Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 5.ª SECÇÃO | ||
Relator: | MARGARIDA BLASCO | ||
Descritores: | SUSPEIÇÃO ESCUSA IMPARCIALIDADE PRESSUPOSTOS | ||
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Data do Acordão: | 07/23/2020 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | ESCUSA | ||
Decisão: | DEFERIDO O PEDIDO DE ESCUSA. | ||
Indicações Eventuais: | TRANSITADO EM JULGADO | ||
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Sumário : | I - De harmonia com o disposto no n.º 1, do art. 43.º, do CPP, “a intervenção de um juiz no processo pode ser recusada quando correr o risco de ser considerada suspeita, por existir motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade”. Trata-se de regra que, constituindo excepção ao princípio do juiz natural, previsto no art. 32.º, n.º 9, da CRP, configura uma garantia fundamental do processo criminal, inserida, prevalentemente (em vista, maxime, da sua inserção sistemática), no âmbito da protecção dos direitos de defesa, para protecção da liberdade e do direito de defesa do arguido, garantindo o julgamento por um tribunal (um juiz) predeterminado e não ad hoc criado ou arvorado competente. O juiz natural só deve ser recusado quando se verifiquem circunstâncias assertivas e claramente definidas, sérias e graves, reveladoras de que o juiz pré-definido como competente (de modo aleatório) deixou de oferecer garantias de imparcialidade e isenção. O que vale por dizer que, em relação a qualquer processo, o juiz deve sempre ser reputado imparcial, em razão dos fundamentos de suspeição verificados. II - Nos termos do n.º 4, do art. 43.º, do CPP, embora o juiz não possa declarar-se voluntariamente suspeito, pode, porém, pedir ao tribunal competente que o escuse de intervir quando se verificarem aquelas condições. Esta disposição prevê um regime que tem como primeira finalidade prevenir e excluir as situações em que possa ser colocada em dúvida, a imparcialidade do juiz. A escusa constitui, deste modo, um dos instrumentos reactivos, uma das vias para atacar a suspeição. III - Existe suspeição quando, face às circunstâncias do caso concreto, for de supor que há um motivo sério e grave susceptível de gerar desconfiança sobre a imparcialidade do juiz, se este vier a intervir no processo. A escusa será assim um dos modos processuais, uma das cautelas legais, que rodeiam o desempenho do cargo de juiz, destinadas a garantir a imparcialidade e a assegurar a confiança geral na objectividade da jurisdição. IV - Nos termos do art. 203.º, da CRP, a administração da Justiça não é pensável sem um Tribunal independente e imparcial. A imparcialidade do Tribunal constitui um requisito fundamental do processo justo – art. 10.º, da Declaração Universal dos Direitos do Homem (DUDH), art. 14.º n.º 1, do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (PIDCP) e art. 6.º n.º 1, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem (CEDH). Na perspectiva das partes, as garantias de imparcialidade referem-se à independência do juiz e à sua neutralidade perante o objecto da causa. V - Ainda que a independência dos juízes seja, antes do mais, um dever ético-social, uma responsabilidade que tem a dimensão ou a densidade da fortaleza de ânimo, do carácter e da personalidade moral de cada juiz, não pode esquecer-se a necessidade de existir um quadro legal que promova e facilite aquela independência vocacional, por isso que é necessário, além do mais, que o desempenho do cargo de juiz seja rodeado de cautelas legais destinadas a garantir a sua imparcialidade e a assegurar a confiança geral na objectividade da jurisdição. VI - O fundamento da suspeição deverá ser avaliado segundo dois parâmetros: um de natureza subjectiva, outro de ordem objectiva. O primeiro indagará se o juiz manifestou, ou tem motivo para ter, algum interesse pessoal no processo, ficando assim inevitavelmente afectada a sua imparcialidade enquanto julgador. O segundo averiguará se, do ponto de vista de um cidadão comum, de um homem médio conhecedor das circunstâncias do caso, a confiança na imparcialidade e isenção do juiz estaria seriamente lesada. VII - Mas, se está em causa uma tarefa essencial no desempenho do Estado igualmente se procura defender a posição do Juiz, assegurando um instrumento processual que possibilite o seu afastamento quando, objectivamente, existir uma razão que minimamente possa beliscar a sua imagem de isenção e objectividade. É evidente que não podem ser razões menores, quantas vezes fruto de preconceitos, quando não de razões pessoais sem qualificação, mas sim razões objectivas que se coloquem de forma séria. Fundamental é a formulação de um juízo hipotético baseado na percepção que um cidadão médio sobre o reflexo na imparcialidade do julgador daquele facto concreto. Na verdade, do que falamos é do risco da perda de objectividade, do afastamento isento que é indiciado pelo facto objectivo. Aqui, importa salientar que é do conhecimento normal de um cidadão médio que tais atributos do exercício da jurisdição estão tanto mais afastados quanto maior for a proximidade do julgador em relação a factos do litígio que lhe é proposto julgar, nomeadamente quando tal proximidade é fruto de um conhecimento extraprocessual. | ||
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Decisão Texto Integral: | Proc. nº 38/17.9YGLSB (Pedido de escusa)
Acordam, em conferência, no Supremo Tribunal de Justiça
I.
