Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1754/18.3T8CSC.L1.S1
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: MARIA OLINDA GARCIA
Descritores: EMPREITADA
INCUMPRIMENTO
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
EQUIDADE
DUPLA CONFORME
Data do Acordão: 12/19/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: REVISTA IMPROCEDENTE.
Sumário : Não merece censura o acórdão que fixou em 10.000 Euros, com base na equidade, a compensação por danos não patrimoniais (grave depressão) sofridos pela dona da obra, face ao incumprimento do empreiteiro que a privou da sua habitação.
Decisão Texto Integral: Processo n.1754/18.3T8CSC.L1.S1

Recorrente: AA


Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


I. RELATÓRIO

1. AA propôs a presente ação declarativa, sob a forma de processo comum, contra BB, CC e “S..., Lda.”, peticionando, além do mais, e no que interessa à presente revista, a condenação solidária destes a pagar à Autora a quantia de 45.000 euros, a título de ressarcimento de danos não patrimoniais sofridos, imputáveis à atuação dolosa dos réus.

Alegou, para além do mais, que:

- no dia 25.07.2011, na qualidade de dona de obra, celebrou com os três réus um contrato de empreitada de obra particular, pelo qual lhes adjudicou trabalhos de remodelação do edifício do n. 20 da Rua ..., em ...;

- o réu BB foi o responsável técnico pela execução da obra junto da Câmara Municipal de ..., que a licenciou;

- todos os pagamentos relativos aos trabalhos do contrato de empreitada deveriam ser efetuados à ré “S..., Lda.”, que ficaria incumbida da gestão dos pagamentos a efetuar pela autora ao réu BB e da mediação da obra e dos serviços de consultadoria inerentes à mesma;

- o réu CC, assumiu-se como empreiteiro da obra;

- as obras iniciaram-se em outubro de 2011 e, por tal motivo, a autora teve de arrendar uma casa pequena para viver, enquanto não fosse possível regressar à sua habitação;

- em abril de 2012, os réus abandonaram a obra;

-a autora, ao constatar que tinha a sua casa totalmente inabitável, que já tinha pago 54 mil euros, e não tinha dinheiro para custear a finalização das obras, sendo obrigada a viver em 2 assoalhadas, com 380 euros mensais de renda, entrou em depressão psiquiátrica, cuja responsabilidade imputou à atuação dos réus.

2. Os réus S..., Lda.” e CC foram citados pessoalmente e contestaram. A primeira impugnou o alegado pela autora, dizendo que no âmbito do contrato a sua tarefa se restringia à mediação e ao recebimento das quantias, não tendo qualquer outra intervenção na empreitada. O segundo negou que tivesse celebrado o contrato invocado pela autora.

3. O réu BB foi citado editalmente, não contestou e, consequentemente, foi citado o Ministério Público.

4. Em 16.08.2022 foi proferida sentença que julgou a ação improcedente e absolveu todos os réus dos pedidos formulados pela autora.

5. Inconformada com a sentença, a autora interpôs recurso de apelação, tendo o TRL revogado parcialmente essa decisão e proferido o seguinte dispositivo:

«julgar parcialmente procedente a apelação, condenando o réu BB, a pagar à autora/apelante a quantia de € 10.000,00 (dez mil euros), a título de danos não patrimoniais, acrescida de juros de mora, à taxa legal, a contar da presente decisão, mantendo-se, quanto ao mais, a decisão recorrida.»

6. Contra esse acórdão, a autora apelante interpôs o presente recurso de revista. Nas suas alegações, a recorrente formulou as seguintes conclusões:

«I. O Tribunal a quo concluiu que a Autora invocou a consideração de factualidade que não se encontra no rol dos factos seleccionados pelo Tribunal de 1ª Instância, que não identificou, minimamente, os concretos pontos da matéria de facto incorrectamente julgados ou desconsiderados, e qual a decisão que deveria ter sido proferida sobre as questões de facto que a Autora invocou, e também não invocou que determinariam outra factualidade.

