Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2136/23.0T8VIS.C1.S1
Nº Convencional: 4ª SECÇÃO
Relator: MÁRIO BELO MORGADO
Descritores: SUBSÍDIO DE ISENÇÃO DE HORÁRIO DE TRABALHO
REQUISITOS
Data do Acordão: 10/15/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Sumário :
I. Não existe qualquer incompatibilidade entre o regime de isenção de horário de trabalho e a circunstância de igualmente ter sido acordado um “período normal de trabalho semanal de 40 horas”, pois, na falta de estipulação das partes quanto à modalidade de IHT (como é o caso), este regime traduz-se, precisamente, na “não sujeição aos limites máximos do período normal de trabalho”.

II. O acordo que instituiu o regime de IHT foi reduzido a escrito, logo no documento que titula o contrato de trabalho, em observância do art. 218º, nº 1, do CT, pelo que não se verifica o vício de forma invocado pela ré.

Decisão Texto Integral:
Revista n.º 2136/23.0T8VIS.C1.S1

Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça

I.


2 AA intentou a ação declarativa Bodum Portuguesa – Produção de Artigos Metálicos, S.A., com sede na Zona Industrial de Tondela.

2. Na 1ª Instância, a ré foi condenada a pagar à autora a quantia ilíquida de 70.871,24 €, a título de subsídio de isenção do horário de trabalho, acrescida de juros de mora, desde a citação e até integral pagamento.

Interposto recurso de apelação, o Tribunal da Relação de Coimbra (TRC) confirmou a decisão, com um voto de vencido (com o seguinte teor: “Vencido: porquanto entendo que a matéria de facto provada é insuficiente para se poder concluir que se encontra instituído um regime de IHT”).

3. A ré interpôs recurso de revista, dizendo, essencialmente:

– A sentença confirmada pelo acórdão recorrido padece dos vícios constantes das alíneas b) e c) do n.º 1 do art. 615º do CPC.

– Os factos provados são insuficientes para concluir pela existência de um acordo para a prestação de trabalho em regime de isenção de horário de trabalho.

– Nos termos do Código de Trabalho e da Convenção Coletiva de Trabalho aplicável, apenas trabalhadores com determinadas funções podem exercer as mesmas nesse regime.

– O regime de isenção de horário de trabalho depende de acordo escrito, sob pena de nulidade.

4. O autor contra-alegou.

5. Neste Supremo Tribunal, o Ministério Público pronunciou-se no sentido de ser negada a revista, em Parecer a que as partes não responderam.

6. Em primeiro lugar, veio a recorrente invocar alegados vícios da sentença proferida em primeira instância (cfr. supra nº 3), no plano da decisão de facto.

Porém, enquanto meios de impugnação das decisões judiciais (cfr. art. 627.º, n.º 1, CPC), os recursos apenas se destinam à reapreciação de questões anteriormente apreciadas pelo tribunal a quo, pelo que ao Supremo está vedado conhecer de alegados vícios da sentença impugnada em sede de recurso de apelação1.

Deste modo, em face das conclusões da alegação de recurso, e inexistindo quaisquer outras de que se deva conhecer oficiosamente (art. 608.º, n.º 2, in fine, do CPC), as questões a decidir2 consistem em determinar: i) se dos factos provados decorre terem as partes acordado na prestação de trabalho em regime de isenção de horário de trabalho; ii) e se tal acordo é nulo por inobservância da prova legalmente prescrita.

Decidindo.


II.

7. Com relevância para a decisão da revista, o acórdão recorrido considerou provada a seguinte factualidade:

1– Em 17/03/2015 a ré celebrou um contrato de trabalho a termo certo com a autora, para esta exercer (…) as funções de designer gráfico na sede da ré (…).

2– Ao nível do horário, a autora obrigou-se a prestar 8 horas de trabalho diário num total de 40 horas, com dois dias de descanso, tendo sido unilateralmente fixado no contrato à autora um horário de trabalho entre segunda feira e sexta feira das 8h às 16h30, com intervalo de descanso entre as 12h30m e as 13h (…).

3– A autora concordou com a eventual alteração unilateral do seu horário de trabalho em função das necessidades da autora, dentro dos limites legalmente estabelecidos (…).

4– A partir de 15/04/2015 a autora prestou o seu trabalho a cargo e sob a direção da ré, no local aludido em 1), nos termos contratados, tendo o contrato a termo sido convertido em contrato sem termo após alcançado o limite legal de renovações (…).

