Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 5ª SECÇÃO | ||
Relator: | HELENA MONIZ | ||
Descritores: | HOMICÍDIO HOMICÍDIO QUALIFICADO MOTIVO FÚTIL MEDIDA CONCRETA DA PENA CONCURSO DE CRIMES IN DUBIO PRO REO PRINCÍPIO DA IMEDIAÇÃO REFORMATIO IN PEJUS PENA ÚNICA | ||
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Data do Acordão: | 09/14/2017 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | REJEITADO O RECURSO | ||
Área Temática: | DIREITO PROCESSUAL PENAL – TEMPO DOS ACTOS E DA ACELERAÇÃO DO PROCESSO / NULIDADES – SENTENÇA – RECURSOS / DECISÕES QUE NÃO ADMITEM RECURSO / FUNDAMENTOS DO RECURSO / MOTIVAÇÃO DO RECURSO / RECURSO PERANTE O SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA. DIREITO PENAL – CONSEQUÊNCIAS JURÍDICAS DO FACTO / ESCOLHA E MEDIDA DA PENA / PUNIÇÃO DO CONCURSO DE CRIMES – PARTE ESPECIAL / CRIMES CONTRA AS PESSOAS / CRIMES CONTRA A VIDA. | ||
Doutrina: | -Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As consequências Jurídicas do Crime, Lisboa: Aequitas/Ed. Notícias, 1993, 421- 291 ; Direito Processual Penal, Coimbra: Coimbra Editora, 1974, 234 ; 1988-9, 235 ; Crime Preterintencional, causalidade adequada e questão-de-facto, RDES, ano XVII (1970), 34 da separata; -Figueiredo Dias, Nuno Brandão, Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, 2.ª Edição, Coimbra: Coimbra Editora, 2012, art. 132, 25; -Maria João Antunes, Direito Processual Penal, Coimbra: Almedina, 2016, 201-2. | ||
Legislação Nacional: | CÓDIGO DE PROCESSO PENAL (CPP): - ARTIGOS 105.º, N.º 1, 120.º, N.º 1, 368.º, N.º 2, 379.º, N.º 2, 400.º, N.º 1, ALÍNEA F), 409.º, N.º 1, 410.º, N.º 2, 412.º, N.º 1 E 434.º. CÓDIGO PENAL (CP): - ARTIGOS 40.º, 71.º, N.ºS 1 E 2, 77.º, N.ºS 1 E 2, 131.º, N.º 1 E 132.º, N.ºS 1 E 2, ALÍNEA E). REGIME JURÍDICO DAS ARMAS E MUNIÇÕES (RJAM), APROVADO PELA LEI N.° 5/2006, DE 23 DE FEVEREIRO, NA REDACÇÃO DADA PELAS LEIS NºS. 17/2009, DE 6 DE MAIO, 12/2011, DE 27 DE ABRIL E 50/2013, DE 24 DE JULHO: - ARTIGO 86.º, N.ºS 3, 4 E 5. CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA (CRP): - ARTIGOS 13.º E 32.º, N.ºS 1 E 2. | ||
Jurisprudência Nacional: | ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA: - DE 22-01-2013, PROCESSO N.º 184/11.2GCMTJ.L1.S1; - DE 06-02-2013, PROCESSO N.º 593/09.7TBBGC.P1.S1; - DE 29-05-2013, PROCESSO N.º 344/11.6JALRA.E1.S1. | ||
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Sumário : | I —Não há nulidade, do acórdão recorrido, por omissão de pronúncia, pois o Tribunal analisou quer o “medo do arguido” que estaria na base da sua atuação (segundo o arguido), quer a confissão parcial do arguido. II — Não existiu qualquer dúvida na qualificação dos factos praticados pelo recorrente, pelo que do texto da decisão recorrida não resulta qualquer violação do princípio in dubio pro reo. III — O princípio da reformatio in pejus, consagrado no art. 409.º, n.º 1, do CPP, significa que o tribunal ad quem não pode agravar a espécie e a medida da pena quando o recurso é interposto pela defesa ou pelo Ministério Público no exclusivo interesse do arguido. IV —Se após recurso interposto pelo arguido, ou pelo Ministério Público, no interesse daquele, houvesse possibilidade de agravar a condenação do arguido, teríamos encontrado aqui, de forma indireta, uma clara limitação à interposição do recurso pelo arguido, em clara violação do direito fundamental ao recurso, consagrado no art. 32.º, n.º 1, da CRP. V — Nos presentes autos não ocorreu nenhuma das situações previstas no art. 409.º, n.º 1, do CPP — se, por um lado, o arguido recorreu no seu interesse, por outro lado, foi interposto um recurso pelo Ministério Público alegando a punição do arguido pelo crime de homicídio qualificado e, portanto, sem que se possa dizer que o recurso interposto pelo Ministério Público tenha sido no exclusivo interesse do arguido. VI — O arguido considera ainda que foi violado o princípio do contraditório — também aqui não tem razão, uma vez que o recurso interposto pelo Ministério Público e onde era alegado que o arguido devia ser punido pelo crime de homicídio qualificado foi notificado ao arguido, exatamente para que pudesse exercer esse contraditório relativamente àquelas alegações. VII — O Tribunal da Relação de Coimbra considerou existir motivo fútil por, em suma, considerar que não estamos perante um caso de falta de prova quanto ao motivo — caso em que em obediência ao princípio in dubio pro reo é que se justificaria não qualificar o homicídio —, mas perante uma situação em que o arguido matou o ofendido por ausência de motivo ou existência de um motivo insignificante, e considerando que o arguido atuou “sem qualquer razão mínima que justificasse tamanha brutalidade”; considera, por isto, que a conduta do arguido revela especial censurabilidade e perversidade, tendo os factos sido executados “de forma despropositada e repugnante” e “por altivez, egoísmo, mesquinhez e insensibilidade moral”. VIII — Motivo torpe ou fútil “significa que o motivo de actuação, avaliado segundo as concepções éticas e morais ancoradas na comunidade, deve ser considerado pesadamente repugnante, baixo ou gratuito” (Figueiredo Dias/ Nuno Brandão). Ora, do simples facto de a vítima ter questionado o arguido — “Como?” — quando o arguido anteriormente se lhe tinha dirigido dizendo “e se eu quisesse alguma coisa, ó filho da puta” é óbvia a constatação de que o arguido atuou gratuitamente ferindo o bem jurídico básico da convivência comunitária; tratou-se de uma reação gratuita, e completamente desproporcional. Pelo que, a imagem global do facto apresenta-nos um comportamento, uma atitude do arguido especialmente desvaliosa a revelar uma personalidade desconforme com o direito e refletida no facto praticado. IX — Quando o tribunal a quo qualifica de forma diferente os factos dados como provados, não estamos mais perante o exercício dos poderes de cognição do tribunal em matéria de facto, mas perante o exercício dos poderes de cognição em matéria de direito, sem que com isso esteja em causa qualquer princípio da imediação; não estando em causa uma alteração da matéria de facto, que se deu como consolidada, e tendo-se procedido apenas a uma diferente subsunção jurídica dos factos ao direito, entendemos não ter ocorrido qualquer violação do princípio referido. X — A partir dos factos provados, podemos concluir estarmos perante um caso em que a culpa do agente é elevada, e as exigências de prevenção geral e especial bastante robustas, pelo que consideramos que tendo sido o arguido condenado na pena de 19 anos de prisão esta afigura-se uma pena adequada e não excessiva. XI — No que respeita ao concurso de crimes e sabendo que a moldura penal oscila entre 19 anos de prisão e 22 anos e 6 meses de prisão, entendemos, igualmente, que, em atenção à personalidade revelada nos factos fortemente desconforme com o deve-ser jurídico-penal, como adequada a pena única que lhe foi aplicada de 20 anos. | ||
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Decisão Texto Integral: |
Acordam, em conferência, no Supremo Tribunal de Justiça:
