIO VASCONCELOS | ||
Descritores: | PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA MANDATO SEM REPRESENTAÇÃO FORMA EXECUÇÃO ESPECÍFICA OBRIGAÇÃO DE INDEMNIZAR | ||
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Nº do Documento: | SJ200005110002292 | ||
Data do Acordão: | 05/11/2000 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Referência de Publicação: | BMJ N497 ANO2000 PAG357 | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | REVISTA. | ||
Decisão: | ORDENADA A BAIXA DO PROCESSO. | ||
Área Temática: | DIR CIV - DIR CONTRAT / TEORIA GERAL. DIR PROC CIV - RECURSOS. | ||
Legislação Nacional: | CCIV66 ARTIGO 9 N1 ARTIGO 11 ARTIGO 219 ARTIGO 410 N1 ARTIGO 830 N1 ARTIGO 1157 ARTIGO 1178 N2 ARTIGO 1180 ARTIGO 1181 N1. CPC67 ARTIGO 722 N2 ARTIGO 729. | ||
Jurisprudência Nacional: | ACÓRDÃO STJ DE 1995/02/21 IN CJSTJ ANOIII TI PAG96. ACÓRDÃO STJ DE 1999/04/14. ACÓRDÃO STJ DE 1980/06/11 IN BMJ N298 PAG287. ACÓRDÃO STJ DE 1984/02/08 IN BMJ N334 PAG267. | ||
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Sumário : | I- O STJ não pode censurar o não uso dos poderes conferidos pelo artigo 712 do CPC, só o uso pode censurar. II- Mantém-se válida a doutrina do acórdão uniformizador de jurisprudência de 14 de Abril de 1999. III- Na revista só cabe apreciar se a lei foi respeitada no triplo sentido se há erros de determinação da norma jurídica aplicável, da sua interpretação ou da sua aplicação, caiba censurar e corrigir. IV- No mandato sem representação, o mandatário, não obstante intervir por conta e no interesse do mandante, não aparece revestido da qualidade de seu representante - age em nome próprio pelo que é ele, mandatário, que adquire os direitos e assume as obrigações decorrentes dos actos que celebra, não sendo na esfera jurídica e patrimonial mandante que ingressam os direitos. V- O mandato não representativo é, em matéria de forma, consensual. VI- O mandatário sem representação é obrigado a transferir para o mandante os direitos adquiridos em execução do mandato; este novo negócio jurídico não é uma venda embora seja um acto de alienação. VII- O regime de execução específica, excepcional em si, restringe-se aos casos em que a obrigação de emitir a declaração negocial resulte de um contrato-promessa. VIII- Por isso, ao mandatário que não cumprir a obrigação de transferir para o mandante os direitos adquiridos em execução do mandato apenas pode ser pedida indemnização por perdas e danos. | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam no Supremo Tribunal de Justiça: A, intentou a presente acção, com processo ordinário, contra B, sua filha, com o fundamento de que, na qualidade de promitente comprador, celebrou um contrato promessa de compra e venda de uma fracção autónoma, pelo preço de 12800000 escudos, que pagou integralmente, e que, com o consentimento expresso da promitente vendedora, nomeou como compradora a Ré, que, como tal, outorgou na respectiva escritura, agindo no interesse e por conta do Autor, obrigando-se a transmitir para ele a propriedade da dita fracção, quando quisesse, o que a Ré se recusou a fazer. Termina pedindo que seja proferida sentença substitutiva da declaração negocial a que a Ré se obrigou, e não cumpriu, declarando-se o Autor proprietário da referida fracção, e que se mande cancelar a inscrição de propriedade em nome da Ré na respectiva Conservatória do Registo Predial. Subsidiariamente pede, em primeiro lugar, que seja reconhecido ter a Ré agido como interposta pessoa, no interesse e por conta do Autor, sendo condenada a outorgar em escritura pública de compra e venda a favor do autor. Em segundo lugar, que seja a Ré condenada a pagar-lhe a quantia de 12800000 escudos, com juros de mora desde a citação. A Ré, citada, contestou alegando, fundamentalmente, que o Autor contestou, sinalizou e pagou a fracção com a intenção de que a mesma ficaria a pertencer à Ré, doando-lhe a totalidade do preço da fracção. Pede a improcedência da acção. Na 1. instância foi proferida sentença que julgou a acção procedente e declarou a transmissão do direito de propriedade de B para o Autor, sobre a fracção em causa. Tendo essa sentença sido confirmada pelo acórdão da Relação de Lisboa de fls. 237 e seguintes, dela recorreu a Ré para este Supremo Tribunal formulando nas suas alegações as seguintes conclusões: 1 - o acórdão recorrido ao não incluir na base instrutória a matéria dos artigos 9 a 14 da contestação da ré omitiu