Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
596/14.0JAPRT.S1
Nº Convencional: 3ª SECÇÃO
Relator: SOUSA FONTE
Descritores: RECURSO PENAL
COMPETÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
VÍCIOS DO ARTº 410 CPP
REENVIO DO PROCESSO
LAPSO MANIFESTO
CORRECÇÃO OFICIOSA
PENA DE PRISÃO
MEDIDA CONCRETA DA PENA
CORREIO DE DROGA
TRÁFICO DE ESTUPEFACIENTES
DOLO
ILICITUDE
IMAGEM GLOBAL DO FACTO
PREVENÇÃO GERAL
PREVENÇÃO ESPECIAL
SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA
Data do Acordão: 02/04/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Área Temática:
DIREITO PENAL - CONSEQUÊNCIAS JURÍDICAS DO FACTO / PENAS / SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA DE PRISÃO / ESCOLHA E MEDIDA DA PENA.
DIREITO PROCESSUAL PENAL - SENTENÇA - RECURSOS.
Doutrina:
- Anabela Miranda Rodrigues, “O Modelo de Prevenção na Determinação da Medida Concreta da Pena”, in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 12, n.º 2, Abril/Junho de 2002, p. 147 e ss..
- Eduardo Correia, “Direito Criminal”, II, 387.
- Figueiredo Dias, Direito Penal – Parte Geral, Tomo I, 2ª edição, 81 e 84; Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, Editorial Notícias, Ano 1993, pp. 196 e ss., 232, 255, 342 e ss.; Direito Penal II, Parte Geral, As Consequências Jurídicas do Crime, Secção de Textos da Universidade de Coimbra, 1988, p. 229 e ss.; Lições ao 5.º ano da Faculdade de Direito de Coimbra, 1998, p. 279 e ss..
- Taipa de Carvalho, Direito Penal, Parte Geral – Questões Fundamentais, pp.83 e 84.
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE EXECUÇÃO DAS PENAS E MEDIDAS PRIVATIVAS DA LIBERDADE, APROVADO PELA LEI 115/2009, DE 15 DE OUTUBRO: - ARTIGO 2.º.
CÓDIGO DE PROCESSO PENAL (CPP): - ARTIGO 380º, NºS 1, ALÍNEA B), E 2, 409.º, N.º1, 410.º, N.º2, AL. A), 412.º, N.º1, 426.º, N.º1.
CÓDIGO PENAL (CP): - ARTIGO 40.º, N.ºS 1 E 2, 50.º, N.º1, 71.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:
-DE 12.03.97, P.º N.º 1057/96;
-DE 28-09-2005, CJ / STJ, 2005, TOMO 3, 173;
-DE 19.12.2007, P.º N.º 3206/07-3.ª, DE 16.01.2008, P.º N.º 4565/07-3.ª, DE 23.01.2008, P.º N.º 4567/07-3.ª, DE 20.02.2008, P.º N.º 295/08-3.ª, DE 09.04.2008, P.º N.º 825/08-5.ª, DE 17.04.2008, P.º N.º 806/08-5.ª E DE 13.01.2011, P.º N.º 369/09.1JELSB.S1-3.ª SECÇÃO.
-DE 5.7.2012, P.º N.º 373/11.0JELSB.S1, DA 5ª SECÇÃO, DE 241 ACÓRDÃOS ANALISADOS, PROFERIDOS ENTRE FEVEREIRO DE 2002 E MAIO DE 2012;
-DE 03.10.2013, P.º N.º 806/09.5JAPRT E DE 15.10.2014, Pº Nº 353/13.0JAFAR.S1, AMBOS DA 3.ª SECÇÃO;
-DE 15.1.2014, PROFERIDO NO P.º N.º 76/14.3JELSB.L1.S1-3.ª SECÇÃO.
Sumário :

I - A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada constitui o vício da al. a) do n.º 2 do art. 410.º do CPP. A consequência não é a do reenvio do processo para novo julgamento, quando o processo contém em si elementos que permitem superar essa deficiência e que possibilitam decidir a causa, como prevê o n.º 1 do art. 426.º do CPP.
II - No rol dos factos provados ficou em branco a quantificação do peso líquido de cocaína que o arguido transportava. Tendo em conta que na motivação da decisão dos factos provados, o acórdão recorrido refere que o arguido em julgamento «confessou integralmente e sem reservas os factos e os elementos objectivos existentes no processo, nomeadamente a prova pericial efectuada à droga apreendida» e dado que no exame pericial consta o peso líquido de 550,347 g de cocaína, a apontada omissão nos factos provados constitui um mero lapso, que ao abrigo do disposto no art. 380.º, nº. 1, al. b), e n.º 2, do CPP, é possível corrigir.
III - A intervenção correctiva do STJ na medida da pena – em benefício do recorrente, por força do disposto no art. 409.º, n.º 1, do CPP - só se justifica se face aos factos julgados provados se concluir que o Tribunal colectivo faltou na indicação de factos relevantes para o efeito (exigências de prevenção e culpa), ou se, pelo contrário, valorou outros que devam considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis, se tiver violado as regras da experiencia ou se o quantum fixado se mostrar de todo desproporcionado.
IV - Tem-se por proporcionada às necessidades de prevenção e à culpa a aplicação de 5 anos de prisão, em substituição da pena de 6 anos e 6 meses aplicada pelo Tribunal de 1.ª Instância, pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo art. 21.º do DL 15/93, de 22-01, ao arguido que, no âmbito de um transporte como correio de droga, desembarcou no aeroporto do Porto, vindo do Brasil, trazendo, ingeridos, 550,374 g de cocaína.


Decisão Texto Integral:

            Acordam na Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça:

            1. Relatório

            1.1. O arguido AA, nascido no dia ..., no ...l, filho de ...e de..., ..., residente, antes de preso, na ..., foi julgado no processo em epígrafe, da 1ª Unidade Processual da Grande Instância Criminal do Porto, e aí condenado, como autor de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo artº 21º do DL 15/93, de 22 de Janeiro, na pena de seis anos e seis meses de prisão.

            1.2. Inconformado, interpôs recurso para o Supremo Tribunal de Justiça cuja motivação encerrou com as seguintes conclusões:

            «1. O tribunal de primeira instância errou ao aplicar ao arguido uma pena tão elevada.

                2. O artigo 21.º do D.L. n.º 15/93 de 22.01 prevê a aplicação de uma pena de prisão entre os quatro e os doze anos.

                3. Entendendo-se que neste caso não será de aplicar a suspensão da pena de prisão, somos, no entanto, do entendimento que deveria ter sido aplicada ao arguido, atendendo às concretas características do caso, uma pena mais próxima do mínimo legal.

