Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
03B444
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: SALVADOR DA COSTA
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
AUTO-ESTRADA
PEÃO
CULPA PRESUMIDA DO CONDUTOR
CULPA DO LESADO
PRESUNÇÃO DE CULPA
ÓNUS DA PROVA
Nº do Documento: SJ200305080004442
Data do Acordão: 05/08/2003
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL COIMBRA
Processo no Tribunal Recurso: 1994/02
Data: 09/27/2002
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Sumário : 1. A expressão fáctica conduzido sob a direcção e no interesse daquela, a quem ela tinha cedido o uso é insusceptível de integrar a presunção de culpa a que se reporta o n.º 3 do artigo 503º do Código Civil.
2. Na culpa consciente, o agente prevê como possível a realização do facto ilícito mas por leviandade, precipitação, desleixo ou incúria crê na sua inverificação; na culpa inconsciente, embora o agente pudesse e devesse prevê-lo, não o previu por imprevidência, descuido, imperícia ou inaptidão.
3. O dever do condutor de fazer parar o veículo no espaço visível à sua frente significa envolve dever assegurar-se de que a distância entre ele e algum obstáculo visível é suficiente para o fazer parar em caso de necessidade, mas é disso pressuposto a inverificação de condições anormais ou de obstáculos inesperados, sobretudo os derivados da imprevidência alheia, por não lhe ser exigível que com eles conte.
4. É exclusivamente imputável ao sinistrado a colisão mortal entre ele e um veículo automóvel, de noite, numa auto-estrada, na mão de trânsito do último, quando o primeiro, atravessando a via, surgiu à frente do veículo, a um metro e meio da berma direita da estrada, onde estava um autocarro com sinais intermitentes de luzes e, na rectaguarda dele, a cerca de 60 metros, uma pessoa com uma lanterna acesa.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

I
"A" , B e C intentaram, no dia 16 de Março de 1999, contra a D, acção declarativa de condenação, com processo ordinário, pedindo a condenação da ré a pagar-lhes 37 941 174$ e juros, com fundamento no decesso de E, cônjuge da primeira e pai da segunda e da terceira, no dia 1 de Dezembro de 1997, na Estrada A1, Ourém, atropelado culposamente pelo condutor do veículo automóvel matrícula CO, conduzido por F, e no contrato de seguro celebrado entre a ré e G.
A ré contestou a acção, imputando o acidente ao falecido, por ter atravessado de noite uma via de trânsito proibido a peões, acrescentando não conhecer os danos invocados e serem excessivos os valores pedidos, e os autores, na réplica, negaram o afirmado pela primeira.
Foi concedido às autoras o apoio judiciário na modalidade de dispensa de preparos e do pagamento de custas.
Realizado o julgamento, foi proferida sentença absolutória da ré, com fundamento em o acidente ser exclusivamente imputável à vítima, da qual os autores apelaram, sem êxito.

As autoras interpuseram recurso de revista, tendo formulado, em síntese, as seguintes conclusões:
- factores indiciavam, para quem circulasse no sentido do condutor do veículo CO, uma situação de perigo, obrigando o trânsito que circulasse nessa faixa de rodagem a abrandar, de modo a que pudesse parar no espaço livre e visível à sua frente ou executar as manobras necessárias face à previsibilidade de obstáculo;
- revela falta de atenção o facto de o condutor não se ter apercebido da vítima a atravessar a faixa de rodagem, porque, face às circunstâncias e sinais de perigo existentes, era previsível a presença de obstáculo, pessoa ou coisa, e podia avistá-la a pelo menos 30 metros de distância, por via da visibilidade permitida pelas luzes de cruzamento - médios;
- o condutor do veículo devia e podia ter evitado o embate se circulasse com as precauções que na altura lhe eram exigíveis e com atenção ao que se passava na estrada e, dada a projecção da vítima e a distância de imobilização, ia com velocidade excessiva;
- violou o artigo 24º do Código da Estrada ao não regular a velocidade de modo a que, face às circunstâncias do caso, pudesse executar manobras cuja necessidade era de prever, especialmente fazer parar o veículo no espaço livre e visível à sua frente;
- recai sobre o condutor uma presunção de culpa, nos termos do artigo 503º, n.º 3, do Código Civil, e a recorrida não provou que ele não pudesse, face às circunstâncias do caso, evitar o embate;
- o acidente resultou de culpa exclusiva do condutor do veículo seguro na recorrida, não podendo concluir-se que a vítima tenha de alguma forma tenha para ele contribuído;
- o acórdão recorrido violou os artigos 483º, 503º, n.º 3 e 562º do Código Civil e 3º, n.º 2 e 24º do Código da Estrada.