1. AA, Juiz ... no Supremo Tribunal de Justiça, colocado na 3ª Secção Criminal, vem, ao abrigo do disposto no artigo 43º, n.º 1, do Código de Processo Penal (CPP), pedir escusa de intervenção no recurso penal em epígrafe, em que é recorrido o Sr. Juiz ... BB, com base nos seguintes fundamentos (transcrição):
(…) 1.No processo em referência é arguido BB, Juiz ... na Relação …. 2.Pessoa com quem estabeleci e mantive amizade durante mais de duas décadas. 3.Magistrado com quem trabalhei, no tribunal judicial da comarca de … durante vários anos. 4.Circunstâncias, porém, irrelevantes para fundamentar o presente pedido, como comprovam os vários inquéritos e processos em que aquele cidadão e Juiz foi denunciante, assistente ou mero interveniente processual e que correram termos nos serviços do Ministério Público de … que então eu próprio coordenava. 5.Sucede que o Sr. ..., arguido no vertente processo penal, irresignado por lhe ter indeferido reclamação hierárquica que me dirigiu em inquérito do Ministério Público da comarca de …, fez afirmações caluniosas, ofensivas da minha honra e da consideração com que se dignam distinguir-me as pessoas que me conhecem e comigo convivem socialmente e todas aquelas com quem trabalhei na já longa carreira profissional de 00 anos, recentemente completados. 6.Tive conhecimento que em outros processos persistiu em ofender-me com afirmações mais ou menos de idêntico jaez. 7.Desde então as relações de amizade estão cortadas. 8.Mais grave e importante para a economia deste requerimento é que o arguido em referência, ora recorrido apresentou denúncia na Procuradoria-Geral da República, que a transmitiu à Procuradoria-Distrital …, onde foi instaurado inquérito criminal, no qual fui constituído arguido e nessa posição processual prestei TIR e fui interrogado. 9.Inquérito que foi logo arquivado por inexistência de crime. 10.Conhecendo-o (ainda que não tão bem como pensava) desde longa data –dos tempos do Liceu- e a sua família (a de origem e a direta) e parecendo-me que, à data, poderia estar a atravessar um período difícil, acreditei que a decisão final que viesse a ser proferida no aludido processo da reclamação hierárquica, o faria refletir e consciencializar da grave ofensa que me tinha feito e acreditei que viria apresentar-me pedido de desculpas. 11.Efetivamente, naquele inquérito (da reclamação hierárquica indeferida), o ali assistente BB requereu a abertura da instrução e, tendo havido pronúncia, o Tribunal do julgamento proferiu sentença absolutória. 12.O ali assistente BB impugnou a sentença, tendo o Tribunal da Relação … confirmado a absolvição, julgando improcedente o recurso. 13.Consequentemente, os Tribunais – da 1ª e da 2ª instância -, confirmaram definitivamente que o despacho de arquivamento do inquérito, reclamado pelo assistente, era fundado e acertado e que a reclamação hierárquica foi factual e juridicamente bem decidida e justamente indeferida. 14.Não obstante o tempo, entretanto decorrido, o pedido de desculpas não foi apresentado e, nesta altura, damos por seguro que jamais surgirá e, de qualquer modo, já não seria tempestivo. 15.Ao invés. Quando nos parecia que o dissenso ficaria por ali, o ora arguido em reincidiu no procedimento persecutório, insistindo em não me esquecer e em não me deixar em paz. 16. Tanto assim que no primeiro trimestre de 2018, mandou extrair certidão de um requerimento apresentado por arguido em processo criminal a correr termos na Relação … e determinou que fosse enviada ao Conselho Superior do Ministério Público (CSMP), obviamente, para que me instaurasse procedimento disciplinar. 17.Na sequência, a hierarquia do M. º P. º determinou a abertura de Inquérito, no qual, não obstante então fosse já Juiz ... no Tribunal ..., mesmo assim, porque estava em comissão permanente de serviço, mantendo a categoria de Procurador Geral Adjunto, não deixei de prestei declarações, somente como inquirido, ainda que sendo o único visado. 18.Inquérito que, evidentemente, foi arquivado por a factualidade participada “não consubstanciar qualquer infracção disciplinar”. 