                4. Nos termos do disposto no artigo 40.º do C.P. a aplicação das penas e das medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos (necessidades de prevenção geral) e a reintegração do agente na sociedade (necessidades de prevenção especial).

                5. Salvo melhor entendimento, a reafirmação da norma jurídica violada não impõe a aplicação de uma pena tão elevada no seu quantum.

                6. E a reintegração do recorrente na sociedade também não se coaduna com um período de reclusão tão elevado.

                7. Na verdade, não nos podemos olvidar que o arguido confessou integralmente e sem reservas, mostrou sincero arrependimento, antes da sua detenção encontrava-se inserido familiar, social e profissionalmente, é ainda muito jovem, trabalha (e estuda) no estabelecimento prisional.

                8. Uma vez colocado em liberdade regressará ao seu agregado de origem, no seu país de origem (...) retomando uma vida pacata e de acordo com os normativos legais e societários.

                9. Podemos afirmar que este acro [“acto”, certamente], ilícito foi episódio único na sua vida, e que ficou a dever-se a promessas de dinheiro fácil é certo, mas também ao sonho, de um jovem do interior do ..., de poder viajar até à Europa e conhecer melhor alguns costumes e tradições.

                10. Assim sendo, concluímos que uma pena de prisão tão elevada irá coarctar a possibilidade do mesmo retomar a sua vida longe de ilícitos criminais.

                11. Se o arguido, aqui recorrente sentir que está a ser demasiado penalizado (até por comparação a outros reclusos com quantidades superiores de droga) irá certamente regredir no seu processo de ressocialização; sentindo-se injustiçado, poderá começar a assumir comportamentos pouco normativos.

                12. A escolha da medida da pena reconduz-se, numa perspectiva política criminal a um movimento de luta contra a pena de prisão. A este propósito dispõe o artigo 70.º do C.P. que «se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.

                13. Dispõe o artigo 71.º do C.P que

                14. “A determinação da medida da pena, dentro dos limites fixados na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção”.

                15. E o artigo 71.º n.º 2 do referido diploma legal refere que na fixação da pena o tribunal deve atender a todas as circunstâncias que não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, considerando nomeadamente: a) O grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste a gravidade das suas consequências, bem como o grau da violação dos deveres impostos ao agente; b) A intensidade do dolo ou da negligência; c) Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram; d) As condições pessoais do agente e a sua situação económica; e) A conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime; f) A falta de preparação para manter uma conduta licita.

                16. Feita uma análise dos Acórdãos do STJ e a respeito da medida das penas concretamente determinadas, verificamos relação entre a quantidade de produto estupefaciente apreendido e a sanção aplicada. O que se verificou foi que em quantidades transportadas (nos casos de correios de droga) de 8 kgs a 14 kgs de cocaína, as penas estenderam-se de 5 anos a 7 anos e seis meses de prisão, para quantidades inferiores a 8 kgs de cocaína, as penas foram em regra, mais baixas do que os cinco anos de prisão e até ao limite de 4 anos e 3 meses de prisão.

                17. Assim sendo, somos do entendimento que sempre seria de aplicar ao arguido uma pena situada entre os 4 anos e três meses e os cinco anos.

                18. Foram violados os artigos 21.º do D.L n.º 15/93 de 22.01, artigos 40.º, 70.º, 71.º, 73.º e 73.º [sic] do CP.».

                1.3. O recurso foi recebido nos termos e com o efeito legais, pelo despacho de fls. 256.

            1.4. A Senhora Procuradora da República respondeu e conclui que:

            «1.- a confissão do arguido não releva especialmente, pois que o mesmo foi detido em flagrante quando, depois de em controlo pela Delegação Aduaneira do aeroporto do Porto, lhe terem sido detetadas “bolota” de estupefaciente “ in corpore” ter sido conduzido a hospital desta cidade onde expeliu as mesmas;

                2.- o arguido transportava a quantidade de 550,374 gramas de cocaína que destinava entregar/ceder a terceiro recebendo, como contrapartida € 4 000,00;

                3.- as condições sociofamiliares e profissionais que dispõe no seu país natal e que segundo o recorrente lhe permitem retomar um trajeto de vida normativo são precisamente as mesmas de que já dispunha aquando do cometimento do crime, não tendo as mesmas sido suficientes para o afastar de conduta tão grave;

                4.- a ameaça que resulta das suas conclusões de que, por sentir-se demasiado penalizado com a presente condenação, poder começar a assumir comportamentos pouco normativos é, no mínimo, revelador, de uma personalidade desconforme com o direito e com o sentido do fim das penas, e uma ameaça à sociedade a qual deve, humildemente, reparar do mal cometido;

                5.- cocaína é a droga mais traficada a nível mundial, a seguir à cannabis, sendo que esta droga continua a entrar na Europa sobretudo através da Península Ibérica e dos Países Baixos;

                6.- a culpa e as exigências de prevenção, quer geral quer especial, foram totalmente atendidas na determinação da pena;

                7.- inexiste, por não provada, qualquer circunstância anterior ou posterior ao crime, ou dele contemporânea, da qual resulte qualquer diminuição acentuada da ilicitude do facto, da culpa do recorrente ou a necessidade da pena, de modo a justificar qualquer atenuação especial;

                8.- no que respeita ao comportamento tido em reclusão pelo arguido, tal importará, não para a determinação da pena, mas para apreciação de concessão, ou não, de liberdade condicional, quando a mesma tenha de ocorrer;

                9.- o recurso não merece provimento, devendo ser mantida a pena na qual o recorrente se mostra condenado;

                10.- não foi violado qualquer dispositivo legal, mormente os invocados pelo recorrente».

            1.5. Recebido o processo no Supremo Tribunal de Justiça, a Senhora Procuradora-geral Adjunta emitiu parecer em que afirmou nada ter a acrescentar ao entendimento, e respectiva fundamentação, sustentado pela Senhora Procuradora da República na sua resposta.

            1.6. Cumprido o disposto no nº 2 do artº 417º do CPP, o Recorrente nada disse.

           

            2. Tudo visto, cumpre decidir.

           

            2.1. É do seguinte teor a decisão do Tribunal Colectivo sobre a matéria de facto:

            «1 – No dia 30 de Março de 2014, pelas 19h30m, o arguido AA embarcou num avisão [sic] no ..., com destino final a ..., ..., após ter ingerido cinquenta e seis bolotas, contendo no interior das mesmas cocaína.

