Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
04A192
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: NUNO CAMEIRA
Descritores: DIREITO PESSOAL DE GOZO
AQUISIÇÃO DE IMÓVEL
DIREITO DE PERSONALIDADE
COLISÃO DE DIREITOS
Nº do Documento: SJ200404270001926
Data do Acordão: 04/27/2004
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL GUIMARÃES
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Sumário : 1) - Os direitos pessoais de gozo possibilitam ao seu titular o gozo directo e autónomo de determinada coisa, o qual, porém, diversamente do que sucede com os direitos reais de gozo, tem sempre por fundamento uma relação obrigacional, de que nunca se desprende.
2) - O facto de na ocasião em que foi celebrada a escritura de compra e venda da fracção habitacional a vendedora ter referido ao comprador que a área de terreno sobrante, fronteira ao edifício, seria utilizada para instalar um equipamento colectivo, não confere àquele um direito pessoal de gozo sobre tal parcela de terreno que lhe permita impedir a vendedora de posteriormente ali construir um prédio fora daqueles moldes.
3) - A conclusão referida em 2) não se altera mesmo que no projecto de construção inicialmente apresentado para aprovação na câmara municipal a vendedora tenha feito constar da memória descritiva aquela afectação do terreno sobrante, esclarecendo que isso lhe permitiria aproveitar tal área com uma altura máxima de construção inferior à já existente.
4) - A prevalência dos direitos de personalidade sobre os outros direitos, mesmo os absolutos, indiscutível em abstracto, deve contudo ser afirmada pelos tribunais com base na ponderação concreta da situação ajuizada, sopesando devidamente os factos, por forma a que, havendo colisão de direitos, todos eles possam na medida do possível produzir igualmente os seus efeitos.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

I. No Tribunal de Guimarães, A e sua mulher B propuseram uma acção ordinária contra C, Ldª.
Pediram a condenação da Ré:
a) A reconhecer que o terreno sobrante com a área de 600 m2 identificado na petição, no qual a ré tem em construção um prédio projectado e licenciado, foi por ela adstrito a zona de equipamentos públicos, mediante aditamento apresentado no processo de licenciamento de obras que a Câmara Municipal lhe aprovou pelo alvará nº 189, de 25.3.82, e que esse prédio em construção não tem a natureza de equipamento público;
b) A reconhecer que os autores lhe compraram e ela lhes vendeu a fracção identificada nos artºs 1º a 18º da petição porque a ré, para lhes garantir melhores condições de habitabilidade e desafogo de vistas, se obrigou a que aquele terreno sobrante ficasse destinado à instalação de um equipamento de interesse colectivo, que poderia ser um espaço ajardinado ou um parque infantil;
c) A reconhecer que o prédio em construção referido em a) ofende os direitos fundamentais dos autores à saúde, bem estar, conforto e ambiente de vida humana sadio e ecologicamente equilibrado;
d) A demolir esse prédio e a repor o terreno sobrante nas condições em que se encontrava antes da data do início da construção, abstendo-se de no futuro ali efectuar qualquer construção que não tenha a natureza de equipamento público, ou que não seja um equipamento colectivo diverso de espaço ajardinado ou parque infantil.
Subsidiariamente, pediram a condenação da ré no pagamento de 1.500 contos de indemnização por danos patrimoniais e no que se liquidar em execução de sentença pelos danos morais ocasionados pela construção do imóvel.
A ré contestou e deduziu reconvenção.
Foi proferido despacho, transitado, julgando inadmissível a reconvenção.
II. No mesmo Tribunal, D e sua mulher E propuseram uma acção ordinária contra a ré identificada em I) e F e mulher G.
Pediram a condenação dos réus:
a) A reconhecer que os autores são donos e possuidores da fracção autónoma referida no artº 1º da petição inicial e que na ocasião da venda dessa e das demais fracções dos blocos a quem lhas adquiriu se obrigaram a afectar de futuro o terreno sobrante, onde está em construção o prédio a que os autos aludem, a área complementar dos prédios, com espaço ajardinado ou jardim infantil e equipamento público afecto aos mesmos blocos;
b) A reconhecer que a construção que vêm levando a efeito naquele terreno não satisfaz o compromisso referido na alínea anterior nem tem a natureza de equipamento público, e que para os autores foi condição essencial da compra da sua fracção que lhes fossem garantidas as melhores condições de habitabilidade, salubridade e vistas, nomeadamente através da afectação do terreno sobrante à instalação de um equipamento de interesse colectivo, com espaço ajardinado ou jardim infantil;
c) A reconhecerem que o prédio em construção naquele espaço constituirá sensível agravamento das condições de habitabilidade, salubridade, privacidade, conforto, ambiente e qualidade de vida das demais fracções componentes dos blocos já edificados, e entre eles da pertencente aos autores;
f) A demolirem totalmente o prédio em construção, repondo o solo no estado anterior ao início daquela, abstendo-se de no terreno sobrante efectuarem de futuro qualquer construção que não respeite o compromisso assumido perante os autores.
