Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
04P2360
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: SANTOS CARVALHO
Descritores: RECURSO PENAL
DIREITO DE DEFESA
REQUERIMENTO
DEFICIENTE
HOMICÍDIO QUALIFICADO
TENTATIVA
PENA
Nº do Documento: SJ200407150023605
Data do Acordão: 07/15/2004
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL ÉVORA
Processo no Tribunal Recurso: 2842/03
Data: 03/23/2004
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Decisão: PROVIDO PARCIALMENTE.
Sumário : I - Não deve ser convidado a corrigir as conclusões do recurso o arguido que apresenta uma motivação com deficiências de fundo, nomeadamente, quando, contra o que expressamente impõe a lei, o recorrente não se preocupa minimamente com satisfazer as suas exigências, como acontece com a indicação essencial dos suportes técnicos que documentem a sua discordância com o decidido quanto à matéria de facto.
II - Mostra-se adequada a pena de 9 anos de prisão para o arguido que, só por saber que a vítima era de nacionalidade moldava, sem a conhecer e sem outro motivo, dispara uma pistola para a cabeça da mesma, a cerca de um metro de distância, tendo a bala ficado alojada junto ao maxilar inferior, lado direito, fazendo-o conscientemente e com a intenção de a matar, morte que só não ocorreu por mero acaso e por a vítima ter sido socorrida a tempo, embora tenha ficado com algumas sequelas a nível da fala, tendo o arguido já três condenações anteriores por ofensas à integridade física, mas mostrando-se inserido familiar e socialmente e tendo ingerido bebidas alcoólicas momentos antes da prática dos factos.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

1. Por Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 23 de Março de 2004, foi negado provimento ao recurso para aí movido pelo arguido A, por discordância com o acórdão do 1º Juízo Criminal da Comarca de Portimão que o condenara:
- pela prática do crime de homicídio qualificado, na forma tentada, p.p. pelos art.ºs 131.º, 132.º n.ºs 1 e 2, al. d), 22.º, 23.º n.º 2 e 73.º n.º 1 als. a) e b) do CP, na pena de onze anos de prisão;
- pela prática de detenção ilegal de arma de defesa, p.p. pelos art.ºs 6.º e 1.º, n.º 1 al. b), da Lei 22/97, de 27/06, na pena de sete meses de prisão;
- em cúmulo, na pena única de onze anos e quatro meses de prisão.
2. Inconformado, recorre agora esse arguido para este Supremo Tribunal de Justiça e formula conclusões em arrazoado prolixo, as quais se podem sintetizar assim.
- o acórdão recorrido não conheceu da impugnação da matéria de facto e, consequentemente, não procedeu à reapreciação da prova que impunha decisão diferente da recorrida, o que deveria ter feito, assim prejudicando os direitos de defesa;
- foi a defesa surpreendida com a decisão de lhe não serem concedidos mais 10 dias para proceder à audição e transcrição da prova gravada, contrariando assim o Tribunal de Portimão a recente jurisprudência, o que também prejudicou os seus direitos;
- o recorrente devia ter sido convidado a corrigir as suas conclusões e, não o tendo sido, violou-se o disposto no art.º 32.º, n.º 1, da Constituição, bem como o Ac. do TC n.º 320/2002, de 09.07.2002, in DR-I Série de 07.10.20023;
- o tribunal recorrido podia ter reapreciado a matéria de facto, pois está documentada em acta a gravação magnetofónica das declarações orais prestadas em audiência;
- a pena aplicada mostra-se desajustada, quer por comparação com a do seu co-arguido, que participou em todos os actos e omissões ilícitos e que foi punido com uma pena de multa, quer porque não foi especialmente atenuada, atendendo ao bom comportamento posterior, às suas responsabilidades familiares, integração familiar, social e laboral, pelo que deveria ser fixada próximo do seu mínimo.
3. O M.º P.º junto da Relação pronunciou-se pela rejeição do recurso por manifesta improcedência ou, se assim não fosse entendido, pela sua improcedência.
O Excm.º P. G. A. neste STJ pronunciou-se pela rejeição do recurso quanto à parte em que se alega uma suposta violação dos direitos de defesa, designadamente por não ter o Tribunal recorrido apreciado a matéria de facto, aplicando-se aqui o que se escreveu no Ac. deste STJ de 13.05.04, rec. n.º 1633/04-5, e promoveu o julgamento quanto à questão da medida da pena.
O relator mandou os autos para a audiência, para aí se apreciarem todas as questões suscitadas.
4. Colhidos os vistos e realizada a audiência com o formalismo legal, cumpre decidir.
São as seguintes as questões em discussão:
1ª- O tribunal recorrido podia ter reapreciado a matéria de facto, pois está documentada em acta a gravação magnetofónica das declarações orais prestadas em audiência e foram prejudicados os direitos de defesa, pois o recorrente devia ter sido convidado pela Relação a aperfeiçoar as suas conclusões, caso se entendesse que não cumpriu cabalmente o disposto no art.º 412.º, n.ºs 3 e 4, do CPP.
2ª- Foi a defesa surpreendida com a decisão de lhe não serem concedidos mais 10 dias para proceder à audição e transcrição da prova gravada, contrariando assim o Tribunal de Portimão a recente jurisprudência, o que também prejudicou os seus direitos.
3ª- A pena aplicada mostra-se desajustada, quer por comparação com a do seu co-arguido, quer porque não foi especialmente atenuada, atendendo ao bom comportamento posterior, às suas responsabilidades familiares, integração familiar, social e laboral, pelo que deveria ser fixada próximo do seu mínimo.