                2 – No dia 31 de Março de 2014, pelas 9h30m, o arguido desembarcou no aeroporto Francisco Sá Carneiro, sito na Maia, provindo do voo TP ..., proveniente do..., tendo, nessa altura, sido sujeito a controlo levado a cabo pela Delegação Aduaneira desse mesmo aeroporto.

                3 – No decurso desse controlo, verificou-se que o arguido transportava in corpore produto estupefaciente, tendo sido conduzido ao Hospital de S. João, no Porto, onde expeliu cinquenta e seis embalagens, bolotas, que continha no seu interior cocaína, com o peso líquido de [o facto não refere o peso da cocaína], produto que se destinava a ser entregue e cedido a terceiros, mediante uma contrapartida monetária de € 4000.

                4 – O arguido tinha ainda na sua posse: dois telemóveis, ambos da marca Blackberry, que utilizava com os fornecedores de tal produto estupefaciente; dois cartões SIM, um da Orange com o nº ... e outro da Lycamobile, com o nº ...; vários cartões de suporte de cartão SIM; um micro cartão de 32 Gb, diversos papéis, incluindo bilhete electrónico (recibo de itinerário do passageiro), troca de correio electrónico.

                5 – O arguido agiu livre e conscientemente, sabendo quais eram as características, natureza, quantidade e efeitos do produto estupefaciente que transportava e detinha, eram proibidas por lei, sempre com a intenção de obter uma contrapartida económica.

                6 – Mais sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei.

                7 – O arguido confessou livre, integralmente e sem reservas os factos constantes da acusação.

                8 – O arguido cresceu junto da família de origem, com uma dinâmica estruturada e equilibrada. No seu país de origem dispõe de condições sociofamiliares e profissionais que lhe permitem retomar um trajecto de vida normativo e socialmente integrado.

                9 – O arguido mostra-se arrependido e demonstra uma censura crítica dos seus actos.

                10 – O arguido enquanto detido exerce actividade profissional no estabelecimento prisional.

                11 – O arguido não tem antecedentes criminais em Portugal».

            2.2. Correcção do acórdão recorrido.

            Vimos antes que o nº 3 da decisão sobre a matéria de facto não refere o peso das 56 embalagens de cocaína que o Arguido expeliu – facto essencial para a definição do grau da ilicitude da sua conduta.

            A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada constitui o vício da alínea a) do nº 2 do artº 410º do CPP.

            No caso em julgamento, porém, a consequência não é a do reenvio do processo para novo julgamento, já que o processo contém em si elementos que permitem superar essa deficiência e que possibilitam decidir a causa, como prevê o nº 1 do artº 426º do CPP.

            Com efeito, se, no lugar próprio, no rol dos “factos provados”, ficou em branco a quantificação do peso líquido da cocaína que o Arguido transportou in corpore, logo a seguir, na motivação dessa decisão, o acórdão recorrido refere que o Arguido, em julgamento, confessou «livre, integralmente e sem reservas os factos e os elementos objectivos existentes no processo, nomeadamente a prova pericial efectuada à droga apreendida [sublinhado nosso]» (fls. 231).

            Ora, do exame pericial de fls. 121 consta, além do mais, que a cocaína apreendida tinha o peso líquido de 550.374gr., que é o peso referido na acusação (fls. 159) a qual foi recebida nos «seus precisos termos» pelo despacho de fls. 193. E, na audiência de julgamento, não foi produzida prova para além do interrogatório do Arguido e da inquirição de um Inspector da PJ (cfr. fls. 227) que, naturalmente, considerando os termos da motivação, não questionaram aquele valor.

            Por isso é que o acórdão recorrido, na fundamentação de direito, fls. 233, refere que «o arguido deteve no interior do seu corpo, com intenção de transportar produtos estupefacientes, nomeadamente cocaína, com o peso líquido de 550,374gr…».

            Neste contexto, a apontada omissão no nº 3 dos “Factos Provados” constitui mero lapso que, ao abrigo do disposto no artº 380º, nºs 1, alínea b), e 2, do CPP, corrigimos nos termos referidos, isto é, que o Arguido «…expeliu cinquenta e seis embalagens, bolotas, que continham no seu interior cocaína, com o peso líquido de 550,374gr…».    

              

            2.3. Objecto do recurso

            Como resulta das conclusões da motivação que, nos termos do artº 412º, nº 1, do CPP definem o objecto do recurso (cfr. também o nº 4 do artº 635º do CPC), a única questão suscitada pelo Recorrente é a da medida da pena em que foi condenado – 6 anos e 6 meses de prisão, recordemos – que reputa de «manifestamente desproporcional às circunstâncias concretas do caso», por entender que devia ter sido condenado numa pena «situada entre os 4 anos e três meses e os cinco anos» de prisão, que, admite, não seja suspensa na sua execução (cfr. conclusão 3ª).

           

            2.4. Decisão/Fundamentação

            2.4.1. O critério legal da determinação da medida da pena

            Nos termos do artº 40º do CPenal, que estabelece o programa político criminal sobre os fins das penas, a aplicação das penas visa primordialmente a protecção de bens jurídicos e, na medida do possível, a reintegração do agente na sociedade (nº 1). A pena, porém, em caso algum pode ultrapassar a medida da culpa (nº 2).

            A pena é, assim, determinada em função de razões de prevenção, geral e especial, cabendo à culpa o papel, não de seu fundamento, por razões retributivas, mas antes o de seu limite inultrapassável, moderador de eventuais excessos preventivos atentatórios da dignidade humana do arguido.

            Por sua vez, o artº 71º, nº 1 dispõe que a determinação da medida concreta da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção.

            E o número seguinte manda atender, para o efeito, a todas as circunstâncias – que enumera de forma exemplificativa nas suas diversas alíneas – que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele: os “factores de medida da pena”, como lhes chama Figueiredo Dias[1], que hão-de naturalmente relevar para efeitos da culpa e/ou da prevenção.

            Na síntese conclusiva com que encerra o capítulo sobre as “Finalidades e legitimação da pena criminal”, o mesmo Autor resume do seguinte modo a teoria sobre essas finalidades e limite: «(1) Toda a pena serve finalidades exclusivas de prevenção, geral e especial; (2) A pena concreta é limitada, no seu máximo inultrapassável, pela medida da culpa; (3) Dentro deste limite máximo ela é determinada no interior de uma moldura de prevenção geral de integração, cujo limite superior é oferecido pelo ponto óptimo de tutela dos bens jurídicos e cujo limite inferior é constituído pelas exigências mínimas de defesa do ordenamento jurídico; (4) Dentro desta moldura de prevenção geral de integração a medida da pena é encontrada em função de exigências de prevenção especial, em regra positiva ou de socialização, excepcionalmente negativa, de intimidação ou de segurança individuais», sendo estas que vão determinar em última instância, a medida da pena[2].

