Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 5.ª SECÇÃO | ||
Relator: | ARMÉNIO SOTTOMAYOR | ||
Descritores: | RECURSO PENAL INSTRUÇÃO ABERTURA DA INSTRUÇÃO REQUERIMENTO INADMISSIBILIDADE INDÍCIOS SUFICIENTES ACTO INÚTIL | ||
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Data do Acordão: | 12/11/2012 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | IMPROCEDENTE O RECURSO | ||
Área Temática: | DIREITO PROCESSUAL PENAL - ABERTURA DE INSTRUÇÃO | ||
Doutrina: | MEDINA DE SEIÇA (COMENTÁRIO CONIMBRICENSE DO CÓDIGO PENAL, III, PÁG. 612; PÁG. 615); GERMANO MARQUES DA SILVA (CURSO DE PROCESSO PENAL III, 2000, PP. 138-139). | ||
Legislação Nacional: | CÓDIGO PROCESSO CIVIL (CPC): - 137.º CÓDIGO PENAL (CP): - ARTIGOS 367.º, 369.º CÓDIGO PROCESSO PENAL (CPP): - ARTIGOS 4.º, 287.º, N.º 3, 308.º | ||
Legislação Estrangeira: | CONVENÇÃO DE VIENA, DL 48295, DE 27MAR.68: - ARTIGO 31.º, N.º 1 | ||
Jurisprudência Nacional: | ACORDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA: 13-01-2011 - PROC. 3/09.0YGLSB; 7-12-2005 - PROC. 1008/05 | ||
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Sumário : | I - Visa a instrução a comprovação judicial da acusação, seja a do MP findo o inquérito, seja a acusação implícita no requerimento de abertura de instrução formulado pelo assistente, em ordem à decisão sobre a submissão da causa a julgamento. II - Se da simples análise do requerimento de abertura de instrução, especialmente da parte em que é descrita a factualidade imputada ao denunciado, resultar que, mesmo a serem os factos comprovados, jamais se poderia seguir uma pronúncia em virtude de tais factos não integrarem qualquer tipo legal de crime, estaríamos perante uma instrução sem objecto. III - Desse modo, a abertura da instrução e a realização do debate instrutório sempre redundaria na prática de um acto inútil. | ||
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Decisão Texto Integral: |
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
1. AA, em escrito que endereçou ao processo nº4455/08.7 TAVNG do 3º Juízo do Tribunal Judicial de Vila Nova de Gaia, mencionando diversos factos que atribui a vários magistrados, imputa também ao Procurador-Geral da República, Conselheiro Fernando José Matos Pinto Monteiro, uma postura de favorecimento e de protecção aos diplomatas Dr. BB e Dr. CC, respectivamente embaixador e ministro conselheiro da Embaixada da República Popular de Angola, em Lisboa, contra quem o mesmo denunciante havia anteriormente desencadeado procedimento criminal pela prática de crime de abuso de confiança agravado e cujo procedimento incluiu o antigo Bastonário da Ordem dos Advogados, Dr. DD. Este processo findou por arquivamento em sede de instrução criminal, com fundamento, quanto aos dois diplomatas, no direito de imunidade diplomática conferido pelo art. 31º nº 1 da Convenção de Viena e, quanto ao advogado, por falta de indícios. Na versão do denunciante, o Procurador-Geral da República teria influenciado a decisão de arquivamento, facilitando a subtracção dos dois diplomatas à acção da justiça penal portuguesa, por se terem acolhido ao Estado que os fez acreditar em Lisboa. Perante essa denúncia procedeu-se a inquérito, com observância do disposto no art. 265º nº 2 do Código de Processo Penal. Findo o inquérito, o Ex.mo Juiz Conselheiro a quem coube a direcção do processo proferiu despacho de arquivamento por considerar que do depoimento das testemunhas, quer das arroladas pelo denunciante, quer das que o tribunal oficiosamente ouviu, não resultou o mais leve indício do cometimento por parte do Procurador-Geral da República de actos de favor. Acrescenta-se nesse despacho que, nos termos da Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas, aprovada pelo Decreto-Lei nº 48.295, de 27-03-1968, o princípio da imunidade da jurisdição penal constitui quase um dogma de universal aceitação, o que não é sinónimo de impunidade, porque o agente do crime que goza de imunidade fica sujeito à jurisdição penal do Estado acreditante. Mas, como afirmou a testemunha Dr. EE, Director do Departamento de Assuntos Jurídicos do Ministério dos Negócios Estrangeiros, “uma vez que o processo corre totalmente à margem da PGR, esta entidade nunca poderia influenciar qualquer procedimento com vista a uma eventual declaração de persona non grata dos diplomatas angolanos e muito menos interferir no pedido