Ainda assim, e face a tais insuficiências recursivas, o Tribunal a quo não subscreveu in totum a posição da Exma. Procuradora, representante do Réu foragido, que classificou a pretensão da Autora sobre o resultado probatório alcançado pelo tribunal como “mera manifestação de inconsequente conformismo”.

Acabando por condenar o co-Réu BB no pagamento à Autora de 10 mil euros a título de compensação monetária por danos não patrimoniais, por esta sofridos, acrescido de juros de juros de mora à taxa legal, a contar da prolação do douto acórdão.

II. Sucede que, no que tange à responsabilidade do co-Réu BB, foi dado como provado que a Autora entrou em depressão psiquiátrica em face do abandono da obra, não concluída, e por ter a casa inabitável, sem possibilidades monetárias de a concluir. Consequentemente, a Autora foi assistida por médica de Maio de 2012 até 2018, está a tomar anti-depressivos, sendo certo que, não tinha problema sde saúde do foro mental antes da adjudicação da obra, razão pela qual peticionou a compensação monetária de 46 mil euros, para, de algum modo, compensar o carácter irreversível da doença, já que a ciência pouco evoluiu no tratamento da mesma para além dos medicamentos paliativos de controlo de surtos psicóticos.

Não sendo despiciendo relevar que o ordenado mínimo nacional é de 760 euros, a Autora completa 61 anos em Dezembro, a esperança média de vida é de 75 anos.

Assim sendo, e considerando que o Venerando Tribunal da Relação concluiu que “in casu” o abandono da obra determinou um patamar suficientemente grave na doença mental da Autora, o montante peticionado por esta de 46 mil euros, não deixa de ser ajustado e conforme aos princípios da equidade.

III. E que, no entendimento da ora Recorrente, tal condenação deve vincular, solidariamente os três co-Réus demandados, pelas razões atrás expostas.

IV. Não obstante ter sido sublinhado pelo douto acórdão recorrido que (sic) “...repetidamente o Supremo Tribunal de Justiça tem dito, a indemnização por danos não patrimoniais tem de assumir um papel significativo, devendo o juiz, ao fixá-lo segundo critérios de equidade, procurar um justo grau de “compensação”, não se compadecendo com a atribuição de valores meramente simbólicos, nem com miserabilismos indemnizatórios”, a verdade é que, do ponto de vista da ora Recorrente, tal asserção não teve expressão na douta decisão proferida, e com violação do espírito da lei.

Assim sendo, do ponto de vista da Recorrente, o Tribunal a quo violou os princípios da equidade e proporcionalidade ínsitos no art.º 496º, n.º 3 do Código Civil e é fundamento do presente Recurso de Revisão, por erro de aplicação de tal norma, conforme preceituado no art.º 674º, n.º 1, al. a) e n.º 2 do Código de Processo Civil.

De todo o modo, e salvo o devido respeito por opinião contrária, o Tribunal a quo, ao não considerar a responsabilidade solidária dos co-Réus S..., Lda., e CC, entidades cujas tarefas estão expressamente vertidas no documento n.º 1 junto aos autos e que é correspondente ao contrato de empreitada de obra particular, contrato este que é um mero embuste porque é o Réu BB que assina em nome do “empreiteiro” CC.

Porém, Vossas Excelências decidirão como melhor for de Justiça!»

7. A recorrida “S..., Lda.” respondeu às alegações da recorrente, formulando as seguintes conclusões:

«1. Na perspectiva da R./Recorrida S..., Lda., o Acórdão recorrido, não merece qualquer reparo;

2- A intervenção da mesma, no âmbito do contrato dos autos limitava-se á supra considerada: Gestão dos pagamentos que a autora efectuaria e mediação da obra e dos serviços de consultadoria inerentes á mesma. Atentos os factos apurados, a intervenção da R./Recorrida S..., Lda. não determina alguma responsabilidade quer pela situação pessoal da A./recorrente, quer pela inexecução – a partir do momento em que teve lugar a sustação – da obra e questão.