            A medida da pena é, assim, função da medida da necessidade de tutela dos bens jurídicos, traduzida na tutela das expectativas comunitárias na manutenção e reforço da validade da norma violada, a determinar, naturalmente, em consonância com as circunstâncias do caso concreto, em face do modo de execução do crime, da motivação do agente, das consequências da sua conduta, etc.  

            Por outro lado, assim como o Estado usa do seu ius puniendi, também deve oferecer ao condenado o mínimo de condições para prevenir a reincidência, como desde logo impõe o artº 2º do Código de Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade, aprovado pela Lei 115/2009, de 15 de Outubro, nisso se traduzindo essencialmente as razões de prevenção especial (de socialização). Como nota Taipa de Carvalho[3], «a função da ressocialização não significa uma espécie de “lavagem ao cérebro”, … mas, sim e apenas, uma tentativa de interpelação e consequente auto-adesão do delinquente à indispensabilidade social dos valores essenciais (…) para a possibilitação da realização pessoal de todos e cada um dos membros da sociedade. Em síntese, significa uma prevenção da reincidência».

            Não pode, no entanto, escamotear-se, dentro das razões de prevenção especial, a função de dissuasão ou intimidação do delinquente (prevenção especial negativa) que, segundo o mesmo Autor, em nada é incompatível com a função de ressocialização, porque se trata, não de intimidar por intimidar, mas antes de uma dissuasão, através do sofrimento inerente à pena, «humanamente necessária para reforçar no delinquente o sentimento de necessidade de se auto-ressocializar, ou seja de não reincidir».

            2.4.2. O objecto do recurso, como vimos, incide exclusivamente sobre a medida da pena aplicada pelo Tribunal da 1ª Instância. Todavia, não é ilimitada a controlabilidade pelo Supremo Tribunal de Justiça do procedimento de determinação da medida da pena.

            Com efeito, como refere Figueiredo Dias[4], «todos estão hoje de acordo em que é susceptível de revista a correcção do procedimento ou das operações de determinação, o desconhecimento pelo tribunal ou a errónea aplicação dos princípios gerais de determinação, a falta de indicação de factores relevantes para aquela, ou, pelo contrário, a indicação de factores que devam considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis». Do mesmo modo, prossegue, «a questão do limite ou da moldura da culpa [deve entender-se que está] plenamente sujeita a revista, assim como a forma de actuação dos fins das penas no quadro da prevenção, mas já não a determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exacto da pena, [salvo] se, v.g. tiverem sido violadas as regras da experiência ou se a quantificação se revelar de todo desproporcionada».

            É este, aliás, o sentido da jurisprudência deste Tribunal, como pode ver-se, por exemplo, nos acórdãos de 03.10.2013, Pº nº 806/09.5JAPRT, com o mesmo Relator deste e no de 15.10.2014, Pº nº 353/13.0JAFAR.S1, também desta Secção, que contém um extenso rol de outros acórdãos no sentido de que, pelas razões apontadas, «a intervenção do Supremo Tribunal de Justiça em sede de concretização da medida da pena, ou melhor, do controle da proporcionalidade no respeitante à fixação concreta da pena, tem de ser necessariamente parcimoniosa, porque não ilimitada».

            Será, pois, no respeito destes limites que terá lugar o nosso julgamento.

            Pois bem.

            2.4.3. O Tribunal da Grande Instância do Porto, como podemos ver pela leitura do capítulo do acórdão recorrido com a epígrafe “Da Escolha e da Medida da Pena”, fls. 233 e segs., não se afastou, antes cumpriu, o “programa” legal para fixação da pena, tal como o entendemos e deixámos traçado. Partiu, de facto, de um critério para chegar à pena em que condenou o Arguido que dele não diverge.

            [Disse, com efeito que «… Estes fins [das penas: a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade, previstos no art.º 40º, nº 1, do CPenal]             – comummente designados pela doutrina como prevenção geral positiva ou de integração e              prevenção especial positiva ou de socialização – traduzem respectivamente o reforço da                 consciência comunitária e               do seu sentimento de segurança face ao atentado contra a vigência da            norma penal e a                 necessidade de efectuar um raciocínio de prognose em relação aos efeitos da              pena na futura conduta do Arguido em vista da sua ressocialização.

                Para determinação da medida concreta da pena a aplicar, importa levar a cabo as consabidas                três fases do procedimento de determinação da pena – investigação e determinação da moldura    penal, investigação e determinação dentro daquela moldura legal da medida concreta a aplicar, e          escolha da espécie da pena (cfr. Figueiredo Dias, “Direito Penal II, Parte Geral, As               Consequências Jurídicas do Crime”, Secção de Textos da Universidade de Coimbra, 1988, pág.              229 e ss. e “Direito Penal Português, Parte Geral II, As Consequências Jurídicas do Crime,              Aequitas, Editorial Notícias, Ano 1993, pág. 198 e ss. e por todos o Acórdão do Supremo         Tribunal de Justiça de 12.03.97 no processo 1057/96).

                O disposto no artigo 40º do Código Penal fornece os critérios que hão-de presidir à aplicação das           penas: a protecção dos bens jurídicos e a reintegração social do agente, sendo certo que em                caso algum a medida da pena pode ultrapassar a medida da culpa.

                Compaginando o teor do artigo 40.º nº 2 e os elementos contidos no artigo 71.º, ambos do         Código Penal, temos que a determinação da medida da pena é feita em função da culpa do        agente (limite inultrapassável), das exigências de prevenção e tendo-se ainda em linha de conta todas as demais circunstâncias que não fazendo parte do tipo de crime (dos elementos                 essenciais da infracção), deponham a favor do arguido ou contra ele.

                A tutela da crença e confiança da comunidade na sua ordem jurídico-penal (prevenção geral   positiva ou de integração), é a finalidade primeira, que se prossegue, no quadro da moldura             penal abstracta, entre o mínimo, em concreto, imprescindível à “reafirmação contrafáctica da         norma jurídica violada” e o máximo que a culpa do agente consente; entre esses limites,                 satisfazem-se, quanto possível, as necessidades da prevenção especial ou de socialização.