II
É a seguinte a factualidade declarada provada no acórdão recorrido:
1. Na noite do 1 de Dezembro de 1997, pelas 20.00 horas, na Estrada Nacional A 1, ao quilómetro 114, Município de Ourém, ocorreu um acidente, em que intervieram o veículo automóvel ligeiro de passageiros com o n.º de matrícula CO, pertencente a G, conduzido F, sob a direcção e no interesse daquela, a quem ela tinha cedido o uso, no sentido Lisboa-Porto, e E.
2. O autocarro de transporte de passageiros da Universidade do Minho, onde era transportado E, cônjuge da primeira autora e pai da segunda e da terceira, circulava na Estrada Nacional A1, no sentido Lisboa-Porto e, ao chegar ao quilómetro 114, o seu condutor reparou num veículo parado na berma da auto-estrada, no sentido oposto, Porto-Lisboa, que se encontrava em chamas.
3. O condutor do autocarro parou o veículo na berma direita da Estrada A1 com receio de que se encontrasse alguém dentro do veículo em chamas, com o propósito de prestar auxílio, accionou os quatro sinais intermitentes de mudança de direcção, e solicitou a um dos passageiros que se deslocasse para a retaguarda do veículo, com uma lanterna, a fim de avisar o restante trânsito para abrandar a marcha.
4. O passageiro acedeu, colocando-se na berma da Estrada A 1, no sentido Lisboa-Porto, a cerca de 50/60 metros do autocarro onde era transportado, e saíram, o condutor e três passageiros, entre os quais E, munidos de um extintor e, ao chegarem ao local, verificaram que ninguém se encontrava no interior do veículo automóvel, procuraram extinguir o fogo, chegando entretanto os bombeiros.
5. Atento o sentido Lisboa-Porto, a estrada tem no local duas faixas de rodagem, e a berma três metros de largura.
6. E iniciou a travessia das duas vias da Estrada Nacional A 1 e atravessou a referida via e, ao iniciar a travessia das duas vias daquela Estrada, certificou-se que não existia trânsito no sentido Porto-Lisboa, tendo-o feito da forma mais rápida que lhe foi possível.
7. E iniciou a travessia das duas semi-faixas da via destinada ao trânsito que circulava no sentido Lisboa-Porto e, ao regressar para o autocarro, parou no separador central da Estrada Nacional A 1.
8. O condutor do veículo de matrícula n.º CO circulava na faixa de rodagem, ao lado do autocarro estacionado.
9. Concluída a passagem ao lado do autocarro estacionado, surgiu à frente do veículo de matrícula CO, a escassos metros de distância, o peão E, que atravessava a via da esquerda para a direita, atento o sentido de marcha do veículo de matrícula CO.
10. O embate ocorreu no momento imediato àquele em que E apareceu à frente do veículo de matrícula CO, a 1,5 metros de distância da berma direita da Estrada Nacional A1, atento o sentido Lisboa-Porto, acabando aquele veículo por embater com a frente direita, dentro da faixa de rodagem direita, em E.
11. Com o embate, E foi projectado a cerca de 50 metros do local, e o veículo de matrícula CO imobilizou-se a 66, 3 metros do local de embate, tendo o seu condutor parado o veículo na berma direita da via, atento o seu sentido de marcha.
12. Em consequência do embate, E sofreu traumatismos que foram a causa directa e necessária da sua morte, que ocorreu pouco tempo depois do embate, período durante o qual sentiu dores físicas muito intensas, angústia e amargura, por se ver irremediavelmente à beira da morte.
13. "E", tinha 39 anos de idade, era fisicamente bem constituído e saudável, as autoras amavam-no profundamente e eram correspondidas com muito afecto, carinho e protecção, constituindo uma família harmoniosa e feliz, e sentiram muito intensamente a sua morte, particularmente A, que assistiu a toda a tragédia, da qual se vai lembrar para o resto dos seus dias.
14. E era encarregado da construção civil, onde auferia o salário mensal de 89 000$, acrescido de subsídio de férias e de Natal e, fora das suas horas de serviço, aos sábados e feriados, durante todo o ano, fazia trabalhos para pequenas obras, e auferindo cerca de 60 000$ por mês, e contribuía para a economia do lar com cerca de 100 000$.
15. As autoras despenderam 250 000$ em objectos pessoais da vítima danificados e destruídos, 50 000$ em transportes de Braga para a morgue, Hospital e Guarda Nacional Republicana de Ourém e de Leiria, 350 000$ em luto e 269 915$ em despesas com o funeral.
16. G e representantes da ré declararam por escrito, consubstanciado na apólice n.º 605088739, no dia 4 de Outubro de 1993, a última, mediante prémio a pagar pela primeira, assumir a responsabilidade civil por danos causados a terceiros com o veículo automóvel de matrícula CO, até ao limite de 50 000 000$.
III
Não estão em causa no recurso o facto ilícito decorrente do atropelamento e morte de E, o dano não patrimonial deste consubstanciado na sua perda do direito à vida e no seu sofrimento físico-psíquico entre o momento da colisão e a morte, o sofrimento das recorrentes, o dano patrimonial por elas sofrido, o nexo de causalidade adequada entre aqueles danos e a morte, pressupostos da obrigação de indemnização no quadro da responsabilidade extracontratual, a que se reportam os artigos 483º, n.º 1 e 563º do Código Civil.
Ademais, também não é posta em causa no recurso a assunção pela recorrida, por via de um contrato de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, da obrigação de indemnização resultante do evento letal em análise (artigos 426º do Código Comercial e 5º, proémio, alínea a), 6º, n.º 1 e 8º, n.º 1, do Decreto-Lei nº 522/85, de 31 de Dezembro).
A questão essencial decidenda é a de saber o evento estradal em causa é ou não imputável, a título de culpa efectiva ou presumida, ao condutor do veículo automóvel matrícula CO, "F".
Tendo em linha de conta o conteúdo do acórdão recorrido e das conclusões de alegação das recorrentes e da recorrida, a resposta à referida questão pressupõe a análise da seguinte problemática:
- síntese dos factos relativos à dinâmica do acidente;
- especificidade do local do acidente no confronto com os limites de velocidade e proibição de trânsito de peões;
- estrutura do conceito geral de culpa e distribuição do ónus de prova;
- ocorre ou não, na espécie, presunção de culpa F?
- omitiu ou não F o dever objectivo de cuidado no acto de condução automóvel em termos de censura ético-jurídica?
- solução para o caso decorrente dos factos e da lei.