I Relatório 1. Nestes autos, foi condenado por acórdão de 04.07.2016, da Comarca de Leiria, o arguido AA, nos seguintes termos: «a) Absolver o arguido AA, da prática do crime de homicídio qualificado, p. e p. pelos art. 131.° e 132.°, n.ºs 1 e 2, al. e) e h), do CP. b) Condenar o arguido AA, como autor material e em concurso real: - Por um crime de homicídio agravado, p. e p. pelo art. 131.°, do CP e art. 86.°, n.° 3, do AJAM, na pena de 18 (dezoito) anos de prisão; - Por um crime de ofensas à integridade física agravado, p. e p. pelo art. 143.°, do CP e art. 86.°, n.° 3, do RJAM, na pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão; - Por um crime de detenção de arma proibida p. e p. pelo art. 86.°, n.° 1, al. c), do RJAM, por referência ao art. 3.°, n.° 4, al. a) da Lei n.° 5/2006 de 23/2, na redacção da Lei n.° 50/2013 de 24/7 na pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão. - Em cúmulo jurídico, na pena única de 19 (dezanove) anos e 6 (seis) meses de prisão. c) Julgando parcialmente procedente o pedido de indemnização civil deduzido por BB em representação de seu filho CC, condenou o demandado/arguido a pagar à demandante a quantia global de 108 800,00 € (cento e oito mil e oitocentos euros), a que acrescem juros, sobre 28.800,00 € desde a notificação e sobre 80 000,00 desde a data do acórdão. Quanto ao demais pedido (144.000,00€ a título de despesas de saúde + 3.900,00€ a título de despesas escolares (infantário) +499.000,00C a título das demais despesas escolares) a fixação da indemnização correspondente remeteu para decisão ulterior — art. 564.°, n.° 2 do Cód. Civil. d) Julgando parcialmente procedente o pedido de indemnização civil deduzido por DD, condenou o demandado/arguido a pagar à demandante a quantia global de 30. 000,00e (trinta mil euros) a que acrescem juros, contados desde a data do acórdão. e) Ordenou a recolha de amostra para análise de ADN nos termos do art. 8.°, da Lei n.° 5/2008 de 12/2. f) Declarou perdidos a favor do Estado os bens apreendidos a fls. 55 e ordenamos a sua destruição, caso o MP não mostre interesse na manutenção dos mesmos. g) Ordenou a entrega à família da vítima FF os bens apreendidos a fls. 90.» 2. Deste acórdão o Ministério Público e o arguido interpuseram recurso para o Tribunal da Relação de Coimbra que, por acórdão de 08.02.2017 decidiu: «negar provimento ao recurso interposto pelo arguido e parcialmente provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público, e, em consequência, fazendo também uso do conhecimento oficioso decide-se, revogar o acórdão recorrido quanto ao enquadramento penal dos factos relativamente aos crimes de homicídio agravado, p. e p. pelo art. 131°, do CP e art. 86.°, n.° 3, do RJAM, e ofensas à integridade física agravado, p. e p. pelo art. 143.°, do CP e art. 86.°, n.° 3, do RJAM, com a consequente alteração das penas parcelares e respectivo cúmulo jurídico, decisão que se substitui nesta parte, condenando o arguido AA nos seguintes termos: a) Por um crime de homicídio qualificado agravado, p. e p. pelos art. 131.° e 132.°, n.° 1 e 2, al. e), do CP e art. 86.°, n.° 3, 4 e 5, do RJAM, na pena de 19 (dezanove) anos de prisão. b) Um crime de ofensa á integridade física simples p. e p. pelo art. 143.°, do CP, na pena de 1 (um) ano de prisão. c) Manter quanto ao crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo art. 86.°, n.° 1, al. c), por referência ao art. 3.0, n.° 4, al. a), do RJAM, aprovado pela Lei 5/2006, de 23/2, na actual redacção, a pena de 2 anos e 6 meses de prisão. d) Nos termos do art. 77.º, n.° 1 e 2, 40.° e 71.°, n.° I e 2, da CP, condena-se o arguido na pena única de 20 (vinte) anos de prisão. e) No mais mantem-se o decidido no douto acórdão.» 3. O arguido interpõe agora recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, apresentando as seguintes conclusões (transcrição): «1º - Por uma questão de economia processual reproduz aqui integralmente todo o supra exposto. 2º - O Tribunal ad quo procedeu a uma incorreta subsunção das normas penais aos factos dados como provados, o que determinou uma incorreta determinação da moldura da pena nomeadamente na determinação da moldura concreta da pena única e por consequência da pena resultante do cúmulo jurídico. 3º - Ao não considerar, a confissão do arguido (ainda que parcial), a omissão patente no douto Acórdão, configura uma nulidade eventualmente suprível, mas, que ainda assim terá efeitos no desvalor da conduta do arguido. Para menos, e nunca para mais como se pretendeu no Recurso, a que parcialmente o TRC deu provimento parcial, agravando a pena do arguido em seis meses de prisão – fixando a pena única em 20 anos. 4º - Mutatis Mutandis, se dirá quanto à não consideração do medo e da manifesta provocação da vitima ao arguido, que poderá ter-se sentido " ameaçado" na sua virilidade sexual suportando com dificuldade e também alguns receios e medos – os intensos olhares do arguido sobre a sua namorada. A Psicologia e a sociologia podem explicar tais condutas como problemática de auto estima, baixa ou alta. Perante a troca de olhares intensos, a vítima, vai lá (dirige-se ao arguido) para trocar razões…intimidar…. Razões mais que suficientes para afastar a qualificação dos factos por motivo fútil, como sabiamente nesta parte fizeram o ilustre tribunal ad quo, e o ilustre magistrado do MP junto do TRC; no entanto em nossa modesta opinião existe excesso de dolo aplicado ao arguido desde logo em sede de primeira instância. 5º - A consideração do exposto (nomeadamente medo, confissão, nítida provocação da vitima - bravata), não justificando a conduta do arguido, a qual deverá ser sempre censurável, é contudo esvaziada de conteúdo, ou desvalorizada perante tais argumentos exposto pela defesa. 6º - Circunstâncias estas, que existiram, que em concreto, não fazendo parte do tipo de crime deponham a favor do arguido, as quais não foram consideradas pelo I. T. ad quo nem pelo TRC. 7º - Nesta parte, o Acórdão do I. T. ad quo, é nulo, porque omisso, o que se invoca; “comungando” do também deste “pecado”, em nosso modesto entender o douto acórdão do TRC. 8º - O in dubio pro reo, sendo o Princípio basilar do D. Penal, obriga o aplicador da leis, o “cirurgião "a equacionar todas as circunstâncias, que não justificando a conduta de um qualquer arguido, desde logo na desvalorização das razões da sua acção. Porque razões houve – foi tirar a vida – seguido de uma discussão – o que desde logo afasta o motivo fútil. Ficou por averiguar o tom e modo dessas palavras. Se proferidas com ar sereno, brincalhão, sério, intimidatório… 9º - Ou seja, todas as circunstâncias devem ser equacionadas que permitam o “menos”; o “comando” do princípio é claro: em caso de dúvida o julgador deve absolver, logo por exclusão de partes deve aplicar o menos ou mínimo. 10º - Mas, também em caso de dúvida, sobre as circunstâncias, o julgador deve aplicar o menos. Por isso não tem o TRC fundamentos plausíveis para agravar a pena do arguido. 11º - Por todo o exposto, o douto Acórdão (como também já pecava o douto acórdão proferido em primeira instancia) do TRC peca por excesso de dolo aplicado ao arguido não equacionando a manifesta provocação da vítima ao arguido nem a confissão parcial. 12º - Factos, dados por provados, que em conjugação com outros elementos de prova, e regras da experiência comum, permitem concluir que existiu nítida provocação da vitima ao arguido. Ainda que não devidamente apurada em sede em audiência de julgamento. Tudo leva a crer que existiu, houve discussão verbal seguida de tiros. 13º - Ora, quem se dirige…para algum lado… das duas uma? (Neste caso a vitima dirigiu-se ao arguido): -ou vai com Deus (como diria o poeta e canta Roberta Miranda) e pacificamente? - ou “vai á má fila”, como se dirá na gíria popular com “ar” intimidatório? Foi a vítima que se dirigiu ao arguido… 14º - No caso concreto, tudo leva a crer, atenta a experiência comum, que a vítima se terá dirigido ao arguido um pouco à laia de: “à má fila”, com uma postura intimidatória, ameaçadora e em tom de voz agressiva, com sentimentos de eventual ciúme a toldarem-lhe as emoções. 15º - Apenas essa conduta intimidatória da vítima poderá explicar a “brutal” reacção do arguido (franzino e magrinho) perante e com excesso de medo. Lembrando que a vítima era segurança de casas nocturnas, e exibia fisicamente dotes culturistas, não obstante ser uma pessoa muito querida, conhecida e respeitada publicamente em .... 16º - Afinal, a caminho da Nazaré - terra do MC Nammara - o arguido até estava na “dele” bebendo uma cervejinha. e observando com ar de “gingão.” a EE namorada da vitima. “O arguido fixou o olhar na direcção da EE – que estava na companhia do FF e que se encontravam à entrada do café Mineira.” (factos provados… 7) “Então o arguido colocou-se junto à porta do condutor e com esta porta aberta, colocou uma cerveja que trazia consigo em cima do tejadilho, ficando voltado na direcção da porta do café ...”. (factos provados 6) 17º - A não consideração da confissão integral e sem reservas e o medo manifestado pelo arguido face à nítida provocação da vítima, no decorrer de uma “brava” que afasta a qualificação dos factos por motivo fútil, leva-nos a concluir que existe em nítido excesso de dolo aplicado aos factos cometidos pelo arguido que ora invoca. 