3. Era a esta que incumbia o ónus da prova dos factos que alegou na petição inicial.

4- O que não conseguiu;

5- À R/Recorrida. S..., Lda. competia, tão só desenvolver funções de mediação na obra e não de empreiteira ou de direcção da obra;

6- A R./Recorrida S..., Lda. cumpriu com todas as suas funções para com a A./Recorrente;

7- Pelo que, não assiste razão à A./Recorrente nas sua Alegações de Recurso

Cabe apreciar.


*


II. FUNDAMENTOS

1. Admissibilidade e objeto da revista

O acórdão recorrido deu parcial provimento à apelação da autora. Porém, esta continua inconformada quanto à não condenação solidária dos vários réus e quanto ao montante da indemnização por danos morais (já que lhe foram atribuídos 10.000 Euros, em vez dos 45.000 que havia peticionado). A revista é admissível, apenas quanto ao conhecimento do montante indemnizatório, nos termos do art.671º, n.1 do CPC (como infra se explicitará).

O objeto da revista é, em princípio, determinado pelas conclusões das alegações do recorrente, como decorre do estatuído no art.635º, n.4 do CPC. A recorrente pretende que sejam apreciadas as seguintes questões: saber se os outros réus deviam ter sido absolvidos do pedido; saber se o montante indemnizatório pelos danos não patrimoniais, determinado segundo regras de equidade, foi o correto.

2. A factualidade provada

Factos Provados

1º. No dia 25 de Julho de 2011, a Autora celebrou com os Réus “S..., Lda.” e BB, um acordo denominado “Contrato de Empreitada de Obra Particular”, nos termos do doc. de fls. 7-8 dos autos.

2º. Por via desse acordo, a Autora adjudicou ao Réu BB, e sob proposta apresentada pela Ré S..., Lda., os trabalhos de remodelação do edifício, que estes aceitaram, correspondente à vivenda sita no n. 20 da Rua....

3º. Trabalhos estes que teriam de observar a regulamentação técnica em vigor e as regras de arte, definidas em documento anexo, de fls. 10 e segs., que constitui o orçamento que foi apresentado à Autora pela Ré S..., Lda..

4º. O Réu BB, é o responsável técnico pela execução da obra junto da Câmara Municipal de ..., que a licenciou.

5º. O preço total devido pela execução dos trabalhos é de 68.000 euros, ao qual acrescerá o IVA à taxa legal em vigor, no total de 83.640€.

6º. Os pagamentos devidos no âmbito do acordo deveriam ser efetuados à Ré S..., Lda..

7º. A Ré S..., Lda. ficaria encarregue da gestão dos pagamentos a efetuar pela Autora ao Réu BB e da mediação da obra e dos serviços de consultadoria inerentes à mesma.

8º. Não provado

9º Os pagamentos seriam efetuados da seguinte forma:

a) - com a adjudicação da obra - 20 mil euros + IVA;

b) com a estrutura concluída - 20 mil euros + IVA;

c) com os revestimentos colocados 20 mil euros + IVA;

d) com a conclusão da obra - 8 mil euros + IVA;

10º. Sendo que a obra de remodelação do imóvel consistia em:

- demolições do telhado, e de todo o interior do edifício, em madeiramento;

- na edificação de um novo telhado, em laje;

- construção dos pisos em betão;

- construção de uma escada em viga metálica que ligaria o rés do chão ao lº andar;

- colocação de portas interiores em madeira e exteriores em alumínio;

- colocação de janelas com vidro duplo e portadas exteriores;

- construção de 2 varandas e 1 marquise;

- instalação de loiças sanitárias e de cozinha;

- instalação de redes de gás, electricidade, água, esgotos e telecomunicações;

- aplicação de azulejos no chão de todas as divisões do edifício;

- aplicação de azulejos nas paredes da casa de banho e da cozinha;

- isolamento exterior e interior do edifício;

- pintura exterior e interior do edifício;

11º. As obras iniciaram-se no mês de Outubro de 2011.

