Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1728/19.7YRLSB-A
Nº Convencional: 5ª SECÇÃO
Relator: HELENA MONIZ
Descritores: PRISÃO ILEGAL
MANDADO DE DETENÇÃO EUROPEU
NULIDADE
AUTORIDADE JUDICIÁRIA
COMPETÊNCIA
JUIZ
PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO
DIREITO DE DEFESA
Data do Acordão: 07/19/2019
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: HABEAS CORPUS
Decisão: INDEFERIDO
Área Temática:
DIREITO PROCESSUAL PENAL - MEDIDAS DE COACÇÃO E DE GARANTIA PATRIMONIAL / MEDIDAS DE COACÇÃO / MODOS DE IMPUGNAÇÃO / HABEAS CORPUS EM VIRTUDE DE PRISÃO ILEGAL.
Doutrina:
- Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa, Anotada, vol. I, Coimbra Editora, 2007, p. 508.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO PENAL (CPP): - ARTIGOS 222.º, N.º 2 E 223.º, N.º 1.
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA (CRP): - ARTIGO 31.º, N.ºS 1 E 2.
MANDADO DE DETENÇÃO EUROPEU (MDE), APROVADO PELA LEI N.º 65/2003, DE 23 DE AGOSTO: - ARTIGOS 18.º, 24.º, N.º 1, ALÍNEA B) E 30.º, N.ºS 1 E 2.
Jurisprudência Internacional:
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DA UNIÃO EUROPEIA (TJUE):


- DE 27-05-2019, IN HTTP://CURIA.EUROPA.EU/JURIS/DOCUMENT/DOCUMENT.JSF?TEXT=&DOCID=214466&PAGEINDEX=0&DOCLANG=PT&MODE=LST&DIR=&OCC=FIRST&PART=1&CID=2417397.
Sumário :
I - A requerente deste pedido de habeas corpus foi detida para que fosse assegurado o cumprimento do MDE. Na verdade, tendo em conta o princípio do reconhecimento mútuo que subjaz à emissão destes Mandados, cabe ao Estado de execução assegurar o seu cumprimento evitando que, até à decisão final de envio da pessoa visada ao Estado requerente, haja fuga da pessoa, determinando para tanto as medidas que considere necessárias, adequadas e proporcionais, e em respeito pelos direitos fundamentais de todos os cidadãos, a diminuir ou mesmo excluir aquele perigo de fuga.
II - Verifica-se, no entanto, que a audição e audiência, no processo relativo ao MDE, da aqui requerente, a 24-06-2019, ocorreram no seguimento do MDE de 2017. Este MDE foi apenas assinado pelo procurador, e tendo em conta a recente jurisprudência do TJUE pode considerar-se ferido de ilegitimidade a partir do momento que não foi emitido por autoridade judiciária.
III - Porém, verifica-se que, aquando da detenção e aquando da audição e audiência posterior, já havia um outro MDE, de 14-06-2019, emitido pela autoridade judiciária competente, o juiz do Tribunal.
IV - Dada a equivalência total entre o MDE de 2017 e o atual, apenas diferindo na parte respeitante à entidade emissora, o Tribunal da Relação considerou, em despacho 02-07-2019, que a detenção se mantinha válida, tendo, no entanto, dado conhecimento do segundo MDE assim assegurando o necessário contraditório; foi ainda realizada nova audição e audiência da aqui requerente.
V - A partir do momento em que foi realizada nova audição já com a informação sobre o novo MDE de 2019, e a partir do momento em que foi realizada nova audiência e aplicadas as medidas de coação adequadas nos termos do art. 18.º, da LMDE, não se vê como se possa considerar estarmos perante uma prisão ilegal, ou aplicada por autoridade incompetente.
VI - Ainda que não tivesse sido realizada nova audição, nova audiência, e nova decisão sobre as medidas a aplicar, o certo é que, havendo um MDE anterior à detenção emitido por autoridade competente, com os mesmos fundamentos do anterior, não se vê como se possa considerar que a necessária defesa da arguida e o exercício do contraditório não estivesse assegurada, tanto mais que ainda lhe cabia apresentar a oposição à execução do MDE.
VII - A requerida encontrava-se em cumprimento de medida de coação porque, atenta a inexistente ligação da requerida ao nosso país, apresentava um perigo sério de fuga, mostrando-se a privação da liberdade como a medida mais adequada a assegurar as finalidades do MDE.
VIII - Após a audiência realizada a 17-07-2019, foi já em acórdão do Tribunal da Relação (do mesmo dia) julgada improcedente a oposição apresentada pela requerida à execução do MDE e foi determinado o seu cumprimento, tendo sido decidida a entrega da requerida às autoridades alemãs.
IX - Tendo sido prolatada decisão quanto à execução do MDE, esta decisão apenas poderá ser contestada em sede de recurso nos termos do art. 24.º, n.º 1, al. b), da LMDE.
X - Tendo o acórdão do Tribunal da Relação sido prolatado a 17-07-2019, não foi sequer ultrapassado o prazo de detenção até à decisão pelo Tribunal da Relação (que é de 60 dias segundo o disposto no art. 30.º, n.º 1, da LMDE; sendo que este prazo se estende para 90 dias, desde a detenção da pessoa procurada, no caso de ser interposto recurso da decisão do Tribunal da Relação — art. 30.º, n.º 2, da LMDE).
Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça



I - Relatório


1. AA, detida desde 22.06.2019, ao abrigo de Mandado de Detenção Europeu (MDE) da …, de acordo com a Lei n.º 65/2003, de 23.08, veio requerer a providência de habeas corpus, ao abrigo do disposto no art. 222.º, n.º 2, als. b) e c), do Código de Processo Penal (CPP), com os seguintes fundamentos:

« I. RAZÕES DE FUNDO

1. AA, de nacionalidade …, …, …, inscrita na Ordem dos …, com escritório na Via …, …, …, …/…, e residente há trinta anos na …, com domícilio convencional na Avª …, … -… …, …, é vítima de um complot digno de um filme de ação:

2. A Requerente foi casada com o . …, durante mais de uma década, nos conturbados anos 70, de relações difíceis entre as duas nações divididas por ódios e convicções políticas extremistas.

3. BB, além de … foi ainda representante e embaixador da …, antes da sua unificação, nas Nações Unidas, onde participou de forma ativa e pública, em lides políticas difíceis e arriscadas do período conturbado em que os dois Estados germânicos se digladiavam.

4. A Requerente teve igualmente um cargo nas … em representação da …, durante cerca de dez anos também onde participou na actividade político diplomática do marido.

5. Na Europa, como ser solidário e atuante junto do marido, este como parlamentar e líder politico e partidário, e na …, o exercício dos cargos que ocupou deu à requerente uma grande notoriedade, para além de como jovem … se ter envolvido em questões relevantes nas posições relativas à unificação da …, muitas vezes controversas e de conhecimento público em que se envolveram.

6. Infelizmente o marido faleceu pouco depois do divórcio, separação que nunca abalou a solidariedade que os uniu até ao fim, estando segura que se ele estivesse vivo, nada do que se passa lhe aconteceria.

7. Aquele longo período de exposição pública e de combate politico deu-lhes o que hoje podemos chamar de uma infeliz notoriedade, que a coloca na situação de ser vitimizada, por algo ou alguém das autoridades policiais e ligadas à Procuradoria de Justiça … (…), que pretende vindicativamente destruir-lhe a carreia profissional aos sessenta e dois anos, quando não praticou profissionalmente nada que não correspondesse ao exercício da … …., com riscos conhecidos dos investidores importantes, aconselhados tecnicamente e experientes (não é um ser ignorante que investe 100 milhões de euros), de acordo com a rigorosa deontologia profissional a que se encontra adstrita.