factos relevantes para a decisão da causa; 2 - a recorrente ao alegar que sempre se comportou como proprietária da fracção dos autos fê-lo invocando um direito de propriedade que lhe adveio de uma liberalidade concedida pelo autor e não em função da existência de um contrato de mandato sem representação; 3 - era fundamental para sustentar a defesa da recorrente que tivessem sido levados à base instrutória factos que contrariam a existência de um contrato de mandato entre Autor e Ré; 4 - competia ao Autor provar a existência de um mandato sem representação, o que não logrou provar; 5 - no caso em apreço não só não se verificou qualquer celebração de um contrato de mandato sem representação entre recorrente e recorrido, como a outorga daquela na escritura pública de compra e venda exprimiu tão só a vontade do autor de que a propriedade sobre o dito imóvel lhe fosse atribuída a título definitivo e gratuito; 6 - O artigo 830 do Código Civil não é aplicável a obrigações, de origem convencional ou legal, de emissão de uma declaração negocial que não nasçam de contratos-promessa; 7 - O artigo 830, no quadro dos mecanismos de integração do incumprimento contratual tem carácter excepcional não podendo ser, como determina o artigo 11 do Código Civil, objecto de aplicação analógica; 8 - em qualquer caso - no quadro de um hipotético mandato sem representação - nunca estaríamos perante uma obrigação legal de contratar que justificasse a aplicação analógica do regime da execução específica prevista no artigo 830, mas sim perante uma obrigação de fonte contratual diversa de um contrato promessa e, por conseguinte, fora do âmbito de aplicação extensiva desta disposição; 9 - a aplicarem-se à obrigação prevista no n. 1 do artigo 1181 do Código Civil as regras do contrato-promessa, tal remissão implica necessariamente a necessidade de redução a escrito de um contrato de mandato que tenha como objecto a aquisição, e posterior transferência, do direito de propriedade sobre imóvel (cfr. n. 1 do artigo 410 do Código Civil); 10 - não existindo qualquer documento que titule o mandato sem representação, nunca poderia ocorrer a execução específica da obrigação de transferência da propriedade sobre o imóvel dos autos do mandatário para o mandante, atenta a nulidade daquele por falta de forma; 11 - O acórdão recorrido não se pronunciou sobre o fundamento, alegado pela recorrente, da inaplicabilidade do artigo 830 à situação dos autos, atenta a falta de forma do pretenso mandato sem representação; 12 - O acórdão recorrido violou os artigos 264, 508-A, 511, 668 n. 1 alínea d), ex vi do n. 1 do artigo 716 e do n. 2 do artigo 721, todos do Código de Processo Civil, e 342 n. 1 e 830 do Código Civil. Termina pedindo a revogação do acórdão e a sua substituição por outro que declare a acção improcedente. Respondeu o recorrido pedindo que se julgue o recurso improcedente. Corridos os vistos legais, cabe decidir. A Relação deu como provados os seguintes factos: 1 - B é filha de A e de C; 2 - D, Limitada e A declararam, em 5 de Julho de 1989, a primeira prometer vender e o segundo prometer comprar, a fracção autónoma letra H, correspondente ao 3. andar esquerdo, com uma garagem no 1. piso (cave), do prédio sito na Urbanização do ..., Sassoeiros, freguesia de Carcavelos, descrito na Conservatória do Registo Predial de Cascais sob o n. 325, freguesia de Carcavelos, omisso na matriz, pelo preço de 12800000 escudos; 3 - declararam ainda que o pagamento seria feito segundo o seguinte esquema: "(...) 6400000 escudos (seis milhões e quatrocentos mil escudos) no acto da assinatura do presente contrato, como sinal e princípio de pagamento de que se dá quitação; 2560000 escudos (dois milhões e quinhentos e sessenta mil escudos) como reforço no acto da entrega da chave. O restante do preço em dívida, no montante de 3840000 escudos (três milhões oitocentos e quarenta mil escudos) no acto da assinatura da escritura definitiva de compra e venda a realizar até 30 de Dezembro de 1989 (...)"; 4 - O Autor pagou à D, Limitada o valor referido em 2); 5 - em 9 de Novembro de 1990, por escritura pública, E, na qualidade de procurador da "Sociedade D, Limitada" e B declararam, o primeiro vender à segunda e esta aceitar a venda, pelo preço de nove milhões de escudos, a fracção autónoma designada pela letra "H", que constitui o terceiro andar esquerdo - um fogo com garagem na cave - do prédio urbano em regime de propriedade horizontal, sito