18º - Claramente o tribunal ad quo, é o mais bem preparado para aferir dos factos, porquanto lida directamente com as provas, com testemunhas e arguido. Interage activamente nos autos em virtude da imediação das provas. 19º - Ao proceder a uma qualificação dos factos por motivo fútil, dando provimento parcial ao recurso do MP, o TRC, claramente derroga ou declina na obediência a que estão sujeitos todos os tribunais – a observar o Principio do Contraditório (art. 3 do CPC) pedra basilar do direito processual. Portanto podemos dizer, que não foi dado em sede de audiência de julgamento no tribunal ad quo oportunidade ao arguido de se defender dos factos integradores do motivo fútil. 20º - Nos parece ainda, que face ao douto acórdão do TRC, existe uma derrogação do artigo 40 do CPP, e princípios ai consagrados, nomeadamente a possibilidade de ressocialização do arguido. Nos parece que seja licito ao arguido contar com a pena a que foi condenado ainda que se entenda excessiva – mas com ela já contou ou formou o seu juízo, pelo que a agravação da pena nos parece que é proibida atento o comando do artigo 409 do CPP. Não pode haver uma reforma para mais, no sentido de agravamento das penas parciais e única, o que fundamente no facto de que o arguido não é em momento algum pronunciado por factos integradores de motivo fútil pelo que, sempre será beneficiado pelo comando do artigo, ainda que esse ilustre tribunal entenda (o que ainda assim não se admite) manter integralmente o douto acórdão proferido em primeira instância. Entende o recorrente que deve ser dado provimento ao presente recurso, revogando-se o douto acórdão proferido pelo TRC; e ainda assim porque existe uma aplicação excessiva de dolo - aplicada ao arguido- revogando-se o douto Acórdão proferido pelo tribunal ad quo e pelo TRC. Pelo exposto, existe uma nítida violação das normas p.p. e consagradas nos artigos: 40 ,132 nº 1 e 2 ali. e), do CP; 409; 3 do CPC, e art. 13 e 209 e seg. da CRP. Em suma foram violadas as normas consagradas como o princípio da igualdade e tratamento consagrado no artº 13 da CRP que invoca; e violação do principio do in dubio pro reo e legalidade nomeadamente artigos: -40, 71, 72, 73 nºs 1,2 b) c) 74, 75,77, 48 nº 2, 131, 132 nº 1 e 2 ali. e), 143 do CP agravado pelo nº 3 do artº 86 do RJAM, 143 do CP agravado pelo nº 3 do artº 86 nº 3,4,5 do RJAM, artº 86 nº 1 ali. c) por referência ao artº 3 nº 4 ali. a) da Lei 5/2006 de 23.2 na redacção da lei 50/2013, todos do Código Penal; - 379 al) c), 118, 127, 377, todos do Código Processo Penal;- 483, 563, 496, 342, 494 Código Civil; - 3º do Código de Processo Civil;- 13º da Constituição da R.P. Considerandos, bastantes, que podem, permitir a V. Exªs., reduzir significativamente as penas parcelares e pena única aplicada ao arguido - ao mínimo, porquanto a isso impõe o disposto no artigo 40 do CP; contudo caso assim não se entenda, o agravamento da pena única em seis meses acha-se excessivamente dolosa (como já se achava em sede de primeira instância) porquanto decidida por um tribunal que não vivenciou directamente as provas. Errare humanum est.» 4. Por despacho 23.03.2017 (cf. fls. 1781), foi admitido o recurso interposto. 5. O Senhor Procurador Geral Adjunto no Tribunal da Relação de Coimbra respondeu concluindo: «1 — A decisão recorrida procedeu correctamente ao não considerar a confissão e a provocação, já que aquela é irrelevante e foi parcial e esta ocorreu antes por parte do recorrente; 2 — Quer o constante da acusação, quer os factos provados não possibilitem a qualificação do homicídio em termos de motivo fútil, já que existe um motivo que até socialmente, infelizmente, é considerado, tratando-se de uma bravata com laivos de marialvismo; 3 — Deverá assim manter-se a pena da primeira instância no que respeita ao crime de homicídio, sendo o recorrente condenado em cúmulo na pena de 19 anos de prisão.” 6. Subidos os autos ao Supremo Tribunal de Justiça, no uso da faculdade concedida pelo art. 416.º, n.º 1, do CPP, a Senhora Procuradora-Geral Adjunta no Supremo Tribunal de Justiça apresentou parecer considerando que a decisão recorrida se deve manter, porquanto - “não se surpreendem quaisquer dos vícios previstos no art. 410.º, n.ºs 2 e 3 do CPP, pelo que a matéria de facto está definitivamente fixada” (cf. fls. 1804), - não ocorreu qualquer violação do princípio in dubio pro reo, pois “a Relação não deu mostras de ter ficado com dúvidas sobre o modo como teriam ocorrido os factos que o tribunal colectivo deu como provados” (cf. fls. 1805), - não houve qualquer violação do princípio da reformatio in pejus, uma vez que o ”MP interpôs recurso da decisão da 1.ª instância pedindo essa [a de homicídio qualificado por motivo fútil] requalificação jurídico-penal do crime de homicídio e o agravamento da pena de prisão aplicada, e que o arguido respondeu, exercendo em pleno o direito do contraditório” e “só depois o Tribunal da relação de Coimbra decidiu” (cf. fls. 1806), - e “não se provou a “confissão integral e sem reservas”, “o medo manifestado pelo arguido”, nem a “provocação da vítima”” (cf. fls. 1806), pelo que “Muito bem andou o Acórdão ao dar como provado o motivo fútil do arguido, condenando-o pelo crime de homicídio qualificado p. e p. pelo art. 132.º, n.º 1 e 2, al. ce), com referência ao art. 131.º, ambos, do CP” (cf. fls. 1808), - e não merecendo censura a medida das penas parcelares e da pena única aplicadas uma vez que “satisfaz[em], na justa medida, as exigências de prevenção geral e da prevenção especial” (cf. fls. 1808-9), concluindo “no sentido do improvimento total do recurso interposto pelo arguido GG”. 7. Notificados os sujeitos processuais ao abrigo do disposto no art. 417.º, n.º 2, do CPP, não houve qualquer resposta. 8. Colhidos os vistos em simultâneo, e não tendo sido requerida a audiência de discussão e julgamento, o processo foi presente à conferência para decisão.
II Fundamentação A. Matéria de facto 1.1. Matéria de facto dada como provada no acórdão recorrido: «1) - No dia 30 de Agosto de 2015, AA, deslocou-se ao Café da ..., sito a Rua ..., conduzindo o veículo de matrícula ... acompanhado por HH, II e JJ. 2) - Foram com intenção de aí deixarem o HH e comprar cigarros. 3) - O arguido ia munido de uma arma de fogo 6,35mm, que escondeu no cós das calças que vestia. 4)- Aí chegado cerca das 22H00 o arguido entrou com o veículo que conduzia no espaço livre existente em frente ao café, fez inversão de marcha na parte posterior desse espaço e veio colocar-se junto à saída, com o veiculo voltado para a via pública. 5) - O HH e o JJ, ocupantes do veículo, saíram deste para o interior do café e o II ficou no interior do veículo. 6) - Então o arguido saiu do veículo, colocou-se junto à porta do condutor e com esta porta aberta, colocou uma cerveja que trazia consigo em cima do tejadilho, ficando voltado na direcção da porta do café .... 7) - O arguido fixou o seu olhar na direcção EE que estava na companhia do FF e que se encontravam à entrada do café .... 8) - O FF perguntou “porque olhava para ele “, dirige-se na direcção do AA, passando pela frente do veículo deste e disse ao arguido “precisas de alguma coisa?” 9) - O AA responde que ‘não” e o FF dirige-se para o local de onde saíra. 