8. Haja em vista que dos autos, ou melhor do Formulário A, constam os processos em curso contra os Autores do crime de fraude, tendo havido já condenações, o que ali se afirma e prova documentalmente ex vi docº 1, junto, cujo conteúdo se dá aqui por reproduzido.

9. A Requerente, ao ser ameaçada de lhe destruírem a carreira profissional tentou em vão, através de um novo acordo financeiro, com a CC, em Dezembro de 2011, que formalizou no docºs 2 a 6, juntos, idem, recuperar os valores de que se apropriaram os já condenados DD – Cfr. docº 3, junto, idem - EE e FF, este em fuga às autoridades americanas.

10. A queixa de que é vítima, constitui uma forma de chantagem indigna de quem pretende que a mesma venha a assumir o prejuízo da operação financeira.

11. Neste quadro, sem que pudesse suspeitar da vigilância de que era alvo pelas autoridades policiais da …, a Requerente foi alvo de dois Mandados de Detenção Europeu, o primeiro datado de 19 de setembro de 2017 e o segundo, datado de 14 de junho de 2019, que são acompanhados do preenchimento do Formulário A, conforme Doc.s 7 e 8 juntos idem.

12. Aproveitamos a referência a estes documentos para, desde já, apontarmos a nulidade resultante de falsificação da tradução, nos dois documentos, facto previsto e punido pelo art.º 360 do Código Penal, ato grave e atentório da realização da justiça, tão mais reprovável considerada a sua autoria – não pode ser ignorância – confirmando a existência de uma cabala que pretende a sua destruição. Mas porque?. Deus saberá.

13. Vitimizada pelo abuso de poder, a Requerente tem estado sujeita à mais humilhante e indigna detenção, tendo passado os primeiros quatro dias, na esquadra policial do Aeroporto, numa cela sem luz, bafienta e húmida donde saiu com uma congetivite, privada de água, sabão e papel higiénico – não lhe tendo sido sequer entregues a escova de dentes, a pasta dentífrica , o sabonete e o garrafão de água que os advogados lhe destinaram- nunca se tendo podido lavar ou fazer a mais rudimentar higiene íntima.

14. Os abusos de que é vítima poderão não ser considerados um fundamento típico do CPP, do crime de dano, mas estão a ferir o respeito pela dignidade humana, num contexto de um espaço europeu, que se pretende justo, mas que se contradiz, na medida em que sobreleve, sobrestima e valoriza “ad infinitum” a eficácia persecutória da repressão, como se ela fosse o maior valor que uma comunidade de Estados tivesse que realizar.

15. Num outro contexto, ainda muito mais grave, a Requerente tem sido vitimizada também na cadeia de …, aboletada com duas mulheres de etnia … (que respeita) na mesma cela, que se espancaram desenfreadamente durante mais de uma hora, aterrorizando-a e não lhe permitindo sequer dormir, traumatizada pelo choque e pelo medo.

16. Nenhum dos diversos pedidos de entrega dos 50 euros que depositou, há oito dias, foi satisfeito, como o não foi o de emissão do atestado médico relativo à congetivite de que ali foi tratada.

17. Tais abusos são objeto de queixa à Associação de Defesa dos Direitos Humanos (ACED) tendo suscitado do respetivo presidente – Prof. Doutor ... – o pedido de intervenção às autoridades carcerárias.

18. O Estado Português não investiga os abusos que se saiba e nada há que se possa, com sentido útil, fazer a não ser eventualmente buscar a exautoração do Estado que as consente e pratica, pedindo a condenação internacional pela violação manifesta do art.º 46º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, violação que, como bem se vê, assume as características de resistência ao Direito Internacional dos Direitos do Homem, em soluções generalizadamente usadas na manutenção de quaisquer detenções, em nome do respeito pelo Estado requerente.

19. Em consequência da emissão do MDE a Requerente é mantida em prisão preventiva, qualificada de ilegal e que teoricamente tem como quadro a licitude da ação, a prática decisória assente na teórica equidade do processo, atenta a independência do tribunal, apesar da presunção de inocência, da violação do princípio constitucional do juiz natural, previsto na lei alemã e na CRP e das postergadas garantias de defesa.

20. Ora, de quanto se narrou já, é evidente que não tem existido um processo equitativo, não foram respeitadas as garantias de defesa e não há a demonstração de qualquer respeito pela presunção de inocência, que seja minimamente visível.

21. As exigências da celeridade típicas do regime do MDE, em face dos prazos definidos nos art.ºs 16 a 22 da Lei 675/2003, em nada favoreceram, na prática, a longa prisão preventiva (absolutamente inúteis do ponto de vista da investigação material ou da obtenção de qualquer prova consistente).

22. Os requisitos de celeridade, do cumprimento do principio da legalidade e o respeito pelos direitos fundamentais, têm suporte nos critérios jurisprudenciais do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem que exigem, cujo cumprimento tanto em relação à adequação material da prisão preventiva, e ao respeito pelo principio da legalidade, se não verifica, no presente processo pois:

a) A requerente foi objeto de um MDE, datado de 19/09/2017, emitido pelas autoridades ministeriais …, que provocou a sua detenção no dia … de Junho de 2019, no aeroporto de …;

b) Tendo sido presente ao Tribunal da Relação de Lisboa no dia 24 de Junho de 2019, foram cumpridos os formalismos previstos nos art.ºs 16º a 18º da Lei 65/2013;

c) A Requerente foi ali ouvida e apesar da dedução de oposição ao cumprimento do mandado, foi-lhe aplicada a medida de detenção provisória e concedido prazo para oposição;

d) Em 4 de Julho de 2019 a Requerente deduziu duas oposições que endereçou ao Tribunal da Relação de Lisboa:

d.1. Uma, doc.º 9, idem, em que impugnou a prisão preventiva e defendeu a falta de fundamentação para a entrega às autoridades alemãs;

d.2. Outra, doc.º 10, junto, idem, entregue em consequência de ter sido notificada da promoção levada a cabo pelo MM Publico, junto do Tribunal da Relação.

PERMITA-SE-NOS RESSALTAR, SENHORES CONSELHEIROS:

23. No prazo que lhe foi concedido para deduzir oposição, a requerida foi surpreendida pela notificação, no dia 2 de Julho, do douto despacho proferido pela ilustre Senhora Desembargadora, datado de 1 de Julho de 2019, o qual por uma razão logica só abaixo se transcreve, proferido em consequência da junção aos autos, de um novo MDE, datado de 14 de Junho de 2019, com o nº 29-GS 5417/19, pela Procuradoria Geral da República de … (…), como consta do papel impresso sob o Brazão do Estado … e do carimbo da carta que capeia aquele mandado e da consequente douta promoção, do Ilustre Senhor Procurador Geral Adjunto, que se transcreve:

O Tribunal de Justiça da União Europeia em decisão proferida em 27 de Maio de 2019 levantou algumas reservas quanto ao PMDB emitido por procurador …. Por tal motivo, às autoridades judiciárias …, por cautela, remeteram novo MDE, agora emitido por autoridade judicial. Foi o caso dos presentes autos em que, tendo a requerida AA sido detida na consequência de MDE emitido por Procurador …, a … remeteu novo MDE, respeitante à mesma requerida, emitido por autoridade judicial em 14 junho de 2019.

Lisboa 1 julho 2019 O Procurador Geral Adjunto, assinatura ilegível.”

24. Em face da promoção supra, foi proferido pela Senhora Desembargadora o douto despacho referido, cujo teor é o seguinte:

“O mandado de detenção europeu emitido por autoridade judicial, é anterior à detenção da requerida, sendo certo que mesmo que não fosse anterior, desde que ratificasse o mandado anterior, seria sempre válida, como se pronunciou já o TJUE. Assim nada a ordenar a não ser que se dê conhecimento à requerida do seu teor”.