Subsidiariamente, pediram a condenação dos réus no pagamento duma indemnização global de 4 mil contos por danos materiais e morais decorrentes da desvalorização inerente à construção do prédio ajuizado.
Os réus contestaram, impugnando os factos articulados pelos autores e concluindo pela improcedência da causa.
III. Foi proferido em ambas as acções despacho saneador e de condensação, fixando a base instrutória.
A requerimento dos advogados das partes, apresentado na acção intentada por D e sua mulher, foi pedida - e deferida em 13.3.00 - a apensação dos processos para julgamento conjunto, nos termos do art.º 275º do CPC.
Realizado o julgamento, foi proferida em 22.11.02 sentença relativamente a cada uma das acções: na primeira (secção I) a ré foi absolvida da totalidade dos pedidos; na segunda (secção II), que procedeu em parte, os réus foram condenados a reconhecer que os autores são donos do prédio identificado no art.º 1º da petição inicial, e absolvidos do restante.
Sob apelação dos autores, a Relação confirmou ambas as sentenças.
Daí as presentes revistas, em que se pede a revogação do acórdão recorrido com base na violação dos art.ºs 405º a 407º, 483º, 562º, 798º e 1305º do Código Civil, 60º e 73º do RGEU.
Os réus apresentaram contra alegações, sustentando a confirmação do julgado.
Tudo visto, cumpre decidir.
IV. Os factos provados a considerar são os definitivamente estabelecidos no acórdão da Relação, para o qual se remete, nos termos dos art.ºs 726º e 713º, nº 6, do CPC.
As conclusões úteis dos recursos (no sentido visado pelo art.º 690º, nº 1, do CPC) são as seguintes:
a) Na revista de A e sua mulher B:
1ª - O facto de a ré ter feito constar do processo de licenciamento que o terreno sobrante seria afectado a zona de equipamentos públicos e referido aos autores, quando negociou com eles a compra da fracção, que aquela área seria utilizada para instalar um equipamento de interesse colectivo traduz a estipulação de cláusula acessória do contrato, entendida no sentido de que se obrigou a não construir naquela zona edifício que não correspondesse a um equipamento de interesse colectivo ou público;
2ª - As distâncias mínimas previstas nos art.ºs 60º e 73º do RGEU (DL 38.383, de 7.8.51) conferem aos particulares autênticos direitos subjectivos; assim, na medida em que contraria o disposto nestes preceitos, o edifício a construir pela ré na área de terreno sobrante viola o correspondente direito dos recorrentes ao bem estar e o direito de propriedade da sua fracção e é causa de prejuízo patrimoniais e morais ressarcíveis.
b) No recurso de D e sua mulher E:
1ª) A obrigação que os réus assumiram perante a Câmara Municipal e perante os autores de não ocuparem integralmente a periferia disponível do terreno sobrante constitui uma verdadeira cláusula contratual que foi incumprida, o que implica, consequentemente, a sua responsabilização pelos danos ocasionados;
2ª) Essa obrigação não cumprida concede aos autores um direito concebível como direito pessoal de gozo ou direito de carácter obrigacional, na dupla acepção de gozo directo da coisa ou simples faculdade de a usar, independentemente da efectividade do uso;
3ª) A diminuição das condições de salubridade, higiene, privacidade e segurança da fracção autónoma dos autores em resultado da construção feita pelos réus no terreno sobrante representa, quer violação do direito pessoal de gozo efectivamente exercido até antes da construção - direito a razoáveis condições higiénicas de habitabilidade e salubridade de que a fracção dispunha e deixará de dispor - quer violação do direito pessoal de gozo ou da obrigação contratual assumida pelos réus consistente na faculdade de os recorrentes exigirem que, independentemente daquela violação do seu gozo directo, qualquer construção a implantar no terreno em causa seja de mais baixa altura e destinada a um equipamento de interesse colectivo.