10) - O arguido AA deixou de olhar para o FF e disse; “e se eu quisesse alguma coisa, ó filho da puta?” 11) - “Como!” responde o FF que se volta para o AA. 12) - E nesta altura o arguido toma a decisão de matar o FF. 13) - Levanta a camisa que trazia vestida e da cintura retira uma arma que trazia consigo, aponta-a na direcção do FF e diz “e se eu te mostrar isto!” ao mesmo tempo que a curta distância dispara três tiros na direcção do FF que tomba no chão. 14) - Já com o FF a tombar o arguido dispara mais dois tiros no corpo do FF. 15) - O arguido atingiu o corpo do FF por cinco vezes. - um projéctil entrou na região pré-auricular direita, prosseguindo através da glândula parotidea que atravessa, passando posteriormente por entre o ângulo da mandibula e o processo mastóide, ficando alojado no seio da musculatura do terço superior da face postero-lateral do pescoço, sendo o seu trajecto de cima para baixo, da frente para trás e da direita para a esquerda; - outro projéctil entrou na região supraclavicular direita, atravessa os tecidos moles da região supraclovicular, em sentido postero medial, posteriormente ao músculo esternocleidomastoideu, ficando alojado no seio da musculatura do terço superior da face posterior do hemitórax direito, sendo o seu trajecto de cima para baixo, da frente para trás e da direita para a esquerda - outro projéctil entrou no terço superior da face posterior do braço esquerdo, prosseguindo trajecto através dos tecidos moles da região axilar; perfurando a parede torácica ao nível do músculo intercostal entre as 3ª e 4ª costelas, atravessando o pulmão esquerdo e o coração, encontrando-se livre no saco pericárdico, sendo o seu trajecto de cima para baixo, de trás para a frente e da direita para a esquerda; - outro projéctil entrou na região escapular esquerda, perfurando a parede torácica ao nível da 4ª costela, atravessando o pulmão esquerdo e o coração, encontrando-se livre na cavidade pleural direita, tendo sido recuperado entre a base do pulmão e o diafragma, sendo o seu trajecto de cima para baixo, de trás para a frente e da esquerda para a direita - outro projéctil entrou no flanco direito, prosseguindo o seu trajecto em sentido postero inferior, com fractura do rebordo superior da crista ilíaca, encontrando-se alojado no seio da musculatura glútea homolateral, próxima da inserção superior da crista ilíaca, sendo o seu trajecto de cima para baixo, da frente para trás e da direita para a esquerda. tendo as lesões traumáticas torácicas sido causa directa e necessária da morte verificada pelas 22H25 desse dia. - cf relatório de autópsia de fls 148 e ss. 16) - Após os disparos, LL tentou impedir a fuga do GG agarrando-o, sendo que aquele lhe desferiu uma pancada na cabeça, com a coronha da arma, assim logrando libertar-se e pôr-se em fuga no veículo de matricula .... 17) - Com esta pancada o arguido causou dor e mau estar físico, ao LL e provocou ferida incisa contuso a nível parietal e frontal, com necessidade de sutura, que foram causa directa e necessária de 8 dias de doença, sem afectação da capacidade de trabalho. - cf relatório pericial de fls 493 e ss. 18) - Ao disparar contra o corpo de FF, o arguido agiu de forma livre, consciente e deliberada, com intenção alcançada de lhe tirar a vida. 19) - Ao desferir uma pancada na cabeça de LL, o arguido pretendeu atingir o corpo e saúde daquele, o que conseguiu. 20) - O arguido sabia que não lhe era permitido deter a arma 6,35 com a qual tirou a vida a FF. 21) - CC nascido no dia ... é filho de FF e de BB. – cf doc 683. 22) - À data da sua morte, o FF não vivia na companhia da BB. 23) - O falecido FF tinha uma boa relação com o filho. 24) - Visitava-o semanalmente. 25) - Voluntariamente contribuía com 150€ mensais a título de alimentos para o menor. 26) - A vítima FF nasceu no dia ... e era filho de MM e DD.- cf fls 148. 27) - A demandante civil DD é uma pessoa com vários problemas de saúde. 28) - Em 1999 foi operada a carcinoma do pulmão. 29) - Há 30 anos que sofre de tuberculose pulmonar. 30) - Em 2007 foi operada a hérnia inguinal. 31) - Em 2014 foi operada à coluna por patologia osteodegenerativa. 32) - Em Fevereiro de 2014 foi re-operada ao pulmão, estando neste momento em seguimento em consulta de oncologia no Hospital de... 33) - Para a conta n° ... sediada na CGD foram feitas entre outros as seguintes transferências: - em 6.5.2014 transferiu 35,00€; - em 28.5.2014 transferiu 30,00€; - em 22.6.2014 transferiu 35,00€; - em 18.7.2014 transferiu 50,00€; - em 3.12.2014 transferiu 40,00€; - em 26.2.2015 transferiu 40,00€,’ - em 23.4.2015 transferiu 40,00€; - em 3.7.2015 transferiu 50.00€; - em 30,8.2015 transferiu 25,00€, desconhecendo-se a origem e causa destas transferências. – cf fls 713. 34) - A vítima era muito amiga de sua mãe. 35) - Visitava-a regularmente. 36) - A demandante civil DD sentiu muito a morte de seu filho. 36) - A ausência de seu filho, é lembrada constantemente e é motivo de imensa dor e saudade. 38) - O arguido já foi condenado no âmbito do PCS n°121/13.OJALRA por factos integradores do crime de tráfico de quantidades diminutas e de menor gravidade, factos ocorridos em 4.9.2012 tendo sido condenado na pena de 18 meses de prisão, pena suspensa por igual período de empo. – cf RC de fis 873. 39) - Do relatório social extrai-se que: - cf fls 955 i - GG é natural de.... O seu processo de crescimento desenvolveu-se no país de origem com os pais e dois irmãos mais velhos. O pai trabalhava numa empresa farmacêutica e a mãe num colégio como cozinheira e mais tarde como funcionária pública. ii) - O agregado vivia uma situação económica remediada, conseguindo fazer face às principais despesas. Quando o arguido tinha 12 anos ocorre o divórcio dos pais mantendo-se o casal, contudo, a viver na mesma habitação durante um ano imigrando depois para Portugal. iii) - Deu entrada na escola em idade regulamentar tendo concluído apenas o 6° ano de escolaridade. Frequentou, ainda, o 7° ano, tendo abandonado os estudos cerca dos 16 anos após duas reprovações nesse ano. Ainda durante o seu percurso escolar, aos 14 anos, deu início ao seu percurso laboral trabalhando durante as férias como empregado de mesa no restaurante de um amigo da família. iv) - Aos 16 anos veio para Portugal pela primeira vez, para junto da mãe, que tinha fixado residência na zona de .... A pedido da mãe regressa ao Brasil para concluir os estudos. Começou a trabalhar primeiro com o pai e depois como empregado de mesa num restaurante e numa pizaria. v) - Aos 21 anos emigra definitivamente para Portugal e colabora com a mãe que se havia estabelecido com um estabelecimento de diversão nocturna. vi) - Refere ter os tendões do braço direito inactivos por ter sido baleado no Brasil, tendo sido já sujeito a uma intervenção cirúrgica, perspectivando nova intervenção. vii) - Tem consumos regulares de canábis bem como consumos abusivos de álcool em situações de convívio social. viii) - No período prévio à reclusão residia com a mãe em .... Mantém com esta uma relação de grande proximidade afectiva. No Brasil mantém-se o pai e os dois irmãos mais velhos, com os quais não mantém praticamente contacto. ix) - Tem um filho com 3 anos de idade fruto do relacionamento com uma cidadã de nacionalidade brasileira, com os quais não mantém qualquer contacto. x) - Encontrava-se a trabalhar no estabelecimento de diversão noturna do qual a mãe era proprietária colaborando em tarefas de gestão descrevendo a situação económica do agregado como estável. xi) - O arguido encontra-se em situação de permanência ilegal no país e tem pendente contra si um mandado de detenção internacional e pedido de extradição por se ter eximido ao cumprimento de pena de prisão em que foi condenado no seu país de origem. xii) - Os factos narrados nestes autos foram causa de grande alarme social, tendo a progenitora fechado o estabelecimento de diversão nocturna do qual era proprietária e visto sua habitação danificada. A progenitora trabalha agora num outro estabelecimento de diversão nocturna, por conta de outrem, e reside actualmente na Rua ... xiii) - O arguido percepciona os factos inscritos como crime demonstrando, no entanto pouca ressonância emocional face aos mesmos, contextualizando-os no âmbito de uma situação de conflito, do qual ele também teria sido alegadamente vítima. xiv) - O arguido é visitado no Estabelecimento Prisional pela mãe, padrasto, namorada e amiga. A mãe pretende continuar a apoiar incondicionalmente o arguido após a sua restituição à liberdade. xv) - Em termos disciplinares regista uma repreensão escrita por apreensão de objectos/valores proibidos (cartão vending). Revela uma postura adequada embora reservada, com boa capacidade de integração e adaptação. Não se encontra integrado em qualquer grupo laboral neste estabelecimento. Apesar de ter manifestado vontade em dar continuidade ao seu percurso escolar neste estabelecimento, mas o facto de não ter documentação válida, inviabilizou a sua pretensão.» 1.2. Matéria de facto não provada: «não se provou que quando o arguido mais o II, JJ e HH saíram do café ... na direcção do café ..., fosse com intenção de se encontrar com o FF e o matar; antes o que se provou é que a intenção do arguido, do II e do JJ era irem para a Nazaré foram ao café ... levar o HH e comprar tabaco.»