Os factos provados são os seguintes:
a) Anteriormente à data dos factos, o arguido A referia-se aos cidadãos imigrantes do Leste como "kozovares" e "esgrovénicos".
b) Anteriormente à data da prática dos factos, o arguido A disse uma vez, perante B, que "dava um tiro nos cornos de um kozovar" e, outra vez, na noite de 19 para 20 de Novembro de 2002, perante C, disse: "qualquer dia dou uma azeitona nos cornos de um kozovar".
c) Na noite de 19 para 20 de Novembro de 2002 o A mostrou uma arma ao referido C.
d) Na residência do arguido A, foram apreendidas duas armas de alarme - uma pistola e um revólver de grandes dimensões - a ele pertencentes.
e) Na noite de 20 para 21 de Novembro de 2002 os arguidos A e C estiveram juntos, tendo frequentado diversas boites da zona de Lagoa, designadamente o "Solar dos Pinheiros" e o "Lunatic", para onde se deslocaram no veículo automóvel de matrícula DO (Peugeot 106, de cor branca), conduzido pelo arguido A.
f) Pelas 3.00 horas, quando saíram do "Solar dos Pinheiros", os arguidos dirigiram-se à referida viatura e, quando abandonaram o parque de estacionamento privado daquele estabelecimento, viraram à direita, em direcção a Lagoa, onde avistaram D, junto a uma carrinha branca que ali se encontrava estacionada.
g) De imediato o arguido A parou o carro, puxou o travão de mão e dirigiu-se em direcção ao referido D, deixando o motor a trabalhar, tendo o arguido C permanecido no interior da viatura.
h) Ao chegar perto de D, o arguido A perguntou-lhe quem era o dono da carrinha junto à qual ele se encontrava, tendo aquele respondido que era do patrão. Após, o referido arguido perguntou-lhe qual era a nacionalidade dele.
i) Quando D lhe disse que era moldavo, o arguido retorquiu dizendo que era da máfia, tendo de imediato sacado de uma pistola de calibre 6,35 mm que trazia com ele (examinada a fol.ªs 217 e seguintes), a qual apontou a D, tendo puxado a culatra atrás, colocando uma munição na câmara, após o que começou a movimentar a arma em frente à cara deste, ao mesmo tempo que lhe dizia que lhe dava um murro e que lhe dava um tiro.
j) Aflito com o que se estava a passar, D pediu ajuda ao arguido C, que permanecia no interior da viatura, com o vidro aberto, tendo ouvido e assistido a tudo o que se passou sem que, no entanto, tivesse interferido de qualquer forma.
k) D recuou um pouco para ver a matrícula do carro dos arguidos e, quando voltou a olhar para o A, este efectuou um disparo na direcção da sua cabeça, quando tinha a pistola a cerca de um metro de distância, tendo o projéctil entrado na boca de D e ficado alojado junto ao maxilar inferior (lado direito).
l) Após ter sido atingido, D correu para o interior da boite "Solar dos Pinheiros", onde foi socorrido, tendo sido chamados os bombeiros, que de imediato o transportaram ao Hospital do Barlavento Algarvio.
m) Entretanto, o arguido A colocou novamente a pistola no bolso do casaco que trazia vestido e correu para o carro, tendo conduzido até à boite "Lunatic", em Ferragudo, onde esteve acompanhado pelo C até ao fecho, o que aconteceu pouco depois das 5.00 horas.
n) Após, os arguidos deslocaram-se até ao restaurante "Burger Ranch", sito no posto de abastecimento de combustíveis da Shell, junto ao Largo do Dique, em Portimão, onde o arguido A decidiu deixar o carro estacionado, tendo planeado participar o seu desaparecimento às autoridades.
o) O referido veículo - propriedade de E, cônjuge do arguido A - foi encontrado pela polícia no dia 21 de Novembro de 2002, abandonado junto ao referido posto de abastecimento de combustíveis.
p) Os arguidos foram, então, a pé de Portimão até ao Parchal, onde o arguido A telefonou a pedir à mãe que o viesse buscar, o que veio a acontecer cerca das 6.00 horas.
q) Entretanto o arguido A pediu ao arguido C que lhe guardasse a pistola com que tinha alvejado D, o que este fez, tendo-se deslocado para a sua residência, levando consigo a supra mencionada pistola, ainda carregada com três munições, a qual escondeu debaixo do colchão da sua cama.
r) Na busca realizada na casa do arguido C, em 21.11.02, foi encontrada a referida pistola, entre o estrado, de madeira, e o colchão da cama do quarto.
s) A referida arma é uma pistola transformada, pois que, inicialmente, era de calibre normal 8 mm e destinada unicamente a deflagrar munições de alarme, tendo sido posteriormente adaptada a disparar munições com projéctil; actualmente trata-se de uma pistola semi-automática, de calibre 6,35 mm Browning, de marca Tanfoglio, modelo GT28, tendo-lhe sido apostas as falsas inscrições "Star Cal. 6,35".
t) O arguido C aceitou guardar e esconder a pistola com que o arguido A tinha alvejado D para evitar que aquela arma viesse a ser apreendida na posse do seu amigo e, assim, evitar que as forças policiais descobrissem que tinha sido ele o autor do referido disparo.
u) Ambos os arguidos conheciam perfeitamente as características da referida pistola de calibre 6,35 mm e sabiam que a detenção, uso e porte daquela arma são proibidos por lei, pois a mesma não estava manifestada ou registada. Para além disso, nenhum dos arguidos é titular de licença de uso e porte daquele tipo de armas
v) Em consequência de ter sido atingido pelo projéctil disparado pelo arguido, o ofendido D sofreu traumatismo na região cervico-facial direita; como consequência da referida lesão, o ofendido permaneceu doente durante um período de 60 dias, com incapacidade para o trabalho.
w) Ao disparar a pistola na direcção da cabeça do ofendido D, encontrando-se a uma curta distância do mesmo, o arguido A actuou m intenção de matar.
x) A região atingida e a natureza da arma utilizada eram circunstâncias adequadas a causar a morte do ofendido, o que só não aconteceu por razões estranhas à vontade do arguido; com efeito, o A só não conseguiu os seus intentos porque a munição disparada não atingiu nenhum órgão vital do ofendido e porque este foi de imediato assistido no hospital, sem o que teria sucumbido.
y) Ambos os arguidos agiram, sempre, de forma livre, voluntária e consciente, conhecendo bem a reprovabilidade dos seus comportamentos.
z) À data dos factos o arguido A vivia com a mulher e um filho, actualmente com onze meses, em casa pertencente aos seus pais;
- trabalhava como distribuidor de gás, desde 14.02.2001, auferindo cerca de 600,00 euros por mês;
- era um funcionário zeloso e cumpridor;
- era ele que sustentava a família;
- tem o 6.º ano de escolaridade incompleto;
- tem tido visitas da família no EP e tem sido acompanhado no EP por médico e psicóloga;
- no EP exerce a actividade de faxina, tendo bom comportamento prisional.