12º. Por tal motivo, a Autora teve necessidade de arrendar uma casa pequena para viver, a partir de 21 de Outubro de 2011, enquanto não fosse possível regressar à sua habitação com um mínimo de condições de habitabilidade.

13º. Devido ao valor das rendas praticadas, conseguiu uma casa na localidade de Belas e o local de trabalho da autora é o Hospital de ....

14º Não provado.

15ºA Autora entregava aos Réus S..., Lda. e BB todas as “tranches” de faseamento de obras, fiscalizadas pelo engenheiro do banco mutuante que aprovou o financiamento da remodelação da sua casa.

16º. A partir de Março de 2012, o Réu BB exigiu da Autora mais adiantamentos de dinheiro, invocando que tinha investido montante superior ao que havia sido pago em materiais.

17º. Não provado.

18º. O projeto de remodelação do edifício em causa, descrito no Orçamento n. 261110, de 16/03/2011, apresentado pela Ré S..., Lda., foi executado em 68%.

21º. No dia 30 de Abril de 2012, o Réu BB abandonou a obra, invocando que a Autora se recusou a pagar mais dinheiro pela obra.

23º. O estado de construção do edifício naquela data não permitia que o mesmo fosse reutilizado pela Autora por falta de condições de habitabilidade.

24º A Autora pagou aos Réus, através do banco, a quantia global de 54.000 euros.

25º. Com o abandono da obra, os Réus não executaram os seguintes trabalhos:

- construção de escada, em viga metálica, que ligaria o rés do chão ao le andar;

- colocação de portas interiores em madeira e exteriores em alumínio;

- colocação de janelas com vidro duplo e portadas exteriores;

- construção de 2 varandas e 1 marquise;

- instalação de loiças sanitárias e de cozinha;

- aplicação de azulejos no chão de todas as divisões do edifício;

- aplicação de azulejos nas paredes da casa de banho e da cozinha;

- isolamento e pintura exterior e interior;

26º. Não provado.

27º. No dia 28 de Setembro de 2012, o Réu BB remeteu à Autora uma carta a informar que não havia condições para a continuidade da obra.

28º. Esse Réu mais informou que iria contactar a Câmara de... para retirar o seu termo de responsabilidade da obra.

30º. No dia 18 de Fevereiro de 2013, a Autora interpelou, por carta, o Réu BB, para, no prazo de 15 dias, devolver a quantia de 21.931 Euros.

31º. Carta com o mesmo teor e a mesma motivação foi remetida para a Ré S..., Lda., datada de 19 de Fevereiro de 2013.

32º. A Autora continua a não poder regressar à sua casa, dado o estado em que se encontra a vivenda, que tem o esqueleto interior sem portas, sem janelas, sem louças sanitárias, sem chão de azulejo e sem escadas com degraus.

35º. Não provado.

36º. A Autora, em face do abandono da obra e por ter a casa inabitável, sem possibilidades monetárias de a concluir, entrou em depressão psiquiátrica.

39º. A partir de Maio de 2012 e até 2018, a Autora teve que passar a ser assistida pela Médica Psiquiatra Dra. DD.

40º. Tendo estado internada na enfermaria de Psiquiatria no Hospital ....

41º. A Autora vive sozinha, e aufere como Assistente Operacional no Hospital ..., o ordenado mínimo nacional.

42º. Está a tomar anti-depressivos, sendo que, antes da adjudicação da obra, não tinha problemas de saúde do foro mental.