B. Matéria de direito 1.1. O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões do recorrente aquando da interposição do recurso, nos termos do art. 412.º, n.º 1, do CPP, sem prejuízo do conhecimento oficioso de nulidades (nos termos do art. 379.º, n.º 2, do CPP, e quando seja admissível o recurso; caso este não seja admissível devem ser arguidas no tribunal que proferiu a sentença nos termos gerais do art. 120.º, n.º 1, do CPP, e o prazo geral do art. 105.º, n.º 1, do CPP) e dos vícios do art. 410.º, n.º 2, do CPP (também aqui apenas no caso de o recurso da decisão ser admissível). Tendo em conta as conclusões apresentadas, são as seguintes as questões apresentadas pelo recorrente: - nulidade por omissão de pronúncia quanto à confissão do arguido e quanto ao medo que o arguido sofreu e quanto à “nítida provocação da vítima”; - não preenchimento da qualificativa do homicídio “motivo fútil”, pelo que deve ser revogada a decisão e substituída por uma outra que retire a qualificação do homicídio; e porque esta qualificação foi consequência de uma outra interpretação da matéria de facto, sem que houvesse a produção de prova no Tribunal da Relação entende que foi, igualmente, violado o princípio da imediação; - violação do princípio in dubio pro reo; - violação do princípio da proibição da reformatio in pejus e do princípio do contraditório (por o Tribunal da Relação ter condenado o arguido em homicídio qualificado após recurso interposto); - as penas aplicadas são excessivas, nomeadamente, porque o tribunal avaliou os factos imputando um “excesso de dolo” ao arguido; além disto, entende que houve violação do princípio da suficiência porque a pena não é adequada às exigências de prevenção especial de socialização do arguido. 1.2. O arguido foi condenado em 1.ª instância pelo crime de homicídio simples, pelo crime de violação da integridade física agravado, e pelo crime de detenção de arma proibida. Relativamente a este crime foi condenado na pena de prisão de 2 anos e 6 meses, pena que foi confirmada em sede de recurso para o Tribunal da Relação de Coimbra. Ora, quanto a este último crime, o arguido não recorreu dele para este Supremo Tribunal de Justiça, dado que se trata de matéria irrecorrível, nos termos do art. 400.º, n.º 1, al. f), do CPP, e por isso dele não vamos tomar conhecimento. O arguido também não recorreu da condenação pelo crime de violação da integridade física simples (cuja pena foi diminuída pelo Tribunal da Relação de Coimbra dado que foi retirada a qualificação) — seguindo a jurisprudência, e porque se trata de uma dupla conforme in mellius, também aqui não seria possível o recurso. E também não houve qualquer interposição de recurso quanto à matéria civil. Assim sendo, apenas ficam para análise as questões colocadas (todas elas) relativas ao crime de homicídio qualificado e à pena única. 2.1. O recorrente começou por salientar que o Tribunal da Relação de Coimbra nada referiu quanto ao medo que o arguido terá sentido depois de a vítima se lhe ter dirigido perguntando porque olhava para si e se precisava de alguma coisa. Cumpre desde já salientar, e tendo em conta a matéria de facto provada (e que está fixada não sendo admissível recurso para este Supremo Tribunal de Justiça, para a qual não tem poderes de cognição, nos termos do art. 434.º, do CPP), e porque não se vislumbra a partir do texto da decisão recorrida nenhum dos vícios elencados no art. 410.º, n.º 2, do CPP, que a vítima apenas se dirige ao arguido depois de este, após estacionar o seu veículo, ter saído do veículo, ter-se colocado junto à porta aberta do condutor, em pé, e com uma cerveja colocada em cima do tejadilho e ter ficado voltado na direção da porta do café (cf. facto provado 6), e ter fixado o seu olhar na direção de EE, companheira de FF, o ofendido e vítima do crime de homicídio (cf. facto provado 7). Quanto ao facto de o arguido ter medo do ofendido nada ficou provado. Além de que este constituiu um argumento, igualmente apresentado aquando da interposição do recurso para o Tribunal da Relação de Coimbra, onde o recorrente terá também alegado que disparou com medo. E quanto a isto o Tribunal da Relação de Coimbra afirmou expressamente não só que “[f]oi o arguido que ostensivamente desafiou a vítima” (cf. fls. 1642), como ainda “acresce dizer que o arguido se serve do argumento de que já levou um tiro e que por isso respondeu com medo, o que não faz qualquer sentido porque foi ele que procurou a situação e não a vítima” (idem). E, porque relevante, o acórdão da Relação de Coimbra ainda referiu que: “Uma situação é tão clara, como tão drástica como as coisas ocorreram, sem qualquer justificação e estando identificado nos autos como cidadão brasileiro, "nascido no dia ... em ...Brasil", não faz sentido fazer quaisquer considerações sobre a sua nacionalidade e a nacionalidade da vítima enquanto africano ou sobre o problema de aculturação, dizendo que o acórdão abstrai-se da forma como cada cultura encara o ímpeto sexual. E se se abstraiu ainda bem. Só teria que tomar em consideração, com relevância para a decisão, a origem do arguido enquanto brasileiro e a vítima enquanto africano, bem como a aculturação, se tais questões fossem objecto dos autos em concreto, enquanto motivação do crime. Todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei, não podendo ser beneficiados ou prejudicados, designadamente em razão da raça, nacionalidade ou território de origem, nos termos do art. 13.°, da CRP. Nada nos autos nos diz que o crime teve qualquer relação com a nacionalidade do arguido ou que nos leva a concluir que o tribunal a quo tinha qualquer motivo para ponderar essa circunstância, nem estava em discussão qualquer problema de aculturação ou de ímpeto sexual, como se alude na conclusão 28, sendo que o arguido estava e diz-se inserido na sociedade e no meio social em que vivia, falando designadamente a mesma língua. Não eram factos que fizessem parte do elenco dos essenciais da acusação e da defesa e dos que resultaram da discussão da causa, relevantes para a culpabilidade do arguido, nos termos do art. 368.°, n.° 2, do CPP. Por isso, o tribunal não tinha o dever de se pronunciar sobre o "ímpeto sexual" do arguido por ser cidadão brasileiro ou sobre qualquer problema de "aculturação", pois tais questões são irrelevantes no contexto do crime em apreço e não foram postas em causa ou suscitadas como motivação da conduta do arguido, pois ele foi o provocador da situação e o único actor, que, sem justificação no momento decidiu tirar a vida ao FF .” (fls. 1642-3). Não existe, pois, qualquer omissão quanto a este ponto. E o mesmo se deve concluir relativamente à confissão a que o recorrente se refere. Na verdade, o recorrente apenas confessou parcialmente, afirmando que apenas se lembra do primeiro tiro. E por isto o Tribunal da Relação de Coimbra considerou que “o tribunal não valorou e não tinha que valorar a confissão porque ela não existiu no sentido de admitir integralmente e sem reservas os factos e não revelou arrependimento e a existir ainda que parcialmente é absolutamente irrelevante no sentido de tirar dela qualquer benefício, para efeitos do art. 368.º, n.º 2, do CPP” (cf. fls. 1642). Resta salientar que não foi dado como provada qualquer confissão do arguido, consideranod-se, no entanto, provado que o “arguido percepciona os factos inscritos como crime demonstrando, no entanto, pouca ressonância emocional face aos mesmos, contextualizando-os no âmbito de uma situação de conflito, do qual ele também teria sido alegadamente vítima.” [facto provado 39) xiii)]. Improcede, pois, nesta parte, o recurso interposto por não ocorrência de qualquer omissão de pronúncia. 2.2. Constituindo o princípio in dubio pro reo um princípio em matéria de prova, a análise da sua violação (ou não) constitui matéria de direito (assim, Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, lições coligidas por Maria João Antunes, 1988-9, nm. 235), ou questão de direito enquanto juízo de valor ou acto de avaliação da violação (ou não) daquele princípio (Figueiredo Dias, Crime Preterintencional, causalidade adequada e questão-de-facto, RDES, ano XVII (1970), p. 34 da separata), portanto no âmbito de competência deste tribunal. E assim tem sido entendido por este tribunal: - “O princípio in dubio pro reo, que nada tem a ver com as dúvidas suscitadas ao nível da interpretação das leis, é um princípio geral de direito processual penal, corolário do princípio da presunção da inocência do arguido, com tradução no n.º 2 do art. 32.º da CRP, constituindo a sua violação uma questão de direito, muito embora se assuma como princípio de prova, conformando um daqueles princípios passível de revista.” [ac. de 22-01-2013, Proc. n.º 184/11.2GCMTJ.L1.S1 - 3.ª Secção, Armindo Monteiro (relator)]; - “O princípio in dubio pro reo é princípio geral do processo penal decorrente do princípio da presunção da inocência do arguido. Como tal, assume a natureza de uma questão de direito de que o STJ deve conhecer quando da globalidade do próprio texto da decisão resultar que o tribunal, apesar da hesitação sobre a prova de determinado facto, decidiu em sentido desfavorável ao arguido.” [ac. de 06-02-2013, Proc. n.º 593/09.7TBBGC.P1.S1 - 3.ª Secção, Sousa Fonte (relator)]; - “O STJ só pode sindicar a aplicação do princípio in dubio pro reo quando da decisão recorrida resulta que o tribunal a quo ficou na dúvida em relação a qualquer facto e que, nesse estado de dúvida, decidiu contra o arguido.” [ac. de 29-05-2013, Proc. n.