de exercício da jurisdição penal ao Estado de Angola”. Discordando do desfecho do inquérito, o denunciante AA veio requerer a sua admissão como assistente, o que lhe foi concedido, e requerer a abertura de instrução. Neste requerimento considera o assistente que deveria ter sido junto ao inquérito todo o processo existente na Procuradoria-Geral da República, e não apenas três ofícios, o que permitiria, além de outras finalidades, avaliar se o Procurador-Geral da República favoreceu pessoalmente os arguidos BB e CC de modo a evitar que o processo judicial contra eles prosseguisse, influindo na decisão de reconhecimento de imunidade diplomática e se, tendo agido nesta situação conscientemente e contra direito, prevaricou. Requerendo a realização de diversas diligências, o assistente deu também cumprimento ao disposto no art. 283º nº 3 als. b) e c), aplicável por força do art. 287º nº 2, ambos do Código de Processo Penal, tendo feito a seguinte descrição dos factos cuja prática imputa ao denunciado Procurador-Geral da República: Em data não concretamente apurada, mas entre 19/11/2007 e 22/01/2008 o Digníssimo Procurador-Geral da República Fernando José Matos Pinto Monteiro (PGR) interferiu junto da Meritíssima Juiz do 1º Juízo do Tribunal de Instrução Criminal do Lisboa no processo n.º 900/06.4TAVNG, influenciando a decisão do arquivamento do mesmo em relação aos diplomatas BB e CC em funções de embaixador e ministro conselheiro da Embaixada de Angola em Lisboa. Era conhecimento do PGR a existência de indícios de abuso de confiança qualificado por parte de tais diplomatas que dissiparam em seu proveito parte dos valores (243 134,1 9 €) transferidos pelo Estado Angolano destinados ao pagamento do uma dívida deste para com AA, proveniente do um negócio celebrado entre ambos do fornecimento de material diverso às Forças Armadas daquele país. De facto, seja através do Ministério dos Negócios Estrangeiros (MNE), seja directamente através do Estado Angolano, nomeadamente a sua congénere em Angola, existiam na PGR de Portugal elementos fidedignos da dívida, valores, montantes e a respectiva transferência destinada ao ofendido, compilados no processo n.º 282/2000 L.º H ou sob outra forma. Existia, por outro lado, um acompanhamento próximo da Procuradoria-Geral da República do desenvolvimento do processo n.º 900/06.4TAVNG, através dos Procuradores intervenientes ou próximos do mesmo. E aquelas informações da posição da República Popular de Angola acima referidas que o PGR tinha conhecimento e as quais deveria, sendo-lhe transmitidas por órgãos do soberania de ambos os países, dar a relevância merecida, pugnando, através do MNE, pelo levantamento da imunidade de jurisdição penal diplomática junto do Estado Angolano ou que este exerça a jurisdição penal sobre os seus agentes diplomáticos - cf. artigos 32.º n.º 1 e 31.º n.º 4 da Convenção de Viena aprovada pelo Decreto-Lei n. 48 925, de 27 de Marco de 1968. Pelo contrário, recebeu o identificado Embaixador a 19/12/2007, uma semana após haver sido solicitado no processo em causa o reconhecimento de imunidade de jurisdição penal pela Ilustre Mandatária da República Popular de Angola. No mesmo dia é promovido pelo Digno Procurador-Adjunto o arquivamento dos autos em relação aos diplomatas acima referidos por considerar que gozam de imunidade penal e que se informe o MNE. É então em 22/01/2008 proferido o despacho pela Meritíssima Juiz de Instrução Criminal (doravante, MJIC) a determinar, por inadmissibilidade legal, que os autos não podem prosseguir pelos motives promovidos e que também se informe o MNE. Assim, na posse da informação de factos incriminatórios por abuso de confiança dos arguidos, conhecedor dos termos do respetivo processo e reunindo-se com o Embaixador de Angola, o Digníssimo Procurador-Geral da República interveio na posição da MJIC influenciando a decisão de arquivamento dos autos em relação aos diplomatas angolanos acima identificados. Com este ato quis impedir, frustrar ou iludir a actividade probatória ou preventiva do Tribunal de Instrução Criminal. Agiu voluntária, livre e conscientemente de modo a impedir, frustrar ou iludir o prosseguimento dos autos em relação aos diplomatas mencionados. Cometeu assim o crime de favorecimento pessoal previsto no n.º 1 do artigo 367.