                Como se refere no acórdão de 28-09-2005, CJ Supremo Tribunal de Justiça, 2005, tomo 3, 173,             na dimensão das finalidades da punição e da determinação em concreto da pena, as circunstâncias e os critérios do art. 71º do C. Penal têm a função de fornecer ao juiz módulos de            vinculação na escolha da medida da pena; tais elementos e critérios devem contribuir tanto para                 co-determinar a medida adequada à finalidade de prevenção geral (a natureza e o grau de      ilicitude do facto impõe maior ou menor conteúdo de prevenção geral, conforme tenham         provocado maior ou menor sentimento comunitário de afectação dos valores), como para definir              o nível e a premência das exigências de prevenção especial (circunstâncias pessoais do agente;                 a idade, a confissão; o arrependimento) ao mesmo tempo que também transmitem indicações               externas e objectivas para apreciar e avaliar a culpa do agente.

                Observados estes critérios de dosimetria concreta da pena, há uma margem de actuação do    julgador dificilmente sindicável, se não mesmo impossível de sindicar.

                Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, 1993, p. 196/7,             § 255, …. [o texto suprimido corresponde ao que invocamos em 2.3.2., supra].

            Ainda de acordo com o mesmo Professor, nas Lições ao 5º ano da Faculdade de Direito de      Coimbra, 1998, p. 279 e seguintes: «Culpa e prevenção são os dois termos do binómio com   auxílio do qual há-de ser construído o modelo de medida (sentido estrito ou de «determinação            concreta») da pena.

                As finalidades da aplicação de uma pena residem primordialmente na tutela de bens jurídicos e,            na medida do possível, na reinserção do agente na comunidade. A pena, por outro lado, não                pode ultrapassar em caso algum a medida da culpa.

                Assim, pois, primordial e essencialmente, a medida da pena há-de ser dada pela medida da    necessidade de tutela dos bens jurídicos face ao caso concreto e referida ao momento da sua             aplicação, protecção que assume um significado prospectivo que se traduz na tutela das      expectativas da comunidade na manutenção (ou mesmo no reforço) da validade da norma      infringida. Um significado, deste modo, que por inteiro se cobre com a ideia da prevenção geral         positiva ou de integração que vimos decorrer precipuamente do princípio político-criminal básico                 da necessidade da pena».

                Anabela Miranda Rodrigues, O Modelo de Prevenção na Determinação da Medida Concreta da               Pena, in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 12, nº 2, Abril/Junho de 2002, pág. 147 e               ss., como proposta de solução defende que a medida da pena há-de ser encontrada dentro de      uma moldura de prevenção geral positiva e que será definida e concretamente estabelecida em                 função de exigências de prevenção especial, nomeadamente de prevenção especial positiva ou            de socialização; a pena, por outro lado, não pode ultrapassar em caso algum a medida da culpa.

                Apresenta três proposições em jeito de conclusões e da seguinte forma sintética: “Em primeiro                lugar, a medida da pena é fornecida pela medida de necessidade de tutela de bens jurídicos, isto         é, pelas exigências de prevenção geral positiva (moldura de prevenção). Depois, no âmbito desta      moldura, a medida concreta da pena é encontrada em função das necessidades de prevenção            especial de socialização do agente ou, sendo estas inexistentes, das necessidades de               intimidação e de segurança individuais. Finalmente, a culpa não fornece a medida da pena, mas           indica o limite máximo da pena que em caso algum pode ser ultrapassado em nome de                exigências preventivas”.

                E termina: “É este o único entendimento consentâneo com as finalidades da aplicação da pena:             tutela de bens jurídicos e, na medida do possível, a reinserção do agente na comunidade, e não         compensar ou retribuir a culpa. Esta é, todavia, pressuposto e limite daquela aplicação,      directamente imposta pelo respeito devido à eminente dignidade da pessoa do delinquente”.

                A determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da    culpa do agente e das exigências de prevenção conforme dispõe o art.º 71º, n.º 1 do Código    Penal.

                Na determinação concreta da pena devem ponderar-se todas as circunstâncias que, não fazendo          parte do tipo legal, depuserem a favor ou contra o agente, nomeadamente as referidas no n.º 2   da mesma disposição legal…»].

            Deste modo, entendendo, como acabamos de dizer, que o acórdão recorrido não merece censura enquanto traçou o critério que comanda a medida da pena, a eventual intervenção correctiva do Supremo Tribunal de Justiça neste domínio – obviamente em benefício do Recorrente, por força do disposto no artº 409º, nº 1, do CPP – só se justificará se, repetimos, viermos a concluir, face aos factos julgados provados, que o Tribunal Colectivo falhou na indicação dos factores relevantes para o efeito (exigências de prevenção e culpa) ou se, pelo contrário, valorou outros que devam considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis, se tiver violado as regras da experiência ou se o quantum fixado se mostrar de todo desproporcionado.

            Note-se, de resto, que também não é aquela a matéria sobre que incide o objecto do recurso. Relativamente ao critério legal da determinação da medida da pena, o Recorrente exprime-se mesmo em termos praticamente coincidentes.

            A sua crítica recai antes, como decorre das conclusões da motivação do recurso, sobre a medida concreta da pena fixada pelo Tribunal a quo, por entender que «a reafirmação da norma jurídica violada não impõe a aplicação de uma pena tão elevada no seu quantum» e que a sua «reintegração na sociedade também não se coaduna com um período de reclusão tão elevado». O mesmo é dizer que, do seu ponto de vista, a pena em que foi condenado excede as exigências de prevenção geral e especial, argumentando para o demonstrar (a) que confessou integralmente e sem reservas; (b) que mostrou «sincero arrependimento; (c) que, anteriormente, estava inserido familiar, social e profissionalmente; (d) que é ainda muito jovem; (e) que trabalha e estuda no estabelecimento prisional; (f) que, regressando ao seu país de origem, retomará «uma vida pacata e de acordo com os normativos legais e societários»; (g) que o crime constitui «episódio único da sua vida», motivado por promessas de dinheiro fácil, mas também pelo «sonho, de um jovem do interior do Brasil, de poder viajar até à Europa e conhecer melhor alguns costumes e tradições. E, por fim, num registo totalmente diferente, adverte (a Senhora Procuradora da República fala, a propósito, de “ameaça”) que, «se… sentir que está a ser demasiado penalizado (até por comparação a outros reclusos com quantidades superiores de droga) irá certamente regredir no seu processo de ressocialização; sentindo-se injustiçado, poderá começar a assumir comportamentos pouco normativos» (cfr. conclusão 11). E concluiu que, «feita uma análise dos Acórdãos do STJ e a respeito da medida das penas concretamente determinadas, verificamos relação entre a quantidade de produto estupefaciente apreendido e a sanção aplicada. O que se verificou foi que em quantidades transportadas (nos casos de correios de droga) de 8 kgs a 14 kgs de cocaína, as penas estenderam-se de 5 anos a 7 anos e seis meses de prisão, para quantidades inferiores a 8 kgs de cocaína, as penas foram em regra, mais baixas do que os cinco anos de prisão e até ao limite de 4 anos e 3 meses de prisão».