º 344/11.6JALRA.E1.S1 - 3.ª Secção, Santos Cabral (relator)]. Assim sendo, a análise da violação deste princípio constitui matéria de direito no âmbito de cognição deste tribunal. O arguido entende que houve violação do princípio in dubio pro reo por considerar que não foram todas as circunstâncias envolventes dos factos suficientemente esclarecidas de modo que, em caso de dúvida, não deveria ter sido qualificado o ilícito praticado e, portanto, não deveria ter sido imputado ao arguido a prática de um homicídio qualificado pelo “motivo fútil”. Porém, do texto da decisão recorrida não resulta qualquer dúvida sobre a qualificação do homicídio. O Tribunal da Relação de Coimbra é claro quando afirma: «Analisemos o caso em concreto. Como se depreende da matéria de facto dada como provada a situação é criada pelo arguido, que ao chegar ao café ... fixa o olhar na testemunha EE, que se encontra à entrada do estabelecimento junto da vítima FF, seu namorado. O FF importunado com o olhar fixo na sua namorada, perguntou ao arguido GG porque olhava para ele e depois foi na sua direcção, passando pela frente do veículo deste perguntando-lhe se precisava de alguma coisa. O arguido limitou-se a dizer que "não". Entretanto vira-se e regressa ao local onde se encontrava á chegada do arguido. Foi nessa altura que o arguido volta a questionar a vítima: "e se eu quisesse alguma coisa, ó filha da puta?" Perante a investida arrogante verbal do arguido, o FF não corresponde proporcionalmente à provocação despropositada e desafiadora do arguido e apenas perguntou: "Como?!" Como reacção imediata, o arguido, reagindo ao FF por o ter questionado sobre a sua sobranceria quando chegara ao café, "com ar de gingão" fixando a sua namorada e agora por o ter questionado à provocação injuriosa de quem queria arranjar sarilhos, levanta a camisa que trazia vestida e da cintura retira a arma que trazia consigo, que aponta na direcção do FF e diz: "e se eu te mostrar isto!" De seguida, sem mais, a curta distância dispara três tiros na direcção do FF que o faz tombar no chão, seguidos de mais dois tiros, enquanto tombava. A situação é clara quanto às circunstâncias em que ocorreram os factos, como resulta das descrição nos factos 6 a 14 provados. Não corresponde á realidade dos factos dizer que o malogrado FF nada fez. Por outro lado, diremos que para efeitos de motivo fútil, a ausência de motivo ou existência de motivo insignificante, diferenciam-se da falta de prova do motivo, sendo que só esta situação se traduz em beneficio do arguido, por obediência do princípio in dúbio pro reo. A comprovação de falta de motivo ou motivo insignificante é subsumível à qualificativa do art. 132.°, n.° 2, al. e), do CPP, na qual se traduz o motivo fútil. O FF foi provocado, quando o arguido olhou fixamente a sua namorada e reagiu de forma activa, pois enfrentou o arguido, rodeando o seu carro e questionando-o. Arguido e vítima dialogaram. Depois de insultado de "filho da puta", reagiu novamente, vindo ao seu encontro, questionando-o sobre a sua atitude. Perante uma situação de embaraço, criada pelo próprio arguido, sem que a vítima tenha exercido qualquer violência sobre o mesmo, sem justificação para tal, pois não estava em perigo para se socorrer da arma que trazia consigo, disparou cinco tiros no FF, um na cabeça, um no tronco e outro na barriga e quando já se encontrava prostrado no solo, de barriga para baixo, foi atingido ainda com dois tiros nas costas. Sem qualquer razão mínima que justificasse tamanha brutalidade. A conduta do arguido revela inquestionavelmente uma especial censurabilidade e perversidade, tanto na forma como matou o malogrado FF, executando-o de uma forma despropositada e repugnante, revelando um instinto de malvadez e agressividade invulgar, continuando a disparar sobre ele, mesmo já moribundo e absolutamente incapaz de oferecer qualquer resistência, decisão que tomou, apenas porque a vítima reagiu verbalmente à importunação do arguido olhar fixamente para sua namorada e ao insulto chamando-lhe "filho da puta". Para haver motivo fútil para efeitos da al. e) do n° 2, do artigo 132.°, n.° 1 e 2, al. e), do CP não basta que a reacção seja desproporcionada ao condicionalismo que a despertou, pois só o exame ponderado de todas as circunstâncias é que pode determinar se o agente actuou ou não por motivo insignificante, sem valor, a verdade é que do exame do circunstancialismo concreto em que os factos foram praticados resulta não só que o sentimento que determinou o arguido é claramente desproporcionado relativamente à gravidade do crime que cometeu, mas também que o motivo que despertou a prática do crime não é capaz de explicar ou tornar aceitável, dentro do razoável, a actuação do arguido. A conduta, os sentimentos e motivação que lhe subjazem resultam dos factos provados e revelam uma desproporção inadmissível face à gravidade do crime que foi cometido, traduzindo sentimentos de egoísmo, intolerância, prepotência, insensibilidade moral e intenso desprezo pelo valor da vida humana, tornando evidente que, em concreto, o arguido agiu por motivo fútil, qualificando, por essa via o homicídio que praticou. Em conclusão, motivo fútil é a falta de motivo ou motivo minimamente plausível que justifique e determine a conduta agressiva do arguido, despropositada e absolutamente desproporcionada face às circunstâncias em que reagiu para a prática do crime de homicídio, motivado apenas por altivez, egoísmo, mesquinhez e insensibilidade moral, sendo por isso particularmente reprovável e incompreensível aos olhos de qualquer cidadão comum e de média formação cultural e consequentemente com relevância penal em termos de culpabilidade. A conduta do arguido revela inquestionavelmente uma especial censurabilidade e perversidade, tanto na forma como matou o malogrado FF, executando-o de uma forma despropositada e repugnante, revelando um instinto de malvadez e agressividade invulgar, continuando a disparar sobre ele, mesmo já moribundo e absolutamente incapaz de oferecer qualquer resistência, decisão que tomou, apenas porque a vítima reagiu verbalmente à importunação do arguido olhar fixamente para sua namorada e ao insulto chamando-lhe "filho da puta". A conduta do arguido ao matar o FF , integra a qualificativa de motivo fútil e a agravante com arma de fogo (esta não questionada directamente no âmbito do recurso). Nesta conformidade constituiu-se o arguido como autor material de um crime de homicídio Qualificado agravado, p. e p. pelos art. 131.° e 132.°, n.° 1 e 2, al. e), do CP e art. 86.°, n.° 3,4 e 5, do RJAM.” (cf. fls. 1660-3) Concluímos, pois, que não existiu qualquer dúvida na qualificação dos factos praticados pelo recorrente, pelo que do texto da decisão recorrida não resulta qualquer violação do princípio in dubio pro reo, improcedendo igualmente nesta parte o recurso interposto. 2.3. O recorrente vem ainda alegar a violação do princípio da proibição da reformatio in pejus e do princípio do contraditório na parte em que o Tribunal da Relação de Coimbra, no acórdão recorrido, acaba por alterar a qualificação jurídica dos factos, convertendo a condenação de um crime de homicídio simples, para um crime de homicídio qualificado. Entende ainda que esta alteração se baseou apenas numa diversa interpretação da matéria de facto provada em 1.ª instância, sem que se tivesse realizado prova adicional, pelo que aquela outra interpretação sem nova produção de prova constitui uma violação do princípio da imediação. Comecemos por salientar que o acórdão recorrido resulta da interposição de dois recursos — um apresentado pelo agora recorrido, e outro apresentado pelo Ministério Público, junto do Tribunal da Comarca de Leiria, que entre outros pontos alegava: «I° Vem o presente recurso interposto pelo Ministério Público do douto Acórdão de fls. 1110 a 1161, na parte em que julgando parcialmente provada a acusação apenas condenou o arguido AA pela prática de 1 (um) crime de homicídio, agravado pelo uso da arma, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos 131°, do Código Penal e 86°, nºs. 3 e 4, da Lei n.° 5/2006, de 23 de Fevereiro, na redacção dada pelas Leis n's. 17/2009, de 6 de Maio, 12/2011, de 27 de Abril e 50/2013, de 24 de Julho, na pena parcelar de 18 (dezoito) anos de prisão. (...) 3°.7 -- No caso em apreço, o comportamento a atitude e o diálogo, descritos nos factos provados, que a vítima FF teve com o arguido GG enquanto causa próxima do homicídio --- e não houve motivo --- não comporta virtualidade para desencadear um estado de afecto esténico, uma emoção de tal ordem que desculpabilize que se retire a vida de outrem "só porque, a vítima perguntou ao arguido "porque olhava para ele"? "precisas de alguma coisa?" e Como?", neste último caso, depois de ter sido apelidado de 'filha da puta". 3°.8 -- Os sentimentos que levaram o arguido à prática do crime são de todo desproporcionados e injustos, e a sua reacção não se compreende!!! 3`1.9 -- A conduta, os sentimentos e motivação que lhe subjazem e resulta dos factos provados e revelam uma desproporção inadmissível face à gravidade do crime que foi cometido, traduzindo sentimentos de egoísmo, intolerância, prepotência, insensibilidade moral e intenso desprezo pelo valor da vida humana, tornando evidente que, em concreto, o arguido agiu por motivo fútil, qualificando, por essa via o homicídio que praticou. 