Vejamos, de per se, cada uma das referidas sub-questões:

1. O condutor do autocarro, onde ia E, parou-o na berma direita da estrada, sentido Lisboa-Porto, com o propósito de prestar auxílio a quem estivesse dentro de um veículo que do outro lado da auto-estrada estava a arder.
Accionou os quatro sinais intermitentes de mudança de direcção e solicitou a um dos passageiros a sua deslocação, com uma lanterna, para a retaguarda do autocarro, a fim de avisar o restante trânsito para abrandar a marcha.
Acedeu esse passageiro a tal solicitação, colocou-se na berma da estrada, no sentido Lisboa-Porto, a cerca de 50/60 metros do autocarro, e deste saíram, munidos de um extintor, o condutor e três passageiros, entre os quais E.
De regresso ao autocarro, E fez a travessia das duas vias da auto-estrada, sentido Porto-Lisboa.
Iniciou depois a travessia das duas semi-faixas da via destinada ao trânsito que circulava no sentido Lisboa-Porto, com três metros de largura, parando no separador central.
Certificou-se de não existir trânsito no sentido Porto-Lisboa e procedeu à travessia da forma mais rápida que lhe foi possível, para entrar no autocarro, estacionado na berma direita da estrada, sentido Lisboa-Porto.
F circulava com o veículo na faixa de rodagem, ao lado do autocarro estacionado, no sentido Lisboa-Porto e, concluída a passagem, surgiu-lhe E à frente do veículo, a escassos metros de distância, que atravessava a via da esquerda para a direita, sentido Lisboa-Porto.
O embate entre a frente daquele veículo e E ocorreu dentro da faixa de rodagem direita, sentido Lisboa-Porto, no momento imediato àquele em que E apareceu à frente do veículo, a 1,5 metros de distância da berma direita da estrada.
Com o embate, E foi projectado a cerca de 50 metros do local, e o veículo imobilizou-se a 66, 3 metros do local de embate, parando-o na berma direita da via, atento o seu sentido de marcha.

