Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
5760/19.2T8LRS.L1.S1
Nº Convencional: 1ª. SECÇÃO
Relator: JORGE DIAS
Descritores: CONTRATO DE COMPRA E VENDA
CONTRATO DE PERMUTA
ROMA I
LIBERDADE CONTRATUAL
COMPENSAÇÃO DE CRÉDITOS
LEI APLICÁVEL
DECLARAÇÃO DE INSOLVÊNCIA
Data do Acordão: 05/09/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Sumário :
I - A autora e a ré, reciprocamente, compravam e vendiam fruta, valendo-se das vantagens advindas dos diferentes ciclos periódicos de plantio e colheita no Brasil e em Portugal e, os factos provados apontam no sentido de sucessivos contratos de compra e venda entre autora e ré, alternando a qualidade de compradora e vendedora.

II - O contrato de permuta, troca ou escambo (figura jurídica não contemplada na lei civil atual, mas que o princípio da liberdade contratual leva a admitir na sua plenitude) é o contrato pelo qual se dá uma coisa por outra, isto é, é o contrato pelo qual os contraentes se atribuem reciprocamente coisas presumivelmente de igual valor, adquirindo e perdendo correspetivamente a propriedade sobre elas (cfr. o art. 1592.º do CC de 1867), e nisto se consumando o contrato.

III - Resulta do art. 17.º do Regulamento Roma I que, só quando as partes não acordem no direito a compensação, a lei que regula a compensação é a lei aplicável ao crédito contra o qual se invoca a compensação.

IV - A lei que regula o crédito é a lei que regula o contrato e, sendo o contrato regulado pela lei portuguesa é também a lei portuguesa a aplicável ao direito a compensação.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça, 1ª Secção Cível.

1.POMI FRUTAS S/A., identificada nos autos, instaurou a presente ação declarativa, de condenação, sob a forma comum contra CAMPOTEC IN - CONSERVAÇÃO E TRANSFORMAÇÃO DE HORTO FRUTÍCOLAS, S.A., também identificada nos autos, pedindo ao Tribunal o seguinte:

"(...) A) Condenar a Ré no pagamento à Autora do montante a título de capital de € 390.497,50 (trezentos e noventa mil, quatrocentos e noventa e sete euros e cinquenta cêntimos). Caso o tribunal entenda aplicar a "CISG" ao mérito da presente disputa, a tal valor de capital deverá ser acrescido de juros de mora mensais contabilizados à taxa de 1% desde a data de vencimento de cada fatura até efetivo e integral pagamento e que na presente data perfazem o montante de € 76.976,78 (setenta e seis mil, novecentos e setenta e seis euros e setenta e oito cêntimos), perfazendo assim um montante global de € 467.474,28 (quatrocentos e sessenta e sete mil, quatrocentos e setenta e quatro euros e vinte e oito cêntimos) (valor da presente ação).

B) Caso o Douto tribunal entenda aplicar a lei Brasileira ao mérito da presente disputa, aos supra referidos valores deverá ainda acrescer a respetiva "correção/atualização monetária", bem como o reembolso dos honorários de advogado despendidos pela Autora, nos termos legais, afixar na sentença, o que desde já se requer.

C) Caso assim não se entenda e o Tribunal porventura entenda aplicar a lei Portuguesa, o valor supra referido a título de capital deverá nesse caso ser acrescido de juros de mora anuais contabilizados às taxas de juro comercial sucessivamente em vigor, também desde da data de vencimento de cada fatura até efetivo e integral pagamento, e que na presente data perfazem o montante de € 41.964,62 (quarenta e um mil, novecentos e sessenta e quatro euros e sessenta e dois cêntimos)."

Para fundamentar o pedido, a autora alegou que forneceu à ré fruta e que esta não pagou o respetivo preço.


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2. Citada, a ré contestou, não impugnando o fornecimento de frutas invocado pela autora, mas invocando a exceção de ilegitimidade da autora, em virtude de esta ter sido declarada insolvente e não estar representada pelo administrador, e a compensação de créditos para com esta em montante excedente ao crédito peticionado, decorrente do fornecimento de bens à autora, efetuado por ela própria e por outras empresas que cederam os créditos à ré.

Concluiu pedindo:

"(...) Ser julgada procedente a excepção de ilegitimidade da A, absolvendo-se a Ré da instância;

Ser julgada procedente a excepção da extinção da obrigação pelo cumprimento e, em consequência absolver -se a Ré da instância.

Se assim não se entender, deve ser aceite como provado o Pedido reconvencional e reconhecido o crédito da Ré sobre a Autora no montante de 405.325,45€ e, em consequência declarada judicialmente a compensação de créditos e, consequentemente, ser a presente acção julgada totalmente improcedente e não provada, absolvendo-se a Ré do pedido.

Deve a Autora ser condenada a pagar á Ré a quantia que lhe deve, de 14.827,95€

Deve a Autora ser condenada em litigância de má-fé e a indemnizar a Ré na quantia de 32.824, 65€".


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3. A autora replicou, alegando que os sócios e administradores mantêm a capacidade para agir em representação da autora, reconheceu que a ré tem crédito sobre si no montante de 268.471,40€ e impugnou os restantes créditos invocados.

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4. Em 19-05-2020 a ré deduziu articulado superveniente, no qual invocou factos de que teve conhecimento após a apresentação da contestação, nomeadamente, que a autora tinha sido declarada falida pelo Tribunal da Comarca de Fraiburgo, Brasil, em 17-02-2020 e que "foi alertada pelos seus fornecedores no Brasil que a Autora, terá, alegadamente, gizado um plano para adquirir grandes quantidades de fruta, tendo intenção de posteriormente a essas compras, interpor um processo de Recuperação/Insolvência, por forma a que, entrassem no seu património grandes quantidades de mercadoria que após a interposição do processo, não iria pagar", considerando "que a Autora não se encontra validamente representada, devido à outorga de procuração forense, por quem não tinha poderes para o fazer" e "que deve ser suspensa a instância e aguardarem os autos pelas diligências a efectuar pela Ré nos sentido de apurar a verdade e, nesse caso, interpor articulado complementar".

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5. A autora, por requerimento apresentado em juízo em 15-06-2020, pronunciou-se sobre o referido requerimento da ré, concluindo requerendo ao Tribunal que:

"A) Conceda um prazo de 20 (vinte) dias para efeitos de junção da certidão comprovativa do despacho em anexo;

B) Indefira a pretensão da Ré no sentido de ser suspensa a presente instância, atenta a manifesta falta de alegações, fundamentos, base legal e/ou prova;

C) Condene a Ré em sede de litigância de má-fé em multa condigna e pagamento de indemnização à Autora não inferior a €5.000,00 (cinco mil euros), nos termos e para os efeitos dos Arts. 542º, n.º 1 e 2, alíneas b) e d) e 543º, nº 1 do CPC, a apreciar a final."


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6. Em 09-11-2020 a autora apresentou em juízo requerimento de onde consta, nomeadamente, o seguinte:

"(...) 1. Conforme anteriormente demonstrado no requerimento apresentado em 01.09.2020, a aqui Autora já tinha provado o efeito suspensivo do recurso da decisão que outrora tinha determinado a respetiva falência (e da sua participada Pomifrai Fruticultura S/A.) proferida pelo Tribunal Judicial de Santa Catarina, Comarca de Fraiburgo (...).

2. Ficou assim integralmente provado aquilo que já tinha sido anteriormente alegado, ou seja, que a Autora se mantém na presente data em estado de recuperação (e não de falência), tal como estava aquando da apresentação da presente ação judicial.

3. Razão pela qual a presente ação judicial deverá prosseguir os seus regulares termos processuais, designadamente com a continuação da audiência prévia, a qual já foi aliás, entretanto agendada pelo Douto Tribunal.

4. Disto isto, aproveita-se para juntar cópia da decisão entretanto proferida no âmbito do supra referido recurso, a qual deu provimento ao mesmo, revogando a decisão de falência e ordenando a continuação dos regulares termos processuais do processo de recuperação (cfr. Doe. 1 que ora se anexa).

5. Mais se informa que a referida decisão é passível de recurso. Não obstante, nada altera o facto de que a situação jurídica da Autora permanece como sendo de recuperação judicial, tal como estava aquando do início do presente processo (...)".