aa) O arguido A já sofreu três condenações por crime de ofensa à integridade física:
- a primeira em 13.12.99, em 80 dias de multa;
- a segunda em 20.03.00, em quatro meses de prisão, cuja execução ficou suspensa por dois anos;
- a terceira em 19.09.00, em 90 dias de multa.
bb) O arguido C reside com os pais, trabalha como distribuidor de gás, auferindo 500,00 euros por mês, tem o 6.º ano de escolaridade e foi condenado em 31.01.02, por condução sem carta, em 45 dias de prisão, substituídos por 90 horas de trabalho a favor da comunidade.
cc) O demandante/ofendido esteve internado 15 dias no Hospital de S. José, em Lisboa, para onde foi transferido no dia seguinte a ter dado entrada no Hospital do Barlavento Algarvio.
dd) Durante os três meses seguintes teve de se deslocar a Lisboa, para consultas no Hospital de S. José.
ee) Em consequência de ter alojado o projéctil na parte inferior do pescoço, o demandante/ofendido tem dores muito fortes, o que lhe provoca bastante mau estar;
- também tem dores quando se deita para o lado direito;
- sofre de insensibilidade de todo o lado direito;
- ficou com a voz alterada, enrouquecida, não conseguindo gritar nem falar alto, como fazia anteriormente;
- esteve dois meses sem trabalhar, deixando de auferir, por isso, a quantia de 1.500,00 euros;
- passou a ter mais medo.
ff) Por virtude da lesão que D sofreu, este foi assistido no HBA, onde foi submetido a consultas de urgência, exames laboratoriais, RX aos ossos da face e RX à coluna cervical; o HBA providenciou pela transferência de D para o Hospital de S. José; com tudo o referido o HBA despendeu a quantia de 328,59 euros.
gg) Na noite de 20 para 21 de Novembro de 2002 o arguido A ingeriu bebidas alcoólicas.
hh) Na declaração de fol.ªs 386, emitida pelo médico Dr. F, consta que "o arguido sofreu de epilepsia... Não deve, para se encontrar compensado, fazer consumo de bebidas alcoólicas".
ii) Algumas vezes o arguido A declarou a amigos que não se lembrava do que tinha acontecido no dia anterior, em que tinha ingerido bebidas alcoólicas.
Nas conclusões do seu recurso para a Relação, o ora recorrente veio dizer, aliás, de forma muito pouco precisa e sistematizada, que:
"i) Requer a reapreciação da prova - depoimento do recorrente e relatório de diligência externa elaborado pela PJ de fol.ªs 12.
......
o) Reapreciação da prova:
- Depoimento do recorrente (cassete 1, lado A, da volta 500 a 5377);
- Relatório de diligência externa elaborado pela PJ de fol.ªs 12;
- Documentos juntos aos autos em sede de julgamento, concretamente a declaração emitida pela Directora do Estabelecimento Prisional de Portimão, declaração emitida pelo GATO e ficha médica;
- Depoimento de E (cassete 2, lado A, de volta 4950 a 1169);
- Depoimento de G (cassete 3, lado A, de volta 06 a 1105);
- Depoimento de H (cassete 3, lado A, de volta 1237 a 2055);
- Depoimento de I (cassete 3, lado A, de volta 2160 a 2959);
- Depoimento de J (cassete 3, lado A, de volta 3045 a 3595);
- Depoimento de L (cassete 3, lado A, de volta 3665 a 4469);
- Depoimento de M (cassete 3, lado A, de volta 5604 a 5948, e lado B, de volta 12 a 144).
p) Deve ser apreciada a prova produzida - e principalmente a não produzida - e aplicar-se o princípio in dubio pro reo, absolvendo-se o arguido/recorrente ou remeter-se os autos para novo julgamento."
Ora, sobre esses pontos das conclusões, decidiu assim o Tribunal recorrido:
"B - 2.ª questão (a impugnação da matéria de facto)
9.1. "Quando impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto deve especificar:
a) Os pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) As provas que impõem decisão diversa da recorrida;
c) As provas que devem ser renovadas.
4. Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas al.ªs b) e c) do número anterior fazem-se por referência aos suportes técnicos, havendo lugar a transcrição" (art.º 412 n.ºs 3 e 4 do CPP.
9.2. Dizendo, embora, que recorre da matéria de facto, o recorrente não especifica - como lhe impõe o art.º 412 n.ºs 3 e 4 do CPP - os pontos concretos (da matéria de facto dada como provada) que considera incorrectamente julgados, quais as provas (concretas) que impõem decisão diversa da recorrida (quanto a tais factos) e os suportes técnicos onde se encontram registadas; ele não deu cumprimento, pois, ao estabelecido no art.º 412 n.ºs 3 e 4 do CPP, impossibilitando o tribunal de conhecer da matéria de facto (não deixará de se anotar - repetindo-nos, embora, porque tal já foi acima dito - que o recurso não visa um novo julgamento, com a reapreciação da prova - toda a prova, como parece pretender o recorrente - designadamente quando o recorrente discorda da convicção que o tribunal formou com base nas provas produzidas em julgamento, mas uma correcção dos eventuais erros ou vícios de que a sentença enferme e que o recorrente deverá identificar com clareza).