25. Decorre claramente da identificação dos dois mandados, pelas respetivas datas de emissão (17 /7/ 2017 e 19/6/2019) e pela sua numeração (120 ARH e 29 Gs5417/19), não poder deixar de se concluir, tratar-se de um novo mandado de detenção que, tem o efeito de revogar o mandado anterior – não podem coexistir dois atos com o mesmo objeto e em que o segundo revoga com um novo fundamento, traduzido na afirmação do Senhor Procurador Adjunto de que fora emitido por uma autoridade judiciária, o que confessa não ocorrer no anterior - e o qual teria que seguir os trâmites dos art.ºs 16º a 22º da Lei n.º 65/2003, de 23 de Agosto, pelo que não o tendo feito, se encontra ferido de nulidade insuperável.

26. Tanto mais que seria inadmissível a existência de dois MDE, emitidos pelo mesmo Estado membro, tendo a mesma finalidade, a detenção da Requerente.

27. Em face da duplicação apontada, a primeira questão a tratar refere-se à identificação do efeito ou consequências da emissão de um segundo MDA que, sendo completamente autónomo pela sua identificação e data de emissão, junta um elemento novo que, o distingue do anterior, a particularidade confessada na douta promoção do MM publico, de que “O Tribunal de Justiça da União Europeia em decisão proferida em 27 de Maio de 2019 levantou algumas reservas quanto ao PMDB emitido por procurador …. Por tal motivo, às autoridades judiciárias …, por cautela, remeteram novo MDE, agora emitido por autoridade judicial .”

28. Do que resulta a prova por confissão, que aceite não poderá ser posta em causa, tratar-se de um novo MDE, distinto do anterior que tinha sido emitido por uma autoridade não judiciária, e pretendendo-se, aliás erradamente, - o que encerra uma questão a ser tratada em sede de recurso - que o novo MDE o era.


II. NULIDADE DO PROCESSO POR OMISSÃO DA PRÁTICA DE FORMALIDADES ESSENCIAIS “AD SUSBTANTIAM”, QUE ALEI EXIGE NOS TERMOS DO ART.º 195 DO CÓDIGO DO PROCESSO CIVEL

29. Tratando-se de um novo MDE, do que não poderá duvidar-se, teriam que terem sido cumpridos os preceitos citados, art.ºs 16º a 22º da Lei n.º 65/2003, de 23 de Agosto, ou seja:

a) O Artigo 16.º, impõe a obrigatoriedade de um novo despacho liminar e de detenção da pessoa procurada, nos seguintes termos:

1 - Recebido o mandado de detenção europeu o Ministério Público junto do tribunal da relação competente promove a sua execução no prazo de quarenta e oito horas.

2 - Efetuada a distribuição, o processo é imediatamente concluso ao juiz relator para, no prazo de cinco dias, proferir despacho liminar sobre suficiência das informações que acompanham o mandado de detenção europeu, tendo especialmente em conta o disposto no artigo 3.º

3 - Se as informações comunicadas pelo Estado membro de emissão forem insuficientes para que se possa decidir da entrega, serão solicitadas com urgência as informações complementares necessárias, podendo ser fixado prazo para a sua receção.

4 - A autoridade judiciária de emissão pode transmitir, por sua iniciativa, a qualquer momento, todas as informações suplementares que repute úteis.

5 - Quando o mandado de detenção europeu contiver todas as informações exigidas pelo artigo 3.º e estiver devidamente traduzido é ordenada a sua entrega ao Ministério Público, para que providencie pela detenção da pessoa procurada.

6 - A detenção da pessoa procurada obedece aos requisitos estabelecidos no Código de Processo Penal para a detenção de suspeitos.

30. Foram completamente ignorados os comandos imperativos de defesa dos direitos da Requerida, com o despacho que considerou o novo MDE, como ato meramente reparador do anterior.

31. Do mesmo modo foram violados os Direitos da detida previstos no art.º 17, da Lei em causa, ao não terem sido satisfeitos e cumpridos os direitos à informação e exercício de defesa, nos termos ali previstos:

1 - A pessoa procurada é informada, quando for detida, da existência e do conteúdo do mandado de detenção europeu, bem como da possibilidade de consentir em ser entregue à autoridade judiciária de emissão.

2 - O detido tem direito a ser assistido por defensor.

3 - Quando o detido não conheça ou não domine a língua portuguesa é nomeado, sem qualquer encargo para ele, intérprete idóneo.

32. É bem claro e indiscutível que nenhuma daquelas obrigações e correspondentes direito da Requerida foram cumpridos.

33. No tocante à audição da detida, prevista no art.º 18º, da mesma Lei, não foi levado a cabo o cumprimento dos deveres previstos nos nºs 1 a 6, aqui transcritos:

1 - A entidade que proceder à detenção comunica-a de imediato, pela via mais expedita e que permita o registo por escrito, ao Ministério Público junto do tribunal da relação competente.

2 - A pessoa procurada é apresentada ao Ministério Público, para audição pessoal, imediatamente ou no mais curto prazo possível.

3 - O juiz relator procede à audição do detido, no prazo máximo de quarenta e oito horas após a detenção, e decide sobre a validade e manutenção desta, podendo aplicar-lhe medida de coacção prevista no Código de Processo Penal.

4 - O juiz relator nomeia previamente defensor ao detido, se não tiver advogado constituído.

5 - O juiz relator procede à identificação do detido, elucidando-o sobre a existência e o conteúdo do mandado de detenção europeu e sobre o direito de se opor à execução do mandado ou de consentir nela e os termos em que o pode fazer, bem como sobre a faculdade de renunciar ao benefício da regra da especialidade.

6 - O consentimento na entrega à autoridade judiciária de emissão prestado pelo detido, o teor da informação que lhe foi transmitida sobre a regra da especialidade e a declaração do detido são exarados em auto, assinado pela pessoa procurada e pelo seu defensor ou advogado constituído.

34. Quanto ao exercício do direito de defesa previsto no Artigo 21.º, relativo à oposição da pessoa procurada, as previsões da norma não tiveram evidentemente lugar, o que se traduziu na violação dos direitos fundamentais de defesa, mantendo-se a prisão preventiva emergente do MDE anterior, o qual é inexistente, tendo sido violados os art.º 27º, 1º (direito à liberdade e segurança), art.º 28º (relativo à falta de apreciação judicial nas quarenta e oito horas da prisão preventiva) da Constituição da República Portuguesa, na medida em que o preceito aludido diz:

1 - Se a pessoa procurada não consentir na sua entrega ao Estado membro de emissão é concedida a palavra ao seu defensor para que deduza oposição.

2 - A oposição pode ter por fundamentos o erro na identidade do detido ou a existência de causa de recusa de execução do mandado de detenção europeu.

3 - Deduzida a oposição, nos termos dos números anteriores, é concedida a palavra ao Ministério Público para que se pronuncie sobre as questões suscitadas na mesma e sobre a verificação dos requisitos de que depende a execução do mandado de detenção europeu.

4 - A oposição e os meios de prova devem ser apresentados no decurso da diligência de audição do arguido, sem prejuízo de, a requerimento do defensor, o tribunal fixar, por despacho irrecorrível, prazo para o efeito, sempre que tal prazo seja necessário para a preparação da defesa ou para a apresentação dos meios de prova, tendo em conta a necessidade de se cumprirem os prazos estabelecidos no artigo 26.º

5 - Finda a produção da prova será concedida a palavra ao Ministério Público e ao defensor da pessoa procurada para alegações orais.

35. Desnecessário será alegar a inexistência ou o total incumprimento das obrigações previstas no art.º Artigo 22.º. relativas à decisão sobre a execução do mandado de detenção europeu, que se traduzem:

1 - O tribunal profere decisão fundamentada sobre a execução do mandado de detenção europeu no prazo de cinco dias a contar da data em que ocorrer a audição da pessoa procurada.