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7. Realizou-se a audiência prévia, na qual foi admitido o articulado superveniente apresentado pela ré - a que a autora respondeu por requerimento de 23-11-2020 - e foi proferido despacho saneador, sendo julgados verificados os pressupostos processuais-incluindo a competência internacional dos tribunais portugueses - admitida liminarmente a reconvenção, fixado o valor da causa e enunciados o objeto do litígio e os temas da prova.

8. Por despacho de 22-04-2021 foi efetuado aditamento aos temas da prova, nos termos aí constantes.


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9. Teve lugar audiência final, com produção probatória, na sequência do que, em 02-02-2022, foi proferida sentença constando do respetivo dispositivo o seguinte:

"(...) Face ao exposto, julga-se a ação e a reconvenção parcialmente procedentes e, em consequência, decide-se:

a)absolver da instância a autora quanto à quantia de 85.079,60€ (oitenta e cinco mil e setenta e nove euros e sessenta cêntimos) peticionada pela ré;

b) condenar a ré a pagar à autora a quantia de 81.304.09€ (oitenta e um mil trezentos e quatro euros e nove cêntimos), acrescida de juros de mora, à taxa legal da lei portuguesa, desde a citação até integral e efetivo pagamento;

c) absolver a autora e a ré do pedido quanto ao demais - ou seja, na parte que excede o que consta das als. a) e b) - que contra elas foi peticionado pela ré e pela autora, respetivamente.

Custas pela autora e pela ré, na proporção de 75% e 25%, respetivamente, dispensando as partes do pagamento do remanescente da taxa de justiça na proporção de 50%.

Registe e notifique".


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10. Não se conformando com a referida sentença, dela apela a autora, sendo decidido, após deliberação, pelo Tribunal da Relação:

“Pelos fundamentos expostos, acordam os Juízes que compõem o tribunal coletivo desta 2ª Secção Cível, na procedência da apelação, em:

I)Julgar improcedente, nos termos constantes da questão A), a nulidade aí conhecida;

II) Julgar suprida a nulidade da omissão de pronúncia da questão da litigância de má-fé da ré e considerar, quanto ao mais, não se verificarem as nulidades que foram invocadas pela recorrente;

III) Rejeitar a impugnação da matéria de facto, quanto ao facto provado n.º 10), por inobservância do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 640.º do CPC;

IV) Eliminar o ponto 11.º dos factos provados;

V) Alterar a redação dos pontos 12.º e 13.º dos factos provados para a seguinte:

"12. No desenvolvimento dessa relação comercial foram fornecidas pela ré à autora frutas, tendo sido emitidas as respetivas faturas, no montante de 179.565,80€."

"13. No processo de recuperação da autora e da Pomifrai - Fruticultura, S.A. foi reconhecido à ré o crédito global de €268.471,40, conforme consta da lista de fls. 138 e ss., mais especificamente a fls. 143, sendo (conforme especificado a fls. 78vº-79):

-No valor de €179.565,80 sobre a autora; e

-No valor de € 88.905,60 sobre a Pomifrai - Fruticultura, S.A".

VI) Alterar-se a redação dos factos não provados para a seguinte: "Não se provaram os outros factos relevantes da contestação e que respeitavam ao alegado crédito da P... (arts. 103.º e 105.º da contestação) e da M... Lda. (arts. 39.º, 40.º e 101.º e 102.º da contestação) e à fatura n.º 1133, no montante de 85.079,60 €, bem como, que a ré tenha fornecido mercadoria à autora, para além do referido em 12 (artigos 37.º e 99.º da contestação)";

VII) Alterar a redação do ponto 14.º dos factos provados para a seguinte: "14. Por carta recebida pela autora em 15-02-2018, a ré comunicou à autora a compensação dos seus créditos com o crédito da autora referidos supra em 9., nos termos do documento de fls. 97-98, carta a que a autora respondeu, por carta, com data de 22-02-2018, constante de fls. 134, não aceitando a compensação face à pendência do procedimento de recuperação referido em 17";

VIII) Alterar a redação do ponto 15.º dos factos provados para a seguinte: "15. Por via da carta recebida pela autora em 15-02-2018, a ré comunicou também à autora que a M... Lda.. lhe cedeu o crédito decorrente do fornecimento de frutas efetuado à autora, titulado pelas seguintes faturas:

Factura nº ...01 de 20/01/2017 (675,00 Reais)

Factura nº ...71 de 20/03/2017(3.732,52 Reais)

Factura nº ...73 de 31/03/2017 (5.7000,00 Reais)

Factura nº ...72 de 31/03/2017 (6.460,00 Reais)

Factura nº ...75 de 03/04/2017 (5.320,00 Reais)

Factura nº ...77de 04/04/2017 (3.040,00 Reais)

Factura nº ...76 de 04/04/2017 (3.800,00 Reais)

Factura nº ...78 de 05/04/2017 (666.000 Reais)

Factura nº ...79 de 07/04/2017 (296.00 Reais)

Factura nº ...80 de 18/05/2017 (716.00 Reais)

Factura nº ...82 de 26/07/2017 (120.269,48 Reais),

Tudo no valor total de 150.675.00 Reais, que corresponde a 40.722,01€ ao câmbio da altura, pretendendo igualmente compensar este crédito, nos termos indicados supra em 14.";

IX) Alterar a redação do ponto 17.e dos factos provados para a seguinte: "17. A autora e a Pomifrai - Fruticultura, S.A. apresentaram no dia 25-01-2018 um "Procedimento de Recuperação", o qual foi deferido pelo Tribunal da Comarca de Fraiburgo (l.3 Vara) na mesma data (cfr. doc. de fls. 128-130) e corre atualmente termos sob o Proc. n.º 0300188-72.2018.8.24.0024";

X) Julgar improcedente a impugnação da matéria de facto relativamente ao artigo 16.º dos factos provados;

XI) Indeferir o aditamento aos factos provados da matéria pretendida incluir pela recorrente, como supra mencionado na apreciação da questão J);

XII) Revogar a decisão recorrida e substituí-la pela presente:

a) Condenar a ré a pagar à autora a quantia de € 390.497,50 (trezentos e noventa mil, quatrocentos e noventa e sete euros e cinquenta cêntimos), acrescida de juros comerciais, contabilizados sobre cada uma das faturas acima identificadas, na apreciação da questão P), desde a respetiva data de vencimento e até integral pagamento, absolvendo a ré do demais peticionado pela autora;

b) Julgar improcedente a pretensão de compensação deduzida pela ré e, consequentemente, o pedido reconvencional por si formulado, absolvendo a autora em conformidade; e

c) Julgar não verificada litigância de má-fé no comportamento da ré, absolvendo-a do peticionado a este título pela autora.

Custas pela ré/apelada. Notifique e registe.


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Agora, inconformada a ré, com o decidido pela Relação, interpõe recurso de Revista para este STJ e, formula as seguintes conclusões:

“1. O douto acórdão ao decidir e interpretar a lei substantiva, de forma a interpretar que não existiu acordo de troca de fruta, mas sim, contrato de compra e venda recíproca, errou.

2. Considerando como considera, provado que Autora e a Ré tinham entre si uma relação comercial que existiu entre Dezembro de 2015 e Dezembro de 2017 e que consistiu em importações e exportações recíprocas de frutas, sobretudo maçãs, mas também, em menor quantidade, ameixas e peras e considerando também provado que a Autora e a Ré tinham entre si uma relação comercial que existiu entre Dezembro de 2015 e Dezembro de 2017 e que consistiu em importações e exportações recíprocas de frutas, sobretudo maçãs, (...)”, teria sempre de considerar o contrato celebrado entre ambas como um contrato de escambo ou troca, como a Ré sempre alegou, e não de compra e venda.

3. Como decide, o acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, no Processo: 082/18 datado de 06-06-20, “(...) O contrato de permuta não tem actualmente regulamentação no Código Civil, apresentando-se como um contrato atípico, inominado, oneroso, a que são aplicáveis, com as devidas adaptações, as normas da compra e venda – artigo 939º-.

V - A realidade que lhe está subjacente (ao contrato de troca, ou permuta) é (...) um único acordo de vontades.

4. Existindo esse acordo de vontades único, como o acórdão recorrido dá como provado, não restam dúvidas que errou, ao qualificar tal contrato como compra e venda.