9.3. A impugnação da matéria de facto, nestes termos, não permite a este tribunal conhecer da mesma, pelo que se tem tal impugnação como manifestamente improcedente e a matéria de facto imodificável. Uma questão poderia colocar-se - é a da possibilidade de convidar o recorrente ao aperfeiçoamento das conclusões, face a tal deficiência - mas temos entendido (entendimento que aqui não vemos razão para alterar) que não há lugar, nestes casos, a tal convite: por um lado, a lei não o impõe nem o prevê, por outro, não têm aqui aplicação as razões invocadas pelo Tribunal Constitucional (acórdão n.º 320/2002, de 9.07.2002, in DR, I Série - A, de 7.10.2002) quanto à necessidade do convite ao aperfeiçoamento quando não seja cumprido o disposto no art.º 412 n.º 2 do CPP; aqui (no caso da impugnação da matéria de facto) não estão em causa deficiências meramente formais, mas a própria essência do recurso: pretendendo o recorrente "impugnar a decisão da matéria de facto, forçosamente há-de saber o que nesta decisão concretamente quer ver modificado e os motivos para tal modificação, podendo, portanto, expressá-lo na motivação" - escreve-se no acórdão do TC de 18.06.2002, Proc. 101/02, onde se decidiu, em suma, não considerar inconstitucional o art.º 412 n.º 3 al.ªs a) a c) e 4 do CPP quando interpretado no sentido de que a falta de indicação (nas conclusões da motivação do recurso) das menções aí contidas tem como efeito o não conhecimento daquela matéria e a improcedência do recurso nessa parte, sem que ao recorrente seja dada oportunidade de suprir tais deficiências."
Como se vê pela transcrição parcial das conclusões do recurso do arguido A para a Relação, este arguido discordou da fixação dos factos feita pela 1ª instância e pediu que os mesmos fossem reapreciados pelo tribunal de recurso.
Porém, fica-se na dúvida se este arguido pretendeu que a Relação reapreciasse a matéria de prova documentada nos autos, designadamente, pelas gravações magnetofónicas - daí as suas referências às cassetes - ou por uma nova produção de prova - daí o seu apelo a uma apreciação da prova não produzida.
Se o que pretendeu o recorrente no seu recurso para a Relação foi uma reapreciação da prova que foi efectivamente produzida na audiência de julgamento da 1ª instância e que ficou documentada por gravações magnetofónicas, diga-se que, efectivamente, a Relação tem poderes para fazer uma reapreciação da prova documentada nos autos, mas desde que o recorrente obedeça ao formalismo imposto no art.º 412.º, n.ºs 3 e 4, do CPP.
Ora, como explicou a Relação, o recorrente não obedeceu minimamente ao formalismo legal.
Nem venha agora o recorrente dizer que, afinal, fez referência aos suportes técnicos das gravações, pois o que fez foi apontar o local onde nas cassetes estava globalmente gravada a totalidade dos vários depoimentos e declarações produzidos. Não indicou os segmentos dessas provas que impunham decisão diversa e tinha de o fazer. A reapreciação da matéria de facto não é uma novo julgamento que incida sobre a totalidade da decisão, mas uma reavaliação dos pontos concretos da matéria de facto que sejam indicados, pelo que o recorrente tem o ónus de os especificar e de mencionar quais as provas que impõem decisão diversa da recorrida, por referência aos suportes técnicos.
Nota-se, de resto, que por não ter indicado os pontos da matéria de facto de que discorda, não é perceptível se o recorrente alega (no recurso para a Relação) que está completamente inocente nos factos que lhe foram imputados, ou se entende que não há prova de que tenha disparado o tiro e que devia funcionar o "in dubio pro reo", ou se os factos foram executados em co-autoria com o outro arguido, ou ainda uma qualquer outra hipótese diferente destas. Isto demonstra que o recorrente, por não obedecer às imposições legais sobre a forma do recurso, impossibilitou o tribunal "ad quem" de saber que factos estão mal julgados, onde estão as provas que impõem decisão diversa e que decisão devia ser essa.
A falta de cumprimento por parte do recorrente do formalismo exigido nas conclusões do recurso tem merecido por parte deste Supremo as seguintes reflexões, que aqui se acolhem inteiramente (transcrevendo-se o Ac. de 13.05.2004, in proc. 1633/04-5, relatado pelo Cons. Pereira Madeira e de que o ora relator foi adjunto):
"Como ficou relatado, o recorrente não põe em causa no seu recurso a existência das deficiências de alegação, mormente a falta de referência aos suportes técnicos, que a Relação lhe assacou e em que se baseou para lhe indeferir o pedido de renovação da prova que formulou.
Ora, ao contrário do que aquele parece defender, não existe, mesmo em processo penal, nenhum direito geral ao «convite» à correcção de peças processuais substancialmente defeituosas, ainda que se trate de recurso do arguido.
Na verdade, quem quer usufruir em pleno do seu indiscutível direito de defesa, constitucionalmente garantido, não pode esperar que o tribunal lho sirva «de bandeja», passe a expressão. Tem, ao invés, um ónus a cumprir, seja, no mínimo a observância das exigências legais, nomeadamente as do artigo 412.º, n.ºs 2 e 3, do Código de Processo Penal, ónus aquele que, em caso algum, pode ter-se por excessivo, desproporcionado ou de impossível cumprimento. É justamente com vista a permitir a sua superação que a lei faz o arguido ser, sempre, assistido, em recurso, por defensor - art.º 64.º, n.º 1, d), do CPP.
E se, assim mesmo, o interessado não logra cumprir as exigências estruturais decorrentes da lei para que o seu direito de defesa seja inteiramente satisfeito, não pode queixar-se senão de si, não sendo, pois, aceitável o afirmar-se, como o faz no caso o recorrente, que foi o tribunal quem lhe fez «precludir» tal direito.
De outro modo, o «convite», indo além do simples superar de falhas ou deficiências meramente formais, permitiria, verdadeiramente, a possibilidade de um novo recurso enxertado no processo, em vez do que foi interposto, o que nenhuma interpretação da Lei Fundamental, por mais liberal que possa ser, pode aceitar.
Dando-se conta disto, o Tribunal Constitucional tem, ultimamente, vincado bem até onde pode ir tal «convite» ao arguido, com vista a atingir a satisfação daqueles objectivos do texto constitucional. E o limite está, obviamente, no limiar das exigências da mera forma, como, por exemplo a superação da prolixidade ou da inexistência de conclusões numa motivação já existente, com base nas quais a rejeição imediata do recurso se teria de haver como desproporcionada, mas nunca irá ao ponto de permitir a superação de deficiências de fundo daquela motivação, maxime a substituição ainda que parcial desta, nomeadamente, quando, contra o que expressamente impõe a lei, o recorrente não se preocupa minimamente com satisfazer as suas exigências, como acontece com a indicação essencial dos suportes técnicos que documentem a sua discordância com o decidido quanto à matéria de facto.