5– A ré sempre reconheceu e promoveu a autora, aumentando-lhe progressivamente o salário que esta auferia e atribuindo-lhe novas competências e responsabilidades ao ponto de até à data da cessação do contrato estar a prestar o seu trabalho como ..., como responsável pela área de ... da empresa e pelo apoio à gestão administrativa (…).

6- Da cláusula 6ª do contrato aludido em 1), consta que “1- A trabalhadora obriga-se a prestar 8h de trabalho diário, num total de 40 horas de trabalho por semana, com dois dias de descanso semanal, de acordo com o horário em vigor na entidade empregadora, o qual, nos termos da lei poderá ser unilateralmente alterado por esta, quer quanto às horas de início e termo do trabalho diário e dos intervalos de descanso, quer quanto aos dias de descanso semanal. 2- Nas alterações de horário referidas no número anterior salvaguardar-se-á sempre o limite máximo de 40h semanais e a existência de dois dias de descanso em cada período de sete dias consecutivos. 3- No início da execução do presente contrato de trabalho é unilateralmente fixado à trabalhadora o seguinte horário de trabalho: de segunda a sexta-feira das 8h às 16h30, com intervalo de descanso entre as 12h30m e as 13h. 4- A trabalhadora, desde já dá o seu acordo para eventual alteração unilateral do seu horário de trabalho, em conformidade com as necessidades ou conveniências da entidade empregador. (…) 11- A trabalhadora acorda em prestar a sua atividade em regime de isenção de horário, nas suas diversas modalidades. 12- No caso de deixar de prestar trabalho em regime de isenção de horário, a trabalhadora acorda em que, se a entidade empregadora o entender conveniente, o período referido no n º 1 desta cláusula seja definido em termos médios, com os limites decorrentes da Lei” (…).

7– A autora prestava trabalho a pedido da ré diariamente, desde o início da relação laboral, iniciando às 8h, com exceção do período pandémico, em que chegou a iniciar por volta das 5h para proceder à medição de febre de funcionários, e terminando normalmente não antes das 17h, e frequentemente até depois das 19h (…).

8– A autora sujeitou-se à carga horária aludida em 7) por ter aceitado, logo aquando da sua contratação a isenção de horário, sendo a mesma um ativo da empresa valorizado, com capacidade de progressão (…).

9– A ré não procedeu ao pagamento à autora de quaisquer valores relativos à isenção do horário de trabalho, nem a prestação de trabalho suplementar (…).

10- Sendo ainda frequentes as exigências para que prestasse o seu trabalho à noite e em dia de descanso semanal complementar e obrigatório, de modo a concluir as tarefas que lhe eram pedidas (…).

11– A partir 22 de maio de 2018 passaram a ser registadas as horas que a autora prestava trabalho no estabelecimento da ré, sendo que a mesma no referido estabelecimento prestou as horas discriminadas no documento de fls. 110 verso a 151 dos autos (…), tendo a ré beneficiado com tal prestação de trabalho, sem lhe deduzir qualquer oposição, e nunca remunerou a autora por esse trabalho (…).

12– Por carta registada datada de 19 de abril de 2023 a ré comunicou à autora a decisão de cessação do seu contrato de trabalho por extinção do posto de trabalho, (…) tendo o mesmo cessado em 18 de maio de 2023 (…).

13- À relação laboral celebrada entre autora e ré é aplicável o CCT celebrado entre a AIMMAP – Associação dos Industriais, Metalúrgicos, Metalomecânicos e Afins de Portugal e SINDEL – Sindicato Nacional da Industria e da Energia, FETESE – Federação dos Sindicatos dos Trabalhadores de Serviços, SITESC – Sindicato de Quadros, Técnicos Administrativos, Serviços e Novas Tecnologias e Sindicato dos Técnicos de Vendas do Sul e Ilhas, publicado no BTE n º 10 de 15 de março de 2010, estendido por Portaria de extensão publicada no BTE n º 24 de 29 de junho de 2010 (…).

14– Desde o início da relação laboral que a ré apelou à autora e a outros trabalhadores, que tivessem uma dedicação total e exemplar à empresa, tendo ao longo da mesma atribuído maiores responsabilidades à autora, designadamente dando-lhe o cargo de responsável pela área de ... e de apoio à gestão administrativa (…).

(…)

24– Da decisão aludida em 12) consta além do mais que “(…) 4 – O posto de trabalho de V.ª Ex.ª tem o seguinte conteúdo funcional: funções de direção e de apoio e assessoria directa ao Diretor Geral, designadamente ao nível de gestão e de recursos humanos, ocupando o segundo posto na hierarquia operacional da empresa; coordenação do departamento “Shared Service Center; exercício das funções de ..., designadamente ao nível do ... das caixas, atividade que se denomina de packaging” (…).