                  A Senhora Procuradora da República entende, porém, (i) que a confissão não tem relevo especial por ter sido detido em flagrante delito; (ii) que as condições socio-familiares e profissionais de que virá a dispor são as mesmas de que já dispunha e não se revelaram «suficientes para o afastar de conduta tão grave»; (iii) que a ameaça de que, por se sentir demasiado penalizado pode começar a assumir comportamentos pouco normativos «é, no mínimo, revelador de uma personalidade desconforme com o direito e com o sentido dos fins das penas, e uma ameaça à sociedade…». E concluiu pelo não provimento do recurso – conclusão e fundamentação que foram corroboradas pela Senhora Procuradora-geral Adjunta no seu parecer.     

            2.4.4. Apreciemos, então.

            2.4.4.1. O Tribunal recorrido, depois daquelas considerações sobre a determinação da pena, disse, revertendo ao caso sub judice:

            «… no caso sub judice, ponderar-se-ão:

                - o grau de ilicitude dos factos que é elevado, atento o modo da sua execução, a qualidade e a quantidade do produto estupefaciente, a gravidade das consequências da actuação dolosa do Arguido

                - O arguido em toda a sua conduta actuou com dolo directo,

                - Os sentimentos manifestados no cometimento do crime que se manifestam incompreensíveis, os motivos que determinaram a conduta do arguido.

                - as condições pessoais dos Arguidos [só está sob julgamento um Arguido], os antecedentes criminais

                - o seu comportamento posterior ao facto – a confissão

                Constituindo a culpa o limite inultrapassável da pena, fornece-nos o quantum máximo de pena que aos Arguidos pode ser aplicado.

                A culpa do Arguido consubstancia-se numa conduta dolosa.

                As exigências de prevenção geral positiva e, portanto, de reposição da confiança da comunidade na efectiva vigência da norma violada são, como já se referiu são [sic] elevadas.

                O limiar mínimo de prevenção geral impõe a aplicação de uma pena que, se situe bastante acima do limite mínimo da moldura penal abstracta.

                Ponderadas as agravantes e as atenuantes, as exigências de prevenção geral e especial e face à moldura penal aplicável tem-se por adequado fixar em seis anos e seis meses de prisão» [negrito e sublinhado nosso]

            2.4.4.2. Apreciemos/valoremos agora a argumentação do Recorrente.

            (a) Quanto à confissão:

            Apesar de qualificada no nº 7 dos “Factos Provados” como livre, integral e sem reservas, a confissão não tem, no caso, efeito atenuativo relevante, por ser a confissão do óbvio, preso que foi em flagrante delito e logo conduzido ao hospital para expelir a droga que trazia in corpore. Não teve, por isso, qualquer relevância positiva para a acção da justiça[5].   

            (b) Quanto ao arrependimento:

            O nº 9 dos “Factos Provados” atesta que o Arguido mostra-se arrependido e demonstra uma censura crítica dos seus actos.

            Mas não qualifica o arrependimento de sincero.

            Seja como for, ainda que a confissão em si se possa objectivamente considerar, como diz Zipf[6], simples «táctica processual» – mas, apesar disso, não deve ser totalmente desprezada, pela postura que ainda assim indicia perante o facto, de não solidariedade com o mesmo, e perante o Tribunal –, a demostração de arrependimento e a censura crítica dos seus actos – o Relatório Social de fls. 213 e segs., referido na “Motivação” da decisão sobre a matéria de facto como meio de prova a que o Tribunal atendeu, elaborado, como nele se diz, com base na entrevista do Arguido, na consulta do seu processo individual de recluso, nas peças remetidas pelo Tribunal e em articulação com os serviços do EP, designadamente de Educação e Ensino, refere que «evidencia penosidade pela presente situação…, não só pelos custos pessoais resultantes da privação da liberdade, mas pela consciência do sofrimento causado à família e vergonha social que sente… [e que] relativamente à natureza dos factos …percebe-os como contrários aos normativos legais vigentes, sendo capaz de identificar os danos sobre as hipotéticas vítimas e o todo social» – excedem decididamente aquele objectivo e, como assim, teremos de lhe atribuir algum peso atenuativo das exigências de prevenção especial.

            (c) Quanto à inserção familiar, juventude, comportamento prisional e antecedentes criminais, são circunstâncias que foram consideradas no acórdão recorrido, cuja influência na medida da pena a aplicar será à frente considerada.

            Diz a Senhora Procuradora da República que o ambiente familiar não constituiu factor que o tivesse afastado da prática do crime.

            É verdade.

            Mas não podemos olvidar o nº 8 dos “Factos Provados” no sentido de que «o arguido cresceu junto da família de origem, com uma dinâmica estruturada e equilibrada» e de que, «no seu país de origem dispõe de condições sociofamiliares e profissionais que lhe permitem retomar um trajecto de vida normativo e socialmente integrado» – o que indiscutivelmente atenua as exigências de prevenção especial de socialização.

            Por outro lado, a sua juventude retira obviamente especial valor à afirmada ocasionalidade do crime, tanto mais que, como ele próprio afirma, se deixou motivar pela promessa de dinheiro fácil e pela aventura.

            2.4.4.3. Posto isto, encaremos então a questão da medida concreta da pena

            São prementes e muito elevadas as exigências de prevenção geral reclamadas pelo tráfico de estupefacientes em geral, considerando o efeito devastador das drogas sobre a saúde, a integridade física e a liberdade dos consumidores e, por consequência, sobre a saúde e tranquilidade públicas e a criminalidade organizada que lhe está associada, a montante e a jusante.

            Como dissemos atrás, a medida da pena como reflexo da necessidade de tutela dos bens jurídicos, é determinada em função das circunstâncias do caso concreto, considerando o modo de execução do crime, da motivação do agente, das consequências da sua conduta.

            Pois bem.

            No caso, o Arguido agiu como “correio”, vindo do ..., trazendo, ingeridos, 550, 374gr. de cocaína com destino a ..., a troco de €4.000,00.