...
Pois, como se escreveu no Ac. TC. n.º 259/02, de 18/6/02, publicado no DR II Série, de 13/12/02, referindo-se à jurisprudência daquele mesmo Tribunal que apregoa a necessidade daquele «convite»:
«De qualquer modo, (...) fácil é verificar que essa jurisprudência não chegou a admitir um genérico direito do arguido ao aperfeiçoamento de uma peça processual por si apresentada.
Na verdade, tal jurisprudência censurou a inexistência de despacho de aperfeiçoamento quando, embora de modo deficiente ou incompleto, o arguido tivesse cumprido determinados ónus processuais, mas dela não pode retirar-se a conclusão de que o despacho de aperfeiçoamento serviria para facultar ao arguido um novo prazo para, pela primeira vez, impugnar a própria decisão proferida, ou mesmo indicar outros fundamentos de recurso. Dito de outro modo, considerou-se constitucionalmente desconforme a rejeição liminar de um recurso (portanto, sem prévio convite ao aperfeiçoamento) quando as conclusões da motivação faltassem, fossem em grande número ou ocupando muitas páginas, nelas se cumprisse deficientemente certos ónus ou se não procedesse a certas especificações, mas não chegou a afirmar-se, por exemplo, o direito do arguido a apresentar uma segunda motivação de recurso, quando na primeira não tivesse indicado os fundamentos do recurso, ou a completar a primeira, caso nesta não tivesse indicado todos os seus possíveis fundamentos.»
E mais adiante:
«A jurisprudência do Tribunal Constitucional, tanto a relativa aos recursos penais (ou contra-ordenacionais) como a relativa aos recursos não penais, aponta no sentido da não inconstitucionalidade da interpretação perfilhada pelo tribunal ora recorrido e que é, lembre-se, a de que a falta de indicação, nas conclusões da motivação do recurso em que o assistente impugne a decisão sobre a matéria de facto, das menções contidas nas alíneas a), b) e c) do n.º 3 e no n.º 4 do artigo 412.º do Código de Processo Penal tem como efeito o não conhecimento daquela matéria e a improcedência do recurso nessa parte, sem que ao recorrente seja dada oportunidade de suprir o vício dessa falta de indicação, se também da motivação do recurso não constar tal indicação.
Na verdade (...), as menções a que aludem as alíneas a), b) e c) do n.º 3 e o n.º 4 do artigo 412.º do Código de Processo Penal não traduzem um ónus de natureza puramente secundária ou formal que sobre o recorrente impenda, antes se conexionando com a inteligibilidade e concludência da própria impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto. É o próprio ónus de impugnação da decisão da matéria de facto que não pode considerar-se minimamente cumprido quando o recorrente se limite a, de uma forma vaga ou genérica, questionar a bondade da decisão proferida sobre a matéria de facto.»
Já no mesmo sentido foi tirado o Acórdão n.º 140/03, de 10/3/04, do mesmo Tribunal, proferido no recurso n.º 565/03.
Ali se defendeu, na sequência do aresto acima parcialmente transcrito, que em casos como o dos autos, não está em causa apenas «uma certa insuficiência ou deficiência formal das conclusões apresentadas pelo arguido recorrente, isto é, relativa à forma de exposição ou condensação de uma impugnação que é, quanto ao mais, apreensível pela motivação do recurso - falta, essa, para a qual a rejeição liminar do recurso, sem oportunidade de correcção dos vícios formais detectados, constitui exigência desproporcionada. Antes a indicação exigida pela alínea b) do n.º 3 e pelo n.º 4 do artigo 412.º do Código de Processo Penal - repete-se das provas que impõem decisão diversa da recorrida, por referência aos suportes técnicos - é imprescindível logo para delimitação do âmbito da impugnação da matéria de facto, e não um ónus meramente formal. O cumprimento destas exigências condiciona a própria possibilidade de se entender e delimitar a impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto, exigindo-se, pois, referências específicas, e não apenas uma impugnação genérica da decisão proferida em matéria de facto.
Importa, aliás, recordar, por um lado, que da jurisprudência do Tribunal Constitucional não pode retirar-se - nem da relativa aos recursos de natureza penal (ou contra-ordenacional), nem da que versou sobre recursos de natureza não penal - uma exigência constitucional geral de convite para aperfeiçoamento, sempre que o recorrente não tenha, por exemplo, apresentado motivação, ou todos ou parte dos fundamentos possíveis da motivação (e que, portanto, o vício seja substancial, e não apenas formal). E ainda, por outro lado, que o legislador processual pode definir os requisitos adjectivos para o exercício do direito ao recurso, incluindo o cumprimento de certos ónus ou formalidades que não sejam desproporcionados e visem uma finalidade processualmente adequada, sem que tal definição viole o direito ao recurso constitucionalmente consagrado.»
E mais adiante:
«Não pode, pois, concluir-se que os princípios constitucionais do acesso ao direito e do direito ao recurso em matéria penal impliquem que ao recorrente tivesse sido facultada oportunidade para aperfeiçoar, em termos substanciais, a motivação do recurso deduzido quanto à matéria de facto, quando este não especificou as provas que impunham decisão diversa da recorrida, fazendo-o por referência aos suportes técnicos (antes se limitando, como no caso, a respigar partes de depoimentos, impugnado genericamente, (...) a matéria de facto provada».
Ora, se no caso, não eram [apenas] as conclusões que eram deficientes no que toca às exigências legais para impugnação da matéria de facto, mas a própria motivação que, não versando explicitamente as passagens dos suportes técnicos que impunham solução distinta da dada à matéria de facto, não passa de um ataque genérico sem as menções legais adequadas, o «convite» não se destinaria a suprir uma mera deficiência formal das conclusões, antes, destinar-se-ia à reformulação dos próprios termos da motivação do recurso, o que, como se evidencia, para além de não exigido por qualquer princípio de proporcionalidade, vai para além do exigível pelo respeito do direito de defesa, uma vez que o arguido, assistido por defensor, não pode ser dispensado da observância das exigências processuais mínimas se quer exercer devidamente o seu direito ao recurso.