5. O acórdão recorrido erra também, quanto à lei aplicável à questão da COMPENSAÇÃO

6. Vem inclusive, contradizer-se, ao entender aplicável a lei Portuguesa, ao que considera ser um contrato de compra e venda, mas ser aplicável à compensação a Lei brasileira. Não faz sentido a sua argumentação.

7. O acórdão recorrido, para fundamentar o seu entendimento quanto ao contrato que entende ser de compra e venda, vem argumentar que, O elemento também decisivo na consideração do ordenamento jurídico português como aquele que apresenta a conexão mais estreita, na relação jurídica em questão, é o de que a moeda utilizada como referência para pagamento das prestações pecuniárias de ambas as partes – assim constando em todas as faturas juntas aos autos, quer emitidas pela autora, quer emitidas pela ré – foi o euro, moeda com curso legal em Portugal (e não no Brasil). Todos estes elementos apontam no sentido de que a relação jurídica entabulada entre as partes, no âmbito das importações/exportações recíprocas de produtos, apresenta uma conexão mais estreita com a ordem jurídica portuguesa.

8. Acontece que, os elementos que o acórdão recorrido considera estarem presentes, para existir uma conexão mais próxima com a ordem jurídica portuguesa, para entender ser esta aplicável ao contrato, estão igualmente presentes quanto à invocada Compensação, nomeadamente: a moeda utilizada (euro) e, a decisão da Autora de interpor processo judicial em Portugal, o que o acórdão recorrido aliás, expressamente reconhece, “(...)para além da determinação da competência dos tribunais portugueses para o conhecimento do pleito, faz supor que a autora teve em vista, ou conformou-se, com a possibilidade de aplicação do direito português, não só em termos da conformação da competência e da aplicação das regras do ordenamento jurídico-processual, mas também, em termos substantivos(...)”

9. Errou assim, o acórdão recorrido ao decidir aplicar a Lei brasileira à Compensação.

10.E, com o devido respeito, volta a errar na aplicação da Lei brasileira aos factos, ao entender que a Compensação à luz daquela Ordem Jurídica não é aplicável por os créditos não estarem vencidos.

11.Os créditos estavam vencidos, em função da decretação da recuperação judicial da Autora e, como tal, mesmo perante a Lei brasileira, susceptíveis de Compensação.

12.O Ordenamento jurídico brasileiro, tal como o português, entende que, os créditos se vencem e autonomizam imediatamente, com a decretação da recuperação judicial, de tal forma que, os avalistas, independentemente do crédito principal poder vir a ser pago através do Plano de Recuperação podem de imediato ser demandados.

13.Consequentemente, os créditos da Ré, pretendidos compensar, já se encontravam vencidos aquando da decretação da recuperação judicial da Autora e, como tal, em face do ordenamento jurídico brasileiro, podia a Ré recorrer à compensação para se ressarcir.

14.O acórdão recorrido de forma flagrante, viola o Princípio da Equidade.

15.Ao decidir como decidiu, coloca a Autora numa posição de receber o pagamento de fruta que ela própria não pagou aos seus fornecedores, como o acórdão recorrido reconhece, ao não alterar o ponto 16 da matéria provada,

16.Possibilita à Autora ficar eximida de pagar à Ré a fruta que esta lhe enviou.

17.Obriga a Ré a pagar à Autora fruta que esta sequer pagou aos seus fornecedores e, causa um prejuízo à Ré de 658.989,90€ sem qualquer contrapartida, obtendo a Autora um enriquecimento absolutamente ilícito e imoral, que viola flagrantemente o princípio da equidade.

18.A equidade traduz, no nosso sistema jurídico, um método facultativo que o julgador tem ao seu dispor para que possa decidir sem aplicação de regras formais e é possível ao Supremo Tribunal de Justiça aplicar critérios de equidade.

19.Com o devido respeito, deve in casu, o Supremo Tribunal aplicar esses critérios de equidade, sob pena de a Ordem Jurídica Portuguesa caucionar uma atitude violadora de todas as regras morais e de justiça, ao permitir que uma entidade privada, a Autora, cause um prejuízo sem qualquer contrapartida, a outra a Ré, que pauta o seu comportamento pela lisura, correcção, respeito e segundo as elementares regras de Direito, pagando aos seus fornecedores e não se escudando em procedimento processuais e mecanismos jurídicos para fugir ás suas responsabilidades como a Autora fez no Brasil, conforme os factos provados demonstraram “(...)A Autora, adquiriu grandes quantidades de fruta, e, em janeiro de 2018, de forma imprevisível e sem que os fornecedores com isso contassem, interpôs um processo de Recuperação, conseguindo assim que entrassem no seu património grandes quantidades de mercadoria, que, após a interposição do processo, não pagou.(...)”

20.A decisão recorrida é inconstitucional, pois viola de forma flagrante o artigo 13º da C.R.P. ao criar uma manifesta situação de desigualdade para a Ré.

21.Deve por isso, com o muito e elevado respeito ser alterada a decisão do acórdão recorrido e mantida a decisão da Primeira Instância.

Com o que se fará JUSTIÇA.

Responde a autora/recorrida, concluindo:

“A) Os argumentos da Recorrente plasmados nas suas alegações improcedem na íntegra, estando o presente recurso votado ao insucesso.

B) O Tribunal “a quo” decidiu de forma correta ao considerar que a figura contratual subjacente aos presentes autos é a figura do contrato de compra e venda internacional e não um contrato de troca, permuta ou escambo, conforme alegado pela Recorrente.

C) O Tribunal da Relação de Lisboa ao decidir eliminar o anterior Artigo 11.º da Matéria anteriormente considerada como provada pelo Tribunal de 1.ª Instância retirou qualquer substrato factual mínimo que permitisse a pretensa qualificação contratual alegada pela Recorrente.

D) Os Artigos 3.º e 4.º da matéria considerada atualmente como provada, invocados pela Recorrente, não contêm quaisquer elementos de facto que sustentem a figura do contrato de troca, permuta ou escambo.

E) Pelo contrário, tais artigos devem ser lidos em conjunto com os Artigos 5.º, 6.º, 7.º, 8.º e 9.º da matéria provada evidenciando assim os elementos constitutivos de um contrato de compra e venda, in casu internacional.

F) Contrato esse que se encontra assente na existência de um acordo entre as partes que consistia na transmissão da propriedade de um bem - in casu fruta - contra o pagamento de um preço, o qual deve ser satisfeito em dinheiro - in casu, euros.

G) O Tribunal “a quo” também decidiu de forma acertada ao aplicar a lei Brasileira à questão da compensação de créditos invocada e pretendida pela Recorrente.

H) A Recorrente efetua um enquadramento e uma interpretação errada tanto das regras legais aplicáveis de Direito Internacional Privado, como também, do próprio acórdão recorrido.

I) Estando perante uma relação contratual plurilocalizada, a questão da lei substantiva aplicável deve ser resolvida com base no Regulamento CE 593/2008 de 17 de Junho do Parlamento Europeu e do Conselho referente às obrigações contratuais, mais conhecido como Regulamento Roma I, as quais derrogam as regras de conflito internas constantes do Código Civil Português.

J) A invocação da compensação por parte da Recorrente coloca per si uma questão de conflito de leis, que importa determinar à luz do mesmo Regulamento Roma I, em concreto à luz do respetivo Artigo 17.º sob a epígrafe “Compensação”.

K) Tal disposição, que assume um caráter especial, determina que “Caso as partes não acordem no direito a compensação, a lei que regula a compensação é a lei aplicável ao crédito contra o qual se invoca a compensação”.

L) O crédito contra o qual se invoca a compensação é o crédito da Autora/Recorrida, sociedade Brasileira, ou seja, o crédito principal, relativamente ao qual seria aplicável a lei Brasileira.

M) A Recorrente lavra assim em erro quando pretende aplicar o critério geral e residual da conexão mais estreita plasmado no Artigo 4.º, n.º 4 do Regulamento à questão especial da compensação.

N) O Regulamento Europeu adotou a solução alemã a qual tutela em concreto a posição do crédito principal contra o qual a compensação é invocada, como de resto bem decidiu o Tribunal “a quo”.