25– Consta ainda, da decisão aludida em 12) que “ (…) 7 – No âmbito dos seus poderes de direção, (…) a trabalhadora apenas reporta ao Diretor Geral da empresa, assessorando este no exercício das seguintes funções, a saber: - organização geral da empresa, dos respetivo complexos fabris e armazéns; - controle dos stocks dos componentes e produto final, que estejam nos armazéns da empresa ou em regime de consignação junto dos fornecedores, designadamente no que concerne ao packaging; - controle de compras de matéria prima, designadamente no que concerne ao packaging; - organização da logística de importação e exportação de matéria-prima componentes e produto acabado, designadamente no que concerne ao packaging; - mediante aprovação prévia da administração, contratação e despedimento de trabalhadores e demais gestão de recursos humanos, por forma a otimizar a cada momento a organização e produção da fábrica, e armazéns, designadamente no que concerne ao packaging- relativamente a este ponto, será importante salientar que V.ª Ex.ª tem procuração para assinar contratos de trabalho e permissão para efetuar pagamentos nas instituições bancárias com as quais a Bodum trabalha; - mediante aprovação prévia da administração, aquisição de equipamento, por forma a otimizar a cada momento a organização e produção da fábrica e armazéns; - analisar concorrentes e tendências do mercado, designadamente ao nível do packaging; - desenvolver relações externas com os contactos adequados à prossecução da atividade da Bodum, designadamente ao nível do packaging; - gestão de orçamentos; - supervisão de pessoal” (…).

26– A ré inseriu em vários contratos celebrados com os seus trabalhadores das mais diversas categorias, cláusula igual ou idêntica à aludida no ponto 6) (…).

27– A ré não processa nem paga remuneração por isenção de horário de trabalho a nenhum dos seus trabalhadores (…).

(…)

33– A autora, desde o início da sua relação laboral com a ré que sempre teve disponibilidade total para atender chamadas, receber e enviar e-mails, a qualquer hora do dia e até durante a noite a vários membros da administração da ré (…).

34– Além disso, no período pandémico, foi elaborado plano de contingência no qual a autora passava a estar na empresa a partir das 5h para permitir o início de laboração do turno no horário previsto e exigia que permanecesse na empresa muitas vezes até ao final do último turno (…).

35– A autora estava totalmente disponível, sempre que era exigida a presença em reuniões na Dinamarca, Suíça ou nos Estados Unidos, o que aconteceu diversas vezes ao longo dos anos em que perdurou a relação laboral (…).

36– Também sempre esteve disponível quando lhe era exigido pela ré que cumprisse prazos de projetos de packaging, que pressupunha a prestação de trabalho à noite e fins-de-semana, o que era do conhecimento da ré e que tal só sucedeu, por a autora considerar que tinha contratado a isenção de horário com a ré (…).


III.

8. In casu, para além do preceituado nos arts. 218º e 219º, do CT, há a considerar o seguinte clausulado do CCT aplicável:

— Cláusula 58.ª:

1. Por acordo escrito, pode ser isento de horário de trabalho o trabalhador que se encontre numa das seguintes situações:

a) Exercício de cargos de direção, de chefia, de coordenação, de fiscalização, de confiança ou de apoio aos titulares desses cargos ou de cargos de administração;

(…)

2. Na falta de acordo, presume-se que foi adotada como modalidade de isenção a da não sujeição aos limites máximos dos períodos normais de trabalho.

— Cláusula 59.ª:

1. A retribuição específica correspondente ao regime de isenção de horário de trabalho deve ser regulada no contrato individual de trabalho, ou em aditamento a este e pode ser incluída na retribuição base.

2. Na falta daquela regulação, por acordo direto entre as partes, o trabalhador isento de horário de trabalho tem direito a uma retribuição especial correspondente a 20 % da retribuição base mensal.

(…)

9. Com base neste quadro normativo, ajuizou o acórdão recorrido: “Impugnada a matéria de facto com vista a ver alterada a decisão de direito, não obtendo provimento essa parte do recurso, e nada havendo a apontar à decisão de direito que consta da sentença recorrida, improcede o recurso na totalidade.”.