2 - Se as informações comunicadas pelo Estado membro de emissão forem insuficientes para que se possa decidir da entrega, são solicitadas com urgência as informações necessárias, podendo ser fixado prazo para a sua receção, para que possam ser cumpridos os prazos estabelecidos no art.º 26.

36. Nenhum dos requisitos exigidos para a validade do cumprimento do mandado foram cumpridos, pelo que o mesmo esta ferido de nulidade, nos termos do art.º 195º do C.P.C., uma vez que foi omitida a prática das diversas formalidades essenciais que a lei impõe, previstas nos preceitos citados, para a validade do ato, não podendo ter produzido nenhum efeito.

37. A Requerida não foi nunca notificada, em momento posterior ao ser detida, da existência e do conteúdo do novo mandado de detenção europeu, nem assistida por defensor em relação ao novo mandado, de que não foi comunicada a tradução, não foi de novo apresentada ao Ministério Publico, nem foi ouvida por Juiz ou informada da possibilidade de consentir em ser entregue à autoridade judiciária de emissão – tendo sido violados ao art.º 17º e 18º da Lei 65/2003 de 23 de Agosto.

38. Nem se pretenda, como parece ser a posição resultante do douto despacho de fls. Que qualifica o novo MDE como mero ato de aperfeiçoamento, o que seria ignorar a sua autonomia, especificidade e valor jurídico independente.

39. O novo mandado, datado de 14 de Junho de 2019, muito posterior ao anterior, datado de 18 de Setembro de 2017, tem um valor jurídico autónomo, sendo um ato único e como tal, revocatório do anterior, que deverá ser considerado suprimido, havendo que dar cumprimento ao último.

40. Dada a sua autonomia, o novo MDE em que exige o cumprimento solicitado, obriga a que, antes de ser cumprido, se tivessem executem as formalidades essenciais do instituto, as providências previstas nos art.ºs 16º a 18º da Lei 65/2003, delimitadas por critérios objetivos de atuação.

41. Também no tocante à aplicação da medida de coação prisão preventiva, a continuidade da situação decorrente do mandado anterior é inadmissível, pois representa a transposição de uma medida de coação de um processo revogado, pelo Estado requerente, para um novo processo a instaurar e da sua permanência em prisão preventiva a coberto do processo inicial revogado, sem qualquer suporte legal, donde decorre uma prisão ilegal.

42. A prisão preventiva que a requerida sofre, está a ser executada sem que a mesma tenha sido ouvida de novo, em sede do cumprimento do novo mandado, ou informada do seu conteúdo, não tendo ali sido assistida por intérprete e advogado, no âmbito daquele MDE revocatório, tendo sido ultrapassadas as 48 horas previstas no art.º16º da Lei citada para a sua apresentação ao Juiz – art.º 18º 3º da Lei 65/2003.

43. Omitido igualmente foi o direito de apresentar a oposição e poder recorrer, nos termos dos art.º 21º e 24º da Lei citada.

44. Não foi cumprido o sagrado princípio do contraditório e só foi trazido ao conhecimento da Requerida, três dias antes do termo do prazo de oposição a existência de um novo mandado.

45. Acrescendo que o douto despacho proferido pela Ilustre Magistrada, considerando que o novo MDE, em nada alterava a situação anterior, peca por não poder deixar de ser qualificado como um facto novo não avaliado antes, que deu lugar a uma decisão surpresa e, por outro, não poder ser admitido como fundamento sustentáculo da decisão anterior.

46. O mandado que neste momento se pretende executar, é um novo mandado de detenção europeu, que foi emitido em 14 de Junho de 2019, pela Procuradora da República junto do Tribunal de … - … (…), como resulta dos nºs 044 e 270, do Formulário A, e foi reconhecido na douta promoção supra transcrita.

47. O novo mandado de detenção europeu sofre dos mesmos vícios do anterior pois foi também, como o anterior, emitido para efeitos de procedimento criminal, por um procurador, sem a qualificação de autoridade Judiciária, não tendo o despacho que proferiu a natureza de decisão judiciária.


III. FUNDAMENTOS DO HABEAS CORPUS

48. Reconhecendo-se que o novo mandado se encontra ferido pelas mesmas nulidades invocadas em relação ao primeiro, datado de 18 de Setembro de 2018, remetemos para a oposição que foi apresentada em relação ao mesmo, “mutatis mutandis ”, a sua data.

49. Reitera-se, contudo, que a Requerida nunca foi inquirida no processo que corre na …, nunca exerceu o direito de defesa, por nunca ter sido interpelada, reportando-se o MDE, contrariamente à realidade, que os factos teriam ocorrido em …, …, a factos na verdade ocorridos em …, …, em 25 de Agosto de 2010, relativos a uma operação financeira em que foi nomeada como pagadora, matéria cuja prova resulta dos contratos e transferência de fundos docºs 2 a 6, juntos, cujo conteúdo se dá aqui por reproduzido.

50. O mandado de detenção europeu em causa não foi precedido de uma decisão judiciária, emitida por uma entidade judiciária, nem tem essa natureza, não devendo ser executado meramente às cegas, com base no princípio do reconhecimento mútuo e em conformidade com o disposto na supra referida Lei e na Decisão-Quadro - artigo 1.º, n.º2, da Lei n.º 65/2003.

51. À autoridade judiciária do país da execução compete verificar se o mandado contém as informações constantes do artigo 3.º da Lei n.º 65/2003, bem como analisar se ocorre qualquer causa de recusa obrigatória (artigo 11.º) ou facultativa (artigo 12.º) de execução.

52. A detenção efetuada no âmbito do mandado de detenção europeu pode (e deve ) ser substituída por medida de coação, como estabelece o n.º 3 do artigo 18.º da Lei n.º 65/03, designadamente quando a detenção se mostre desnecessária à obtenção do desiderato do mandado, ou seja, à efetivação da entrega, o que uma vez mais se roga, tendo em atenção as condições desumanas em que a Requerida se encontra, depois de ter passado quatro dias numa cela sem luz, com miasmas e bolor que lhe afetaram os olhos, sem água e impedida de ir a casa de banho, sem papel higiénico e privada do  essencial que lhe foi levado pelos seus advogados.

53. No tocante ao rogo junto de Vªs Ex.as, sabemos que tem sido jurisprudência frequente deste Supremo Tribunal considerar que boa parte dos fundamentos do requerimento de Habeas Corpus são “matéria de recurso” e não se integram na necessidade da “providência excecional” que o Habeas Corpus seria.

54. A exigência de recurso material efetivo contra a violação dos Direitos do Homem, significa a possibilidade material de fazer cessar imediatamente a respetiva violação, ou impedir a sua consumação e isso não é, visivelmente, atingível pela demorada tramitação dos recursos criminais que demoram meses a tramitar, durante os quais a violação subiste.

55. Acresce que, a Lei ordinária agrupa o 222º CPP entre os “modos de impugnação”, não distinguindo o Habeas Corpus com qualquer excecionalidade, exigindo apenas a “ilegalidade da prisão”.