19.Mas, estranhamente, também mandou remeter igual certidão ao Conselho Superior da Magistratura, somente explicável por me querer visar na qualidade de Magistrado graduado no concurso de acesso ao Supremo Tribunal de Justiça e já próximo de ser nomeado Juiz ... deste Supremo Tribunal de Justiça, como o ora arguido, enquanto Juiz ... participante bem sabia, pois também foi ele concorrente à mesma graduação, 20.Porque foi Inspetor judicial, tinha perfeito conhecimento e consciência plena de que, à data, o órgão de gestão da magistratura judicial não tinha sobre mim poder disciplinar. 21.Acresce que no referido requerimento do advogado – arguido no processo da Relação … -, aludia-se expressamente a uma publicação na imprensa escrita sobre a prova da minha entrevista no âmbito do procedimento do concurso de acesso a Juiz ... do Supremo Tribunal de Justiça. 22.Convicção corroborada pela particularidade de o subscritor do requerimento, arguido nesse processo, advogado, mestre em direito, profundo conhecedor dos órgãos de disciplina das magistraturas, sabia bem onde e a quem participar se essa fosse a sua vontade real. 23.Tanto assim que nos foi transmitido por magistrada judicial que o dito advogado a teria denunciado perante o CSM. 24.Em razão do exposto, exigia-se ao Sr. ..., arguido nestes autos, que naquele processo da Relação (que até nem lhe tinha sido distribuído, presidindo à audiência apenas por inerência das funções de presidente da secção), se abstivesse ou que tivesse pedido escusa para despachar sobre qualquer pretensão que me visasse, por patentes e demonstradas razões subjetivas de predisposição persecutória e por evidentes razões objetivas sobre a falta de confiança na sua imparcialidade em tal situação processual. 24.Sem falsa modéstia, avalizada pelo já longo percurso funcional, de que o processo da aludida reclamação hierárquica é apenas um bom exemplo, presumo de absoluta isenção e imparcialidade em qualquer ato praticado em cada um dos muitíssimos processos em que tive de intervir e da férrea impermeabilidade a qualquer tipo de pressão. Como, estou seguro, todos os profissionais e todas as pessoas que comigo alguma vez trabalharam bem sabem e jamais questionaram ou questionam. 25.Nunca a minha posição pessoal ou questões do foro íntimo ou social me influenciaram ou influenciarão, designadamente de modo a geraram a predisposição no sentido de beneficiar ou prejudicar qualquer pessoa com a decisão. 26.Mas, na vertente objectiva, a imparcialidade traduz-se na ausência de quaisquer circunstâncias externas, no sentido de aparentes, que permitam suspeitar que o Juiz possa ter um pendor a favor ou contra qualquer das partes no processo, afectando a confiança que os cidadãos depositam na isenção do tribunal. 27.Assim e não obstante a minha imaculada imparcialidade subjetiva, o concreto circunstancialismo fáctico que vem de expor-se é, parece-me, motivo sério e grave, suficiente a poder criar o risco de que a minha intervenção neste processo possa gerar, nos sujeitos processuais, isto é, no arguido, dúvidas acerca da imparcialidade do Tribunal que o vai julgar. 28. Se é certo que o julgamento será em tribunal coletivo, presidido pelo Exmo. Presidente da secção criminal, e que em matéria de facto não se admite voto de vencido e, por isso, a intervenção de um dos Juízes não possa, por si só, determinar o resultado do julgamento, contudo, em razão da distribuição, compete-me (não sendo escusado) relatar o acórdão a proferir. 29. Circunstância que poderia reforçar quaisquer dúvidas do arguido sobre a imparcialidade dos termos da decisão. 30. Complementarmente dá-se conta de que este Colendo Tribunal escusou-me de intervir em dois processos em que a mesma pessoa era sujeito processual, o último dos quais no julgamento do recurso interposto no proc. n.º 52/17.4YGLSB em que o aqui arguido surgia na posição de assistente. Assim e abrigo do disposto no arguido 43º n.º 1 do Código de Processo Penal, requeiro a V, ª Ex.ª que se digne escusar-me de intervir no julgamento a realizar no presente processo em que é arguido BB. (…).
