Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
| ||
Nº Convencional: | JSTJ00012164 | ||
Relator: | CESAR MARQUES | ||
Descritores: | TUTELA POSSESSÓRIA POSSE LOCATÁRIO DIREITO REAL DIREITO DAS OBRIGAÇÕES USO PRÉDIO EMBARGO DE OBRA NOVA DIREITO DE PROPRIEDADE DIREITO REAL DE GOZO OBRAS | ||
![]() | ![]() | ||
Nº do Documento: | SJ199110220807961 | ||
Data do Acordão: | 10/22/1991 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Referência de Publicação: | BMJ N410 ANO1991 PAG703 | ||
Tribunal Recurso: | T REL LISBOA | ||
Processo no Tribunal Recurso: | 2472/90 | ||
Data: | 10/20/1990 | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
![]() | ![]() | ||
Meio Processual: | AGRAVO. | ||
Decisão: | NEGADO PROVIMENTO. | ||
Área Temática: | DIR PROC CIV. DIR CIV - DIR REAIS. | ||
Legislação Nacional: | CPC67 ARTIGO 2 ARTIGO 412 N1 ARTIGO 668 N1 D. CCIV66 ARTIGO 1037 N2 ARTIGO 1251 ARTIGO 1253 ARTIGO 1276. | ||
Jurisprudência Nacional: | ACÓRDÃO RL DE 1976/04/02 IN CJ ANOI PAG478. ACÓRDÃO RE DE 1977/11/24 IN BMJ N273 PAG329. ACÓRDÃO STJ DE 1982/12/21 IN BMJ N322 PAG342. ACÓRDÃO STJ DE 1984/05/03 IN BMJ N337 PAG326. ACÓRDÃO STJ DE 1986/04/15 IN BMJ N356 PAG293. ACÓRDÃO STJ DE 1984/02/22 IN BMJ N334 PAG445. ACÓRDÃO RP DE 1983/03/10 IN CJ ANOVIII TII PAG220. ACÓRDÃO RL DE 1963/02/20 IN RJ ANOIX TI PAG87. | ||
![]() | ![]() | ||
Sumário : | I - No direito português a tutela da posse enquadra-se no sistema subjectivo e não no objectivo. II - No sistema subjectivo o locatário não exerce poderes a título de um direito real, mas de um direito obrigacional. III - Embora já se tenha defendido que, apesar do disposto no n. 2 do artigo 1037 do Código Civil, o locatário não pode acautelar o seu direito de fruição do prédio através de embargo de obra nova não é esse o sentido da jurisprudência dominante que entende precisamente o contrário, e assim deve ser, em obediência ao princípio contido no artigo 2 do Código de Processo Civil. IV - Nos termos do n. 1 do artigo 412 do Código de Processo Civil, o embargo de obra nova pode ser requerido por quem se julgue ofendido no seu direito de propriedade, em qualquer outro direito real de gozo ou na sua posse, em consequência de obra, trabalho ou serviço novo que lhe cause ou ameace causar prejuízo. V - O facto de uma obra, contígua ao seu prédio, causar barulhos e poeiras não legítima o locatário daquele prédio a intentar acção de embargo de obra nova, dado que não está em risco nem a propriedade, nem a posse do aludido prédio. | ||
![]() | ![]() | ||
Decisão Texto Integral: | Acordam no Supremo Tribunal de Justiça: O Dr. A, como preparatório de acção declarativa de condenação que iria intentar, requereu embargo judicial da obra nova de que é dona a Sociedade Construtora de Obras Gerais, Lda., e que está a ser executada no espaço correspondente aos n. 293 a 299, na Avenida 5 de Outubro, em Lisboa. Alegou, em síntese, que é locatário do terceiro andar do prédio urbano sito no n. 291 da mesma Avenida, onde reside com sua mulher e dois filhos. Esse andar constitui seu local de trabalho como advogado. Sua mulher é pianista e professora universitária, em plena preparação da tese de doutoramento. Sua filha, finalista do curso de História, encontra-se em plena época de preparação de exames. E seu filho, no primeiro ano de engenharia informática do Instituto Superior Técnico, está em período agudo de prestação sucessiva de exames semestrais, tendo em conta o atraso com que se iniciou o ano lectivo (de 1989/90). A obra nova é uma construção a ser levada a efeito no espaço contíguo ao prédio onde habita, e consiste, designadamente, na perfuração das platibandas e dos espaços interiores dos diferentes pisos, através de um compressor e de perfuradoras mecânicas e pneumáticas, que se exerce desde as oito horas até, pelo menos às dezanove horas e mesmo aos sábados e em dias feriados. A utilização do compressor e das perfuradoras causa, permanentemente ruídos elevadíssimos e inteiramente insuportáveis, que nem com o uso de protectores auriculares poderiam ser eliminados, e vibrações intensissimas que abalam o prédio, tornando impossível a permanência no dito terceiro andar, acrescendo que tais ruídos e vibrações se multiplicam por ressonância, comunicando-se ao prédio onde reside, com volume e intensidade ainda maiores do que no local onde se produzem. Da