56. Ora o que está em causa é a manutenção da Requerente em prisão preventiva, desde o dia 22 de junho de 2019, a coberto de uma decisão do Tribunal da Relação de Lisboa, proferida com fundamento num MDE:

a) Em relação ao qual o Ilustre Procurador veio reconhecer ter sido emitido por uma autoridade não judiciária, - matéria tratada supra - mas entidade pertencente ao Ministério da Justiça, como procurador do Estado (…), o que foi reconhecido com causa de não cumprimento do mandado por aplicação do art.º 12º como infelizmente se demonstrou e a tal ponto que nos não é possível reconhecer no exposto procedimento, como nas expostas circunstâncias, um Tribunal de País membro da União Europeia;

b) Neste sentido estão claramente preenchidos (do ponto de vista dos critérios vinculativos da jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem) as exigências previstas nas invocadas alíneas do art. 222º CPP, verificando-se que a prisão preventiva não tem um suporte legal, pois o despacho de 24 de Junho de 2019, não comtempla o pedido deduzido pelo MDE datado de 14 de Junho de 2019.

c) Nestas circunstâncias se denuncia a prática intencional de um erro sistemático de tradução das seguintes expressões:

c.1) No formulário correspondente ao MDE datado de 4 de outubro de 2017, pagº 13 vº, no nº 044, sob o titulo descrição das circunstâncias, consta o seguinte:

“… prossecutor´s office, is investigating EE and FF, for breach of trust to the detriment of CC... “ cuja tradução para português -permitam-me Vªs Exªs a ousadia é : “O departamento do procurador de … esta a investigar EE e FF, por fraude (quebra de confiança) em prejuízo da CC;

c.2) O que não refere uma autoridade judiciária, erro que é repetido a fls. 20, ao traduzir a função “…”, como tal, quando se trata de uma procuradora da República.

c.3) O mesmo erro se repete quando abaixo não se tem em conta que a entidade investigadora pertence ao Ministério da Justiça, a Procuradoria da Republica “ ….”


IV. ANALISE DO HABEAS COPRPUS EM FUNÇÃO DA JURISPRIDÊNCIA DO SUPREMO TRIBUMAL DE JUSTIÇA:

57. É consabido “que a providência de habeas corpus tem a natureza de remédio excepcional para proteger a liberdade individual, revestindo carácter extraordinário e urgente, «medida expedita», com a finalidade de rapidamente pôr termo a situações de ilegal privação de liberdade, decorrentes de ilegalidade de detenção ou de prisão, taxativamente enunciadas na lei: em caso de detenção ilegal, nos casos previstos nas quatro alíneas do n.º 1 do art. 220.° do CPP, e quando em virtude de prisão ilegal, nas situações extremas de abuso de poder ou erro grosseiro, patente, grave, na aplicação do direito, descritas nas três alíneas do n.º 2 do art. 222.º do CPP.”

58. A medida de Habeas Corpus representa o expediente processual de atuação pelo STJ, do enunciado do artigo 27º nº 1 da Constituição da República Portuguesa (doravante CRP) que afirma: “Todos têm direito à liberdade e à segurança”.

59. A liberdade é o único meio, um quadro de fundo de realização da vida em sociedade e um elemento constitutivo do próprio modo de ser da pessoa humana, direito adquirido com o nascimento, não abdicável, de natureza absoluta, inviolável e essencial na existência de um estado de direito.

60. Porém, a liberdade a que se refere esta disposição prende-se com “o direito a não ser detido, aprisionado, ou de qualquer modo fisicamente confinado a um determinado espaço ou impedido de se movimentar”, com exceção da aplicação de medidas de coação.

61. Ora, entre as medidas de coação legalmente previstas no nosso sistema legal, temos interesse tão só em relação à prisão preventiva ou detenção que decorrem do MDE.

62. Tais medidas são meios processuais limitadores da liberdade pessoal, aplicáveis sobre quem recaiam indícios ou fortes indícios da prática de um crime, sempre que tal se justifique do ponto de vista jurídico-penal, apenas podendo ser aplicadas ao agente da infração.

63. Para serem decretadas, as medidas de coação têm de obedecer a um conjunto de condições gerais de aplicabilidade já previamente elencadas pelo legislador, são elas:

a) EXISTÊNCIA DE UM PROCEDIMENTO CRIMINAL PREVIAMENTE INSTAURADO regra que se pode retirar da leitura do preceito 194º do Código de Processo Penal (doravante CPP), que prevê que as medidas de coacção podem ter lugar durante o inquérito ou após este.

b) Ora é evidente não existir nenhum procedimento, isto é, não foram cumpridas as normalidades essenciais previstas nos art.ºs 16 a19º da Lei 65/2003, pelo que se verifica sem a menor dúvida este pressuposto, que por si só determina a procedência do pedido de concessão do HABEAS CORPUS, restituindo-se a Requerente à liberdade.

c) A PRÉVIA CONSTITUIÇÃO COMO ARGUIDO DA PESSOA QUE DELAS É OBJECTO: Nos termos do artigo 192º do CPP, a aplicação de medidas de coação depende da prévia constituição como arguido, nos termos do artigo 58º do CPP Uma vez arguido, o indivíduo adquire uma série de direitos e deveres que lhe são conferidos pelo Direito Penal, sendo-lhe atribuída a categoria de sujeito processual, permitindo-lhe intervir ativamente no decorrer do processo.

d) Em face do incumprimento dos preceitos dos art.º 16º a 18º da Lei 65/ 2003, reitera-se a posição vertida em 2., “mutatis mutandis”.

e) INDÍCIOS DA PRÁTICA DO CRIME: É exigido que sobre o arguido sujeito a uma medida de coação recaiam fortes indícios, embora nem nos casos mais exigentes se requeira a comprovação categórica, sem qualquer dúvida da prática do crime, pretendendo o legislador com este requisito evitar situações de injustificada limitação da liberdade pessoal do arguido.

f) Ora tal requisito não foi cumprido, não existindo quaisquer elementos objetivos, da pratica do crime, -constando do próprio MDE que somente existia “ a grave suspeita de que a incriminada nunca teve a intenção de pagar de volta à CC “ - a fls 7/19 - , afirmação que, aliás, não faz qualquer sentido, dado que a posição da Requerente no contrato foi a de pagadora, o que ele fez em 26 de Agosto de 2010, facto provado pelo docº 2, junto, idem.

g) Além destas condições gerais de aplicabilidade, prevê o artigo 204º do CPP, uma série de requisitos específicos e taxativos, bastando a não verificação de qualquer um deles para que a medida de coação não seja aplicada.

h) FUGA OU PERIGO DE FUGA – Quanto a este requisito não basta a mera probabilidade de fuga deduzida de abstratas e genéricas presunções, mas sim deve se fundamentar os elementos de facto que indiciem concretamente aquele perigo. nomeadamente porque revelam a preparação da fuga, como por exemplo, o facto de o arguido ter na sua posse um bilhete de avião para outro país, ou ser de um país estrangeiro e ter um compatriota à sua espera com uma viatura no momento da sua detenção. Não existem quaisquer dados objetivos que justifiquem a existência deste requisito.

i) PERIGO DE PERTURBAÇÃO DO DECURSO DO INQUÉRITO OU DA INSTRUÇÃO DO PROCESSO E PERIGO PARA A AQUISIÇÃO, CONSERVAÇÃO OU VERACIDADE DA PROVA Este perigo, à semelhança do perigo de fuga não se presume, não bastando igualmente a mera probabilidade mas sim que, em concreto, se mostre tal perigo através de factos objetivos ou circunstâncias concretas que o indiciem, bem como que o recurso a outros meios seja insuficiente para evitar tal perturbação.

j) PERIGO DE CONTINUAÇÃO DA ACTIVIDADE CRIMINOSA OU PERTURBAÇÃO DA ORDEM E TRANQUILIDADE PÚBLICAS. Como refere expressamente a alínea c) do artigo 204º do CPP, tal requisito tem de resultar das circunstâncias do crime imputado ao arguido ou da sua personalidade, para que justifique uma medida de coação.