º do Código Penal. Por outro lado, com tais actos em processo jurisdicional, e na sua qualidade de funcionário, promoveu, conduziu, decidiu ou praticou um acto no exercício de poderes decorrentes do cargo que exerce. Consequência de uma vontade livre e consciente com o fim de falsear a justiça. Sendo tal acção contrária nomeadamente aos princípios e competências que regem a sua actuação, previstos entre outros no Estatuto dos Magistrados do Ministério Público (vide as várias alíneas do n.º 2 do artigo 9.º da Lei n.º 136/IV/95, de 3 de Julho). Tal facto foi, finalmente, praticado com intenção de beneficiar os referidos diplomatas. Praticou assim o crime de prevaricação nos termos do disposto no artigo 369.º n.ºs 1 e 2. Bem sabia que tais actos eram proibidos e punidos pela lei penal.
Distribuído o processo, o Ex.mo Conselheiro com funções de juiz de instrução criminal indeferiu o requerimento de abertura de instrução. Para tanto, procedeu a uma apreciação dos factos imputados pelo assistente, que considerou inconsistentes, desprovidos de qualquer razoabilidade e, portanto, de credibilidade, o que permitiu fundamentar a seguinte conclusão: “das diligências de instrução propostas nunca poderia resultar um despacho de pronúncia, pois o Sr. Procurador-Geral da República não cometeu, nem pode ter cometido, os crimes imputados, o que é visível face aos próprios factos que são invocados”, e assim afirmar que “a ausência de dúvida sobre a falta de fundamento dos factos que, segundo o assistente, integram a sua acusação, a inconsistência intrínseca desses factos, não podem deixar de nos conduzir à decisão de não declarar aberta a instrução.” Doutro modo, segundo a tese advogada no despacho recorrido, estaria a ser praticado um acto inútil e “a proibição da prática de actos inúteis, plasmada no art.º 137.º do CPC, reporta um princípio geral do processo – de qualquer processo judicial – pelo que, concretamente no processo penal, quer na fase do inquérito, quer na da instrução, quer na do julgamento, o juiz não deve, nem pode, praticar atos visivelmente inúteis, dos quais nunca resultará qualquer avanço para atingir a finalidade do processo.”
Discordando da decisão, o assistente interpôs recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, que age agora como instância de recurso. Da sua motivação extraiu as seguintes conclusões: 1 - No inquérito e no requerimento de abertura de instrução, existem elementos suficientes que determinam o interesse da matéria detida na Procuradoria Geral da Republica, no Ministério dos Negócios Estrangeiros e com as autoridades angolanas relativamente ao caso em apreço. 2 - A necessidade de concretização dos actos instrutórios evidencia-se graças à sentença de inícios do presente mês de Junho, do processo n. 3330/11.2TBVNG da 2.ª Vara de competência mista do Tribunal de Vila Nova de Gaia, cuja certidão se protesta juntar, onde se dá como provado o incumprimento pela República de Angola que o Recorrente sempre reivindicou dos representantes diplomáticos deste Estado e do seu advogado. 3 - Quanto ao ponto A do n. 3 do douto despacho, existem indícios suficientes do Digníssimo Procurador Geral da Republica (doravante PGR) ter tido acesso e conhecimento detalhado do processo interno, nomeadamente por haver reunido com o Embaixador de Angola (conhecedores do não pagamento da totalidade do valor devido) relativamente ao litígio pendente na justiça entre este e o Assistente, e também por os próprios magistrados decidirem comunicar-lhe, como referido no RAI, por remissão a processos em que tal se verifica, dado o estatuto público dos envolvidos e a dimensão que o caso atinge na comunicação social. 4 - Quanto ao ponto B do número 3 do despacho, independentemente da douta opinião de se tratar de um direito potestativo que não pode deixar de ser acatado pela Meritíssima Juiz in casu, invoca-se que na sequência do encontro com o Embaixador de Angola, o Digníssimo PGR envidou os esforços necessários ao arquivamento do processo. 5 - Não houve, pelo contrário, nem um contacto das autoridades portuguesas a solicitar o levantamento da imunidade de jurisdição penal junto do estado angolano ou que este exerça jurisdição penal sobre os seus agentes diplomáticos, conforme prevê a Convenção de Viena e referido no RAI, 6 - ou, como diz o Colendo Conselheiro no despacho em crise, o PGR (pelo menos, atendendo ao conhecimento que tem da situação - na interpretação do Recorrente) "na defesa da legalidade e da Justiça, deverá alertar o Governo para a situação" - ponto C do n. 3 do despacho. 