obra em execução resulta enorme quantidade de pó de cimento e de areia, que invade o andar, danificando móveis e roupas, tornando impossível o estendal da roupa e a sua secagem e tendo já ocasionado paralisações de aparelhagem informática. As ondas sonoras emitidas pelos aparelhos usados na obra interferem com todos os aparelhos electromagnéticos, impossibilitando o seu uso e provocando avarias, o que também aconteceu com o piano. Os andaimes colocados para a realização da obra invadem a frontaria do prédio onde reside, permitindo facílimo acesso à varanda do andar onde mora, eliminando qualquer segurança do andar. Em consequência do descrito, o requerente e seus familiares têm sofrido danos na sua saúde, com problemas de audição estando impossibilitados de trabalhar e de descansar, já que não se adoptaram as providências técnicas indispensáveis a evitar o uso dos meios causadores dos ruídos e vibrações a proceder à protecção exterior da obra com a cobertura adequada e à colocação dos andaimes com respeito das condições de segurança do prédio contíguo. Daí que tenha havido, já uma grave lesão da fruição do andar pelo requerente e familiares, assim como violação do seu direito à saude, integridade física, ao repouso à habitação ao ambiente e qualidade de vida, que ameaça continuar com maior gravidade. O requerimento foi liminarmente indeferido por não ser o procedimento cautelar de embargo de obra nova o adequado mas antes uma providência cautelar inominada ou não especificada. Isto porque se entendeu que não estavam a ser atingidos os direitos de locatário do requerente mas os direitos de personalidade deste e da sua família. Foi negado provimento ao agravo interposto pelo requerente, com intervenção nos autos da requerida, citada para o efeito. De novo agravou para este Supremo Tribunal de Justiça, concluindo,assim, as suas alegações: O acórdão recorrido persistiu em entender não se verificar o requisito da lesão do direito do requerente, locatário, para o decretamento da providencia cautelar; mas tal lesão existe e foi adequada precisa e minimamente alegada no requerimento inicial; o artigo 412 do Código de Processo Civil confere expressamente a possibilidade de recurso ao embargo de obra nova àquele que, como locatário, seja possuidor; o direito do locatário é um verdadeiro direito real, oponível "erga omnes", transmissível "volens nollens", perseguindo a coisa locada e sofrendo as consequências das vicissitudes desta, susceptível inclusive de usucapião; e essa natureza real em nada é posta em causa pelo facto de o direito nascer na esfera jurídica do locatário com a celebração de um contrato (tal como o direito de propriedade pode ser adquirido por compra e venda); porém independentemente da natureza real ou não do direito do arrendatário, e independentemente de ele ser um verdadeiro possuidor em nome próprio, o facto é que a lei lhe confere expressamente a faculdade de recorrer aos meios possessórios; e isso representa a possibilidade de lançar mão do embargo de obra nova, como impõem a letra, o espírito e a história do citado preceito legal; no caso sub júdice estamos perante uma obra que lesa, e gravemente, o direito do arrendatário ao uso e fruição do andar arrendado; o facto de esse uso e fruição se corporizar e materializar no exercício de uma série de outros direitos em nada invalida, antes qualifica e agrava, a lesão àquele mesmo direito do locatário; como aliás tem sido entendido pela jurisprudência; o acórdão agravado também não explica como é que, mesmo na sua tese, diversas circunstâncias de facto (designadamente os n. 41 a 43 e 47 da petição inicial) também não têm "conexão com a situação de arrendatário"; a tese da decisão recorrida, além de esvaziar completamente o conteúdo do "uso e fruição" a que legalmente o locatário tem direito, dissociaria o indissociavel, consagrando um entendimento completamente absurdo, que as mais elementares regras de interpretação impostas pelo artigo 9 do Código Civil expressamente impedem e proíbem; a decisão agravada viola designadamente o artigo 412 do Código de Processo Civil bem como os artigos 9 e 1037 do Código Civil e comete a nulidade de omissão de pronuncia prevista no artigo 668, n. 1, alínea d) daquele primeiro Código. Contraminutando, a requerida afirma, em síntese, que o Código Civil Português não adopta a concepção