2. Colhidos os vistos, conforme decorre do exame preliminar, foram os autos remetidos para conferência.
II.
3. De harmonia com o disposto no n.º 1, do artigo 43.º, do CPP, “a intervenção de um juiz no processo pode ser recusada quando correr o risco de ser considerada suspeita, por existir motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade”. Trata-se de regra que, constituindo excepção ao princípio do juiz natural, previsto no artigo 32.º, n.º 9, da Constituição da República Portuguesa (CRP), configura uma garantia fundamental do processo criminal, inserida, prevalentemente (em vista, maxime, da sua inserção sistemática), no âmbito da protecção dos direitos de defesa, para protecção da liberdade e do direito de defesa do arguido, garantindo o julgamento por um tribunal (um juiz) predeterminado e não ad hoc criado ou arvorado competente. O juiz natural só deve ser recusado quando se verifiquem circunstâncias assertivas e claramente definidas, sérias e graves, reveladoras de que o juiz pré-definido como competente (de modo aleatório) deixou de oferecer garantias de imparcialidade e isenção. O que vale por dizer que, em relação a qualquer processo, o juiz deve sempre ser reputado imparcial, em razão dos fundamentos de suspeição verificados. Nos termos do n.º 4, do artigo 43.º, do CPP, embora o juiz não possa declarar-se voluntariamente suspeito, pode, porém, pedir ao tribunal competente que o escuse de intervir quando se verificarem aquelas condições. Esta disposição prevê um regime que tem como primeira finalidade prevenir e excluir as situações em que possa ser colocada em dúvida, a imparcialidade do juiz. A escusa constitui, deste modo, um dos instrumentos reactivos, uma das vias para atacar a suspeição. Existe suspeição quando, face às circunstâncias do caso concreto, for de supor que há um motivo sério e grave susceptível de gerar desconfiança sobre a imparcialidade do juiz, se este vier a intervir no processo. A escusa será assim um dos modos processuais, uma das cautelas legais, que rodeiam o desempenho do cargo de juiz, destinadas a garantir a imparcialidade e a assegurar a confiança geral na objectividade da jurisdição. 4. Nos termos do artigo 203.º, da CRP, a administração da Justiça não é pensável sem um Tribunal independente e imparcial. A imparcialidade do Tribunal constitui um requisito fundamental do processo justo – artigo 10.º, da Declaração Universal dos Direitos do Homem (DUDH), artigo 14. ° n. º1, do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (PIDCP) e artigo 6. ° n.º 1, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem (CEDH). Na perspectiva das partes, as garantias de imparcialidade referem-se à independência do juiz e à sua neutralidade perante o objecto da causa. Ainda que a independência dos juízes seja, antes do mais, um dever ético-social, uma responsabilidade que tem a dimensão ou a densidade da fortaleza de ânimo, do carácter e da personalidade moral de cada juiz, não pode esquecer-se a necessidade de existir um quadro legal que promova e facilite aquela independência vocacional, por isso que é necessário, além do mais, que o desempenho do cargo de juiz seja rodeado de cautelas legais destinadas a garantir a sua imparcialidade e a assegurar a confiança geral na objectividade da jurisdição. 5. Como diz o Professor Jorge de Figueiredo Dias (em “Direito Processual Penal”, I, 1974, pág. 320), trata-se de “(…) um verdadeiro princípio geral de direito, actuante no domínio da política judiciária, que se esconde atrás de toda a matéria respeitante aos impedimentos e suspeições do juiz: o de que é tarefa da lei velar por que, em qualquer tribunal e relativamente a todos os participantes processuais, reine uma atmosfera de pura objectividade e de incondicional jurisdicidade”. E também neste sentido o Professor Manuel Cavaleiro de Ferreira (no “Curso de Processo Penal”, 1986, pp. 141/142): “Não importa que, na