Na apelação interposta para a Relação os recorrentes A e sua mulher delimitaram o âmbito do recurso mediante três conclusões: nas duas primeiras inseriram questões relativas ao julgamento de facto, cuja modificação preconizaram; na última, a mesma que aqui se referenciou em primeiro lugar, se bem que apresentada de maneira não totalmente coincidente. Isto significa que a questão posta na 2ª conclusão da presente revista, atinente à natureza e efeitos dos direitos estabelecidos no RGEU, não fez parte do objecto da apelação; por isso mesmo não foi, nem tinha que ser objecto de apreciação por parte da Relação; logo, também ao Supremo está vedado conhecer dela, sob pena de cometimento de nulidade por excesso de pronúncia, como resulta das disposições combinadas dos art.ºs 660º, nº 2, 668º, nº 1, d), 684º, nºs 3 e 4, e 690º, nº 1, do CPC.
A outra questão desta revista (sua 1ª conclusão) coincide, como facilmente se constata, com a levada a idêntica conclusão do recurso de D e sua mulher; e também é certo que a 2ª e a 3ª conclusões deste último estão intimamente relacionadas com aquela (e entre si), havendo sobreposição parcial do respectivo objecto.
Tentaremos, portanto, apreciá-las em conjunto.
No que se refere ao primeiro problema, parece-nos evidente a falta de razão dos recorrentes, num e noutro dos processos, não obstante o brilhante esforço dialéctico desenvolvido nas alegações e a elevação com que estas se apresentam.
Com efeito, em sede de matéria de facto apenas se provou que na ocasião da compra das fracções habitacionais a ré referiu aos autores que a área de terreno sobrante seria utilizada para a instalação dum equipamento de interesse colectivo. Ora, isto é coisa inteiramente distinta duma verdadeira e própria estipulação contratual vinculativa e, por isso, judicialmente accionável em caso de incumprimento, nos termos dos art.ºs 406º e 817º do Código Civil. Afirmar, como se afirma na revista dos autores D e mulher, que a referência ou informação prestada pela ré "reveste naturalmente carácter de verdadeira cláusula contratual, ou seja, é "um elemento do conteúdo do negócio", constitui, salvo o devido respeito, um autêntico "salto no desconhecido", uma inferência lógica e jurídica que os factos apurados de modo algum consentem. Nada, absolutamente nada ficou provado que indicie ter existido um encontro de vontades, um acordo no sentido preconizado pelos recorrentes. É certo que, no projecto de construção inicialmente apresentado para aprovação na câmara municipal, a ré fez constar da memória descritiva que o terreno sobrante seria afectado à instalação dum equipamento de interesse colectivo que permitiria o aproveitamento dessa área com uma altura máxima de construção muito inferior à existente. Porém, o licenciamento da obra em tais moldes, por si só, não permite que daí se faça derivar um direito de crédito de que seriam titulares todos os que, nos edifícios construídos pela ré à volta daquele terreno, se sentissem atingidos com a construção feita à margem daquela anunciada intenção.
A tentativa de enquadrar a situação na figura dos direitos pessoais de gozo, embora meritória do ponto de vista teórico, afigura-se de igual modo improcedente.
Os direitos pessoais de gozo estão explicitamente referenciados em vários pontos do nosso Código Civil - cfr. os art.ºs 407º, 574º, nº 1 e 1682º-A, nº 1, a), e nº 2. Não se trata, portanto, duma mera categoria doutrinária. Não é fácil, porém, a sua definição, como dão nota os vários autores que se têm debruçado sobre o tema, alguns deles referidos na alegação dos recorrentes D e mulher. Como escreve Rui Pinto Duarte no seu Curso de Direitos Reais (Editora Principia, pág. 28) os direitos pessoais de gozo são actualmente concebidos, cada vez mais, como um tertium genus entre as duas categorias principais de direitos subjectivos privados (direitos de crédito/direitos reais). No mesmo sentido opina Miguel Mesquita na obra Apreensão de Bens em Processo Executivo e Oposição de Terceiro (Editora Almedina, pág. 168). Com utilidade prática para resolver a situação sub júdice, de qualquer modo, a definição mais perfeita desta espécie de direitos encontrámo-la em Henrique Mesquita (Obrigações Reais e Ónus Reais, pág. 50 e sgs). Segundo este autor, o que caracteriza os direitos pessoais de gozo e lhes confere especificidade, quando confrontados com outros direitos de natureza creditória, é apenas a circunstância de possibilitarem ao titular, com vista à satisfação do seu interesse, o gozo directo e autónomo de determinada coisa. O poder de gozo, porém, tem por base ou fundamento uma relação obrigacional, da qual nunca se desprende (1). Já o mesmo não acontece com os direitos reais de gozo (sobre coisa própria ou alheia): estes, justamente por não serem direitos relativos, não pressupõem uma vinculação obrigacional com quer que seja; por isso, uma vez constituídos (por contrato, usucapião, testamento, acessão, etc) desligam-se da respectiva matriz e conferem ao seu titular uma posição jurídica que não depende de ninguém. Nos direitos pessoais de gozo, diversamente, não pode nunca deixar de atender-se à fonte de onde promana o poder directo de gozo sobre a coisa; e essa fonte, como salienta o autor que se cita, "é constituída por uma vinculação obrigacional assumida pela pessoa a quem competia o gozo da coisa (proprietário, usufrutuário, etc)".