Da contestação da Ré S..., Lda. provou-se o seguinte:

A) As funções desempenhadas pela R. S..., Lda. no âmbito do acordo acima descrito
consistiam no seguinte:

- a) Apresentação de uma proposta de orçamento;

- b) Gestão de pagamentos a efetuar pelo dono da obra;

- c) Apoio técnico ao dono da obra durante a execução da mesma;

- d) Promoção de reuniões entre o empreiteiro e o dono da obra, para esclarecimento de eventuais divergências entre ambos e proposta de resolução das mesmas.

B) Serviços estes prestados por um Técnico Qualificado (Arquitecto ou Engenheiro), sem qualquer custo para o dono da obra.

C) No caso da obra da A., tais serviços foram prestados pela Arq.ª EE e pelo então gerente da R. S..., Lda., FF.

A Ré S..., Lda. promoveu a realização de uma reunião, no dia 23-07-2012 no local da obra, com a presença da A., do Réu BB e da R. S..., Lda., representada por FF e pela Arqª EE, com o objetivo de se obter um entendimento por forma a concluir a obra.»


*


3. O direito aplicável

3.1. O acórdão recorrido deu parcial provimento à apelação da autora, ao ter responsabilizado um dos três réus pelo incumprimento do contrato de empreitada e consequente desencadear dos danos morais sofridos pela autora, e ao fixar em 10.000 Euros a compensação por esse tipo de danos (que a autora havia estimado em 45.000 Euros).

Nas conclusões, a recorrente não formula um pedido explícito de revogação do acórdão recorrido. Todavia percebe-se que não concorda com a absolvição dos outros réus; e não concorda com o montante que lhe foi atribuído a título de danos morais, ao afirmar nas suas alegações que: «o fundamento do presente recurso de revisão assenta, essencialmente, no “quantum” compensatório dos danos não patrimoniais fixados pelo douto Tribunal a quo ao co-Réu BB, por um lado, e na decisão de absolvição dos co-Réus S..., Lda. e CC

3.2. Quanto à questão da absolvição dos outros réus, “S..., Lda.” e CC, o acórdão recorrido confirmou a decisão da primeira instância, não tendo havido qualquer voto de vencido nessa matéria, nem tendo usado fundamentação essencialmente diversa, pelo que se trata de um segmento decisório sobre o qual se formou a denominada “dupla conforme”, impeditiva do recurso de revista, nos termos do art.671º, n.3 do CPC.

A fundamentação do acórdão recorrido, embora mais desenvolvida do que a fundamentação da sentença, na sua essência, não divergiu dessa decisão. Nem a recorrente invocou tal hipótese. Afirma-se, em síntese, no aresto em revista:

«Conforme resulta do escrito junto aos autos como documento 1 com a petição inicial, embora nele conste que a celebração do contrato se reporta à autora e a CC, certo é que, quem aparece a subscrever o contrato é BB.

Não se apurou que CC tivesse tido alguma intervenção na celebração contratual, nem na execução da obra dos autos.

Cabia à autora, enquanto facto constitutivo da respetiva pretensão (cfr. artigo 342.º, n.º 1, do CC) a alegação e prova de que o contrato dos autos foi celebrado com CC, elemento que, efetuado o julgamento dos autos, não resultou apurado.

A razão de, no mencionado documento 1 junto com a petição inicial, ter sido aposto o nome de CC na página 1 do mesmo, não resultou apurada, não se podendo inferir alguma consideração da existência de tal menção, designadamente, para concluir - como pretende a autora - no sentido de que o contrato é vinculador e responsabilizante daquele.

E, nessa medida, também não lhe poderá ser imputável alguma responsabilidade civil (cfr. artigo 483.º do CC) decorrente da situação pessoal da autora.

A decisão de absolvição do réu CC não merece, neste contexto, algum reparo.

O mesmo se diga relativamente à absolvição da ré S..., Lda.. Quanto a esta ré, a intervenção no âmbito do contrato dos autos limitava-se à supra considerada: Gestão dos pagamentos que a autora efetuaria e mediação da obra e dos serviços de consultadoria inerentes à mesma.