2. A especificidade do evento em causa decorre do facto de se ter localizado numa auto-estrada entre um veículo automóvel que nela rodada e um peão que nela caminhava.
Mesmo em vias que não sejam auto-estradas, os peões não podem atravessar a faixa de rodagem sem previamente se certificarem de que, tendo em conta a distância que os separa dos veículos que nela transitam e a respectiva velocidade, o podem fazer sem perigo de acidente e, caso o possam, devem fazê-lo o mais rápido possível (artigo 101º, n.ºs 1 e 2, do Código da Estrada).
Ademais, nessas vias que não sejam auto-estradas só o podem fazer nas passagens especialmente sinalizadas para esse efeito ou, quando não exista alguma a uma distância inferior a 50 metros, perpendicularmente ao eixo da via (artigo 101º, n.º 3, do Código da Estrada).
Finalmente, temos o princípio básico da lei estradal, aplicável na condução automóvel em qualquer tipo de estradas, que é o de que as pessoas devem abster-se de actos que impeçam ou embaracem o trânsito ou comprometam a segurança ou a comodidade dos utentes das vias (artigo 3º, nº 2, do Código da Estrada).
As auto-estradas são vias destinadas ao trânsito rápido, com separação física das faixas de rodagem, sem cruzamentos de nível nem acesso a propriedades marginais, com acessos condicionados e sinalizadas como tal (artigo 1º, alínea c), do Código da Estrada).
A entrada e a saída das auto-estradas faz-se unicamente pelos acessos a tal fim destinados (artigo 73º, n.º 1, do Código da Estrada).
O limite mínimo e máximo de velocidade permitida nas auto-estradas no que concerne aos veículos automóveis ligeiros de passageiros é de 40 e 120 quilómetros por hora, respectivamente (artigo 27º, n.ºs 1 e 2, do Código da Estrada).
Nas auto-estradas e nos respectivos acessos devidamente assinalados é proibido, além do mais, o trânsito de peões, bem como parar ou estacionar, ainda que fora das faixas de rodagem, salvo nos locais destinados a esse fim, ou transpor os separadores de trânsito ou as aberturas neles existentes (artigo 72º, n.ºs 1 e 2, alíneas b) e e), do Código da Estrada).

3. A culpa lato sensu exprime um juízo de reprovação pessoal da acção ou da omissão do agente que podia e devia ter agido de outro modo e é susceptível de assumir as vertentes do dolo ou da mera negligência.
A culpa stricto sensu ou mera negligência traduz-se, grosso modo, na omissão pelo agente da diligência ou do cuidado que lhe era exigível, envolvendo, por seu turno, a vertente consciente ou inconsciente.
No primeiro caso, o agente prevê a realização do facto ilícito como possível mas, por leviandade, precipitação, desleixo ou incúria, crê na sua inverificação; no segundo, o agente, embora o pudesse e devesse prever, por imprevidência, descuido, imperícia ou inaptidão, não o previu.
Na falta de outro critério legal, a culpa é apreciada pela diligência de um bom pai de família, em face das circunstâncias de cada caso (artigo 487º, nº 2, do Código Civil).
O critério legal de apreciação da culpa é, pois, abstracto, ou seja, tendo em conta as concretas circunstâncias da dinâmica do acidente de viação em causa, por referência a um condutor normal.
O ónus de prova dos factos integrantes da culpa no quadro da responsabilidade civil extracontratual, se não houver presunção legal de culpa, cabe a quem com base nela faz valer o seu direito (artigos 342º, n.º 1 e 487º, n.º 1, do Código Civil).