A. PRINCÍPIOS SUBJACENTES ÀS MEDIDAS DE COACÇÃO

64. O decretamento de qualquer medida de coação, depende de verificação pelo julgador de um conjunto de princípios norteadores da decisão, na opção entre uma ou outra medida, tendo em conta as circunstâncias específicas de cada caso concreto. São os seguintes tais princípios:

a) PRINCÍPIO DA LEGALIDADE OU TIPICIDADE : A aplicação das sanções penais constituem a maior ameaça à liberdade, sendo necessária a existência de um princípio, entrave à arbitrariedade na criação e aplicação da lei criminal, sendo proibida a existência limites de liberdade, fora dos casos taxativamente previstos na lei (normas do CPP ou outras que se encontrem tipificadas noutra lei de valor formal igual ou semelhante) – artigo 29º da CRP.

b) Ora foi demonstrado supra a total ilegalidade da prisão decretada, por inexistência/nulidade absolta dos MDE, em que se fundaria, remetendo-se para a sua fundamentação supra.

c) PRINCÍPIO DA ADEQUAÇÃO, PROPORCIONALIDADE E NECESSIDADE : Dispõe o artigo 193º do CPP que as medidas de coação a aplicar em concreto devem ser necessárias e adequadas às exigências cautelares que o caso requer e proporcionais à gravidade do crime e sanções que previsivelmente venham a ser aplicadas.

O legislador instituiu um leque alargado de medidas de coação, desde o simples termo de identidade e residência à prisão preventiva, devendo optar-se pela menos gravosa, sempre que o fim de prevenção seja atingido.

O requisito necessidade encontra-se diretamente relacionado com a presunção de inocência prevista no artigo 32º/ 2 da CRP: “Todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação, devendo ser julgado no mais curto prazo compatível com as garantias de defesa”.

d) PRINCÍPIO DA PRECARIEDADE Este princípio encontra-se na esteira da presunção de inocência do arguido prevista na constituição, estabelecendo que as medidas de coacção impostas ao arguido presumivelmente inocente, não podem ultrapassar os limites do comunitariamente suportável, ganhando especial importância no caso das medidas que se protelam no tempo para além do razoável.

e) Desta natureza constitucionalmente prevista, resultou para o legislador penal a consagração do 193º do CPP, estabelecendo que a prisão preventiva só pode ser aplicada quando se revelem inadequadas ou insuficientes as restantes medidas de coação.

f) Na execução das medidas de coação, o legislador novamente evidência o princípio da adequação e necessidade, ao estatuir no preceito 193º/4 do CPP que não devem tais medidas prejudicar o exercício de direitos fundamentais que não forem incompatíveis com as exigências cautelares que o caso requer.


B. POSITIVAÇÃO NA LEI PENAL PORTUGUESA: ARTIGO 31º DA CRP E 222º DO C.P.P.

65. O Habeas Corpus, sendo o único caso de garantia específica e extraordinária constitucionalmente prevista para a defesa de direitos fundamentais, confere especial importância ao direito à liberdade, inserido no título II “Direitos, Liberdades e Garantias”.

66. Nos termos do artigo 31º da CRP “Haverá habeas corpus contra o abuso de poder, por virtude de prisão ou detenção ilegal, a requerer perante o tribunal competente, podendo ser requerida pelo próprio ou por qualquer cidadão no gozo dos seus direitos políticos”.

67. Atentos à letra da lei, assumem-se como requisitos para o uso desta figura por parte da Requerente a existência de uma prisão ou detenção ilegal, sendo certo que só esta última nos preocupa.

68. Ora resulta da análise à jurisprudência dominante do STJ, bem como da letra da lei, no que se prende com o conceito de ilegalidade para fundamento de recurso a esta providência, a regra base pelo mesmo defendida: a excecionalidade do habeas corpus implica que não deve constituir um meio de reposição, em face de quaisquer ilegalidade mas apenas em casos de ilegalidade grosseira, evidente e inequívoca.

69. Como preceito interpretativo do conceito de ilegalidade, o artigo 222º do CPP, determina que a prisão é ilegal quando: tiver sido efetuada ou ordenada por entidade incompetente, ou motivada por facto pelo qual a lei a não permite, ou quando sejam ultrapassados os prazos fixados na lei.

70. Não se poderá deixar de concluir que a situação de prisão preventiva ou detenção a que a Requerente se encontra submetida é grosseiramente ilegal, por não ter como fundamento qualquer decisão judicial, por inexistente e que a existir seria totalmente ilegal.

71. Em consonância com a vária jurisprudência do STJ, apercebemo-nos que o critério que segue este tribunal é o da evidencia, claridade e de uma notória perceção de que se está perante uma situação de clamorosa ilegalidade que urge resolver o mais rápido possível, o que aqui se verifica.

Termos em que se requer a concessão imediata da presente Providência de Habeas Corpus em razão da prisão ilegal, com a libertação imediata da Requerente.»

2. Foi prestada informação, de acordo com o disposto no art. 223.º, n.º 1, do CPP, nos seguintes termos:

«Nos presentes autos vem a requerida apresentar providência de habeas corpus com fundamento em prisão ilegal (art.º 222.º do CPP) (pese embora a circunstância de a requerida não se encontrar em prisão preventiva mas sim detida á ordem de MDE) dirigida ao Supremo Tribunal de Justiça e apresentando como fundamento o disposto nas al. b) e c) do nº 2 do art.º 222 º do CPP.

Assim, em cumprimento do disposto no art.º 223.º, n.º 1, informa-se:

A requerida foi detida no aeroporto de Lisboa, tendo sido ouvida neste Tribunal no dia 24, nos termos do disposto no art.º 18.º da Lei 65/2003 de 23 de Agosto.

Verificada a validade formal do MDE a requerida ficou detida à ordem do mesmo uma vez que requereu prazo para dedução de oposição.

Foi concedido o prazo de 10 dias a pedido da requerida (art.º 21.º, n.º 4), e apresentada oposição razão pela qual não foi proferida decisão nos termos do art.º 22 e designada data para audiência (Ac. de 12-12-2018, Proc. n.º 94/18.2YRPRT.S2, Relator Lopes da Mota, disponível in www.dgsi.pt).

A requerida veio suscitar a questão da nulidade do MDE e de ilegalidade da prisão preventiva em que se encontra entendeu, tendo este tribunal entendido, o que foi devidamente notificado, que o mesmo não é nulo nem existe qualquer ilegalidade de prisão preventiva, porquanto:

- A decisão do TJUE referida não considera ilegais os mandados emitidos por Procurador …, mas sim que suscitam reservas quanto à independência de tal órgão jurisdicional e sua consideração enquanto tal para efeitos de emissão de MDE;

- O MDE foi baseado em decisão JUDICIAL ao abrigo do qual foi assinado o formulário quer por procurador quer por juiz e do MDE;

- O MDE cujo formulário está assinado por juiz (14-06-2019) é anterior à detenção da requerida (22-06-2019).

- Ao juiz do Estado de execução apenas compete averiguar a validade formal do MDE.

- A requerida não se encontra em prisão preventiva mas sim detida ao abrigo do MDE (como se verifica do teor da acta de audição onde, pese embora por lapso ser omisso o advérbio “não”, resulta que está detida e não presa preventivamente “Ora não obstante serem exigíveis à manutenção da detenção no âmbito destes processos ou à aplicação de medida coativa privativa da liberdade os pressupostos previstos no art.º 204º do CPP sempre se dirá que o perigo de fuga é premente) V. Ac V. Ac. STJ de 28-03-2018, Relator Lopes da Mota, Proc. 37/18.3YREVR-A.S1, disponível in www.dgsi.pt.

Encontra-se designado o dia 17 p.f. pelas 10.30 e 10.45 para audição da requerida e realização da audiência, respetivamente.»

3. Convocada a secção criminal e notificados o Ministério Público e o defensor, teve lugar a audiência pública, nos termos dos arts. 223.º, n.º 3, e 435.º do CPP.

Há agora que tornar pública a respetiva deliberação e, sumariamente, a discussão que a precedeu.