O) Os argumentos da Recorrente a respeito de uma suposta exigibilidade do seu crédito num cenário de processo de recuperação como o que se encontra em causa nos presentes autos também improcedem na íntegra, seja ao abrigo do Direito Brasileiro ou do Direito Português.

P) A Recorrente nem sequer alega e/ou prova de forma mínima a aplicação do Direito estrangeiro nos termos que postula. A Recorrente limita-se a invocar os trechos parciais de dois acórdãos, desvirtuando totalmente o seu sentido, sendo que num desses acórdãos nem sequer identifica o Tribunal que supostamente o proferiu.

Q) Por seu turno, a aqui Recorrida demonstrou de forma clara e com apoio nas regras legais atinentes, em ampla jurisprudência, doutrina e num Parecer elaborado pelo distinto Advogado Brasileiro Ricardo Ramalho Almeida, sócio da Mannheimer, Perez e Lyra Advogados que a aplicação do Direito Brasileiro apenas poderá conduzir à inadmissibilidade da compensação pretendida pela Recorrente, tal como de resto foi o entendimento do Tribunal “a quo”.

R) A compensação invocada pela Recorrente não pode ser operada à luz do Direito Brasileiro porquanto as obrigações não se venceram até ao momento da apresentação do procedimento de recuperação, e uma vez submetidas ao respetivo regime legal da recuperação judicial, são insuscetíveis de pagamento por compensação (Artigos 368.º e 369.º e 380.º do Código Civil Brasileiro e Artigo 49.º da Lei 11.101/2005 (Lei de Recuperações Judiciais e Extrajudiciais e Falências Brasileira), isto sob pena de colocar a Recorrente numa posição privilegiada perante os restantes credores da Recorrida.

S) A compensação invocada pela Recorrida também não pode ser operada à luz do Direito Português porquanto o crédito da Recorrente, para além de não estar vencido, estando estritamente sujeito aos termos do processo recuperação da Recorrida, não é exigível judicialmente fora do processo de recuperação, razões pelas quais não se encontra reunido o requisito do Art. 847.º, n.º 1, alínea a) do Código Civil.

T) A acrescer, também não poderá operar perante o Artigo 853.º, n.º 2 do Código Civil que não admite a compensação se houver prejuízo de direitos de terceiro, in casu os credores da Recorrida.

U) O crédito da Recorrente sobre a Recorrida deverá assim ser pago, não através de compensação, mas sim nos termos que forem decididos no processo de recuperação.

V) A decisão do Tribunal “a quo” também não viola o “princípio da equidade” ou da “proporcionalidade”, os quais a Recorrente nem sequer concretiza ou enquadra nos presentes autos, bastando-se com considerações vagas e genéricas.

W) Os processos de recuperação assentam no princípio de que o seu objetivo fundamental é a preservação e a recuperação da empresa, como fonte de empregos, atividade económica, pagamento de impostos, rendimento e produção.

X) É a própria lei, seja ela a Brasileira ou a Portuguesa, que admite algum sacrifício de interesses individuais de credores em nome desse princípio e em condições de igualdade; credores esses que se e quando aprovarem um plano de recuperação judicial, devem submeter-se aos meios de recuperação e às condições de pagamento de créditos aprovadas conjuntamente.

Y) É manifestamente falso que a Ré/Recorrida fique “eximida” de pagar à Recorrente a fruta que lhe foi entregue.

Z) O crédito da Recorrente perante a Recorrida foi claramente reconhecido no processo de recuperação no valor de € 179.565,80 (cento e setenta e nove mil, quinhentos e sessenta e cinco euros e oitenta cêntimos) e o pagamento será efetuado nos termos que sejam decididos pelos credores no processo de recuperação n.º 0300188-72.2018.8.24.0024 que corre atualmente termos na 1.ª Vara do Tribunal da Comarca de Fraiburgo.

AA) Em momento algum do presente processo a Recorrente alegou ou provou factos, tais como, que “a Recorrida supostamente não tenha património que seja suscetível de ser executado”, ou que “a fruta que a Autora enviou para a Ré pretensamente não foi produzida por esta última, mas sim adquirida a terceiros”.

BB) A factualidade plasmada no Artigo 16.º da Matéria Provada também não encerra em si qualquer violação do princípio da equidade ou alguma espécie de má-fé da Recorrida. As alegações da Autora a respeito desta matéria, para além de manifestamente caluniosas, não têm reflexo na matéria provada pelo Tribunal “a quo”.

CC) A factualidade que consta do Artigo 16.º da Matéria Provada surgiu na sequência de um requerimento apresentado pela Recorrente em 19 de Maio de 2020 no âmbito do qual alegou factos supervenientes e difamatórios no sentido de que a Recorrida teria concebido e gizado um plano intencional e fraudulento com vista a que primeiro entrassem no seu património grandes quantidades de mercadoria, e segundo, apresentasse o procedimento de recuperação com a intenção específica, dolosa, e nas palavras da Recorrente “criminosa” de não as pagar.

DD) Nada disso resultou provado nos presentes autos. Apesar da alegação da Recorrente, o Tribunal “a quo” não considerou como provados quaisquer elementos subjetivos que pudessem fundamentar alguma espécie de comportamento propositado, culposo ou e/ou ilícito da parte da Recorrida.

EE) O próprio ordenamento jurídico Brasileiro prevê, previne e sanciona atos fraudulentos que sejam encetados no contexto de um processo de recuperação, oferecendo a qualquer lesado diversos meios de natureza cível e criminal para efeitos de sanção e de reparação (vide, nomeadamente, a aplicação conjugada dos Artigos 47.º, 51.º-A e 168.º da Lei 11.101/2005, melhor esplanada nas alegações supra).

FF) A Recorrente não alegou, não invocou no processo de recuperação, nem tão pouco fez uso, de um único dos mecanismos previstos na lei processual Brasileira com vista a exercer os pretensos direitos que lhe poderiam assistir em face de uma pretensa atuação culposa ou fraudulenta da Recorrida, que como é óbvio não existiu.

GG) A Recorrente pretende que sejam os Tribunais Portugueses a conceder efeitos a pretensos e caluniosos factos que, em momento algum, foram alegados, mencionados, colocados, levantados, questionados ou provados no processo de recuperação da Recorrente, seja por alguma parte ou a título oficioso.

HH) A Recorrente, para além de ter apresentado a sua reclamação inicial de créditos no processo de recuperação da Recorrida, optou por não exercer qualquer outro direito, fosse para exercer direitos em sede de reuniões de credores, ou o direito de impugnação da decisão do Administrador Judicial que não admitiu na íntegra o alegado crédito da Recorrente, nem admitiu a compensação pretendida.

II) Também carece de fundamento a alegação da Recorrente no sentido de que a decisão proferida pelo Tribunal “a quo” viola o Artigo 13º da Constituição da República Portuguesa, sendo assim “inconstitucional”.

JJ) Em medida alguma a Recorrente, sociedade constituída nos termos da lei Portuguesa, foi prejudicada ou privada de algum direito em razão de alguma das características supra referidas. Nem tão pouco a Recorrida, sociedade constituída nos termos da lei Brasileira, foi privilegiada ou beneficiada em razão das mesmas.

KK) A Recorrente, na sua última conclusão requer que: “Deve por isso, com o muito e elevado respeito ser alterada a decisão do acórdão recorrido e mantida a decisão da Primeira Instância.” Este último pedido da Recorrente carece totalmente de substrato factual, de substrato jurídico, de lógica e de uma explicação mínima que possa elucidar sobre o caminho lógico-dedutivo que a Recorrente supostamente seguiu para sustentar tal conclusão.

LL) Com efeito, a decisão da 1.ª instância incorreu em erros evidentes e gravíssimos de apreciação da matéria de facto, os quais, felizmente, foram, na sua larga maioria, detetados e corrigidos pelo Tribunal da Relação de Lisboa, alterando substancialmente o seu substrato factual e jurídico.

MM) A Recorrente não explica minimamente em que medida é que uma decisão cuja base factual que foi drasticamente alterada pelo Tribunal “a quo” pode continuar a ser sustentada nos mesmos termos com base no alegado “princípio da equidade”.

NN) Obviamente que tal base factual e jurídica não existe, pelo que as pretensões da Recorrente não podem ser atendidas, devendo assim manter-se a decisão proferida pelo Tribunal da Relação de Lisboa.