4. As recorrentes entendem que, na espécie, tendo em conta o disposto no artigo 503º, n.º 3, do Código Civil, ocorre uma situação de presunção de culpa de F.
Prescreve o referido normativo responder pelos danos que causar, salvo se provar não ter havido culpa da sua parte, a pessoa que conduzir o veículo por conta de outrem.
A pessoa que conduz o veículo automóvel por conta de outrem é o comissário, o que pressupõe que entre o condutor e um terceiro ocorra uma relação de comissão.
O conceito de comissão pressupõe uma relação de dependência entre o comitente e o comissário que envolva o direito do primeiro de dar ordens ao segundo e de este as dever cumprir.
No caso vertente, o que está assente é que o veículo automóvel em causa era conduzido F, sob a direcção e no interesse de G, que, quem ela tinha cedido o respectivo uso.
Considerando a expressão direcção e interesse por parte de G em relação ao veículo automóvel em causa e o contexto dos articulados de que foi extraída, tendo em conta a referência do n.º 1 do artigo 503º do Código Civil à direcção efectiva e utilização no próprio interesse, impõe-se-nos que a expressão direcção seja interpretada no sentido da direcção efectiva integrante da previsão daquele normativo (artigo 236º, n.º 1, do Código Civil).
A direcção efectiva do veículo a que alude aquele normativo é o poder real ou de facto sobre o veículo automóvel, nada tendo a ver com a relação de comissão que constitui pressuposto do funcionamento da presunção de culpa a que se reporta o n.º 3 do artigo 503º do Código Civil.
Em consequência, a conclusão não pode deixar de ser no sentido de que a referida factualidade não justifica a conclusão jurídica de que impende sobre F a presunção de culpa a que alude o n.º 3 do artigo 503º, salvaguarda pelo n.º 1 do artigo 487º, ambos do Código Civil.