Por estas razões a solução é só uma: é de rejeitar o recurso na vertente em que versa sobre a impugnação da matéria de facto.
Como vemos, estas reflexões são completamente pertinentes para o caso que temos presente e, por isso, fizemos uma transcrição o mais completa possível.
E por elas pode concluir-se que não foram prejudicados os direitos de defesa por o acórdão recorrido não ter conhecido da impugnação da matéria de facto e por o recorrente não ter sido convidado pela Relação a aperfeiçoar as suas conclusões, pois o próprio recorrente, devidamente representado pelo seu defensor, colocou-se numa posição que impossibilitou outra solução que não a rejeição do recurso nessa vertente.
O recorrente alega que a defesa foi surpreendida com a decisão de lhe não serem concedidos mais 10 dias para proceder à audição e transcrição da prova gravada, contrariando assim o Tribunal de Portimão a recente jurisprudência, o que também prejudicou os seus direitos.
Na realidade, o que sucedeu foi que o ora recorrente requereu ao tribunal de 1ª instância, após o acórdão condenatório, que lhe fossem concedidos mais dez dias para proceder à audição das cassetes com a prova gravada, apelando à aplicação do disposto no art.º 698.º, n.º 6, do CPC, aplicável "ex vi" do art.º 4.º do CPP. Mas esse requerimento foi indeferido por despacho judicial que acabou por transitar em julgado, já que o recorrente não o impugnou.
Trata-se, pois, de questão já decidida e processualmente ultrapassada.
Diga-se, por fim, ainda quanto à fixação da matéria de facto, que o recorrente não podia esperar que a Relação produzisse prova sobre factos que não foram sequer investigados nos autos.
Na verdade, as provas podem ser renovadas perante o tribunal da Relação, mas nos apertados limites do art.º 430.º, n.º 1, do CPP, isto é, quando se verificarem os vícios referidos nas alíneas do n.º 2 do art.º 410.º do CPP e houver razões para crer que a renovação de prova permitirá evitar o reenvio. Em qualquer caso, a renovação de prova tem de ser requerida pelo recorrente e esse requerimento é alvo de uma decisão preliminar que a admite ou a recusa.
Ora, estes pressupostos não se verificaram e, portanto, o recorrente não podia esperar que a Relação inquirisse novamente as testemunhas já indicadas e ouvidas no processo, muito menos, que produzisse provas completamente novas.
Em conclusão, todas as questões que o recorrente suscita sobre a fixação pelas instâncias da matéria de facto carecem de razão, pelo que a matéria de facto tem-se por definitivamente adquirida, nunca sendo de mais realçar que, em recurso de revista, o STJ conhece exclusivamente de questões de direito (cfr. art.º 434.º do CPP).
Última questão a conhecer diz respeito à medida da pena pelo crime de homicídio qualificado na forma tentada, que a 1ª instância fixou em 11 anos de prisão e que a Relação confirmou.
O recorrente não questiona que o crime de homicídio na forma tentada tenha sido considerado como especialmente agravado pela circunstância qualificativa prevista no art.º 132.º n.ºs 1 e 2, al. d), do CP. Não o faremos também, pois o que disse a 1ª instância é suficientemente elucidativo:
Ao arguido é imputada a prática de homicídio qualificado, na forma sentada, por virtude de ter actuado determinado por motivo fútil e por ódio racial.
Como é sabido para que as circunstâncias previstas no art.º 132° do Cód. Penal possam agravar o homicídio é necessário que a sua ocorrência revele especial censurabilidade ou perversidade por parte do agente.
Significa isto que a referida disposição legal, a qual contém circunstâncias agravativas de forma não taxativa, não tem funcionamento automático (a este propósito, entre muitos outros: Ac. S.T.J. de 3/4/91, C.J., II,15).
Ora, temos para nós como certo, que não se pode concluir que o arguido tenha actuado determinado por ódio racial.
Conforme já se deixou aflorado em sede de fundamentação de facto, para que tal se pudesse concluir era necessária a prova de mais situações em que o arguido de forma clara demonstrasse esse ódio.
A expressão ódio racial há-de ser consubstanciada por algo de mais grave e reiterado no tempo do que as únicas duas frases que o arguido anteriormente proferiu, no fundo ameaçando fazer aquilo que acabou por concretizar.
Mas o que é certo é que o arguido desferiu o tiro porque a vítima era um cidadão de Leste e, pelos vistos, o arguido sentia-se incomodado com isso.
Com efeito, as frases anteriormente proferidas pelo arguido são demonstrativas de animosidade contra cidadãos de Leste, animosidade essa que não atinge o grau de verdadeiro ódio "militante" e persistente.
E que o arguido desferiu o tiro porque a vítima era de Leste não restam dúvidas, até porque só o fez depois de lhe ter perguntado de que nacionalidade era e ela lhe ter respondido que era moldavo. O arguido não conhecia a vítima, a qual teve a infelicidade de naquela noite ter deparado com o arguido.
Praticamente não houve diálogo entre ambos e muito menos qualquer discussão.
No dizer de numerosa jurisprudência "há motivo fútil sempre que seja possível estabelecer um desproporção manifesta entre a gravidade do facto e a intensidade ou natureza do motivo que impeliu à acção" (Ac. da Rel. de Coimbra de 19/1/85, C.J., X, Torno I, 86).
No mesmo sentido: Ac. da Rel. de Coimbra de 15/2/84, C.J., X, Tomo I, 71, Ac, do S.T.J. de 14/1/87, T.J., 26, 21, Ac. do S.T.J. de 7/12/99, C.J., III, 234 e segs. e Ac. do S.T.J. de 15/2/01, http://cidadevirtual.pt/stj/jurisp/bol48crime.html).
Igualmente no dizer de Maia Gonçalves, C.P., 9ª edição, pág. 545: "Motivo fútil é aquele que não tem qualquer relevo, que não chega a ser motivo, que não pode sequer razoavelmente explicar (e muito menos, portanto, de algum modo justificar) a conduta. Trata-se de um motivo notoriamente desproporcionado para ser sequer um começo de explicação da conduta."