realidade, o juiz permaneça imparcial; interessa sobretudo considerar se, em relação com o processo, poderá ser reputado imparcial, em razão dos fundamentos de suspeição que a lei indica”. Salientava Manzini (ut Figueiredo Dias, ob. cit., nota 33, pp. 315/316), com impressiva clareza, que “o judex suspectus deve, em vista de qualquer motivo sério, ser dispensado como juiz num processo em que, tendo em conta a força média de resistências às causas internas que possam influir danosamente sobre o julgamento, seja razoavelmente de presumir que possa estar sujeito a paixões ou preocupações contrárias à recta administração da justiça”. 6. O mesmo pensamento é expresso pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem: “a imparcialidade da jurisdição não é só a imparcialidade subjectiva. É também a imparcialidade objectiva que deve ser assegurada.... Afinal, trata-se da confiança que os tribunais de uma sociedade democrática devem inspirar às partes.... Deve, pois, recusar-se qualquer juiz relativamente ao qual se possa legitimamente recear a existência de uma falta de imparcialidade... O elemento determinante consiste em saber se as apreensões do interessado podem ter-se como objectivamente justificadas” - Caso Hauschildt, cit. no acórdão, do Tribunal Constitucional, n.º 52/92, no DR, I-A, de 14-3-92. Ver ainda, por mais significativo, Renée Koering-Joulin, “La notion européenne de tribunal indépendant et imparcial au sens de l’article 6.º, par. 1, de la Convention européenne de sauvegarde des droits de l’homme”, na “Revue de science criminelle e de droit pénal compare”, n.º 4, Out/Dez 1990, pp. 766 e segs., ut Conselheiro Henriques Gaspar, no voto de vencido referenciado infra. 7. Por último, como a doutrina e a jurisprudência têm assinalado, o fundamento da suspeição deverá ser avaliado segundo dois parâmetros: um de natureza subjectiva, outro de ordem objectiva. O primeiro indagará se o juiz manifestou, ou tem motivo para ter, algum interesse pessoal no processo, ficando assim inevitavelmente afectada a sua imparcialidade enquanto julgador. O segundo averiguará se, do ponto de vista de um cidadão comum, de um homem médio conhecedor das circunstâncias do caso, a confiança na imparcialidade e isenção do juiz estaria seriamente lesada. Conforme refere PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, “[a] imparcialidade pode ser apreciada de acordo com um teste subjectivo ou um teste objectivo, O teste subjectivo da imparcialidade visa apurar se o juiz deu mostras de um interesse pessoal no destino da causa ou de um preconceito sobre o mérito da causa. Ao aplicar o teste subjectivo a imparcialidade do juiz deve ser presumida e só factos objectivos evidentes devem afastar essa presunção. (...) O teste objectivo da imparcialidade visa determinar se o comportamento do juiz, apreciado do ponto de vista do cidadão comum, pode suscitar dúvidas fundadas sobre a sua imparcialidade”[1]. Mas, se está em causa uma tarefa essencial no desempenho do Estado igualmente se procura defender a posição do Juiz, assegurando um instrumento processual que possibilite o seu afastamento quando, objectivamente, existir uma razão que minimamente possa beliscar a sua imagem de isenção e objectividade. É evidente que não podem ser razões menores, quantas vezes fruto de preconceitos, quando não de razões pessoais sem qualificação, mas sim razões objectivas que se coloquem de forma séria. Fundamental é a formulação de um juízo hipotético baseado na percepção que um cidadão médio sobre o reflexo na imparcialidade do julgador daquele facto concreto. Na verdade, do que falamos é do risco da perda de objectividade, do afastamento isento que é indiciado pelo facto objectivo. Aqui, importa salientar que é do conhecimento normal de um cidadão médio que tais atributos do exercício da jurisdição estão tanto mais afastados quanto maior for a proximidade do julgador em relação a factos do litigio que lhe é proposto julgar, nomeadamente quando tal proximidade fruto de um conhecimento extraprocessual.