7 - Por isso, o PGR na posse de elementos processuais, indiciando-se contactos com o seu congénere angolano, a existência de um acordo de pagamento entre o Recorrente e a Republica de Angola que por maioria de razão tinha conhecimento, não deixam de ser estranhos a recepção que o PGR faz ao Embaixador de Angola e os desenvolvimentos do processo judicial a partir do pedido de imunidade diplomática - ponto D do despacho. 8 - Não pode consequentemente ser considerado que o proferimento do despacho de abertura de instrução implicaria a prática de actos inúteis, por existir ainda e no fundo, a confissão da existência do acordo acima identificada, sendo prementes os actos de instrução solicitados. 9 - Estes pontos foram desta maneira incorrectamente julgados e tais provas impõem decisão de abertura de instrução e prática dos actos requeridos. 10 - E é neste sentido, no humilde entendimento do Assistente, que deve ser modificada a decisão, ao abrigo do disposto no artigo 431 do CPP
Respondeu o Ministério Público, que concluiu do seguinte modo a peça processual: Nenhuma censura merece o despacho de rejeição recorrido, pelos fundamentos dele constantes, que acompanhamos. Em suma: 1 Uma reunião com o Sr. Embaixador de Angola não pode ser interpretada como acto de favorecimento, no sentido que lhe é conferido pelo assistente, porquanto, para além de não se indiciar a mais leve interferência do Sr. Procurador-Geral da República no processo de inquérito, nunca poderia influenciar qualquer procedimento com vista a uma eventual declaração de persona non grata dos diplomatas angolanos e muito menos interferir no pedido do exercício da jurisdição penal ao Estado de Angola (como se realçou no despacho de arquivamento e despacho de rejeição de instrução). 2 A rejeição, por inutilidade do debate, mostra-se conforme à jurisprudência do SIJ, estando salvaguardada de reparo consistente. Pelo exposto e sem necessidade de outras considerações, deve o recurso ser julgado manifestamente improcedente.
No visto a que se refere o art. 416º do Código de Processo Penal, o Ministério Público afirmou que “nada mais se nos oferece acrescentar sobre a improcedência do recurso ai que já expressámos na resposta de fls. 704-705”. Foi cumprido o disposto no art. 417º nº 2 do Código de Processo Penal, não tendo o assistente usado do seu direito de resposta. Os autos foram a vistos e vêm à conferência para decisão.
2. Em abono da tese que perfilha, a decisão recorrida invoca o acórdão deste Supremo Tribunal de 13-01-2011 – Proc. 3/09.0YGLSB, cujo relator foi o mesmo da presente decisão. Aí se decidiu que “se o juiz de instrução, apreciando o requerimento do assistente nos seus precisos termos, conclui que de modo algum o arguido poderá ser pronunciado, uma vez que os factos que aquele narra jamais constituirão crime, deverá rejeitar o requerimento do assistente. Considerou-se, assim, que “quando pela simples análise do requerimento para abertura da instrução, sem recurso a qualquer outro elemento externo, se dever concluir que os factos narrados pelo assistente jamais poderão levar à aplicação duma pena, então estaremos face a uma fase instrutória inútil.” Todavia, já anteriormente, no acórdão de 7-12-1005 – proc. 1008/05, o Supremo Tribunal de Justiça tinha julgado que “se o requerimento do assistente para abertura da instrução não narra factos susceptíveis de integrar a prática de qualquer crime não pode haver legalmente pronúncia (cf. art. 308.° do CPP), pois a instrução seria, então, um acto inútil, cuja prática a lei proíbe (arts. 137.º do CPC e 4.° do CPP), e como tal legalmente inadmissível”, sendo certo que “a inadmissibilidade legal da instrução é uma das causas de rejeição do requerimento para abertura da instrução, nos termos do n.º 3 do aludido art. 287°”. Quer seja por virtude de o acto inútil dever ser considerado legalmente inadmissível, quer seja por aplicação directa do princípio da proibição da prática de actos inúteis, tal como se propugna na decisão recorrida, o certo é que, quando, através da simples análise do requerimento de abertura de instrução sem recurso a elementos externos, for detectado que a realização da instrução em caso algum poderá levar á pronúncia do arguido, deverá o requerimento ser rejeitado. É claramente o que acontece no caso presente.