Por seu turno, ponderou a sentença da 1.ª instância:

«[F]ace à factualidade provada, dúvidas não restam de que a autora ao longo da sua relação laboral com a ré e desde seu início se comprometeu a prestar trabalho em regime de total flexibilidade, ou seja, para lá das 8h diárias e 40h semanais, quer no estabelecimento da ré, quer fora dele.

No próprio contrato foi inserida cláusula da qual consta que “a trabalhadora acorda em prestar a sua atividade em regime de isenção de horário, nas suas diversas modalidades”, pelo que, foi ab initio tal regime fixado, ainda que com um horário normal para as 40h semanais também aí incluído. A autora desempenhava funções de confiança que permitiam a fixação de tal regime, nos termos do nº 1 al. a) da clausula 58ª do IRCT aplicável.

Acresce que, não tendo sido fixada a modalidade de tal regime presume-se, nos termos do nº 2 da referida cláusula que é a modalidade da isenção total.

Não obstante a ré não tenha previsto o valor do subsídio de isenção de horário de trabalho, o mesmo decorre do regime supletivo fixado no nº 2 da cláusula 59ª do IRCT (20% da retribuição base mensal).».

10. Acompanhamos o raciocínio assim desenvolvido, bem como o sentido decisório atingido, uma vez que é patente, em face dos pontos 6) e 8) dos factos provados, que as partes acordaram, desde o início da vigência do contrato de trabalho, em instituir um regime de isenção de horário de trabalho (IHT).

Manifestamente, e ao contrário do argumentado pela recorrente, não existe qualquer incompatibilidade entre o regime de IHT e a circunstância de igualmente ter sido acordado um “período normal de trabalho semanal de 40 horas”, pois, na falta de estipulação das partes quanto à modalidade de IHT (como é o caso), este regime traduz-se, precisamente, na “não sujeição aos limites máximos do período normal de trabalho” [art. 219º, nº 1, a), do CT], nos termos da presunção a este propósito consagrada no n.º 2 deste artigo e da cláusula 58.ª, n. º 2, do CCT.

Também é inequívoco que a trabalhadora exercia funções confiança, direção e de apoio e “assessoria direta ao Diretor Geral” (pontos nº 5, 14, 24 e 25 da matéria de facto), pelo que encontra preenchida a exigência contida na alínea a) do n.º 1 do art. 218.º, do CT, e na alínea a) do n.º 1 da cláusula 58.ª, do CCT.

Por outro lado, constata-se que – em observância do art. 218º, nº 1, do CT – o acordo em causa foi reduzido a escrito, logo no documento que titula o contrato de trabalho (cfr. nº 11 da cláusula 6ª do contrato, transcrita no nº 6 da matéria de facto), pelo que não se verifica o vício de forma invocado pela ré.

De qualquer forma, a alegada nulidade não teria quaisquer implicações práticas, uma vez que “o contrato de trabalho declarado nulo ou anulado produz efeitos como válido em relação ao tempo em que seja executado” (art. 122º, nº 1, do CT), quando isso não implique a violação das garantias do trabalhador (cfr. Ac. do STJ de 12.02.2025, Proc. n.º 3741/19.5T8STB.E1.S1), como sucede no caso dos autos.

Improcede, pois, a revista.


IV.

11. Nestes termos, acorda-se, negando a revista, em confirmar o acórdão recorrido.

Custas pela recorrente.

Lisboa, 15.10.2025

Mário Belo Morgado, relator

Domingos Morais

José Eduardo Sapateiro

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1. Não obstante, relembra-se que o Supremo Tribunal de Justiça está impedido de sindicar como é que o Tribunal da Relação formou a sua convicção na livre apreciação da prova a que procedeu, não se tratando de prova legalmente tabelada, como é jurisprudência pacífica deste Tribunal (v.g. Acs. de 16.11.2022, Proc. n.º1060/19.6T8BRR.L1.S1, de 24.01.2024, Proc. n.º 6952/20.7T8PRT.P1.S1, e de 08.02.2024, Proc. n.º 1868/21.2T8CTB.C1.S1).↩︎

2. O tribunal deve conhecer de todas as questões suscitadas nas conclusões das alegações apresentadas pelo recorrente, excetuadas as que venham a ficar prejudicadas pela solução entretanto dada a outra(s) [cfr. arts. 608.º, 663.º, n.º 2, e 679º, CPC], questões (a resolver) que, como é sabido, não se confundem nem compreendem o dever de responder a todos os argumentos, motivos ou razões jurídicas invocadas pelas partes, os quais não vinculam o tribunal, como decorre do disposto no art. 5.º, n.º 3, do mesmo diploma.↩︎