8. Dito isto, apreciemos o caso em apreço.
O Magistrado requerente é Juiz ... do Supremo Tribunal de Justiça, afecto à 3.ª Secção Criminal, tendo-lhe sido distribuído um recurso penal em que figura como recorrido o Sr. Juiz ... BB. Como fundamento do seu pedido de escusa alega, aqui em síntese, que o Sr. Juiz ... Requerente que estabeleceu e manteve amizade com o Sr. Juiz ... BB durante mais de duas décadas, com ele tendo trabalhado no tribunal judicial da comarca de … durante vários anos. Sucede que o Sr. ..., arguido e recorrido no vertente processo penal, inconformado por lhe ter indeferido uma reclamação hierárquica em inquérito do Ministério Público da comarca de …, fez algumas afirmações caluniosas, quer em requerimento apresentado no aludido inquérito, quer em outros processos, ofensivas da integridade profissional e da honra e consideração social do escusante, estando, desde então, cortadas as relações de amizade. Sucedendo ainda que o referido Sr. ... apresentou contra o Requerente, denúncia na Procuradoria-Geral da República, que a transmitiu à Procuradoria-Distrital …, tendo sido instaurado inquérito criminal, no qual o Requerente foi constituído arguido e interrogado, inquérito esse que foi imediatamente arquivado por inexistência de crime. E, acrescenta o Requerente, há menos de um ano, o Sr. ... em referência mandou extrair certidão de um requerimento apresentado em processo criminal a correr termos na Relação …, tendo determinado o seu envio ao Conselho Superior do Ministério Público (CSMP), para eventual instauração de procedimento disciplinar, sucedendo que, determinada a abertura de Inquérito, no qual foi inquirido, o mesmo inquérito foi arquivado por a factualidade participada "não consubstanciar qualquer infracção disciplinar". Determinou ainda o Sr. Juiz ... referenciado, o envio de igual certidão ao Conselho Superior da Magistratura, que à data não detinha poder disciplinar sobre o requerente, pois, nessa altura o mesmo era Juiz ... do Tribunal ... em comissão permanente de serviço. Corria então a graduação a este Supremo Tribunal de Justiça em que o Sr. ... era também oponente. Alega por fim o requerente que já foi escusado em dois processos em que o Sr. ... era sujeito processual, o último dos quais no julgamento do recurso interposto no proc. n.º 52/17.4YGLSB em que aquele surgia na posição de assistente.
Vejamos.