Nestes termos e nos demais de Direito que serão doutamente supridos por V. Exas., Venerandos Juízes Conselheiros, deve o presente Recurso ser julgado improcedente pelos fundamentos atrás expostos e, consequentemente, integralmente mantida a decisão proferida pelo Tribunal da Relação de Lisboa que condenou a Ré/Recorrente no pagamento à Autora/Recorrida do montante a título de capital de € 390.497,50 (trezentos e noventa mil, quatrocentos e noventa e sete euros e cinquenta cêntimos) acrescida dos respetivos juros comerciais, contabilizados sobre cada uma das faturas emitidas pela Autora à Ré, desde a respetiva data de vencimento até efetivo e integral pagamento.

Assim fazendo, V. Exas., a costumada JUSTIÇA.


*


O recurso foi admitido.

Cumpre apreciar e decidir.


*


Nas Instâncias ficou apurada a seguinte matéria de facto:

“NA DECORRÊNCIA DA ALTERAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO OPERADA PELO CONHECIMENTO DO RECURSO (apelação), A MATÉRIA PROVADA A CONSIDERAR É A SEGUINTE:

1.A Autora é uma sociedade anónima constituída no ano de 1962 de acordo com o Direito Brasileiro e que se dedica à produção e à comercialização de maçãs in natura e processadas, nas variedades Gala, Royal Gala, Imperial Gala, Fuji e Fuji Suprema.

2.A Ré é uma sociedade comercial constituída de acordo com o Direito Português que tem por objeto a produção, preparação e conservação de frutos e de produtos hortícolas; investigação, desenvolvimento e prestação de serviços técnicos; comércio e distribuição de produtos hortofrutícolas adquiridos aos seus membros, acessoriamente poderá ainda adquirir o mesmo tipo de bens a terceiros; conservação, transformação e comércio de frutos e produtos hortícolas frescos minimamente processados.

3.A Autora e a Ré tinham entre si uma relação comercial que existiu entre Dezembro de 2015 e Dezembro de 2017 e que consistiu em importações e exportações recíprocas de frutas, sobretudo maçãs, mas também, em menor quantidade, ameixas e peras.

4.Autora e Ré, outrora parceiras comerciais, valiam-se assim das vantagens advindas dos diferentes ciclos periódicos de plantio e colheita no Brasil e em Portugal.

5.No âmbito da relação comercial existente entre as partes, a Autora, durante o primeiro semestre de 2017, e por solicitação da Ré, vendeu a esta última diversos carregamentos de maçãs do tipo "fuji" e "Imperial Gala".

6.O preço acordado entre as partes foi de € 0,50 (cinquenta cêntimos) por quilo.

7.As mercadorias em causa foram entregues à Ré, nos termos acordados entre as partes.

8.No total, foram fornecidos pela Autora e entregues à Ré 780.995 (setecentos e oitenta mil, novecentos e noventa e cinco) Kg (quilogramas) de maçãs.

9.A respeito dos diversos carregamentos de maçãs fornecidos, foram emitidas diversas faturas pela Autora à Ré, devidamente recebidas por esta última e acompanhadas da documentação de exportação atinente, no valor total de € 390.497,50.

10.As partes acordaram que as faturas supra descritas se venceriam dentro de um prazo de 180 (cento e oitenta) dias a contar da respetiva data de emissão.

12.No desenvolvimento dessa relação comercial foram fornecidas pela ré à autora frutas, tendo sido emitidas as respetivas faturas, no montante de 179.565,80€.

13.No processo de recuperação da autora e da Pomifrai - Fruticultura, S.A. foi reconhecido à ré o crédito global de € 268.471,40, conforme consta da lista de fls. 138 e ss., mais especificamente a fls. 143, sendo:

-No valor de € 179.565,80 sobre a autora; e

-No valor de € 88.905,60 sobre a Pomifrai - Fruticultura, S.A.

14.Por carta recebida pela autora em 15-02-2018, a ré comunicou à autora a compensação dos seus créditos com o crédito da autora referidos supra em 9., nos termos do documento de fls. 97-98, carta a que a autora respondeu, por carta, com data de 22-02-2018, constante de fls. 134, não aceitando a compensação face à pendência do procedimento de recuperação referido em 17.

15.Por via da carta recebida pela autora em 15-02-2018, a ré comunicou também à autora que a M... Lda.. lhe cedeu o crédito decorrente do fornecimento de frutas efetuado à autora, titulado pelas seguintes faturas:

Factura nº...01 de 20/01/2017 (675,00 Reais)

Factura nº ...71 de 20/03/2017 (3.732,52 Reais)

Factura nº ...73 de 31/03/2017 (5.7000,00 Reais)

Factura nº ...72 de 31/03/2017 (6.460,00 Reais)

Factura nº ...75 de 03/04/2017 (5.320,00 Reais)

Factura nº ...77 de 04/04/2017 (3.040,00 Reais)

Factura nº ...76 de 04/04/2017 (3.800,00 Reais)

Factura nº ...78 de 05/04/2017 (666.000 Reais)

Factura nº ...79 de 07/04/2017 (296.00 Reais)

Factura nº ...80 de 18/05/2017 (716.00 Reais)

Factura nº ...82 de 26/07/2017 (120.269,48 Reais),

Tudo no valor total de 150.675.00 Reais, que corresponde a 40.722,01€ ao câmbio da altura, pretendendo igualmente compensar este crédito, nos termos indicados supra em 14..

16.A Autora, no decurso do ano de 2017, adquiriu grandes quantidades de fruta, e, em janeiro de 2018, de forma imprevisível e sem que os fornecedores com isso contassem, interpôs um processo de Recuperação, conseguindo assim que entrassem no seu património grandes quantidades de mercadoria, que, após a interposição do processo, não pagou.

17.A autora e a Pomifrai - Fruticultura, S.A. apresentaram no dia 25-01-2018 um "Procedimento de Recuperação", o qual foi deferido pelo Tribunal da Comarca de Fraiburgo (1ª Vara) na mesma data (cfr. doc. de fls. 128-130) e corre atualmente termos sob o Proc. n.º 0300188-72.2018.8.24.0024.

18.Os administradores e sócios da autora mantêm os poderes de administração da sociedade, tendo sido por via deles que esta ação foi instaurada, conforme teor da procuração junta aos autos.

19.Por decisão proferida em 17 de fevereiro de 2020 pelo Juízo da 1.- Vara Cível da Comarca de Fraiburgo /SC (Processo 0300188- 72.2018.8.24.0024) foi proferida decisão no sentido da falência da aqui Autora (e da sua participada Pomifrai Fruticultura S/A.).

20.A Autora interpôs recurso de agravo contra essa mesma decisão, tendo o Juiz Desembargador Competente, por decisão de 3 de Março de 2020, concedido efeito suspensivo ao recurso, assim suspendendo os efeitos da decretação da falência até julgamento final do agravo.


*


NA DECORRÊNCIA DA ALTERAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO OPERADA PELO CONHECIMENTO DO RECURSO, A MATÉRIA NÃO PROVADA A CONSIDERAR É A SEGUINTE:

Não se provaram os outros factos relevantes da contestação e que respeitavam ao alegado crédito da P... (arts. 103.9 e 105.9 da contestação) e da M... Lda. (arts. 39.9, 40.9 e 101.9 e 102.9 da contestação) e à fatura n.9 1133, no montante de 85.079,60 €, bem como, que a ré tenha fornecido mercadoria à autora, para além do referido em 12 (artigos 37.9 e 99.9 da contestação).


*


Conhecendo:

Sendo o objeto do recurso delimitado pelas conclusões das alegações – artigo 635º, nº 3 a 5 e 639º, nº 1, do Código de Processo Civil – as questões a decidir respeitam:

- Qualificação jurídica do contrato celebrado entre a autora e a ré, acordo de troca de fruta ou, contrato de compra e venda recíproca (conclusões 1 a 4).

- Qual a lei aplicável à questão da “compensação”, é aplicável a lei portuguesa, ou a lei brasileira (conclusões 5 a 9).

- Se for aplicável a lei brasileira aos factos, a “compensação” não é aplicável por os créditos não estarem vencidos (em função de ter sido decretada a recuperação judicial da autora) (conclusões 10 a 13).