Ora, conforme atrás se disse, o que justamente falta na situação ajuizada é a assunção por parte dos recorridos duma vinculação obrigacional, no sentido visado pelo art.º 397º do CC, que tenha por efeito a atribuição aos recorrentes de um direito pessoal de gozo sobre o dito terreno sobrante. Que direito, em concreto? Um direito tal que do seu exercício resultem directa e autonomamente limitações ao exercício do "jus aedificandi" de que os recorridos são titulares, enquanto proprietários daquela parcela de terreno; o direito, por outras palavras, de impedir a edificação do prédio dos réus para além de determinada altura e para outro fim que não equipamento de interesse colectivo.
O problema colocado na 3ª conclusão da revista de D e sua mulher pode ainda ser analisado sob o ângulo dos direitos de personalidade. Esta espécie de direitos distingue-se pelo seu carácter absoluto, mas entendida esta característica num sentido mais profundo e radical do que acontece com um qualquer direito real: tutelando os direitos de personalidade bens de valor eminente - inerentes ao ser, não ao ter dos homens - a obrigação passiva universal que lhes corresponde implica, mais do que um dever geral de abstenção, um dever também geral, mas activo, um dever de atenção e de respeito. Não se exigindo aqui, portanto, ao contrário das outras categorias de direitos a que se aludiu, um vínculo obrigacional que sirva para justificar a exigência duma determinada conduta por parte do titular, bastaria a comprovação de actos lesivos daqueles direitos dos autores para se poder encarar a hipótese de intervir. Está claro, contudo, que a intervenção não poderia nunca fazer-se a qualquer preço. A prevalência dos direitos de personalidade sobre os outros direitos, indiscutível em abstracto, deve ser afirmada pelos tribunais com base na ponderação concreta da situação ajuizada, sopesando devidamente os factos, por forma a que, como de resto determina o art.º 335º do CC, todos os direitos em presença produzam na medida do possível igualmente os seus efeitos, sem maior detrimento para qualquer deles quando isso se revele possível. Tem sido esta a orientação preconizada pelo Supremo Tribunal na esmagadora maioria dos casos submetidos à sua apreciação (2).
Na situação ajuizada, porém, não se provaram factos concretos suficientemente impressivos para se poder dizer que há direitos de personalidade dos autores violados em termos de merecer reparação por parte dos réus. Neste particular, o que se demonstrou foi somente que com a construção do prédio as fracções autónomas dos recorrentes perderão vistas. Isto, porém, pouco ou nada é para se ajuizar segura e justamente a respeito do assunto. Não chega, manifestamente, ante a falta de outros elementos de facto complementares, para se concluir que há direitos de personalidade dos recorrentes violados pela construção levada a cabo pelos réus; e não chega, acima de tudo, para se fixar com um mínimo de certeza e segurança a medida em que o direito dos recorridos construírem no terreno que lhes pertence deveria ser, na situação concreta dos autos, modificado ou condicionado no seu exercício, dentro do espírito que presidiu à estatuição do art.º 335º do CC.
Improcedem, assim, todas as conclusões.
V. Nestes termos, negam-se as revistas.
Custas de cada uma das revistas interpostas pelos respectivos recorrentes.
Lisboa, 27 de Abril de 2004
Nuno Cameira
Sousa Leite
Afonso de Melo
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(1) Penha Gonçalves (Curso de Direitos Reais, Universidade Lusíada, pág. 185) também defende que nos direitos pessoais de gozo a faculdade de gozo assenta numa relação do tipo obrigacional e por isso pessoal.
(2) Cfr, por último, o recente acórdão de 20.4.04, proferido na revista nº 4430/03, com intervenção dos mesmos juízes do presente.