no lugar de ..., designado por lote quarenta e nove, freguesia de Carcavelos, Concelho de Cascais, inscrito na matriz predial da dita freguesia sob o artigo dois mil duzentos e sessenta, descrito na segunda secção da Conservatória do Registo Predial de Cascais sob o n. trezentos e vinte e cinco, freguesia de Carcavelos; 6 - a aquisição do direito de propriedade relativo à fracção identificada em 5) encontra-se inscrita na Conservatória do Registo Predial de Cascais sob o artigo 2260-H, da freguesia de Carcavelos, a favor de B, por compra a Sociedade D, Limitada; 7 - ao tempo em que foi celebrada a escritura mencionada em 5), a Ré era estudante, não auferindo quaisquer proventos próprios de trabalho ou quaisquer dádivas; 8 - com o consentimento expresso da Sociedade D, Limitada o Autor nomeou como compradora a Ré; 9 - que efectivamente outorgou na escritura como compradora, agindo no interesse e por conta do autor; 10 - a Ré obrigou-se perante o Autor a dar à fracção adquirida o destino que este determinasse, no interesse e em proveito do autor, recusando-se agora a Ré a seguir as determinações do autor; 11 - O Autor, quando foi celebrado o negócio referido em 5) tinha intenção de ir residir com a Ré para a fracção adquirida; 12 - O Autor e a Ré, após a data referida em 5), residiram os dois até pelo menos 1993 na referida fracção, salvo algumas saídas do Autor para outros pontos do país, em consequência da sua actividade profissional; 13 - a Ré tem, ultimamente, sobretudo a partir do mês de Janeiro, feito diligências para vender a referida fracção, tendo até publicitado a venda em anúncio de jornal e colocado escrito na janela para venda. Uma das questões postas pela recorrente prende-se com a necessidade, na sua óptica, de ampliação da matéria de facto. Neste domínio é jurisprudência pacífica que o Supremo Tribunal de Justiça, como tribunal de revista, não pode conhecer da matéria de facto, a não ser nos casos excepcionais previstos no n. 2 do artigo 722 do Código de Processo Civil, ou seja, quando haja ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova, excepções que, in casu, não ocorrem. Destarte, as questões de facto são, em regra, julgadas definitivamente pela Relação, cabendo a este Supremo acatar esse julgamento e proceder à aplicação definitiva do regime jurídico que julgue adequado aos factos materiais fixados pelo tribunal recorrido - artigo 729 n. 1 do citado diploma legal (cfr. Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 10 de Maio de 1995 na C.J. - Acs. do Supremo Tribunal de Justiça - III, 2 283). Do que acaba de se expor também resulta que ao Supremo Tribunal de Justiça está vedado fazer censura sobre o não uso pela Relação dos poderes conferidos pelo artigo 712 daquele Código. Só sobre o seu uso é que o Supremo pode sindicar (cfr. Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 8 de Fevereiro de 1984 no B.M.J. 334-267, de 21 de Fevereiro de 1995 na C.J. - Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça - III, 1, 96 e o supra identificado). Por outro lado, a volta do processo ao tribunal recorrido para ampliação da decisão de facto, nos termos do referido artigo 729 n. 3, só deve ter lugar quando o Supremo se encontre impossibilitado de julgar de direito por insuficiência de elementos de facto, o que aqui não acontece. A este propósito, é pertinente transcrever-se o que se encontra escrito no acórdão proferido em plenário, por este Supremo, em 14 de Abril de 1999, que uniformizou jurisprudência no sentido de que nas causas julgadas com aplicação do Código de Processo Civil de 1961, com as alterações introduzidas pelo Decreto-lei n. 242/85, de 9 de Julho, não é admissível recurso para o Supremo Tribunal de Justiça pelo que respeita à organização da especificação e questionário: "São bem diferentes os critérios a utilizar na organização da especificação e questionário e no julgamento da revista: naquele deverão considerar-se "as várias soluções plausíveis da questão de direito" (artigo 511 n. 1 do Código de Processo Civil) enquanto que, na revista, "o direito aplicável" (artigo 730 n. 1 do mesmo Código), ou seja, a solução jurídica que efectivamente irá resolver a causa". "Uma vez julgada a matéria de facto, proferida a respectiva decisão, o que passa a contar são as respostas ao questionário, e não as perguntas (artigo 653 do Código de Processo Civil". "O que cabe impugnar perante o Supremo é o julgamento feito, isto