objectiva da posse; que o locatário não é um verdadeiro e próprio possuidor, sendo o seu direito um direito pessoal de gozo; e o mencionado artigo 412 não prevê o embargo de obra nova para ofensas de direitos obrigacionais; mas, que assim não fosse, o pedido de embargo vem fundamentado na ofensa de direitos de personalidade e não tendo eles a verdadeira e imprescindível conexão com a situação de arrendatário, nunca o meio cautelar a utilizar podia ser o contido no referido artigo 412. Nada foi requerido pelo Exmo. Magistrado do Ministério Público. Relativamente à nulidade de omissão de pronuncia prevista no artigo 668 n. 1, alínea d), do Código de Processo Civil. Consistiria a omissão no facto de o acórdão recorrido não se ter pronunciado sobre questão que deveria apreciar, ou seja, como é que, designadamente, a invasão do andar onde mora o requerente pelo pó de cimento e de areia, que lhe danifica os móveis e a roupa e torna impossível o uso do estendal e a secagem da roupa e a colocação de andaimes, que invadindo a frontaria do prédio onde reside, tornam facílimo o acesso à varanda desse andar, eliminando assim qualquer segurança, não têm conexão com a situação de arrendatário. Mas no acórdão referiu-se que o locatário era possuidor em nome alheio; que o artigo 1037 n. 2 do Código Civil lhe atribuía meios de defesa possessória, contando-se, entre eles, a utilização do embargo de obra; e que o problema estaria em saber em que dimensão poderia fazer uso do embargo. Mencionou-se que o direito de uso e fruição do locado se traduzia no poder de ocupação de todo o seu espaço, dentro dos parâmetros de conforto e segurança para que o locado tenha aptidão. Mas acrescentou-se que a relação locativa já não tutelava todos os direitos que lhe são alheios, mencionando-se entre estes o direito ao repouso, descanso e a certo nível de ruído. E, entre a matéria de facto que se apontou como indicada pelo requerente para justificar o embargo salientou-se, alem do mais, que os ruídos e vibrações, acompanhados de poeiras, impossibilitavam o mínimo de higiene do interior do andar e mesmo, a permanência na casa. E concluiu-se que, invocando-se uma situação de ataque ao descanso, ao trabalho, e à permanência, na casa, do requerente e de toda a sua família, a providencia a utilizar em concreto não podia ser o embargo de obra nova. Assim, não se poderá dizer que o acórdão recorrido olvidou, sequer, a matéria de facto apontada pelo requerente. Poderá, no acórdão, não se ter pormenorizado a justificação da decisão ou até entender-se que a decisão não está certa. Mas não se lhe poderá apontar que tivesse deixado de pronunciar-se sobre a questão a decidir. Há que tomar posição sobre se o locatário pode usar, na defesa da sua posse, do procedimento cautelar de embargo de obra nova, e se esse procedimento é o adequado no presente caso. Sustenta o agravante que o direito do arrendatário é um direito real, oponível erga omnes, que não é posto em causa pelo facto de ter origem na celebração do contrato de locação. Porém, com o devido respeito, entende-se que não é isso o que resulta da lei. O artigo 1251 do Código Civil define a posse como o poder que se manifesta quando alguém actua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real. Há, assim, na posse, ao lado do poder de facto exercido sobre a coisa - corpus - a intenção de se comportar como titular do direito correspondente aos actos praticados - animus. E, segundo o Professor Orlando de Carvalho, Introdução à Posse, na R.L.J., ano 122, página 68, isso resulta, logo, do próprio artigo 1251: "definição em que são sensíveis a nota do corpus (quando alguém actua) e a nota do animus (por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade ou de outro direito real)". Mas que se entendesse que a necessidade da existência, na posse, do elemento psicológico não ressaltava do teor do artigo 1251, ela evidencia-se do artigo 1253 do Código Civil, ao enumerar casos em que há, apenas, simples detenção. Pelo que o direito português, no tocante à tutela da posse se enquadra no sistema subjectivo e não no objectivo. Ver, ainda, expressamente, neste sentido, o Código Civil Anotado dos Professores P. de Lima e A. Varela, volume III, 1 edição, página 5; o Professor A. Varela, na R.L.J., ano 117, página 338, em nota; e o Professor Mota Pinto, Direitos Reais, Lições