Todavia, atentos os factos apurados, a intervenção da aludida ré não determina alguma responsabilidade quer pela situação pessoal da autora, quer pela inexecução - a partir do momento em que teve lugar a sustação - da obra em questão.

De facto, atento o restrito âmbito de tal intervenção da ré S..., Lda. não se alcança, ao invés do invocado pela recorrente, que a circunstância de ser mencionada no escrito já referenciado, de ter recebido o primeiro pagamento e de ter mediado aos pagamentos, determine alguma responsabilização pela cessação dos trabalhos da obra.

Tratam-se de prestações diversas: A execução dos trabalhos da obra, a cargo do empreiteiro. A mediação e recebimento dos pagamentos, respeitante à execução da prestação de pagamento do preço, da responsabilidade da mencionada ré.

Ora, não se tendo apurado algum indevido comportamento da ré S..., Lda. na execução da prestação a seu cargo, circunstância que não foi, de algum modo, invocada pela autora, a pretensão da autora nos presentes autos (que assenta noutros pressupostos), relativamente a tal ré, soçobra integralmente.

Resta o apuramento de responsabilidade imputada ao réu BB

Conclui-se, portanto, que se formou dupla conforme sobre a decisão de absolvição daqueles dois réus. Quanto ao réu BB, a sua responsabilidade encontra-se estabelecida e não é alvo do objeto da revista, importando apenas conhecer da questão do montante indemnizatório que foi condenado a satisfazer.


*


3.3. Montante dos danos não patrimoniais:

O acórdão recorrido atribuiu à autora o montante de 10.000 Euros, a título de compensação dos danos não patrimoniais por ela sofridos. Porém, a autora, agora recorrente, entende que tal decisão viola a regra da equidade consagrada no art.496º, n.4 do CC (pois pretendia receber o montante de 45.000 Euros).

Afirma-se no acórdão recorrido:

«(…) verifica-se que a depressão psiquiátrica da autora, se bem que esteja ligada a outras causas, tem relação (ou também tem conexão adequada) com o abandono de obra que, injustificadamente, ocorreu por parte de BB, assumindo um patamar suficientemente grave, que determina lhe seja conferida tutela jurídica, em conformidade com o disposto no n.º 1 do artigo 496.º do CPC.

Tendo em conta os aludidos critérios legais para a sua fixação acima enunciados e tendo em conta a “contribuição” da conduta respetiva para a geração dos danos verificados, a indemnização correspondente deverá situar-se na quantia de € 10.000,00, quantia que o réu BB deverá ser condenado a satisfazer à autora, a título dos danos não patrimoniais sofridos por esta. (…)

Assim, a apelação procederá parcialmente, em conformidade com o exposto, com condenação do réu BB, a pagar à autora a quantia de € 10.000,00, a título de danos não patrimoniais, acrescida de juros de mora, à taxa legal, a contar da presente decisão, mantendo-se, quanto ao mais, a decisão recorrida

Encontra-se provado nos autos que:

«36º. A Autora, em face do abandono da obra e por ter a casa inabitável, sem possibilidades monetárias de a concluir, entrou em depressão psiquiátrica.

39º. A partir de Maio de 2012 e até 2018, a Autora teve que passar a ser assistida pela Médica Psiquiatra Dra. DD.

40º. Tendo estado internada na enfermaria de Psiquiatria no Hospital ....

42º. Está a tomar antidepressivos, sendo que, antes da adjudicação da obra, não tinha problemas de saúde do foro mental

No objeto da presente revista não está em causa a questão de saber se se verificavam os pressupostos para que o réu fosse responsabilizado no pagamento de uma indemnização (ou compensação) pelos danos morais (ou não patrimoniais) comprovadamente sofridos pela autora. Essa questão encontra-se definitivamente julgada. Está em causa apenas o montante atribuído.