é, a substância em que a decisão se fundamenta". "Na revista (um recurso que como regra tem efeito meramente devolutivo) só cabe apreciar se a lei foi respeitada no triplo sentido de decidir se há erros de determinação da norma jurídica aplicável, da sua interpretação ou da sua aplicação, que caiba censurar e corrigir. Por isso, os poderes do Supremo são os necessários ao exercício desta função, ou seja, os dos artigos 722 n. 2, segundo segmento, e 729 do Código de Processo Civil; e mais nenhuns, já que outros seriam desnecessários, impertinentes e desvirtuariam a função do Supremo como tribunal de revista. Deve este Tribunal manter-se fiel à sua função específica e negar-se a, por este ínvio caminho, converter-se em mais uma instância". Concluindo: na situação sub judice está vedado a este Supremo imiscuir-se na matéria de facto. Insurge-se também a recorrente contra a decisão da Relação de considerar ter ela agido, na escritura de compra e venda da mencionada fracção, outorgada em 9 de Novembro de 1990, onde interveio na qualidade de compradora, como mandatária do recorrido, em nome próprio e sem poderes de representação. Para dilucidação desta questão importa fazer uma ligeira incursão sobre a figura jurídica do mandato. Define-o o artigo 1157 do Código Civil como o contrato pelo qual uma das partes se obriga a praticar um ou mais actos jurídicos por conta da outra. E faz a nossa lei substantiva distinção entre mandato com representação, caso em que o mandatário a quem hajam sido conferidos poderes de representação tem o dever de agir não só por conta, mas em nome do mandante, a não ser que outra coisa tenha sido estipulada (artigo 1178 n. 2), e o mandato sem representação, que é o que aqui está em causa. Quanto a esta figura (mandato sem representação), dispõe o artigo 1180 que "O mandatário, se agir em nome próprio, adquire os direitos e assume as obrigações decorrentes dos actos que celebra, embora o mandato seja conhecido dos terceiros que participem nos actos ou sejam destinatários destes". Da conjugação do teor deste preceito com o do artigo 1157 resulta que, no mandato sem representação, o mandatário, não obstante intervir por conta e no interesse do mandante, não aparece revestido da qualidade de seu representante. Age em nome próprio, e não em nome do mandante, pelo que é ele, mandatário, que adquire os direitos e assume as obrigações decorrentes dos actos que celebra. Deste modo, é o mandatário o titular dos direitos adquiridos por força dos actos que pratica no exercício do mandato, os quais ingressam na sua esfera jurídica e patrimonial, e não na do mandante. E no que toca à matéria de forma, é o contrato de mandato não representativo consensual já que, não se tendo estabelecido naquele domínio quaisquer exigências no capítulo do mandato, vigora o princípio da liberdade de forma consagrado no artigo 219 do Código Civil. Ora, considerando que está provado que o Autor, com o consentimento expresso da vendedora, nomeou como compradora da mencionada fracção a ora recorrente, cujo preço foi por ele pago integralmente, e que esta outorgou, naquela qualidade, na respectiva escritura de compra e venda, agindo, sem representação, no interesse e por conta do Autor, perante quem se obrigou a dar à fracção adquirida o destino que este determinasse, no interesse e em proveito do Autor, é inquestionável a subsunção desta factualidade à figura do mandato sem representação. Segundo o disposto no n. 1 do artigo 1181 do Código Civil, o mandatário sem representação é obrigado a transferir para o mandante os direitos adquiridos em execução do mandato. A este propósito, diz o Professor Galvão Teles, a folha 10 do seu Parecer publicado na C.J. Ano VIII (1983), tomo 3, que "O mandatário "nomine próprio", a quem, por ex., foi vendido um prédio e assim o adquiriu, tornando-se dono dele, tem subsequentemente, e por seu turno, de o alienar ao mandante, através de um novo negócio jurídico. Este novo negócio jurídico não é obviamente uma venda; mas é, em todo o caso, um acto de alienação - uma modalidade alienatórica específica, cuja causa justificativa está no cumprimento de uma obrigação advinda do mandato para o mandatário, nas suas relações internas com o mandante". E a questão que agora se põe é a de saber se, no caso de o mandatário não cumprir aquela obrigação, como, in casu, a ré não cumpriu, o mandante pode recorrer ao instituto da execução específica (artigo 830 n. 1 do Código