3. O assistente imputa ao denunciado Procurador-Geral da República, Conselheiro Fernando José Matos Pinto Monteiro, a prática de um crime de favorecimento pessoal e de um crime de prevaricação.
3.1 Sob a epígrafe “favorecimento pessoal”, estabelece o art. 367º do Código Penal que “quem, total ou parcialmente, impedir, frustrar ou iludir actividade probatória ou preventiva de autoridade competente, com intenção ou com consciência de evitar que outra pessoa, que praticou um crime, seja submetida a pena ou medida de segurança, é punido …”. A acção típica consiste, assim, em impedir, frustrar ou iludir actividade probatória ou preventiva da autoridade competente no âmbito da investigação criminal. Ou seja, através de diversas actividades, tais como ocultar o perseguido, destruir pistas, prestar falsas informações às autoridades de investigação, facilitar a fuga, etc, o agente deste crime procura criar obstáculos à perseguição penal que está a ser levada a cabo autoridade competente, prestando desse modo auxílio a quem cometeu um crime, de forma a evitar que o agente seja submetido a uma pena ou medida de segurança. Os factos que o assistente atribui ao Procurador-Geral da República, e que foram por aquele sintetizados do seguinte modo: “em data não concretamente apurada, mas entre 19/11/2007 e 22/01/2008, o Digníssimo Procurador-Geral da República Fernando José Matos Pinto Monteiro (PGR) interferiu junto da Meritíssima Juiz do 1º Juízo do Tribunal de Instrução Criminal do Lisboa no processo n.º 900/06.4TAVNG, influenciando a decisão do arquivamento do mesmo em relação aos diplomatas BB e CC em funções de embaixador e ministro conselheiro da Embaixada de Angola em Lisboa”, de modo algum correspondem à acção típica do crime do art. 367º do Código Penal. Na fase de instrução do processo em que eram arguidos dois diplomatas da embaixada da República Popular de Angola, veio a ser declarado por despacho da juíza de instrução criminal que “ao abrigo do disposto no art.3l, nº 1, da Convenção de Viena, a que Portugal aderiu conforme DL 48295, de 27Mar.68, o Sr. Embaixador da República de Angola, Sr. Dr. BB e o Sr. Dr. CC, pese embora o alegado pelo assistente gozam de imunidade em sede de jurisdição penal, pelo que não podem os presentes autos prosseguir contra os mesmos, por inadmissibilidade legal”. Interposto recurso deste despacho para o Tribunal da Relação de Lisboa, este Tribunal, por acórdão de 8 de Julho de 2008, confirmou tal decisão, tendo deixado claramente explicado que a imunidade de jurisdição penal em Portugal, constitui “um[a] prerrogativa de que gozam os agentes diplomáticos de não estarem sujeitos à jurisdição dos tribunais do Estado junto do qual estão acreditados, a qual não depende de qualquer procedimento prévio ou autorização. Demonstrado que são agentes diplomáticos, abrangidos pela citada convenção, fica o Estado Português limitado na sua soberania, na parte relativa ao exercício de jurisdição penal em relação a crimes, alegadamente, por eles cometidos, razão por que a instrução não pode seguir contra os mesmos, como bem decidiu o tribunal recorrido.” O que resulta dos autos é que a autoridade competente para a instrução, isto é, o juiz de instrução criminal, reconheceu, perante o disposto na Convenção de Viena a que Portugal aderiu, que a instrução não podia prosseguir contra os arguidos por, sendo diplomatas acreditados, gozarem de imunidade penal, o que sucede, conforme correctamente afirmou a Relação de Lisboa, sem dependência de qualquer procedimento prévio ou autorização, sendo suficiente a demonstração de que são agentes diplomáticos abrangidos pela citada Convenção. Resulta, assim, que, como se disse no despacho recorrido, “o Sr. Procurador-Geral da República … não pode ter cometido o[s] crime[s] de favorecimento pessoal”, nem por acção ao conceder uma audiência ao Sr. Embaixador da República Popular de Angola, nem por omissão, por não estarem incluídos nas atribuições do Procurador-Geral da República, pugnar junto do Estado Angolano pelo levantamento da imunidade de jurisdição penal ou pressionar a República Popular de Angola a exercer acção penal sobre aqueles seus agentes diplomáticos. Tanto mais que, como consta do documento de fls. 615 do Departamento de Assuntos Jurídicos do Ministério dos Negócios Estrangeiros, podendo embora o Estado acreditador solicitar o levantamento da imunidade de jurisdição, ou solicitar que o Estado acreditante exerça a jurisdição penal sobre o seu agente diplomático ou até expulsar o agente diplomático mediante uma declaração de persona non grata, qualquer dessas diligências tem natureza diplomática e deve ser conduzida pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros.