Por último, refere-se no Comentário Conimbricense, I, 32: "qualquer motivo torpe ou fútil significa que o motivo da actuação, avaliado segundo as concepções éticas ou morais ancoradas na comunidade, deve ser considerado pesadamente repugnante, baixo ou gratuito".
Face ao exposto, entende-se que o arguido agiu determinado por motivo fútil, pois que de forma simples o que aconteceu foi: o arguido vê uma pessoa na estrada, para o carro pergunta-lhe qual é a nacionalidade e depois de saber que era de Leste desfere-lhe um tiro para o matar e segue o seu caminho como se nada tivesse acontecido, indo para uma "boite".
Quer dizer: se a vítima tivesse dito que era espanhol, francês ou inglês, certamente o arguido não teria disparado o tiro!
Temos, assim, que a conduta do arguido, pelo motivo que a determinou, é merecedora de especial censurabilidade, até porque o arguido já antes havia demonstrado a intenção de dar um tiro a um cidadão de Leste, como efectivamente deu.
Foi D como poderia ter sido outro qualquer.
Entende-se, assim, que o arguido agiu determinado por motivo fútil.
Assim sendo, considerando os art.ºs 132°, n.ºs 1 e 2, al., d), 23°, n.º 2 e 73°, n.º 1, als. a) e b), do Cód. Penal a conduta do arguido quanto a isto é punível com pena de prisão de 2 anos, 4 meses e 24 dias a 16 anos e 8 meses.
Ora, a pena parcelar por este crime foi fixada em 11 anos de prisão.
Disse a este propósito o Acórdão recorrido.
9.2. A conduta do arguido, no que ao crime de homicídio qualificado tentado respeita, é punível com pena de prisão de 2 anos, 4 meses e 24 dias a 16 anos e oito meses, face ao disposto nos art.º 132 n.ºs 1 e 2 al.ª d), 23 n.º 2 e 73 n.º 1 al.ªs a) e b) do CP.
O tribunal recorrido ponderou, na determinação da pena, fazendo apelo ao art.º 71 do CP:
- A personalidade do arguido, que se demonstrou como uma personalidade mal formada, "não só porque praticou os factos com uma frieza pouco habitual, como teve um comportamento deveras tortuoso, não se coibindo de imputar os factos ao seu "amigo" C (certamente tendo consciência que o mesmo poderia passar largos anos na prisão), pelo menos no primeiro interrogatório judicial e no julgamento";
- Depois de ter desferido o tiro na vítima, continuou o seu percurso nocturno como se nada tivesse acontecido, demonstrando uma total insensibilidade pelo acto que praticou;
- Actuou com intenção de praticar os factos - dolo directo - resolução que tomou anteriormente à data dos factos, demonstrando uma persistência de pensamento em concretizar os seus intentos, o que é revelador de uma personalidade mal formada;
- As graves consequências da sua conduta, que não foram mais graves por mero acaso - o arguido não tirou a vida à vítima, como pretendia fazer, porque não teve que ser, sendo que o projéctil entrou pela boca da vítima a um metro de distância e não atingiu nenhum órgão vital;
- Os antecedentes criminais do arguido, concretamente três condenações pela prática de crimes de ofensa à integridade física;
- A elevada ilicitude da conduta do arguido, assim como a elevada necessidade de prevenção especial, uma vez que o arguido tem uma evidente tendência para a prática de actos violentos;
- As elevadas necessidades de prevenção geral, pois nada justifica ou atenua a gravidade da conduta do arguido, pese embora o desconforto que a presença de cidadãos do leste possa provocar em alguns portugueses, que não podem esquecer-se da situação que se viveu no nosso país na década de 60, em que milhares de portugueses emigraram para França à procura de melhores condições de vida.
Ponderou ainda:
- que não se apurou que o consumo de álcool tivesse qualquer coisa a ver com a prática dos factos;
- o facto do arguido trabalhar, ser o sustento da família e ter um filho menor, circunstâncias que o arguido deveria ter em conta e pensar antes de praticar os factos.
9.2. Em face disto não pode deixar de se concluir que o tribunal recorrido ponderou devidamente a pena que aplicou ao arguido - que se mostra justa e adequada às finalidades que com a mesma se visam satisfazer e de acordo com a culpa do arguido (art.ºs 40 n.ºs 1 e 2 e 71 n.ºs 1, 2 e 3, ambos do CP) - tomando em consideração as circunstâncias que depõem contra e a favor do agente, designadamente, a sua situação social, familiar e profissional, assim como a boa conduta posterior aos factos, circunstâncias que pouco relevam (como se deu conta no acórdão recorrido), em face da gravidade dos factos e do passado criminal do arguido (tais circunstâncias não obstaram à prática dos factos).
9.5. Não relevam as considerações feitas (pelo recorrente) quanto à conduta do arguido C e sua comparticipação nos factos (não provada), sendo que a cada responde apenas pelos seus actos; sendo diversas as condutas ilícitas de cada um - de acordo com a prova produzida em julgamento - não faz sentido qualquer termo de comparação entre as penas aplicadas a cada arguido, pois cada um responde apenas pelos seus actos e na medida da sua culpa, sendo que são diversos os bens jurídicos violados.
9.6. Invoca o recorrente que o tribunal não equacionou a atenuação especial da pena - o que é verdade - e bem, pois, pelas razões supra expostas, onde se concluiu pelo elevado grau da ilicitude e da culpa, assim como da necessidade da pena, carece de fundamento tal atenuação especial da pena, que supõe a existência de circunstâncias, anteriores ou posteriores ao crime, ou contemporâneas dele, que diminuam de forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade da pena (art.º 72 n.º 1 do CP), circunstâncias que não se verificam no caso em apreço.
9.7. Carece também de fundamento a suspensão da execução da pena, cujos pressupostos, tal como se encontram definidos no art.º 50 n.º 1 do CP, não se verificam, designadamente a condenação do arguido em pena de prisão não superior a três anos.

Ora, perante esta fundamentação que, como se vê, já vem da 1ª instância, o arguido persiste em argumentar que há uma injustiça relativa, entre a sua situação e a do co-arguido, este condenado em pena de multa.