Civil), conforme pretensão do Autor deduzida em sede de pedido principal, e que teve acolhimento nas decisões proferidas pelas instâncias. Estabelece aquele preceito que "Se alguém se tiver obrigado a celebrar certo contrato e não cumprir a promessa, pode a outra parte, na falta de convenção em contrário, obter sentença que produza os efeitos da declaração negocial do faltoso, sempre que a isso não se oponha a natureza da obrigação assumida". Os nossos doutrinadores divergem sobre a extensão do campo de aplicação deste instituto. Para Vaz Serra, in R.L.J. Ano 100, página 194, a regra do artigo 830 é "susceptível de interpretação extensiva, de maneira a ser aplicável também a outros casos abrangidos pelo seu espírito: seria estranho e injustificável que só na hipótese de promessa de um contrato fosse permitido ao credor obter a sentença que esse artigo menciona". "Dada a identidade de razão, é legítima a interpretação extensiva do preceito do artigo 830: a lei diz menos do que o que queria dizer". Escreve o mesmo Autor, na citada Revista, Ano 111, página 16, que se deve considerar o artigo 830 aplicável, mediante interpretação extensiva ou, até, por analogia, às obrigações emergentes de fonte diversa do contrato-promessa, acrescentando, em nota, não ser impossível a aplicação analógica desse artigo, porque ele não tem carácter excepcional. Também Almeida Costa, in Direito das Obrigações, 4. edição, página 171, embora reconhecendo que a história e a letra do preceito revelam uma certa prudência com que o legislador introduziu, entre nós, o seu conteúdo inovador, diz afigurar-se-lhe razoável o alargamento do regime de execução específica, para além dos casos de incumprimento de contrato-promessa, a todos os outros em que se verifique o dever de contratar. Em apoio da sua tese diz, ainda, não se ver que a regra do artigo 830 constitua um princípio excepcional no quadro jurídico vigente, correspondendo ao sistema da nossa lei que atribui à restauração natural prevalência sobre a indemnização por equivalente (artigo 566 n. 1). No campo oposto, sustentando a aplicação restrita da doutrina do artigo 830, aos casos de incumprimento de contrato-promessa, aparecem os Professores Pires de Lima e Antunes Varela e Galvão Teles. Diz este último, em nota, a páginas 82 da sua obra "Direito das Obrigações", 4. edição, que a execução específica é uma providência excepcional que não pode ser usada fora do domínio do contrato-promessa. Por sua vez, Calvão da Silva, em "Cumprimento e Sanção Pecuniária Compulsória" não toma uma posição peremptória sobre a aplicabilidade do regime da execução específica a todos os casos em que se verifique o dever de contratar, para além dos de incumprimento de contrato-promessa. Com efeito, escreve a fls. 500 e 501 daquela sua obra, 2. edição, Ano de 1995, que "É de estender o âmbito de aplicação da execução específica prevista no artigo 830, se não mesmo de jure constituto - solução que não nos choca apesar da história e da letra do artigo - pelo menos de jure condendo, indo mais longe do que, por cautela, parece ter querido ir o legislador de 66. Se ao tempo a inovação já era importante, dada a tradição do nosso sistema jurídico, tem de reconhecer-se que ficou muito àquem das necessidades prático-jurídicas e que urge, por isso, ampliar o perímetro do preceito, abrangendo as situações em que alguém esteja obrigado por lei ou convenção a emitir uma declaração de vontade - regra ampla do 894 do Código de Processo Civil alemão e do artigo 641 do Código de Processo Civil brasileiro". Mas, conclui dizendo que "Enquanto este alargamento não for introduzido ou não for admitido por aplicação analógica senão mesmo extensiva, o credor poderá propor uma acção de condenação do devedor no cumprimento do dever de contratar ou de emitir uma declaração de vontade, não abrangidas pelo artigo 830, requerendo que a sentença seja seguida de sanção pecuniária compulsória adequada, dado estar em causa uma prestação de facere infungivel não atinente a direitos de personalidade, não susceptível de execução sub-rogatória". E Pessoa Jorge, em "O Mandato Sem Representação" diz-nos, a fls. 312, que "pelo menos à face do nosso sistema jurídico actual, o direito de crédito à transmissão da propriedade é insusceptível, em princípio, de execução específica, ao contrário do que se passa noutras legislações. Por conseguinte, segundo a tese da dupla transferência, se o mandatário se recusar