compiladas por Álvaro Moreira e Carlos Fraga, (1970/71) página 185. Daí que, no sistema subjectivo, o locatário não exerça poderes a título de um direito real mas de um direito obrigacional. Isto mesmo referem o Professor Orlando de Carvalho, R.L.J. ano 122, página 68 e o Professor Vaz Serra na mesma Revista, ano 100, página 203. Também no Código Civil Anotado, já citado, se menciona o locatário como possuidor em nome alheio - pág. 7 - tendo-se escrito - pág. 9 - que nos casos de posse em nome alheio "há uma situação que tem por base um título da qual não resulta o direito real aparente, mas apenas o direito (ou obrigação) de reter a coisa e de a utilizar, são os casos do locatário...". E na jurisprudência, entre outros, no sentido apontado, indicam-se ac. da Rel. de Lisboa, de 2-4-76, na Col., ano I pág.478; ac. da Rel. de Évora, de 24-11-77, sumariado no Bol.273, pág.329; ac. do S.T.J., de 21-12-82, no Bol. 322, pág. 342; ac. do S.T.J., de 3-5-84, no Bol. 337, pág. 326; ac. do S.T.J., de 15-4-86, no Bol. 356, pág. 293. No entanto, e excepcionalmente, apesar de possuidor precário, o arrendatário goza de defesa possessória, nos termos do n. 2 do artigo 1037 do Código Civil, onde se dispõe que o locatário que for privado da coisa ou perturbado no exercício dos seus direitos pode usar mesmo contra o locador dos meios facultados ao possuidor nos artigos 1276 e seguintes. E embora já se tenha decidido que, apesar do disposto no transcrito n. 2 do artigo 1037, o locatário não pode acautelar o seu direito de fruição do prédio através do embargo de obra nova - ac. da Rel. do Porto, de 10-3-83, na Col. ano VIII tomo II pág. 220 - o certo é que a corrente jurisprudencial é no sentido inverso - ver entre outros: ac. da Rel. de Lisboa, de 20-2-63, na Jur. Rel., ano IX tomo I pág. 87; ac. da Rel. de Lisboa, de 2-4-73, sumariado no Bol. 226 pág.263; ac. da Rel. de Lisboa de 30-5-73, sumariado no Bol. 227, pág. 205; ac. da Rel. de Lisboa, de 7-4-83, na Col., ano VIII, tomo II pág.128; ac. do S.T.J., de 22-02-84, no Bol. 334, pág.445. Ainda no ultimo sentido, prof. A. dos Reis, no Cod. Proc. Civil Anot., vol. II, pág. 60, e o Dr. Moitinho de Almeida na Scientia Juridica, n. 73/74 pág.336. E assim deve ser já que, conforme o disposto no art. 2 do Cod. Proc. Civil, a todo o direito, excepto quando a lei determinar o contrário, (excepção que, no caso, não existe) corresponde uma acção destinada a fazê-lo reconhecer em juízo ou a realizá-lo coercivamente, bem como as providencias necessárias para acautelar o efeito útil da acção. Ora, nos termos do n. 1 do art. 412 do Cód. Proc. Civil, o embargo de obra nova pode ser requerido por quem se julgue ofendido no seu direito de propriedade... em qualquer outro direito real de gozo ou na sua posse, em consequência de obra, trabalho ou serviço novo que lhe cause ou ameace causar prejuízo. Só que, no caso em apreço, a obra que a Sociedade Construtora de Obras Gerais, Lda., leva a efeito no espaço contíguo ao prédio de que o Dr. A ocupa o terceiro andar, não contende directamente com a posse que este ali exerce. Com efeito, nem a dita Sociedade se arroga quaisquer direitos de propriedade ou posse sobre tal andar, nem a construção de que é dona impede a posse do locatário sobre todo o espaço correspondente ao andar. A construção que está em curso, em si, é indiferente em relação à posse exercida sobre o andar. Contra o que o agravante se insurge não é, propriamente contra a obra mas contra as condições em que ela está a ser executada, ou seja, como afirma no art. 58 da petição, sem se terem adoptado as providências técnicas indispensáveis a evitar o uso dos meios causadores dos ruídos e vibrações, a proceder à protecção exterior da obra com a cobertura adequada e à colocação dos andaimes com respeito das condições de segurança do prédio contíguo. E, para obviar aos prejuízos que invoca, decorrentes, não da obra em si mas da forma como se executa e que diz ofender, no caso directamente, direitos de personalidade, não é adequado o procedimento cautelar de embargo de obra nova, pois não está, fundamentalmente, em causa a defesa da posse do andar que, como titular em nome alheio, o requerente exerce. Termos em que se nega provimento ao agravo, condenando o agravante nas custas. Lisboa, 22 de Outubro de 1991. César Marques, Beça Pereira, Miguel Montenegro. |