- Violação do princípio da equidade (obtendo a autora um enriquecimento ilícito e imoral) (conclusões 14 a 19).

- Violação do artigo 13º da Constituição da República Portuguesa ao criar uma manifesta situação de desigualdade para a ré (conclusões 20 e 21).


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Qualificação jurídica do contrato celebrado entre a autora e a ré, face à matéria de facto provada.

Na sentença considerou-se que o contrato entre a autora e a ré “tem de ser analisado no seu todo, tendo em consideração o escopo contratual pretendido pelas partes e o que for acordado em termos globais.”

Entendendo a sentença que “dos factos provados, o que foi acordado entre a autora e a ré foi a compra e venda recíproca de mercadoria. Ou seja, no contrato, considerado globalmente, nós não temos uma vendedora, a autora, e uma compradora, a ré. Ambas são simultaneamente vendedoras e compradoras. O facto de na pretensão da autora estar em causa uma concreta venda de fruta efetuada por ela à ré, não releva para o efeito, uma vez que este concreto fornecimento estava integrado do quadro negocial mais amplo acordado entre as partes e sujeito às regras gerais definidas ab initio.”

Concluindo a sentença estarmos perante um contrato de troca ou escambo.

Por sua vez, o acórdão recorrido salientando que, “na decorrência da procedência parcial da impugnação da matéria de facto, pugnada pela recorrente, as premissas em que assentou este juízo [da sentença] encontram-se, agora, alteradas.”

Entendeu o acórdão recorrido que, “ no caso dos autos, ao invés da conclusão a que chegou o Tribunal recorrido, não se divisa no fornecimento de fruta, protraído no tempo, recíproco entre as partes, mediante a concretização de importações e exportações entre ambas, valendo-se das vantagens dos diferentes ciclos periódicos de plantio e colheita de fruta, no Brasil e em Portugal, que, por um lado, o pagamento da maçã fornecida pela autora à ré fosse efetuado com o fornecimento de maçã da ré à autora e, vice-versa, nem, por outro lado, que tenha tido lugar um específico quadro contratual prévio, acordado no inicio da relação comercial, em finais de 2015, pelo qual se estabeleciam as regras pelas quais se pautava a relação comercial entre as partes, ou, pelo menos, não se apurou uma tal realidade, não o revelando os factos apurados.”

Referindo o acórdão recorrido que “no caso dos autos, evidenciou-se que a componente pecuniária de pagamento do preço era inerente às trocas comerciais entre autora e ré.

Ou seja: Não havia especifica troca de fruta por fruta, no sentido de que, o cumprimento da obrigação de entrega de fruta "saldasse" ou "quitasse" o débito de fruta pré-existente.”

E conclui, “A factualidade apurada enquadra-se, pois, no âmbito do contrato de compra e venda internacional, sendo-lhe aplicável o respetivo regime jurídico.”

E é relevante a alteração da matéria de facto pois que foi eliminado o ponto 11 da matéria de facto constante da sentença e com o seguinte teor. “11. Entre a Ré e Autora foram efetuadas várias trocas de maçãs que produziam, nos termos descritos supra em 3 e 4, sendo o pagamento da maçã fornecida pela Autora à Ré efetuado com fornecimentos de maçã da Ré à Autora, e vice-versa, assim se operando a troca.

Mas outros factos provados relevam para a qualificação do contrato.

- 5- No âmbito da relação comercial existente entre as partes, a autora, durante o primeiro semestre de 2017, e por solicitação da Ré, vendeu a esta última diversos carregamentos de maçãs;

- 6- O preço acordado entre as partes foi de € 0,50 por quilo;

- 9- A respeito dos diversos carregamentos de maçãs fornecidos, foram emitidas diversas faturas pela autora à ré, devidamente recebidas por esta última e acompanhadas da documentação de exportação atinente, no valor total de € 390.497,50;

- 10- As partes acordaram que as faturas supra descritas se venceriam dentro de um prazo de 180 dias a contar da respetiva data de emissão;

- 12- No desenvolvimento dessa relação comercial foram fornecidas pela ré à autora frutas, tendo sido emitidas as respetivas faturas, no montante de 179.565,80€;

- 14- Por carta recebida pela autora em 15-02-2018, a ré comunicou à autora a compensação dos seus créditos com o crédito da autora referidos supra em 9., nos termos do documento de fls. 97-98, carta a que a autora respondeu, por carta, com data de 22-02-2018, constante de fls. 134, não aceitando a compensação face à pendência do procedimento de recuperação referido em 17.

Da exclusão daquele facto 11 e destes aqui elencados (entre outros) bem se vê que o que as partes sempre quiseram foi que a cada fornecimento de fruta, quer por parte da autora à ré ou da ré à autora, correspondia a contrapartida do preço a efetuar em numerário (dinheiro), podendo as partes fazer acertos de contas e efetuar compensações (só não fazendo a última compensação devido à pendência do procedimento de recuperação) e não indicam que as partes trocavam determinada quantidade de fruta por outra determinada quantidade.

A autora e a ré, reciprocamente, compravam e vendiam fruta, valendo-se das vantagens advindas dos diferentes ciclos periódicos de plantio e colheita no Brasil e em Portugal. Os factos provados apontam no sentido de sucessivos contratos de compra e venda entre autora e ré, alternando a qualidade de compradora e vendedora.

O contrato de permuta, troca ou escambo (figura jurídica não contemplada na lei civil atual, mas que o princípio da liberdade contratual leva a admitir na sua plenitude) é o contrato pelo qual se dá uma coisa por outra, isto é, é o contrato pelo qual os contraentes se atribuem reciprocamente coisas presumivelmente de igual valor, adquirindo e perdendo correspetivamente a propriedade sobre elas (cfr. o art. 1592º do Cód. Civil de 1867), e nisto se consumando o contrato.

No entanto, o art. 939º do Cód. Civil estabelece que – “As normas da compra e venda são aplicáveis aos outros contratos onerosos pelos quais se alienam bens ou estabeleçam encargos sobre eles, na medida em que sejam conformes com a sua natureza e não estejam em contradição com as disposições legais respectivas”.

No “Código Civil Anotado” de Pires de Lima e Antunes Varela, vol. II, 2ª edição, págs. 226/227, pode ler-se:

As disposições sobre compra e venda, escreve Galvão Telles (...), devem alargar-se, em princípio, aos outros contratos onerosos de alienação ou oneração de bens, como a troca, a dação em pagamento, a hipoteca, etc.[...]”.

E acrescenta, “há contratos, como o de escambo ou troca, que deixaram de ser regulamentados, por ser inútil essa regulamentação.

O Cód. Civil no art. 939º, ao considerar aplicáveis as normas do contrato de compra e venda a outros contratos onerosos que impliquem alienação ou oneração, na medida em que sejam conformes com a sua natureza e não estejam em contradição com as normas legais respetivas, remete para um contrato-tipo ou padrão – cfr. Ac. do STJ de 09-10-2007, no Proc. nº 07A2761.

Referindo o Ac. deste STJ de 27-04-2004, na Revista n.º 976/04 que, “I - O contrato de permuta, denominado no Código Civil de 1867 contrato de escambo ou troca, deixou de ser objecto de regulamentação específica na nossa lei, por tal regulamentação se ter tornado inútil face ao disposto no art.º 939 do CC, por força do qual se lhe aplicam as normas da compra e venda.

II - A diferença essencial entre esses dois contratos consiste em que, na permuta, à alienação de um bem não corresponde como contraprestação o simples pagamento de um preço, ou seja, de uma quantia em dinheiro de montante equivalente ao valor daquele bem, mas a alienação de outro bem para o alienante daquele.

Assim temos que bem andou o Tribunal recorrido ao qualificar o contrato como de compra e venda. Houve contratos sucessivos de compra e venda recíprocos, ou seja, as partes alternavam na posição jurídica que assumiam nos contratos, sendo umas vezes vendedoras e outras compradoras.