            Portugal, como é sabido, é utilizado como uma das plataformas da entrada na Europa da cocaína produzida na América do Sul.

            Por sua vez, a cocaína, uma das chamadas drogas “duras”, pelo seu efeito devastador sobre a saúde pública, é o principal estupefaciente transportado pelos ”correios” que por aqui passam. Como refere o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 5 de Julho de 2012, Pº nº 373/11.0JELSB.S1, da 5ª Secção, de 241 acórdãos analisados, proferidos entre Fevereiro de 2002 e Maio de 2012, 99% referem-se a casos de “correios” de cocaína; 103, respeitavam a cocaína proveniente do Brasil e 79 de cocaína vinda da Venezuela.

            O Arguido actuou como “correio de droga”. E se, na economia da decisão de facto e como é de regra, não é o dono do negócio de tráfico nem se insere no seu circuito comercial, «sendo mero contratado, pago à peça», como refere o acórdão de 15 de Janeiro último, proferido no Pº nº 76/14.3JELSB.L1.S1-3ª Secção, é, todavia, «um instrumento importante, porventura cada vez mais importante, para fazer a conexão entre produção e consumo, sem a qual o negócio da droga não se efectivava».

            A sua conduta, por outro lado, não se afasta da que é comum neste tipo de actuação, em termos de perigosidade; de culpa – muito censurável, já se vê; do modo de execução do crime – um dos tradicionais; dos fins e motivos – a obtenção, aparentemente fácil, de apreciável soma de dinheiro.

            Quanto à ilicitude do facto, para além da danosidade da droga transportada, já considerada na moldura penal aplicável, é de atender à inverificação do resultado em consequência da apreensão da droga, ainda que estejamos, como estamos, no âmbito de um crime que tão só pressupõe o perigo de lesão da multiplicidade dos bens jurídicos protegidos e não já a sua efectiva lesão. 

            Factor importante da avaliação do grau da ilicitude da conduta do “correio de droga” é a quantidade transportada. Como vem sendo entendido, essa quantidade constitui mesmo a principal medida da ilicitude deste tipo de condutas, «geralmente muito estereotipada nos seus contornos (cfr. o acórdão de 14 de Janeiro último, acima citado). No caso, a quantidade, embora não desprezível, de modo algum se pode considerar significativa e, por isso, dentro da moldura penal, é diminuto o grau de perigo criado.

            Quanto às razões de prevenção especial de socialização: se o que atrás dissemos sobre o arrependimento e auto-censura, sobre o ambiente social e familiar que o irá acolher depois de cumprida a pena e ainda sobre o comportamento do Arguido na prisão, favorecem um prognóstico favorável (é certo que desprezamos o teor da advertência a que acima aludimos – ou da “ameaça”, como se lhe refere a Senhora Procuradora da República –, cujos termos efectivamente destroem qualquer juízo de prognose favorável à sua socialização, porque se trata de matéria que, por não ter sido objecto de declaração pessoal do Arguido e, por isso, estranha à matéria de facto julgada provada, não pode ser considerada), já os fins e designadamente os motivos do crime (obter “dinheiro fácil”), influem negativamente nesse juízo e tornam evidente a necessidade de dissuasão.

            Feitos estas considerações e formulados estes juízos, temos de concluir que, ao contrário do que vem decidido, a ilicitude da conduta do Recorrente não é elevada e que as exigências de prevenção especial se mostram globalmente moderadas – o que não pode deixar de ter reflexos decisivos na medida concreta da pena.

            Olhando para a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça dos últimos 7 anos sobre a medida da pena aplicada aos “correios de droga”[7] cujas condutas, em termos de execução, não diferem substancialmente umas das outras, verificamos que as penas cominadas, frequentemente inferiores às aplicadas pelas Instâncias, não olvidando naturalmente as circunstâncias particulares de cada caso, a começar pelos fins e motivos, estão particularmente relacionadas com a qualidade e a quantidade de droga transportada – circunstância esta que, como acabamos de ver, é o principal factor da avaliação do grau de ilicitude da respectiva conduta. E a análise dessa jurisprudência evidencia com muita clareza que a pena de 6 anos e 6 meses de prisão em que o Recorrente vem condenado é manifestamente desproporcionada aos cerca de 550 gramas de cocaína que trazia in corpore.

            Remetendo-nos apenas para os casos de “correios” de cocaína, independentemente do modo como procuraram ocultá-la à vigilância das autoridades, verificamos, por exemplo,

                        - que o acórdão de 26.03.2008, Pº nº 305/08-3ª, puniu o arguido com 4 anos e 3 meses de prisão, reduzindo a pena de 5 anos cominada pela 1ª Instância, pelo transporte de 707,453gr.;

                        - que o acórdão de 05.06.2008, Pº nº 1142/08-5ª, confirmou a pena de 5 anos e 6 meses de prisão, pelo transporte de 384, 677gr.;  

                        - que o acórdão de 11.03.2010, Pº nº 100/09.1JELSB.L1.S1-5ª,  puniu o arguido com 4 anos de prisão, reduzindo a pena de 5 anos e 6 meses aplicada pela 1ª Instância, pelo transporte de 846,462gr.;

                        - que o acórdão de 16.12.2010, Pº nº 305/10.2JAPRT-3ª, confirmou a pena de 5 anos e 4 meses de prisão pelo transporte de 1.993,69gr.;

                        - que o acórdão de 05.07.2012, Pº nº 373/11.0JELSB.S1-5ª, reduziu de 5 anos e 3 meses para 4 anos e 6 meses de prisão o transporte de 1,438,815gr.

            E que, no caso de transporte de quantidades até 1Kg, que

                        - o acórdão de 19-12-2007, Pº nº 3206/07-3ª, confirmou a pena de 4 anos de prisão, sem suspensão da sua execução, pelo transporte de 1.032 gr.;

                        - o acórdão de 04-09-2008, Pº nº 2378/08-5ª, confirmou a pena de 5 anos e 3 meses de prisão, pelo transporte de 211,630 gr.;

                        - o acórdão de 30-09-2010, Pº nº 3/09.0AASCR.L1.S1-5ª, confirmou a pena de 5 anos e 6 meses de prisão, pelo transporte de 776,800 gr.

            Por outro lado, constatamos ainda que penas iguais ou superiores a 6 anos de prisão foram aplicadas pelo transporte de quantidades de cocaína que oscilaram entre os 2.437,495gr. (6 anos de prisão; acórdão de 05.05.2011, Pº nº 229/10.3JELSB.S1-5ª) e os 235Kg. (9 anos de prisão; acórdão de 25.02.2009, Pº nº 97/09-3ª).