II - Fundamentação

1.1. Nos termos do art. 31.º, n.º 1 e 2, da Constituição da República Portuguesa, o interessado pode requerer, perante o tribunal competente, a providência de habeas corpus em virtude de detenção ou prisão ilegal. “Sendo o único caso de garantia específica e extraordinária constitucionalmente prevista para a defesa dos direitos fundamentais, o habeas corpus testemunha a especial importância constitucional do direito à liberdade” constituindo uma “garantia privilegiada” daquele direito (cf. Gomes Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa — Anotada, vol. I, Coimbra: Coimbra Editora, 20074, anotação ao art. 31.º/ I, p. 508).

Exigem-se cumulativamente dois requisitos: 1) abuso de poder, lesivo do direito à liberdade, enquanto liberdade física e liberdade de movimentos e, 2) detenção ou prisão ilegal (cf. neste sentido, ibidem, anotação ao art. 31.º/ II, p. 508). Nos termos do art. 222.º, n.º 2, do Código de Processo Penal (doravante CPP), a ilegalidade da prisão deve ser proveniente de aquela prisão “a) ter sido efetuada ou ordenada por entidade incompetente; b) ser motivada por facto pelo qual a lei a não permite; ou c) manter-se para além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial”.

2.1. Compulsados os autos, e em particular a certidão junta com cópia de todo o processado para execução do Mandado de Detenção Europeu, verificamos que:

- a requerente deste pedido de habeas corpus, AA, foi detida a 22.06.2019, em execução de Mandado de Detenção Europeu (MDE) emitido a 17.07.2017 (e integrado no Sistema de Informação de Shengen, SIS), pela Procuradora da ….;

- a 22.06.2019, prestou termo de identidade e residência (TIR) e foi constituída arguida;

- O MP promoveu a 24.06.2019 a execução do MDE

- foi promovida a audição da interessada e a audiência a 24.06.2019; ao abrigo do art. 20.º, n.º 2, da Lei n.º 65/2003, de 23.08 (LMDE), a interessada não consentiu no cumprimento do mandado e não renunciou ao princípio da especialidade; aquando destas diligências, foi considerado pela Senhora Desembargadora do Tribunal da Relação de Lisboa que o MDE era válido formal e substancialmente, e os factos ilícitos que consubstanciavam aquele MDE se integravam no disposto no art. 2.º, n.º 2, als. a) e e), da LMDE, pelo que está dispensado o controlo de dupla incriminação; foi ainda considerado não existirem motivos de recusa obrigatória ou facultativa de execução do MDE ; foi ainda, ao abrigo do art. 21.º, n.º 1, da LMDE, requerida a oposição. No final foi decidido determinar a detenção da requerida até integral cumprimento do MDE, tendo esta sido conduzida ao Estabelecimento Prisional de Tires, naquele mesmo dia;

- o Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE), através de decisão de 27.05. 2019, consultável aqui: http://curia.europa.eu/juris/document/document.jsf?text=&docid=214466&pageIndex=0&doclang=PT&mode=lst&dir=&occ=first&part=1&cid=2417397) decidiu:

“O conceito de «autoridade judiciária de emissão», na aceção do artigo 6.°, n. 1, da Decisão‑Quadro 2002/584/JAI do Conselho, de 13 de junho de 2002, relativa ao mandado de detenção europeu e aos processos de entrega entre os Estados‑Membros, conforme alterada pela Decisão‑Quadro 2009/299/JAI do Conselho, de 26 de fevereiro de 2009, deve ser interpretado no sentido de que não visa as procuradorias de um Estado‑Membro que correm o risco de estar sujeitas, direta ou indiretamente, às ordens ou instruções individuais da parte do poder executivo, como um Ministro da Justiça, no âmbito da adoção de uma decisão relativa à emissão de um mandado de detenção europeu.”

- neste seguimento as autoridades alemãs emitiram, a 14.06.2019, novo MDE, agora assinado pelo juiz do Tribunal da Comarca de …, e enviado por fax a 28.06.2019;

- perante este novo MDE, a Senhor Juíza Desembargadora proferiu, a 02.07.2019, um despacho onde considerou que a detenção ocorreu em momento anterior à emissão deste segundo MDE, pelo que nada teria que ordenar;

- perante este despacho, a agora requerente veio invocar, perante o Tribunal da Relação de Lisboa, e em síntese muito apertada, a nulidade da sua detenção por se ter baseado no MDE emitido em 2017 que, tendo em conta a decisão do TJUE, é igualmente inválido (por não ter sido emitido por juiz), e por, após o segundo MDE de junho de 2019, não ter sido ouvida ao abrigo do disposto no art. 18.º, da LMDE, assim se impedindo o exercício do contraditório e o direito a se opor agora a este novo MDE; além do mais, a sua detenção ao abrigo de um anterior MDE que agora foi substituído por um outro é inválida, uma vez que aquele também o é;

- a 17.07.2019, foi novamente ouvida a interessada e realizada a audiência na qual se pronunciou novamente a Senhora Juíza Desembargadora tendo mantido a privação da liberdade.

2.2. A requerente deste pedido de habeas corpus foi detida para que fosse assegurado o cumprimento do MDE. Na verdade, tendo em conta o princípio do reconhecimento mútuo que subjaz à emissão destes Mandados, cabe ao Estado de execução assegurar o seu cumprimento evitando que, até à decisão final de envio da pessoa visada ao Estado requerente, haja fuga da pessoa, determinando para tanto as medidas que considere necessárias, adequadas e proporcionais, e em respeito pelos direitos fundamentais de todos os cidadãos, a diminuir ou mesmo excluir aquele perigo de fuga. É claro que devem ser preferidas medidas não detentivas. Porém, no caso presente, considerou-se que “afim de não se frustrar o objetivo que se pretende alcançar com a execução do MDE, execução esta dependente de decisão a proferir após a junção da oposição, afiguram-se-nos insuficientes e desadequadas as medidas propostas pela detida. Efetivamente, a mesma não tem residência habitual em Portugal, constando do TIR uma residência em … e afirmou não querer regressar á … . Ora não obstante serem exigíveis à manutenção da detenção no âmbito destes processos ou à aplicação de medida coativa privativa da liberdade os pressupostos previstos no art. 204.º, do CPP sempre se dirá que o perigo de fuga é premente. ” (despacho de 24.06.2018, cf. certidão junta a estes autos).

Verifica-se, no entanto, que a audição de AA e audiência que se seguiu, em 24.06.2019, ocorreram no seguimento do MDE de 2017. Este MDE foi apenas assinado pelo procurador, e tendo em conta a recente jurisprudência do TJUE pode considerar-se ferido de ilegitimidade a partir do momento que não foi emitido por autoridade judiciária.

Assim sendo, numa primeira aproximação, poder-se-ia considerar que a detenção seria também ilegal.

Porém, verifica-se que, aquando da detenção e aquando da audição e audiência posterior, já havia um outro MDE, de 14.06.2019, emitido pela autoridade judiciária competente, o juiz do Tribunal Judicial da Comarca de … . É certo que, aquando daquela audição e audiência a 24.06.2019, a interessada não foi confrontada com um MDE válido. Mas também é certo que, aquando daquela audiência em que AA estava representada já pelo seu mandatário (que agora também a representa nesta providência de habeas corpus), não foi arguida a ilegitimidade da autoridade emissora do MDE por se considerar que não integrava a autoridade judiciária exigida legalmente. Através do auto de audição, verifica-se AA não consentiu no cumprimento do MDE e não renunciou ao princípio da especialidade. E, pelo mandatário, apenas foi requerido prazo para deduzir a oposição, sem que aquele tivesse arguido a eventual nulidade daquele MDE. Poder-se-á dizer que o iria fazer na oposição que apresentaria.