No acórdão recorrido se diz, “Ora, no caso dos autos, ao invés da conclusão a que chegou o Tribunal recorrido, não se divisa no fornecimento de fruta, protraído no tempo, recíproco entre as partes, mediante a concretização de importações e exportações entre ambas, valendo-se das vantagens dos diferentes ciclos periódicos de plantio e colheita de fruta, no Brasil e em Portugal, que, por um lado, o pagamento da maçã fornecida pela autora à ré fosse efetuado com o fornecimento de maçã da ré à autora e, vice-versa, nem, por outro lado, que tenha tido lugar um específico quadro contratual prévio, acordado no inicio da relação comercial, em finais de 2015, pelo qual se estabeleciam as regras pelas quais se pautava a relação comercial entre as partes, ou, pelo menos, não se apurou uma tal realidade, não o revelando os factos apurados. (…)

Ora, no caso dos autos, evidenciou-se que a componente pecuniária de pagamento do preço era inerente às trocas comerciais entre autora e ré.

Ou seja: Não havia especifica troca de fruta por fruta, no sentido de que, o cumprimento da obrigação de entrega de fruta "saldasse" ou "quitasse" o débito de fruta pré-existente.

O cumprimento das obrigações inerentes não se efetuava pela entrega de outro bem que não o pagamento do preço respetivo e acordado entre as partes. O cumprimento da obrigação reconduzia-se, pois, ao cumprimento da principal obrigação correspetiva da entrega da fruta vendida: a do pagamento do preço, ainda que tal fosse feito, a 180 dias, por forma a que, em termos económico-financeiros, o pagamento fosse realizado numa altura em que a contraparte já efetuaria um fornecimento de fruta e em que o fluxo financeiro da contraparte, procurasse, tanto quanto possível, anular o dispêndio inicial, decorrente da primeira aquisição. Mas, a correspetiva e principal obrigação não era a de entrega de nova fruta pelo recebedor da primeira, mas sim, o de observar o pagamento do preço da fruta vendida.

Tal conduz à exclusão de aplicação, como se viu, do regime do contrato de troca.

Nos autos não havia troca por troca, as partes não trocavam determinada quantidade de fruta por outra determinada quantidade, mas houve fornecimentos de fruta, quer por parte da autora à ré ou da ré à autora, a que correspondia, em cada fornecimento, a contrapartida do preço a efetuar.

E na linguagem do Regulamento (CE) N.º 593/2008 temos que a “prestação característica” do contrato consistia na entrega da fruta à contraparte (transmissão da propriedade de uma coisa), mediante o pagamento do preço (prestação não característica), o que caracteriza o contrato como de compra e venda.

Dos factos resulta que houve contratos de compra e venda entre a autora e a ré, sendo aplicável regime jurídico estabelecido legalmente para este tipo de contratos.


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Lei aplicável à questão da “compensação”, a lei portuguesa, ou a lei brasileira?

Aplicação do Regulamento comunitário (Roma I) às obrigações contratuais:

Luís Lima Pinheiro em “O Novo Regulamento Comunitário sobre a Lei Aplicável às Obrigações Contratuais (Roma I)- Uma Introdução”, em estudo elaborado com vista ao livro de homenagem ao Prof. Jorge de Figueiredo Dias, pág. 589 , in https://portal.oa.pt/upl/%7Becc8c284-43f7-449b-85da-d008ab992ec7%7D.pdfe sobre o âmbito de aplicação do Regulamento Rom I, refere:

“O Regulamento tem um carater universal porque deve ser aplicado pelos tribunais de qualquer Estado-Membro por ele vinculado (art. 1º/4) sempre que a situação caia dentro do seu âmbito material de aplicação (e do seu âmbito temporal de aplicação) e houver um conflito de leis. Para esse efeito é irrelevante que a relação não tenha conexão com um Estado-Membro ou que a lei designada pelas regras de conflitos do Regulamento seja a lei de um terceiro Estado (art. 2º)”.

E refere Maria Helena Brito in “Breves notas sobre o Regulamento relativo à lei aplicável às obrigações contratuais (“Roma I”)”, in https://elearning.cej.mj.pt/file.php/214/Documentacao_apoio_MHB/texto_comunicacao/texto_Maria_Helena_Brito.pdf que, “As regras constantes do Regulamento Roma I são aplicáveis às obrigações contratuais em situações que impliquem um conflito de leis, isto é, em situações plurilocalizadas, num sentido amplo. O Regulamento não tem efeitos limitados às situações em contacto com as ordens jurídicas dos Estados a ele vinculados; nos termos do artigo 2º, as normas de conflitos nele contidas podem conduzir à aplicação da ordem jurídica de um país que não seja Estado membro da União Europeia. Com efeito, o Regulamento tem carácter universal, à semelhança do que já antes acontecia com a Convenção de Roma. Consequentemente, as normas de conflitos do Regulamento determinam o direito aplicável a situações internacionais mesmo quando a respectiva internacionalidade resulte do contacto com o direito de um país onde o Regulamento Roma I não esteja em vigor. No ordenamento português, as normas de conflitos constantes quer da Convenção de Roma quer do Regulamento Roma I prevalecem sobre as normas de conflitos de fonte interna, nas matérias abrangidas por esses diplomas, tendo em conta o disposto na Constituição (artigo 8º, n.ºs 2 e 3, respectivamente) e considerando também o carácter universal dos actos em análise.

Não vigorando convenção internacional à qual os dois países tivessem aderido, na data da celebração dos contratos em causa, a Convenção de Viena apenas vigorou na nossa ordem jurídica a partir da adesão operada em 2020, pelo Decreto n.º 5/2020 de 7 de agosto que, “Aprova, para adesão, a Convenção das Nações Unidas sobre Contratos para Venda Internacional de Mercadorias, adotada em Viena, em 11 de abril de 1980” e os contratos internacionais em causa datam de 2017, é aplicável a legislação interna para dirimir conflitos de direito internacional privado.

Com a ratificação da Convenção de Roma de 1980 sobre a lei aplicável às obrigações contratuais por Portugal, pela Convenção de Adesão assinada em 18-05-1992, e publicada no D.R., Iª série-A, de 03-02-1994, entrando em vigor em 01-09-1994, os arts. 41º e 42º do Cód. Civil, foram relegados para segundo plano, sendo que o Regulamento tem forma de solucionar as questões surgidas nesta área, de forma mais completa.

Assim, a questão é analisada à luz do Regulamento Roma I.

E o recurso não impugna que é aplicável a lei portuguesa, já aplicada no acórdão recorrido.

O acórdão recorrido julgou aplicável aos contratos recíprocos de compra e venda, a lei portuguesa, referindo, “Conclui-se, assim, que a lei substantivamente aplicável é, por aplicação do disposto nos artigos 1º, n.º 1, 2.º e 4.º, n.º 4, do Regulamento Roma I, a lei portuguesa”.

Após considerar ser de aplicar a norma do nº 4 do art. 4º do REGULAMENTO (CE) N.º 593/2008 DO PARLAMENTO EUROPEU E DO CONSELHO de 17 de Junho de 2008, sobre a lei aplicável às obrigações contratuais (Roma I) que refere: “4. Caso a lei aplicável não possa ser determinada nem em aplicação do n.º 1 nem do n.º 2, o contrato é regulado pela lei do país com o qual apresenta uma conexão mais estreita.

Aplicando o critério da “conexão mais estreita” que, como salienta Luís de Lima Pinheiro in “Direito aplicável aos contratos com consumidores”, em texto da comunicação apresentada ao Iº Curso de Pós-Graduação em Direito do Consumo, organizado pela FDL em 2001, “o critério geral da conexão mais estreita permite atender a laços de qualquer natureza”, reafirmado pelo mesmo autor em “O Novo Regulamento Comunitário sobre a Lei Aplicável às Obrigações Contratuais (Roma I) – Uma Introdução” em estudo com vista ao Livro de Homenagem ao Professor Doutor Jorge de Figueiredo Dias, pág. 600.

Ou como salienta Maria Helena Brito em “Breves Notas sobre o Regulamento relativo à Lei aplicável às Obrigações Contratuais (Roma I)”, onde refere, “por último, se alei aplicável não puder ser determinada nem nos termos do nº 1, nem nos termos do nº 2, o contrato é regulado pela lei do país com o qual apresenta uma conexão mais estreita, conforme dispõe o nº 4 do art. 4º”.

Esta decisão de que a lei substantivamente aplicável é a lei portuguesa, não foi objeto de impugnação.