9. No que respeita à vertente subjectiva, nos termos assinalados no ponto 7. deste acórdão, não se descortina um quadro que possa inculcar ou favorecer uma possível quebra de imparcialidade por parte do Sr. Juiz ... peticionante. À semelhança de casos similares, este Supremo Tribunal tem entendido que “sendo o presente processo suscitado por um pedido de escusa do próprio magistrado, estamos perante uma atitude que só pode ser qualificada de escrupulosa”[2]. Contudo, para efeito de apresentação do pedido de escusa, o que importa é determinar se um cidadão médio, representativo da comunidade, pode fundadamente, suspeitar que o juiz, influenciado pelo facto invocado, deixe de ser imparcial e, injustamente o prejudique. Na verdade, como refere GERMANO MARQUES DA SILVA (p. 199), “quando a imparcialidade da jurisdição possa ser posta em causa, em razão da ligação do juiz com o processo ou porque nele já teve intervenção noutra qualidade ou porque tem qualquer relação com os intervenientes, que façam legitimamente suspeitar da sua imparcialidade, há necessidade de o afastar do processo”. Os motivos sérios e graves, adequados a gerar desconfiança sobre a imparcialidade do julgador, hão-de pois resultar de objectiva justificação, avaliando as circunstâncias invocadas pelo requerente não pelo convencimento subjectivo deste, mas pela valoração objectiva das mesmas circunstâncias a partir do senso e experiência comuns, conforme juízo do cidadão de formação média da comunidade em que se insere o julgador.
Do ponto de vista objectivo, perante a situação invocada como fundamento da escusa requerida, é de admitir que qualquer cidadão da comunidade onde se situa o julgador , aqui o recorrente, possa contestar a sua imparcialidade, se nessa qualidade prosseguir nos autos, podendo pô-la em causa, possibilidade esta tanto mais previsível, porquanto a estrutura normativa das sociedades actuais que usualmente reclamam rigor e transparência, vêm cada vez mais exigindo exteriorização objectiva de demonstração de probidade funcional. Como se lê em acórdão deste Supremo Tribunal, de 21.03.2013: “Na perspectiva objectiva, em que são relevantes as aparências, intervêm, por regra, considerações de carácter orgânico e funcional (v. g., a não cumulação de funções em fases distintas de um mesmo processo), mas também todas as posições com relevância estrutural ou externa, que de um ponto de vista do destinatário da decisão possam fazer suscitar dúvidas, provocando o receio, objectivamente justificado, quanto ao risco da existência de algum elemento, prejuízo ou preconceito que possa ser negativamente considerado contra si. Mas devem ser igualmente consideradas outras posições relativas que possam, por si mesmas e independentemente do plano subjectivo do foro íntimo do juiz, fazer suscitar dúvidas, receio ou apreensão, razoavelmente fundadas pelo lado relevante das aparências, sobre a imparcialidade do juiz; a construção conceptual da imparcialidade objectiva está em concordância com a concepção moderna da função de julgar, e com o reforço da legitimidade interna e externa do juiz nas sociedades democráticas de direito. A imparcialidade objectiva apresenta-se, assim, como um conceito que tem sido construído muito sobre as aparências, numa fenomenologia de valoração com alguma simetria entre o "ser" e o "parecer". Por isso, para prevenir a extensão da exigência de imparcialidade objectiva, ou numa tese maximalista da imparcialidade, impõe-se que o fundamento ou motivos invocados sejam, em cada caso, apreciados nas suas próprias circunstâncias, e tendo em conta os valores em equação - a garantia externa de uma boa justiça, que seja, mas também pareça ser. As aparências são, pois, neste contexto, inteiramente de considerar, sem riscos devastadores ou de compreensão maximalista, quando o motivo invocado possa, em juízo de razoabilidade, ser considerado fortemente consistente («sério» e grave») para impor a prevenção. O pedido de recusa do juiz para intervir em determinado processo pressupõe, e só poderá ser aceite, quando a intervenção correr o risco de ser considerada suspeita, por existir motivo sério e grave adequado a gerar dúvidas sobre a sua imparcialidade (...).”
10. Quanto à vertente objectiva e atentando ao peticionado, parece-nos existir um motivo sério e grave de a intervenção do Senhor Juiz ... requerente poder suscitar sérias reservas sobre a sua imparcialidade traduzido no concreto circunstancialismo fáctico que se vem de expor. Como diz o peticionante, tais factos consubstanciam e cita-se: (…) motivo sério e grave, suficiente a poder criar o risco de que a minha intervenção neste processo possa gerar dúvidas acerca da imparcialidade do Tribunal de recurso (…).