3°.10 -- E também se dirá que, se a motivação apurada é, pelas razões expostas, reveladora da qualificativa "motivo fútil", recaindo sobre a actuação do arguido especial censurabilidade, o certo é que também resultou provado que a vítima já havia voltado costas ao arguido, quando foi provocada por este --que a chamou de "filha da puta" --- assim conseguindo obter de novo a sua atenção, para, de imediato, tê-la de frente virada para si, a curta distância, para o atingir com três tiros na parte da frente do corpo e com outros dois tiros nas costas, quando já estava no solo, o que torna ainda mais censurável o crime. 3º11 -- Também "não houve demonstração de quaisquer contra-indícios que fizessem inflectir o juízo agravativo, sendo certo a tal não se reconduzem circunstâncias generalizantes, não demonstradas em concreto, como sejam "o bom comportamento anterior, a confissão, o arrependimento, a disposição de ressarcir o dano, etc." 3°.12 -- Ao ter-se decidido de modo diverso do ora sustentado, violou-se no douto Acórdão a quo o disposto nos artigos 1310 e 132°, nºs. 1 e 2, al. e), ambos do Código Penal, razão pela qual deverá ser substituído por outro que condene o arguido AA pela prática de 1 (um) crime de homicídio qualificado, p. e p. pelos artigos 131°, n° 1 e 132°, n° 2, a. e), ambos do Código Penal, agravado pelo uso da arma, nos termos do disposto no artigo 86°, nºs. 3 e 4, da Lei n° 5/2006, de 23 de Fevereiro, na redacção dada pelas Leis nºs. 17/2009, de 6 de Maio, 12/2011, de 27 de Abril e 50/2013, de 24 de Julho.» O princípio da reformatio in pejus, consagrado no art. 409.º, n.º 1, do CPP, significa que o tribunal ad quem não pode agravar a espécie e a medida da pena quando o recurso é interposto pela defesa ou pelo Ministério Público no exclusivo interesse do arguido — é isto que expressamente o dispositivo legal citado refere: “Interposto recurso de decisão final somente pelo arguido, pelo Ministério Público, no exclusivo interesse daquele, ou pelo arguido e pelo Ministério Público no exclusivo interesse do primeiro, o tribunal superior não pode modificar, na sua espécie ou medida, as sanções constantes da decisão recorrida, em prejuízo de qualquer dos arguidos, ainda que não recorrentes.” (itálicos nossos) E percebe-se a razão de ser desta exigência. Na verdade, se após recurso interposto pelo arguido, ou pelo Ministério Público, no interesse daquele, houvesse possibilidade de agravar a condenação do arguido, teríamos encontrado aqui, de forma indireta, uma clara limitação à interposição do recurso pelo arguido, em clara violação do direito fundamental ao recurso, consagrado no art. 32.º, n.º 1, da CRP (em sentido idêntico, Maria João Antunes, Direito Processual Penal, Coimbra: Almedina, 2016, p. 201-2). Ora, nos presentes autos não ocorreu nenhuma das situações previstas no art. 409.º, n.º 1, do CPP. Se, por um lado, o arguido recorreu no seu interesse, por outro lado, foi interposto um recurso pelo Ministério Público alegando a punição do arguido pelo crime de homicídio qualificado e, portanto, sem que se possa dizer que o recurso interposto pelo Ministério Público tenha sido no exclusivo interesse do arguido. Assim sendo, consideramos que não houve qualquer violação do princípio da proibição da reformatio in pejus pelo Tribunal da Relação de Coimbra, improcedendo igualmente nesta parte o recurso interposto. Porém, o arguido considera ainda que foi violado o princípio do contraditório. Também aqui não tem razão, uma vez que o recurso interposto pelo Ministério Público e onde era alegado que o arguido devia ser punido pelo crime de homicídio qualificado foi notificado ao arguido, exatamente para que pudesse exercer esse contraditório relativamente àquelas alegações. 2.4. Insurge-se ainda o recorrente contra a qualificação do homicídio por “motivo fútil”, considerando que se devia ter mantido a qualificação de homicídio simples, tal como foi decidido pelo Tribunal da Comarca de Leiria. O Tribunal da Relação de Coimbra considerou existir motivo fútil por, em suma (e tendo em conta o anteriormente já transcrito no ponto prévio), considerar que não estamos perante um caso de falta de prova quanto ao motivo — caso em que em obediência ao princípio in dubio pro reo é que se justificaria não qualificar o homicídio —, mas perante uma situação em que o arguido matou o ofendido por ausência de motivo ou existência de um motivo insignificante, e considerando que o arguido atuou “sem qualquer razão mínima que justificasse tamanha brutalidade” (cf. fls. 1661); considera, por isto, que a conduta do arguido revela especial censurabilidade e perversidade, tendo os factos sido executados “de forma despropositada e repugnante” (idem) e “por altivez, egoísmo, mesquinhez e insensibilidade moral” (cf. fls. 1662). Ora, também aqui consideramos que o acórdão recorrido bem decidiu. Na verdade, a qualificação do homicídio decorre de uma culpa mais grave do agente por revelar especial censurabilidade ou perversidade tendo em conta as circunstâncias em que a morte seja produzida (cf. art. 132.º, n.º 1, do CP). Ora, as circunstâncias que envolvem o presente caso são reveladoras desta especial censurabilidade e perversidade. O arguido de modo frio atingiu o ofendido com diversos tiros (atingindo o corpo da vítima por cinco vezes — facto provado 15), mesmo depois de este já estar a cair (cf. facto provado 14), assim revelando uma culpa agravada. Além disto, verifica-se que a morte foi causada após uma troca breve de palavras entre o arguido e a vítima que teve o seu início porque o arguido “fixou o seu olhar na direcção de Gisela Vargas que estava na companhia de FF [a vítima]” (cf. facto provado 7). Ora, do diálogo encetado entre arguido e vítima não se vislumbra nada de relevante que nos permitisse considerar que haveria alguma razão para o atentado contra a vida que veio a ocorrer. Na verdade, motivo torpe ou fútil “significa que o motivo de actuação, avaliado segundo as concepções éticas e morais ancoradas na comunidade, deve ser considerado pesadamente repugnante, baixo ou gratuito” (Figueiredo Dias/ Nuno Brandão, art. 132/ § 25, Comentário Conimbricense do Código Penal, tomo I, 2.ª ed., Coimbra: Coimbra Editora, 2012). Ora, do simples facto de a vítima ter questionado o arguido — “Como?” (cf. facto provado 11) — quando o arguido anteriormente se lhe tinha dirigido dizendo “e se eu quisesse alguma coisa, ó filho da puta” (cf. facto provado 10) é óbvia a constatação de que o arguido atuou gratuitamente ferindo o bem jurídico básico da convivência comunitária; tratou-se de uma reação gratuita, e completamente desproporcional. Pelo que, a imagem global do facto apresenta-nos um comportamento, uma atitude do arguido especialmente desvaliosa a revelar uma personalidade desconforme com o direito e refletida no facto praticado. Por isto, consideramos igualmente que improcede o recurso interposto pelo arguido, considerando que houve uma correta qualificação jurídica dos factos. Além disto, o recorrente considera que a qualificação do homicídio em sede de recurso pelo Tribunal da Relação de Coimbra, sem que se tivesse procedido a qualquer outra produção de prova, mas simplesmente a partir de uma outra interpretação da matéria de facto provada em 1.ª instância, constitui uma violação do princípio da imediação. Mais uma vez não tem razão o arguido. Ao alegar a violação do princípio da imediação está a pretender afirmar que este não foi cumprido aquando da produção de prova, pese embora não tenha ocorrido qualquer produção de prova ou renovação da prova em sede de recurso. Ora, quando o tribunal a quo qualifica de forma diferente os factos dados como provados, não estamos mais perante o exercício dos poderes de cognição do tribunal em matéria de facto, mas perante o exercício dos poderes de cognição em matéria de direito. O tribunal limitou-se, perante a matéria de facto provada e sedimentada, a qualificar jurídico-penalmente de forma distinta aqueles factos, sem que com isso esteja em causa qualquer princípio da imediação. Na verdade, “uma radical excepção [ao princípio da imediação] encontramo-la nós, em geral no regime dos recursos” (Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, Coimbra: Coimbra Editora, 1974, p. 234), e não estando em causa uma alteração da matéria de facto, que se deu como consolidada, e tendo‑se procedido apenas a uma diferente subsunção jurídica dos factos ao direito, entendemos não ter ocorrido qualquer violação do princípio referido. 3.1. No que diz respeito às penas aplicadas, o arguido veio alegar que são excessivas, nomeadamente, porque o tribunal avaliou os factos imputando ao arguido um “excesso de dolo”; além disto, entende que houve violação do princípio da suficiência porque a pena não é adequada às exigências de prevenção especial de socialização do arguido. Tendo em conta o exposto quanto à recorribilidade do acórdão, apenas nos podemos pronunciar sobre a pena aplicada ao crime de homicídio qualificado, que é de 19 anos de prisão, e sobre a pena única aplicada que é de 20 anos. A determinação da pena, realizada em função da culpa e das exigências da prevenção geral de integração e da prevenção especial de socialização (de harmonia com o disposto nos arts. 71.º, n.º 1 e 40.