Apenas foi impugnada a decisão do acórdão recorrido que entendeu e relativamente à questão da compensação ser aplicável a lei brasileira referindo, “é, pois, de considerar aplicável à questão da compensação a lei brasileira (a do crédito contra o qual a compensação foi invocada)”.

Fundamenta o acórdão recorrido: “Ora, considerando o que supra foi referido, relativamente à lei aplicável à situação dos autos, verifica-se que o crédito reclamado pela autora se reporta a contrato de compra e venda celebrado com a ré, onde esta tem a posição de devedora do preço, sendo a ré que pretende opor a compensação à autora (credora da obrigação da contraparte).

As partes não se mostram de acordo com a existência do direito de compensação, pelo que, de harmonia com o disposto no artigo 17.º do Regulamento Roma I, a lei a considerar é a que é aplicável ao crédito (deduzido pela autora) contra o qual a ré pretende invocar a compensação, ou seja, a lei brasileira, inexistindo, motivo, nesta situação, para a aplicação da lei portuguesa.

Esta conclusão é contrária e diversa da que foi decidida na decisão recorrida, onde apenas se considerou a referência à invocada cessão atinente aos créditos da ré sobre a empresa M... Lda.. Todavia, como se viu, a compensação não se dirige a opor-se a este invocado crédito, mas sim, a contrapor-se à pretensão creditícia esgrimida pela autora.

Refere o art. 17º do Regulamento Roma I, com a epígrafe “Compensação” que, “Caso as partes não acordem no direito a compensação, a lei que regula a compensação é a lei aplicável ao crédito contra o qual se invoca a compensação”.

Não se compreende esta diferença de entendimento, de julgar aplicável ao(s) contrato(s) a lei portuguesa e relativamente à compensação ser aplicável a lei brasileira.

Por um lado, entende-se serem celebrados contratos recíprocos de compra e venda de fruta, por outro restringe-se a compensação ao crédito reclamado pela autora relativo a um específico contrato de compra e venda, onde a ré tem a posição de devedora do preço.

Como resulta do art. 17º do Regulamento Roma I, só quando as partes não acordem no direito a compensação, a lei que regula a compensação é a lei aplicável ao crédito contra o qual se invoca a compensação.

A lei que regula o crédito é a lei que regula o contrato e, sendo o contrato regulado pela lei portuguesa é também a lei portuguesa a aplicável ao direito a compensação.

Mas, no caso concreto, as partes acordaram no direito a efetuar compensação. Tal resulta da matéria de facto provada, pois no ponto 14 se refere que “a ré comunicou à autora a compensação dos seus créditos com o crédito da autora referido em 9”, donde resulta a normalidade de as partes compensarem débitos com créditos que existissem e, constando do mesmo ponto 14 que a “não aceitou a compensação face à pendência do procedimento de recuperação referido em 17”, o que corresponde a “só não” aceitou porque….

Assim temos que as partes acordaram no direito a compensação e, se não tivessem acordado, seria aplicável a lei portuguesa.

Pelo que, neste segmento, procederá o recurso.


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Efetivação da compensação:

O acórdão recorrido entendeu não ser possível efetuar a compensação pela ré porque entendeu ser aplicável a lei brasileira a qual impede que os créditos se compensem quando sobre a titular de um dos créditos a compensar incidiu procedimento de recuperação deferido.

Tendo em conta que este STJ entendeu ser aplicável a lei portuguesa, é operável a compensação.

O art. 99º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas expressamente à compensação se refere.

E este art. 99º, no seu nº 1 estabelece:

1 - Sem prejuízo do estabelecido noutras disposições deste Código, a partir da declaração de insolvência os titulares de créditos sobre a insolvência só podem compensá-los com dívidas à massa desde que se verifique pelo menos um dos seguintes requisitos:

a) Ser o preenchimento dos pressupostos legais da compensação anterior à data da declaração da insolvência;

b) Ter o crédito sobre a insolvência preenchido antes do contra crédito da massa os requisitos estabelecidos no artigo 847.º do Código Civil.

No caso, os créditos da ré sobre a autora são anteriores à declaração da insolvência da autora.

A insolvência da autora (falência na terminologia da legislação brasileira) foi decretada apenas em 17 de fevereiro de 2020, conforme facto nº 19 e, interposto recurso, foi-lhe fixado efeito suspensivo, por decisão de 3 de março de 2020.

E os créditos da ré sobre a autora encontravam-se vencidos muito antes de ser decretada a falência desta. O art. 99º do CIRE reporta-se à “data da declaração da insolvência” e não ao deferimento da apresentação a “procedimento de recuperação”.

Neste sentido, o Ac. deste STJ de 10-09-2019, no Processo nº 146570/14.0YIPRT.C1.S1, em cujo sumário se pode ler: “I O CIRE, ao contrário da legislação pregressa, que não admitia a compensação (artigo 153º do CPEREF), prevê expressamente tal possibilidade, nos termos especificamente consignados no artigo 99º, ressalvadas as situações do seu nº4.

II A compensação de créditos em sede insolvencial aparece-nos como uma garantia (tendo em atenção a natureza polissémica deste termo), pois confere ao seu titular a possibilidade de se ver ressarcido do seu crédito de uma forma «privilegiada» em relação aos demais credores comuns, abstendo-se de desembolsar qualquer quantia, fazendo deduzir o montante da sua dívida ao do contra crédito sobre o seu devedor/credor, determinando-se desta forma o valor final do crédito «compensado».

III Instaurada pela massa Insolvente contra uma sua devedora, acção para cobrança de dívida, pode esta opor àquela, em sede de compensação, o crédito que assim lhe foi reconhecido na oportunidade em reclamação de créditos suscitada por apenso ao processo de insolvência, reconhecimento esse que fez caso julgado.

Verificava-se à data da insolvência (falência) da autora a exigibilidade judicial do crédito da ré, isto é, do crédito do credor que pretende compensar.

Sendo que à ré foi reconhecido o crédito de 268471,40€ no processo de recuperação da autora, a que acresce o crédito de 40722,01€, cedido à ré pela M... Lda. Ldª.

Assim, o crédito total da ré, a compensar, é no montante de 309193,41€ e o crédito da autora é no montante de 390497,50€.

Sendo que o crédito da autora excede a compensação em 81304,09€ e que constitui a quantia em dívida pela ré à autora.


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Face ao entendimento deste Tribunal, acabado de expor, fica prejudicado o conhecimento das demais questões suscitadas pela recorrente.

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Sumário elaborado nos termos do art. 663 nº 7 do CPC:

I- A autora e a ré, reciprocamente, compravam e vendiam fruta, valendo-se das vantagens advindas dos diferentes ciclos periódicos de plantio e colheita no Brasil e em Portugal e, os factos provados apontam no sentido de sucessivos contratos de compra e venda entre autora e ré, alternando a qualidade de compradora e vendedora.

II- O contrato de permuta, troca ou escambo (figura jurídica não contemplada na lei civil atual, mas que o princípio da liberdade contratual leva a admitir na sua plenitude) é o contrato pelo qual se dá uma coisa por outra, isto é, é o contrato pelo qual os contraentes se atribuem reciprocamente coisas presumivelmente de igual valor, adquirindo e perdendo correspetivamente a propriedade sobre elas (cfr. o art. 1592º do Cód. Civil de 1867), e nisto se consumando o contrato.

III- Resulta do art. 17º do Regulamento Roma I que, só quando as partes não acordem no direito a compensação, a lei que regula a compensação é a lei aplicável ao crédito contra o qual se invoca a compensação.

IV- A lei que regula o crédito é a lei que regula o contrato e, sendo o contrato regulado pela lei portuguesa é também a lei portuguesa a aplicável ao direito a compensação.

Decisão:

Em face aos fundamentos expostos acordam, no STJ e 1ª Secção, em:

Julgar procedente o recurso de revista e, consequentemente, revoga-se o acórdão recorrido e efetuando a compensação entre os créditos da autora e da ré, condena-se esta a pagar àquela a diferença entre os créditos, ou seja, na quantia de 81304,09€, absolvendo-se do mais em que vinha condenada.

Custas pela recorrida.

Lisboa, 09-05-2023


Fernando Jorge Dias – Juiz Conselheiro relator

Jorge Arcanjo – Juiz Conselheiro 1º adjunto

Isaías Pádua – Juiz Conselheiro 2º adjunto