Porém, antes mesmo de terminado aquele prazo, foi notificado da junção de um novo MDE, com data anterior à detenção, e já emitido por autoridade judiciária com garantias de imparcialidade (assim e cumprindo o determinado pela lei, e seguindo a jurisprudência do TJUE). Dada a equivalência total entre o MDE de 2017 e o atual, apenas diferindo na parte respeitante à entidade emissora, o Tribunal da Relação de Lisboa considerou, em despacho 02.07.2019, que a detenção se mantinha válida. Sem que mais fosse fundamentado, está implícita a ideia de que a requerida, sendo confrontada com os mesmos fundamentos que estavam neste novo MDE, apenas iria requerer, tal como o tinha anteriormente feito, um prazo para apresentar a sua oposição ao mandado. No entanto, dado que este novo elemento aparecia, foi necessário dar disso conhecimento à requerida para que, ainda em tempo de deduzir a oposição, pudesse apresentar os seus argumentos, assim exercendo o seu direito ao contraditório. Poder‑se-ia considerar que, perante este novo elemento talvez se pudesse adicionar mais um ou dois dias de prazo para apresentação desta oposição. Porém, a requerida não veio requerer tal alargamento do prazo, tendo optado por arguir a nulidade do MDE. O que obteve já decisão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 10.07.2019, onde se considerou que o MDE de junho de 2019 está assinado pelo juiz do Tribunal Judicial da Comarca de … não sendo, portanto, nulo, e que, não tendo o novo MDE alterado em nada o anterior, se mantinha o previamente decidido, remetendo para decisão posterior as alegações apresentadas quanto à validade do MDE e aos motivos apresentados para que não fosse executado.

Na verdade, aquele despacho, de 02.07.2019, validou a decisão anterior, considerando que a decisão ainda prolatada ao abrigo do MDE de 2017 valia para o novo MDE de junho de 2019, uma vez que este tinha sanado o vício existente no primeiro MDE por ter sido decidido pelo procurador (em 2017 — data em que ainda não havia decisão do TJUE a considerar como incompetente a emissão de MDE por procurador do Estado …). Ou seja, no momento da emissão o MDE, em 2017, este era válido, e a sua validade só se torna questionável após maio de 2019. Mas, no momento em que é executada a detenção esta já ocorre em momento posterior à decisão do TJUE. Assim sendo, e perante novo MDE, deveria ter sido promovida a audição da interessada, nova audiência e nova decisão quanto a eventuais medidas de coação a aplicar.

Ora, a decisão de 02.07.2019, onde, implicitamente, se considerou que apesar de a detenção e aplicação da medida de coação ter sido decidida à luz do MDE de 2017 esta era válida uma vez que a decisão foi tomada em momento posterior a um segundo MDE prolatado por autoridade judicial, e, portanto, válido à luz da nova jurisprudência do TJUE, poderia ter sido contestada, como foi.

Porém, não foi arguida a nulidade do despacho de 02.07.2019, mas sim a nulidade do primeiro MDE, de 2017, à luz do qual foi aplicada a medida de coação. E, em decisão de 10.07.2019, considerou o Tribunal da Relação de Lisboa que, tendo o segundo MDE, de 14.06.2019, sido prolatado pelo juiz do Tribunal Judicial da Comarca de …, ou seja, por entidade com legitimidade, não existe qualquer nulidade e nada afeta a situação existente.

Porém, e salvaguardando ainda o necessário exercício do contraditório e da defesa da requerida, determinou-se a realização de nova audição da requerida e nova audiência.

Ora, assim sendo, a partir do momento em que foi realizada nova audição já com a informação sobre o novo MDE de 2019, e a partir do momento em que foi realizada nova audiência e aplicadas as medidas de coação adequadas nos termos do art. 18.º, da LMDE, não se vê como se possa considerar estarmos perante uma prisão ilegal, ou aplicada por autoridade incompetente.

Além disto, verifica-se que foi novamente decidida, pelo Tribunal da Relação de Lisboa, a manutenção em prisão da requerida agora ao abrigo deste novo MDE, pelo que não existe nenhum fundamento para a concessão desta providência de habeas corpus (cf. informação enviada pelo Tribunal da Relação de Lisboa a estes autos).

Mas, ainda que assim não fosse, ainda que não tivesse sido realizada nova audição, nova audiência, e nova decisão sobre as medidas a aplicar, o certo é que, havendo um MDE anterior à detenção emitido por autoridade competente, com os mesmos fundamentos do anterior, não se vê como se possa considerar que a necessária defesa da arguida e o exercício do contraditório não estivesse assegurada, tanto mais que ainda lhe cabia apresentar a oposição à execução do MDE. Além disto, a requerida encontrava-se em cumprimento de medida de coação porque, atenta a inexistente ligação da requerida ao nosso país, apresentava um perigo sério de fuga, mostrando-se a privação da liberdade como a medida mais adequada a assegurar as finalidades do MDE. Determinar a sua libertação, após o conhecimento da existência de um MDE válido constituiria, naquele momento, um desrespeito pelo princípio do reconhecimento mútuo. Acresce que, se alguma irregularidade existia no MDE inicial, o certo é que, aquando da audiência realizada, não foi aquela alegada; e nem mesmo no prazo de 5 dias foi interposto qualquer recurso da manutenção da sua privação da liberdade, ao abrigo do disposto no art. 24.º, n.º 1, al. a) e n.º 2, da LMDE. Isto é, o meio adequado para reagir à privação da liberdade de AA não foi sequer usado.

Por fim, verificamos que o pedido de habeas corpus foi apresentado a 11.07.2019 — neste momento já tinha a requerida sido notificada da decisão de 10.07.2019, onde se designava já o dia 17.07.2019 para nova audição e audiência. E já tinha sido notificada, a 10.07.2019, para comparecer no Tribunal da Relação de Lisboa no próximo dia 17.07.2019.

E, após a audiência realizada a 17.07.2019, foi já em acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa (do mesmo dia) julgada improcedente a oposição apresentada pela requerida à execução do MDE e foi determinado o seu cumprimento, tendo sido decidida a entrega da requerida às autoridades alemãs (cf. acórdão junto a estes autos).

Ora, tendo sido prolatada decisão quanto à execução do MDE, esta decisão apenas poderá ser contestada em sede de recurso nos termos do art., 24.º, n.º 1, al. b), da LMDE. A detenção da peticionante deste habeas corpus teve início a 22.06.2019, e foi mantida após prolação do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 17.07.2019. Tendo o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa sido prolatado a 17.07.2019, não foi sequer ultrapassado o prazo de detenção até à decisão pelo Tribunal da Relação (que é de 60 dias segundo o disposto no art. 30.º, n.º 1, da LMDE; sendo que este prazo se estende para 90 dias, desde a detenção da pessoa procurada, no caso de ser interposto recurso da decisão do Tribunal da Relação — art. 30.º, n.º 2, da LMDE). Acresce que a medida se mostra adequada a assegurar a efetiva entrega da requerida, peticionante deste habeas corpus, às autoridades alemãs.

Resta acentuar que não compete a este Supremo Tribunal, em sede de habeas corpus, apreciar os fundamentos do MDE, bem como não lhe compete decidir sobre a execução (ou não) do MDE, ou apreciar decisão já prolatada pelo Tribunal da Relação.

Assim sendo, não existe qualquer fundamento para que se possa concluir estarmos perante uma prisão ilegal, pelo que o pedido de habeas corpus deve ser indeferido, por infundado.

 

III - Decisão

   Termos em que acordam os Juízes do Supremo Tribunal de Justiça em indeferir a manifestamente infundada providência de habeas corpus requerida por AA.

Custas de 3 UC de taxa de justiça.

Supremo Tribunal de Justiça, 19 de julho de 2019


Os Juízes Conselheiros,

Helena Moniz (Relatora)

Raul Borges

Tomé Gomes