            No caso, considerando, com atrás referimos, as circunstâncias em que o crime aqui em discussão foi praticado – as fortes razões de prevenção geral, o elevado grau de culpa, a particularidade dos fins e dos motivos (não se vislumbram, nos factos provados, pressões de natureza sócio-económica que tenham “empurrado” o Arguido para o crime, antes se indiciando apetência por dinheiro fácil), os juízos acima formulados sobre os fins e a medida da pena, em especial as moderadas exigências de prevenção especial de socialização – mas já não assim as de dissuasão ou mesmo de intimidação, considerando justamente aqueles fins e motivos – e os padrões jurisprudenciais acabados de referir, impõe-se uma intervenção correctiva no sentido da redução da pena em que o Recorrente vem condenado que, pelas referidas razões, se fixa em 5 (cinco) anos de prisão.

            2.4.5. Fixada a medida da pena em 5 anos de prisão, impõe-se o dever de ajuizar da eventual suspensão da sua execução.

            Nos termos do nº 1 do artº 50º do CPenal, «o tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição» (sublinamos).
Do primeiro segmento da norma resulta, desde logo, que, verificados os requisitos legais, sobre os quais nos debruçaremos em seguida, o Tribunal tem de suspender a execução da pena de prisão – o tribunal suspende, diz a lei. O que significa, por outro lado, que, preenchido o requisito formal – pena de prisão aplicada em medida não superior a 5 anos –, o Tribunal tem de oficiosamente averiguar se o arguido reúne os atributos que preenchem o requisito material ou substantivo da aplicação da medida.
Como deixámos dito, a aplicação da pena de suspensão da execução da prisão pressupõe que o tribunal, atendendo à personalidade do agente, às suas condições de vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, possa fazer um juízo de prognose favorável sobre o comportamento futuro do arguido – o de que a simples censura do facto e a ameaça da prisão serão suficientes para prevenir a prática de novos crimes e ressocializar o arguido –, juízo esse reportado ao momento da decisão e não ao da prática do crime.
Por outro lado, ensina a doutrina[8] e é seguido pela jurisprudência que a finalidade político-criminal que o instituto visa é o afastamento do arguido, no futuro, da prática de novos crimes e «não qualquer “correcção”, “melhora” ou – ainda menos – “metanoia” das concepções daquele sobre a vida e o mundo». «É, em suma, como se exprime Zipf, uma questão de “legalidade” e não de “moralidade” que está aqui em causa. No entanto, mesmo que o tribunal conclua pelo prognóstico favorável, à luz de considerações de prevenção especial de socialização, a suspensão da pena não deverá ser decretada se a tanto se opuserem razões de prevenção geral, de protecção dos bens jurídicos, em cujo âmbito não têm incidência quaisquer circunstância relativas à culpa.
No nosso caso, o Recorrente é o primeiro a admitir que aquela pena de prisão não seja suspensa.
E cremos que foi sensato. Com efeito, temos para nós e para a jurisprudência corrente do Supremo Tribunal de Justiça, que só em casos excepcionais a pena de prisão aplicada pelo crime de tráfico, sendo ou não o agente mero “correio”, deve ser suspensa, sob pena de se frustrarem as legítimas expectativas da comunidade na validade da norma – a principal finalidade da pena, como vimos.
E aqui, repetimos, as exigências de prevenção geral são elevadas.  
Aliás, se mais uma vez olharmos para o levantamento feito naquele acórdão de 15.10.2014, verificamos que em caso algum a pena de prisão foi suspensa na sua execução, mesmo quando a pena cominada pelas Instâncias foi reduzida para medida abaixo dos 5 anos (cfr., p. ex., os acórdãos de 19.12.2007, Pº nº 3206/07-3ª, de 16.01.2008, Pº nº 4565/07-3ª, de 23.01.2008, Pº nº 4567/07-3ª, de 20.02.2008, Pº nº 295/08-3ª, de 09.04.2008, Pº nº 825/08-5ª, de 17.04.2008, Pº nº 806/08-5ª e de 13.01.2011, Pº nº 369/09.1JELSB.S1-3ª). E o mesmo acórdão acrescenta que, «percorridos os acórdãos proferidos … sobre a matéria, desde 16 de Abril de 1997, estando em causa um universo de 271 recursos apreciados, verifica-se que apenas num caso foi concedida a suspensão da execução da pena, o que aconteceu no acórdão de 6 de Fevereiro de 2003, proferido no Pº 4646/02, da 5ª Secção … em que estava em causa o transporte de 1.949,50 gramas de cocaína, … tendo sido aplicada ao arguido com 18 anos a pena de 3 anos de prisão …, na sequência de atenuação especial por força do regime especial de jovens adultos».
Não suspendemos, pois, a pena de 5 anos de prisão que julgamos adequada ao crime cometido.

3. Dispositivo
Em conformidade com o exposto, acordam na Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em:
3.1. corrigir o nº 3 da decisão sobre a matéria de facto, de modo a dele fazer  constar que a cocaína expelida pelo Arguido tinha o peso líquido de 550,374 gramas;
3.2. conceder provimento ao recurso e, em consequência, reduzir a pena de 6 anos e 6 meses de prisão em que o Arguido vem condenado para 5 (cinco) anos de prisão (efectiva);
3.3. confirmar, no mais, o acórdão recorrido.
Sem custas – artº 513º, nº 1, do CPP.
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Proceda à correcção, como foi decidido.

Lisboa, 4 de Fevereiro de 2015

Processado e revisto pelo Relator

Sousa Fonte (Relator)

Santos Cabral

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[1]  Cfr. “… As Consequências do Crime”, 232.
[2]  Cfr. “Direito Penal – Parte Geral, Tomo I, 2ª edição, 81 e 84.
[3] Cfr. “Direito Penal, Parte Geral – Questões Fundamentais, 83 e 84
[4] Cfr. “… As Consequências Jurídicas do Crime”, 197.
[5] Cfr. Eduardo Correia, “Direito Criminal”, II, 387.
[6] Cfr. Figueiredo Dias, “… As consequências …», cit, 255.
[7] Socorremo-nos, para o efeito, do excelente, muito útil e exaustivo levantamento desta jurisprudência feito no Acórdão já citado, de 15.10.2014, Pº nº 363/13-0JAFAR.S1, desta Secção.  
[8] Cfr. Figueiredo Dias, “ …As Consequências Jurídicas do Crime”, cit., 342 e segs.