º do CP), deve, no caso concreto, corresponder às necessidades de tutela dos bens jurídicos em causa e às exigências sociais decorrentes das lesões ocorridas, sem esquecer que deve ser preservada a dignidade humana do delinquente. Para que se possa determinar o substrato da medida concreta da pena, dever‑se-ão ter em conta todas as circunstâncias que depuserem a favor ou contra o arguido, nomeadamente, os fatores de determinação da pena elencados no art. 71.º, n.º 2, do CP. Nesta valoração, o julgador não poderá utilizar as circunstâncias que já tenham sido utilizadas pelo legislador aquando da construção do tipo legal de crime, e que tenha tido em consideração na construção da moldura abstrata da pena (assegurando o cumprimento do princípio da proibição da dupla valoração). A partir dos factos provados, podemos concluir estarmos perante um caso em que a culpa do agente é elevada, e as exigências de prevenção geral e especial bastante robustas. Na verdade, para além do circunstancialismo que levou à qualificação do homicídio, não podemos deixar de salientar que o recorrente não se bastou com um tiro. Começou por disparar 3 tiros (cf. facto provado 13), para logo disparar outros 2 quando o ofendido estava a tombar (cf. facto provado 14), tendo atingido cinco vezes o ofendido (cf. facto provado 15). E tendo em conta o bem jurídico lesado e os factos (ou a quase ausência deles) que motivaram a prática do crime, impõem-se fortes exigências de prevenção geral de modo a demonstrar de forma veemente à comunidade que as normas protetoras do mais elementar e básico bem, a vida, se mantêm em vigor. Esta necessidade é tanto mais premente quanto ficou provado que “os factos narrados nestes autos foram causa de grande alarme social” (cf. facto provado 39/xii), ao ponto de ter sido danificada a habitação da progenitora do arguido, e de esta se ter visto forçada a fechar o seu estabelecimento (e onde trabalhava também o arguido, antes da prática dos factos) (idem). No que respeita às exigências de prevenção especial, também estas se consideram elevadas atentas as necessidades fortes de integração do agente na comunidade em que se encontra. Até porque, apesar de percecionar o comportamento realizado como um crime (cf. facto provado 39/xiii), demostra ainda “pouca ressonância emocional” perante os factos. A partir de tudo o exposto, e sabendo que a moldura penal oscila entre um mínimo de 12 anos e um máximo de 25 anos de prisão, considera-se que a pena a aplicar deve ficar claramente acima da metade da moldura penal. Pelo que consideramos que tendo sido o arguido condenado na pena de 19 anos de prisão esta afigura‑se uma pena adequada e não excessiva tendo em conta a culpa do agente e as fortes exigências de prevenção geral e especial. Pelo que improcede o recuso nesta parte. 3.2. Mas, o arguido foi ainda condenado numa pena única de 20 anos pelos crimes em concurso — o crime de homicídio qualificado (19 anos de prisão), o crime de violação da integridade física agravada (punido com uma pena de 1 ano) e o crime de detenção de arma proibida (punido com uma pena de 2 anos e 6 meses). A determinação da medida da pena, em sede de concurso de crimes, apresenta especificidades relativamente aos critérios gerais do art. 71.º do CP. Nos casos de concurso de crimes (ou seja, em obediência ao princípio constitucional da legalidade criminal, a pena única apenas pode ser aplicada caso estejam verificados os seus pressupostos de aplicação, isto é, caso estejamos perante uma situação de concurso efetivo de crimes), a determinação da pena única conjunta tem que obedecer (para além daqueles critérios gerais) aos critérios específicos determinados no art. 77.º do Código Penal. A partir dos critérios especificados é determinada a pena única conjunta, com base no princípio do cúmulo jurídico. Assim, após a determinação das penas parcelares que cabem a cada um dos crimes que integram o concurso, é construída a moldura do concurso, tendo como limite mínimo a pena parcelar mais alta atribuída aos crimes que integram o concurso, e o limite máximo a soma das penas, sem, todavia, exceder os 25 anos de pena de prisão (de harmonia com o disposto no art. 77.º, n.º 2, do CP). A partir desta moldura, é determinada a pena conjunta, tendo por base os critérios gerais da culpa e da prevenção (de acordo com o disposto nos arts. 71.º e 40.º do CP), ao que acresce um critério específico — na determinação da pena conjunta, e segundo o estabelecido no art. 77.º, n.º 1 do CP, "são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente". Assim, a partir dos factos praticados, deve proceder-se a uma análise da "gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique” — Figueiredo Dias, Direito Penal Português — As consequências Jurídicas do Crime, Lisboa: Aequitas/Ed. Notícias, 1993, § 421 (p. 291). Na avaliação da personalidade, ter-se-á que verificar se dos factos praticados pelo agente decorre uma certa tendência para o crime ou se estamos apenas perante uma pluriocasionalidade, sem possibilidade de recondução a uma personalidade fundamentadora de uma "carreira" criminosa. Apenas quando se possa concluir que se revela uma tendência para o crime, quando analisados globalmente os factos, é que estamos perante um caso onde se suscita a necessidade de aplicação de um efeito agravante dentro da moldura do concurso. Para além disto, e sabendo que também influem na determinação da pena conjunta as exigências de prevenção especial, dever-se-á atender ao efeito que a pena terá sobre o delinquente e em que medida irá ou não facilitar a necessária reintegração do agente na sociedade; exigências, porém, limitadas pelas imposições derivadas de finalidades de prevenção geral de integração (ou positiva). São estes os critérios legais estabelecidos para a determinação da pena e, em particular, para a determinação da pena única conjunta. Nos termos do art. 77.º, n.º 2, do CP, a pena única conjunta, a aplicar a um caso de concurso crimes, é determinada a partir de uma moldura que tem como limite mínimo “a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes”, e como limite máximo “a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes”. Pelo que as penas concretas aplicadas a cada crime constituem os elementos a partir das quais se determina aquela moldura; e não será a partir das penas únicas (que se tenham aplicado em cada um dos processos) que se constrói da moldura do concurso de crimes. Nestes termos, a moldura do concurso de crimes a partir da qual deve ser determinada a pena concreta a aplicar ao arguido tem como limite mínimo 19 anos (correspondente à pena concreta mais elevada aplicada nestes autos) e como limite máximo a soma das penas aplicadas, isto é, 22 anos e 6 meses (correspondente à soma das penas aplicadas). Tendo em conta a gravidade do ilícito global e a personalidade do arguido, cumpre analisar criticamente a pena única que lhe foi atribuída. Será no âmbito daquela moldura penal e de acordo com a personalidade do agente, procedendo a uma análise global dos factos e tendo em conta as exigências de prevenção geral e especial, que deverá ser determinada a pena única conjunta a aplicar ao recorrente AA. Ora, no caso dos presentes autos, o arguido, num curto espaço de tempo, comete dois crimes contra bens jurídicos pessoais, com gravidade, e considerando ainda hoje que parte do seu comportamento se deveu a uma provocação da vítima — o que perante os factos provados é demonstrativo de que ainda não interiorizou a gravidade do seu comportamento. Todavia, e uma vez que tudo ocorreu apenas neste momento, e apesar de no seu país de origem já ter cometido um ilícito pelo qual foi condenado em pena de prisão e por isso sobre o arguido pende um mandado de detenção internacional e um pedido de extradição, não temos elementos suficientes para que possamos concluir que estamos perante uma carreira criminosa, ou o início de uma, pelo que somos forçados a concluir apenas pela pluriocasionalidade. Além do mais, verifica-se que o agente demonstra, através do seu comportamento em meio prisional, onde tem uma “postura reservada” apesar da “boa capacidade de integração e adaptação” (cf. facto provado 39/xv), uma certa tentativa de se integrar na sociedade tendo “manifestado vontade em dar continuidade ao seu percurso escolar” no estabelecimento prisional (idem), apesar de não poder prosseguir os estudos por falta de documentação válida. Acresce ter, uma vez em liberdade, apoio incondicional da mãe (cf. facto provado 39/xiv), para além de ser visitado regularmente pela mãe, padrasto, namorada e amiga (idem), assim se revelando que uma vez em liberdade terá a sua integração na comunidade facilitada, pese embora o pedido de extradição. Apesar de tudo isto, e sabendo que a moldura penal oscila entre 19 anos de prisão e 22 anos e 6 meses de prisão, entendemos, igualmente, que, em atenção à personalidade revelada nos factos fortemente desconforme com o deve-ser jurídico-penal, como adequada a pena única que lhe foi aplicada de 20. III Conclusão Nos termos acima expostos, acordam em conferência na secção criminal do Supremo Tribunal de Justiça, em negar provimento ao recurso interposto pelo arguido AA. Nos termos do art. 513.º, n.º 1, do CPP, condena-se ao pagamento de 6 UC.
Supremo Tribunal de Justiça, 14 de setembro de 2017 Os Juízes Conselheiros,
(Helena Moniz)
(Nuno Gomes da Silva)
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