5. Importa essencialmente verificar se a violação do direito à vida e de propriedade em causa é ou não censurável do ponto de vista ético-jurídico a F, ou seja, se ele agiu ou não com culpa exclusiva ou parcial na produção do acidente estradal que vitimou E.
A conclusão sobre a culpa na produção do evento em análise há-de resultar da dinâmica envolvida pelo veículo automóvel e pela vítima, no quadro da realidade estática onde ela ocorreu.
O evento ocorreu, pois, de noite, quando E atravessava a auto-estrada da esquerda para a direita, a caminho do autocarro estacionado na berma direita, segundo o sentido Lisboa Porto, do qual saíra, atravessando a estrada para o lado contrário, com o meritório desígnio de eventualmente poder prestar auxílio a quem estivesse no veículo automóvel que nesse lado estava a arder.
Não está provado que F conduzisse o veículo automóvel em causa velocidade superior à legalmente permitida, ou seja, a mais de 120 quilómetros por hora, nem mesmo a que velocidade o fazia, sendo o ónus da prova desse excesso incumbência dos recorrentes, que o não cumpriram (artigos 342º, n.º 1 e 487º, n.º 1, do Código Civil).
Independentemente dos limites absolutos de velocidade acima referidos, os condutores de veículos automóveis devem regular a velocidade de modo a que, atendendo às características e ao estado da via e do veículo, às condições meteorológicas ou ambientais, à intensidade do trânsito e a quaisquer outras circunstâncias relevantes, possam, em condições de segurança, executar as manobras cuja necessidade seja de prever e, especialmente, fazer parar o veículo no espaço livre à sua frente (artigo 24º, n.º 1, do Código da Estrada).
A regra de que o condutor deve especialmente fazer parar o veículo no espaço livre à sua frente significa dever assegurar-se, no exercício da condução automóvel, de que a distância entre ele e qualquer obstáculo visível é suficiente para, em caso de necessidade, o fazer parar.
Ela rege especialmente para o caso de os condutores circularem com veículos automóveis à sua vanguarda e pressupõe a inverificação de condições anormais ou obstáculos inesperados, não lhe sendo exigível que contem com eles, sobretudo os derivados da imprevidência alheia.
Como E surgiu a F inesperadamente na faixa de rodagem de uma auto-estrada, onde não podia caminhar, não pode o embate que ocorreu ser ao segundo censurável do ponto de vista ético-jurídico por não ter podido imobilizar o veículo automóvel antes do embate.
Também resulta do artigo 24º, n.º 1, do Código da Estrada deverem os condutores de veículos automóveis regular a respectiva velocidade em conformidade com as suas características e o estado da via, as condições meteorológicas ou ambientais, a intensidade do trânsito e outras circunstâncias relevantes, em termos de, em condições de segurança, executar as manobras cuja necessidade seja de prever.
Trata-se de um corolário do dever objectivo de cuidado cuja violação, com base na ideia de que a acção ou a omissão inadequada do agente implica o aumento da probabilidade do dano para além do risco permitido em função das exigências da vida em sociedade.
Era noite, o autocarro estava na faixa direita com sinais de perigo e a 50 ou 60 metros dele, na sua retaguarda, estava um passageiro com uma lanterna, podendo F aperceber-se disso.
A luz proveniente da lanterna e dos sinais intermitentes emitidos pelo autocarro era, em termos de normalidade, referenciável ao estacionamento daquele veículo na berma da estrada e não ao facto de E estar a atravessar a auto-estrada, por essa travessia lá ser proibida.
Releva essencialmente o facto de o embate haver ocorrido, na sequência de E ter surgido pela frente do veículo automóvel, depois de F ter passado a linha do autocarro, na faixa de rodagem direita, segundo o seu sentido de trânsito, a um metro e meio de distância da berma desse lado.
A distância a que E foi projectado e a que F imobilizou o veículo que conduzia não revelam excessividade da velocidade a que aquele veículo rodava, tendo em conta o tempo de reacção normal na condução automóvel à vista do obstáculo e o facto de a referida imobilização ter ocorrido na berma da estrada.
Perante o mencionado quadro de facto, não se pode concluir que F tenha infringido o dever objectivo de cuidado previsto no artigo 24º, n.º 1, do Código da Estrada ou exigível ao condutor padrão, ou que tivesse agido com imperícia, imprevidência ou falta de atenção.
Ao invés, impõe-se a conclusão no sentido de que o evento estradal em causa lhe não é imputável a titulo de culpa.

6. O especial cuidado na travessia da estrada incumbia a E, porque o fazia em local proibido, só destinado a veículos e de rodagem acelerada, com o condicionalismo de ser noite, naturalmente redutora da visibilidade.
Incumbia-lhe por isso, atentar bem nos veículos automóveis que rodavam no sentido de Lisboa-Porto e na velocidade a que o faziam, guiando-se, designadamente, pela projecção da luz dos respectivos faróis.
Era-lhe naturalmente mais fácil avistar os veículos automóveis que se aproximavam do que aos condutores destes avistar a dinâmica da sua própria travessia.
Tendo atravessado ilegalmente a auto-estrada e surgido inopinadamente na frente do veículo automóvel conduzido por F, sem ter em conta o trânsito automóvel no sentido Lisboa-Porto, violou normas estradais importantes, agiu com culpa inconsciente e, consequentemente, foi o exclusivo causador evento em que foi vitimado.

Improcede, por isso, o recurso, com a consequência de se dever manter o acórdão recorrido.
Vencidas, são as recorrentes responsáveis pelo pagamento das custas respectivas (artigo 446º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil).
Todavia, como as recorrentes são beneficiárias do apoio judiciário na modalidade de dispensa de pagamento de custas, considerando o disposto nos artigos 15º, n.º 1, 37º, n.º 1 e 54º, n.ºs 1 e 3, do Decreto-Lei n.º 387-B/87, de 29 de Dezembro, e 57º, n.º 1, da Lei n.º 30-E/2000, de 20 de Dezembro, inexiste fundamento legal para que sejam condenadas no pagamento das custas do recurso.
IV
Pelo exposto, nega-se provimento ao recurso e mantém-se o acórdão recorrido.

Lisboa, 8 de Maio de 2003
Salvador da Costa
Ferreira de Sousa
Quirino Soares