Mas, nunca poderia haver similitude de penas, pois o co-arguido não foi sequer acusado do crime de homicídio na forma tentada. Daí que não possa ser invocado o princípio da igualdade, pois este só existe para situações semelhantes e não quando as situações factuais e jurídicas são completamente diferentes.
É evidente que pode ter havido um erro judiciário na investigação criminal, mas se existiu, o que não nos compete apurar, funcionou em favor do co-arguido e não em desfavor do recorrente. Isto é, o recorrente não se pode sentir prejudicado por uma reclamada e suposta impunidade do co-arguido, pois mesmo que se provasse a co-autoria, nenhum benefício daí retiraria, tanto mais que se provou inequivocamente, por declarações e reconhecimento pessoal da vítima, que foi o recorrente que disparou a arma.
Quanto a uma eventual atenuação especial da pena, o recorrente invoca as poucas e fracas atenuantes que já foram consideradas na graduação da pena (à data dos factos o arguido A, vivia com a mulher e um filho, actualmente com onze meses, em casa pertencente aos seus pais; trabalhava como distribuidor de gás, desde 14.02.2001, auferindo cerca de 600,00 euros por mês; era um funcionário zeloso e cumpridor; era ele que sustentava a família; tem o 6.º ano de escolaridade incompleto; tem tido visitas da família no EP e tem sido acompanhado no EP por médico e psicóloga; no EP exerce a actividade de faxina, tendo bom comportamento prisional).
Tais atenuantes têm muito pouco relevo, particularmente se tivermos em conta o passado criminal do arguido, com três condenações por crimes contra a integridade física. Às atenuantes em causa não pode ser dado o relevo de circunstâncias que atenuam por forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade da pena, único caso em que se justificaria uma atenuação especial da pena (art.º 72.º do CP). Bem pelo contrário, não passam de atenuantes de carácter geral, de resto com muito pouco relevo, pelo que a pena há-de manter-se nos limites abstractos definidos na norma tipo.
As consequências do crime também não atenuam a sua grave ilicitude, pois, para além da vítima só não ter morrido por um golpe de sorte, quase irrepetível, a vítima sofreu 60 dias de doença, com igual tempo de incapacidade de trabalho e, em consequência de se ter alojado o projéctil na parte inferior do pescoço, tem dores muito fortes, o que lhe provoca bastante mau estar, também tem dores quando se deita para o lado direito, sofre de insensibilidade de todo o lado direito, ficou com a voz alterada, enrouquecida, não conseguindo gritar nem falar alto, como fazia anteriormente e passou a ter mais medo.
Por outro lado, os factos provados revelam uma frieza de carácter e uma insensibilidade perante a vida alheia a todos os títulos impressionante.
O recorrente apresenta um grau de perigosidade elevado, pelo menos quando bebe, sendo a ingestão de bebidas alcoólicas desaconselhada no seu caso, como atesta documento psiquiátrico junto aos autos. Mas não sofrendo de qualquer anomalia psíquica que tenha perturbado a sua imputabilidade, é inteiramente responsável pelos seus actos, nomeadamente por frequentar discotecas, tomar aí bebidas alcoólicas e estar armado com uma pistola.
A comunidade espera que o arguido seja colocado numa situação de reclusão por tempo suficiente para vir a interiorizar a enorme gravidade da sua conduta.
Contudo, na determinação concreta da pena, no quadro da moldura penal abstracta do crime tentado de homicídio qualificado (2 anos, 4 meses e 24 dias a 16 anos e oito meses de prisão) as instâncias não levaram em conta que o arguido havia ingerido bebidas alcoólicas (cfr. facto provado sob a alínea gg) supra), o que é um factor de desinibição e que potencia a libertação menos controlada de todos os instintos. Ora, como não se apurou que a ingestão de bebidas alcoólicas tivesse sido pré-determinada para a prática do crime, há que conceder alguma atenuação da pena, embora de forma muito contida pois o arguido estava avisado dos malefícios que daí poderiam advir. Para além disso, há que considerar que a pena fixada pelas instâncias está já na zona das penas que habitualmente se aplicam ao crime consumado de homicídio comum, o que espelha demasiada severidade.
Por isso, tudo considerado, entende-se adequado fixar a pena pelo crime de homicídio qualificado, na forma tentada, p.p. pelos art.ºs 131.º, 132.º n.ºs 1 e 2, al. d), 22.º, 23.º n.º 2 e 73.º n.º 1 als. a) e b) do CP, em nove anos de prisão.
Quanto à pena pelo crime de detenção de arma de defesa (que, em rigor, não chegou a ser impugnada pelo recorrente), é matéria irrecorrível para este STJ, dado o disposto no art.º 400.º, n.º 1, al. e), do CPP.
Como pela prática dessa detenção ilegal de arma de defesa o arguido foi condenado na pena de sete meses de prisão, na formação da pena única há que atender que esse crime acabou por ser instrumental do de homicídio tentado, pelo que, no cúmulo, a menor pena deve sofrer uma compressão de quase ¼. Assim, nos termos do art.º 77.º do CP fixa-se a pena única em nove anos e dois meses de prisão.
É óbvio que está fora de questão a suspensão da pena, pois falham todos os requisitos legais sequer para se equacionar essa hipótese.
Termos em que procede parcialmente o recurso.
5. Pelo exposto, acordam os Juízes da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em conceder provimento parcial ao recurso e em condenar o arguido A:
- pela prática do crime de homicídio qualificado, na forma tentada, p.p. pelos art.ºs 131.º, 132.º n.ºs 1 e 2, al. d), 22.º, 23.º n.º 2 e 73.º n.º 1 als. a) e b) do CP, na pena de nove anos de prisão;
- pela prática de detenção ilegal de arma de defesa, p.p. pelos art.ºs 6.º e 1.º, n.º 1 al. b), da Lei 22/97, de 27/06, mantém-se a pena de sete meses de prisão;
- em cúmulo jurídico destas penas, na pena única de nove anos e dois meses de prisão.
No mais, mantém-se a decisão recorrida.
Fixam-se em 4 UC a taxa de justiça a cargo do recorrente, com metade de procuradoria.
Notifique.

Lisboa, 15 de Julho de 2004
Santos Carvalho
Costa Mortágua
Rodrigues da Costa
Quinta Gomes