3.2 O mesmo sucede relativamente ao crime do art. 369º do Código Penal, cujo tipo legal é descrito do seguinte modo: “o funcionário que, no âmbito de inquérito processual, processo jurisdicional, por contra-ordenação ou disciplinar, conscientemente e contra direito, promover ou não promover, conduzir, decidir ou não decidir, ou praticar acto no exercício de poderes decorrentes do cargo que exerce, é punido …” Como salienta Medina de Seiça (Comentário Conimbricense do Código Penal, III, pág. 612) “o núcleo típico deste crime verifica-se quando o agente realiza ou omite um comportamento contra direito”, sendo certo que “agir contra direito significa, essencialmente, a contradição da decisão com o prescrito pelas normas jurídicas pertinentes” (op. cit., pág. 615). Para o assistente, o denunciado praticou este crime porque “na sua qualidade de funcionário, promoveu, conduziu, decidiu ou praticou um acto no exercício de poderes decorrentes do cargo que exerce, consequência de uma vontade livre e consciente de falsear a justiça, sendo tal acção contrária nomeadamente aos princípios e competências que regem a sua actuação, previstos no Estatuto dos Magistrados do Ministério Público.” Ora, resultando o arquivamento do processo nº 900/06.4TAVNG na fase de instrução, da aplicação aos arguidos Dr. BB e Dr. CC duma disposição legal que isenta de procedimento criminal em Portugal os agentes diplomáticos como tal acreditados, qualquer acto que o denunciado Procurador-Geral da República pudesse ter praticado a este respeito jamais poderia ser considerado um acto contra direito. Por consequência, os factos descritos pelo assistente no requerimento de abertura de instrução de modo algum são susceptíveis de integrarem os elementos objectivos do crime de prevaricação que o assistente pretende imputar-lhe.
4. Visa a instrução a comprovação judicial da acusação, seja a do Ministério Público findo o inquérito, seja a acusação implícita no requerimento de abertura de instrução formulado pelo assistente, em ordem à decisão sobre a submissão da causa a julgamento. Deste modo, se da simples análise do requerimento de abertura de instrução, especialmente da parte em que é descrita a factualidade imputada ao denunciado, resultar que, mesmo a serem os factos comprovados, jamais se poderia seguir uma pronúncia em virtude de tais factos não integrarem qualquer tipo legal de crime, estaríamos perante uma instrução sem objecto. Conforme refere Germano Marques da Silva, «o requerimento do assistente tem que conformar uma verdadeira acusação e, por isso, o requerimento não é admissível se dele resultar falta de tipicidade da conduta […] porque é o próprio procedimento que não pode prosseguir por falta do[s] pressuposto[s] de objecto […]. Faltando no processo o seu objecto […] o processo é inexistente» (Curso de Processo Penal, III, 2000, pp. 138-139). E sendo assim, a abertura da instrução e a realização do debate instrutório sempre redundaria na prática de um acto inútil, tal como se afirmou no despacho recorrido.
DECISÃO Termos em que acordam no Supremo Tribunal de Justiça em julgar improcedente o recurso interposto pelo assistente AA. Custas pelo recorrente, com 5 (cinco) UC de taxa de justiça.
Lisboa, 11 de Dezembro de 2012 |