a transmitir a propriedade para o mandante, este não tem possibilidade de o forçar a tal, assistindo-lhe apenas o direito a uma indemnização de perdas e danos". Expostas as duas teses sobre o campo de aplicação do regime da execução específica, entendemos que o mesmo se restringe aos casos em que a obrigação de emitir a declaração negocial resulte dum contrato-promessa. Temos que ter presente que os tribunais devem obediência à lei e têm que julgar "de jure constituto" e não "de jure condendo". Prescreve o n. 1 do artigo 9 do Código Civil que a interpretação da lei não deve cingir-se à sua letra, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada. A letra da lei é unívoca à restrição da aplicação da execução específica ao contrato-promessa. E o pensamento legislativo só se conforma com essa restrição. Na verdade, o conteúdo do artigo 830 foi uma inovação do Código Civil de 1966. Vaz Serra havia proposto uma redacção mais ampla, fazendo constar do artigo 422 n. 1, sob o título "Obrigação de emitir uma declaração de vontade", que "Caso quem está obrigado a emitir uma declaração de vontade não cumpra esta obrigação, pode a outra parte obter uma sentença com os efeitos da declaração não emitida, se tal for possível e não for inconciliável com o título de que essa obrigação resulta" (v. Bol. M.J. n. 99 página 263). E vasta era também a redacção do anteprojecto saído da 1. Revisão Ministerial em cujo artigo 813, sob o título "Obrigação de concluir um contrato", se estabelecia que "se o devedor se obrigou a concluir um contrato e não cumpriu, pode a outra parte, sempre que possível e na falta de convenção em contrário, obter sentença que produza os efeitos da Declaração do faltoso" (v. "Das Obrigações em Geral", vol. VI, página 161, de Rodrigues Bastos). Ora, é manifesto que o assunto foi debatido, não podendo o legislador ignorar a amplitude que naqueles preceitos era dada à aplicabilidade do instituto da execução específica. Não obstante, esse mesmo legislador optou por a circunscrever àqueles casos em que alguém, estando obrigado a celebrar certo contrato, não venha a cumprir a respectiva promessa. Assim, a letra da lei retrata o que o legislador quis dizer. Ou, como salientam os Professores Pires de Lima e Antunes Varela, em anotação ao artigo 830, no seu Código Civil Anotado, "o legislador disse tudo o que pretendia dizer e não era fácil dizê-lo por outras palavras". Estamos com aqueles Mestres quando, na mesma anotação, referem que "o confronto do novo texto com o do artigo 422 do anteprojecto, que reproduzia a doutrina lata do artigo 2932 do Código italiano, o texto claro da lei e a impossibilidade da sua aplicação por analogia, dado o seu carácter excepcional, não permitem que se dê outro entendimento à disposição. As razões da limitação são, de resto óbvias. Na promessa há já uma declaração negocial. O tribunal limita-se, pois, a tornar certo o que era, ou foi, pretendido pelas partes, e que se contém explicitamente no contrato. Nos outros casos, seria necessária uma substituição integral da vontade dos interessados, o que, numa solução cautelosa, como é a do legislador, parece excessiva". Sendo certo que as normas excepcionais não comportam aplicação analógica, todavia admitem interpretação extensiva - artigo 11 do Código Civil. Porém, esta interpretação é de afastar quando se pretende aplicar a norma a casos diferentes daquele para que foi legislado. A excepção está delimitada para os casos para que foi estabelecida, e não tem elasticidade para abranger novas situações. Não se pode transformar a excepção em regra. Assim sendo, conclui-se que o preceituado no artigo 830 só é aplicável naqueles casos em que a obrigação de celebrar um contrato resulta dum contrato-promessa (cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11 de Junho de 1980 no B.M.J. 298-287). Termos em que se revoga o acórdão recorrido, confirmativo da decisão da 1. instância que declarou a transmissão do direito de propriedade de B para A, sobre a fracção identificada nos autos, e ordena a baixa do processo à Relação para que, pelos mesmos Juízes, se possível, sejam conhecidos os demais pedidos formulados subsidiariamente na acção. Custas da acção pela parte vencida a final e dos recursos pelo autor. Lisboa, 11 de Maio de 2000. Abílio Vasconcelos, Duarte Soares, Simões Freire. 2. Juízo Cível Cascais - Processo n. 171/97. Tribunal da Relação de Lisboa - Processo n. 4484/99 - 1. Secção. |