A inserção sistemática do artigo 496º do CC (entre as normas aplicáveis à responsabilidade extracontratual) não tem sido considerada (pela maioria da doutrina)1 como um obstáculo à sua aplicação quando os danos morais tenham na sua génese um incumprimento contratual, pois a regra da ressarcibilidade integral dos danos, consagrada no art.798º do CC, não exclui os danos morais.

Todavia, sempre importará notar que a presente condenação em danos morais, no âmbito do incumprimento contratual, não significa que tal entendimento seja facilmente generalizável no domínio do incumprimento do contrato de empreitada (ou dos contratos de natureza patrimonial em geral). Efetivamente, no caso concreto, o incumprimento contratual, claramente culposo (não justificado por qualquer fator de atenuação), e pela importância que o cumprimento atempado do contrato teria na vida da autora (por estar em causa a sua habitação), teve consequências pessoais de relevante gravidade, traduzidas no desencadear de uma doença psicológica da credora, constituindo, nessa medida, em simultâneo, um comportamento lesivo da sua saúde (e, portanto, da sua integridade físico-psicológica).

Não prevendo o art.496º do CC a aplicação estrita de um comando legal, mas sim de um critério de equidade, o controlo realizado em recurso de revista, traduz-se, na essência, em aferir se a decisão se apresenta desconforme face aos padrões normativos seguidos pela jurisprudência em hipóteses equiparáveis.

Sobre os critérios a seguir pelo STJ na apreciação do modo como as instâncias valoraram o dano não patrimonial, veja-se, a título exemplificativo, o que se afirma na seguinte jurisprudência:

- Acórdão do STJ, de 22.06.2017, (relator Tomé Gomes), no processo n. 307/04.8TBVPA.G1.S2:

« No critério a adoptar na fixação dos danos não patrimoniais, posto que esta não tem por escopo a reparação económica, mas antes a compensação do lesado e reprovação da conduta lesiva, não devem perder-se de vista os padrões indemnizatórios decorrentes da prática jurisprudencial, com vista a uma aplicação tendencialmente uniformizadora ainda que evolutiva do direito, sendo relevantes para esse efeito: a natureza, multiplicidade e diversidade de lesões sofridas, as intervenções cirúrgicas e tratamentos médicos e medicamentosos a que o lesado se teve de submeter, os dias de internamento e o período de doença, a natureza e a extensão das sequelas consolidadas, o quantum doloris e o dano estético, se o houver (arts. 496.º, e 494.º do CC)

- Acórdão do STJ, de 07.04.2016 (relator Salazar Casanova), no processo n.
55/12.1TBOFR.C1.S1:
«
A indemnização por danos morais deve ser fixada equitativamente conforme resulta do disposto no art. 496.°, n.4, do CC; equidade, no entanto, não significa discricionariedade. A indemnização deve ter em atenção os casos similares de que a jurisprudência do STJ dá notícia, procurando-se, assim, uma harmonização tanto quanto possível efetiva sem se perder de vista as singularidades dos casos concretos».

- Acórdão do STJ, de 27.09.2016 (relator Alexandre Reis), no processo n.
2249/12.4TBFUN.L1.S1:

«(...) só haverá fundamento bastante para censurar o juízo formulado pela Relação e alterar o decidido se puder afirmar-se, tendo em conta os critérios que vêm sendo adoptados, generalizadamente, por este tribunal, que os montantes que foram fixados são manifestamente desproporcionados à gravidade objectiva e subjectiva dos efeitos (de natureza patrimonial e não patrimonial) resultantes da lesão corporal sofrida pela autora

Sobre a valoração dos danos não patrimoniais em diferentes tipos de casos, veja-se, a título exemplificativo, a seguinte jurisprudência:

- Num caso respeitante a um acidente de viação, o STJ, em acórdão de 12.01.2017 (relatora Maria dos Prazeres Beleza), no processo n. 3323/13.5TJVNF.G1.S1, entendeu que:

«Tendo (…) ficado demonstrado que: a autora foi submetida a intervenções e tratamentos agressivos; viu a sua autonomia e capacidade de desenvolver a sua vida habitual muito limitada; sofreu e sofre dores, medo e angústia revela-se ajustada a condenação da ré no pagamento da quantia de € 15.000 (tal como foi decidida pelas instâncias) a título de compensação pelos danos não patrimoniais por ela sofridos

-No acórdão do STJ, de 23.05.2017 (Relator Pedro Lima Gonçalves), no processo n. 1489/14.6TBVCT.G1.S1, entendeu-se o seguinte:

«Deve ser fixado em € 20.000 a indemnização por danos não patrimoniais sofridos pela autora na consideração do seguinte quadro: a autora foi atropelada na passadeira, sendo o local iluminado e circulando o condutor do veículo distraído; por força do acidente, ficou politraumatizada e esteve internada duas vezes, durante 21 e 35 dias; no primeiro internamento, esteve sempre deitada, e necessitou de arrastadeira e de auxílio de terceira pessoa; no segundo internamento, passou largos períodos na cama e caminhou com auxílio de andarilho; no momento do acidente, sofreu um enorme susto e receou pela vida; sofreu, desde o acidente, dores muito intensas em todas as regiões do seu corpo, que a afligem e demandam toma de fármacos, em grau 4 de escala ascendente de 7; apresenta perturbações de equilíbrio, estado depressivo, esquecimento fácil, insónias, medo de veículos, dificuldade na marcha, irritação fácil, choro fácil, tendência para o isolamento e tristeza.»

-Acórdão do STJ, de 16.11.2023 (relator Manuel Capelo), no processo n. 1019/21.3T8PTL.G1.S1:

« Tendo em atenção as lesões sofridas pelo Autor, com as inerentes dores e incómodos que teve e terá de suportar, sendo que o quantum doloris ascendeu ao grau 4, numa escala de 1 a 7, e os tratamentos a que o Autor foi sujeito, bem como as sequelas de que ficou a padecer e que fruto dessas sequelas ficou com um défice funcional permanente da integridade físico-psíquica de 4 pontos e uma repercussão permanente nas atividades desportivas e de lazer de grau 2 (numa escala de 0 a 5), formulando o necessário o juízo de equidade e considerando os valores que vêm sendo definidos pela jurisprudência para casos similares, fixa-se a indemnização dos danos não patrimoniais em 10.000,00 €

Neste quadro, conclui-se, sem dificuldade, que o acórdão recorrido ao atribuir à autora uma compensação de 10.000 Euros pelos danos morais (ou não patrimoniais) respeitantes aos problemas de saúde mental desencadeados pelo incumprimento do contrato de empreitada, com a consequente privação da habitação da autora, agiu dentro dos parâmetros indemnizatórios seguidos pelo STJ na avaliação desta tipologia de danos em casos de natureza vária (e até de gravidade, proporcionalmente, mais acentuada do que o caso em juízo).

Concluiu-se, portanto, que, atendendo aos danos que a autora sofreu, a decisão recorrido usou de forma ponderada e proporcional as regras da equidade ao estabelecer aquela indemnização, pelo que esse aresto não merece censura.


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DECISÃO: Pelo exposto, julga-se a revista improcedente e confirma-se o acórdão recorrido.

Custas pela recorrente (sem prejuízo do apoio judiciário de que possa beneficiar).

Lisboa, 19.12.2023

Maria Olinda Garcia (Relatora)

Maria Amélia Ribeiro

Luís Espírito Santo

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1. Neste sentido, veja-se, sobretudo: Vaz Serra, in Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano108, página 222, em Anotação ao Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 04.06.1974; e Mário Júlio Almeida Costa, Direito das Obrigações (9ª ed.), páginas 552 e 553.↩︎