Conforme se tira do acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, de 08.01.2015, proferido no processo n.º 6099/13.2TDPRT.P1-A. S1 - 5.ª Secção: “A independência dos juízes constitui "a mais irrenunciável característica do «julgar» e, portanto, da função judicial" {Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, Coimbra, Coimbra Editora, 1974, p. 303), só assim se realizando o princípio da separação dos poderes. “Sendo, por conseguinte, os tribunais no seu conjunto — e cada um dos juízes de per si — órgãos de soberania (...) e pertencendo só a eles a função judicial (...), tem por força de concluir-se que a independência material (objectiva) dos tribunais — reforçada pela independência pessoal (subjectiva) dos juízes que os formam — é condição irrenunciável de toda verdadeira jurisprudência" [idem, p. 303-4). Se, por um lado, a característica da independência dos juízes assegura que estejam livres de pressões exteriores, por outro lado, "isto não basta para que fique do mesmo passo preservada a objectividade de um julgamento: é ainda necessário, ao lado e para além daquela segurança geral, não permitir que se ponha em dúvida a «imparcialidade» dos juízes, já não em face de pressões exteriores, mas em virtude de especiais relações que os liguem a um caso concreto que devam julgar. (...) [E] o que aqui interessa — convém acentuar — não é tanto o facto de, a final, o juiz ter conseguido ou não manter a imparcialidade, mas sim defendê-lo da suspeita de a não ter conservado, não dar azo a qualquer dúvida, por esta via reforçando a confiança da comunidade nas decisões dos seus magistrados" [ibidem, p. 315). Na verdade, a lei, ao estabelecer as situações em que o juiz pode pedir a escusa, está a realizar a tarefa de velar "por que, em qualquer tribunal (...) reine uma atmosfera de pura objectividade e de incondicional juridicidade. Pertence, pois, a cada juiz evitar, a todo o preço, quaisquer circunstâncias que possam perturbar aquela atmosfera, não - uma vez mais o acentuamos - enquanto tais circunstâncias possam fazê-lo perder a imparcialidade, mas logo enquanto possa criar nos outros a convicção de que ele a perdeu" (Ibidem, p. 320)” (negrito nosso). Ora, transpondo para o caso presente, entendemos que o motivo sério e grave susceptível de gerar desconfiança sobre a imparcialidade do Sr. Juiz ... Requerente reside no circunstancialismo invocado quanto ao concreto relacionamento interpessoal com o Sr. ... BB, recorrido no recurso penal distribuído àquele Magistrado, e às participações contra si apresentadas pelo mesmo, quer para efeitos de procedimento criminal, quer para efeitos de procedimento disciplinar. Concatenando o que se vem de dizer e perante o circunstancialismo apresentado no pedido de escusa, consideramos que a intervenção do Requerente no recurso penal que lhe foi distribuído, pode razoavelmente correr o risco de ser considerada suspeita, podendo ser contestada a sua imparcialidade, suficiente a poder criar o risco de que a sua intervenção neste processo possa gerar dúvidas acerca da imparcialidade do Tribunal de recurso.
11. Destarte, no caso concreto, existe legítimo fundamento para a escusa requerida, pelo que se defere a mesma.
III.
12. Por tudo o exposto, acordam os Juízes do Supremo Tribunal de Justiça:
Processado e revisto pela relatora, nos termos do disposto no artigo 94.º, n.º 2 do CPP, e assinado eletronicamente pelos signatários subscritores. 23 de Julho de 2020
Margarida Blasco- Relatora Helena Moniz- Adjunta Fernando Pinto de Almeida- Adjunto Clara Sottomayor- Presidente
_______________________________________________________ [1] Comentário do Código de Processo Penal, 3.ª Edição Actualizada, Universidade Católica Editora, pp. 128-130. [2] Cfr. por todos, o acórdão proferido no Proc. n.º 100/11.1YFLSB.S1 - 3.ª Secção de 09-11-2011.
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