Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1625/19.6T8CBR.C1.S1
Nº Convencional: 1.ª SECÇÃO
Relator: JORGE ARCANJO
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
CONCORRÊNCIA DE CULPAS
VEÍCULO AUTOMÓVEL
CICLOMOTOR
PRESUNÇÃO DE CULPA
COMISSÁRIO
COMISSÃO
EXCESSO DE VELOCIDADE
MUDANÇA DE DIREÇÃO
Data do Acordão: 06/04/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Sumário :
1.- Para o estabelecimento da presunção legal de culpa, prevista no art.503 nº3 (1ª parte) CC, impõe-se demonstrar a direcção efectiva do veículo e a relação de comissão entre o titular dessa direcção efectiva e o condutor.

2.- A condução por conta de outrem só por si não pressupõe uma relação de comissão, nos termos do art.500 nº1 CC, pois esta não se presume, não podendo resultar da propriedade do veículo uma segunda presunção no sentido de ser comissário do dono quem quer que conduza o veículo, devendo ser alegados e provados factos que tipifiquem essa comissão, conforme Assento de 30 de Abril de 1996 ( DR 1ª Série de 24 de Junho de 1996) ( transformado em AUJ ) - “o dono do veículo só é responsável, solidariamente, pelos danos causados pelo respectivo condutor, quando se aleguem e provém factos que tipifiquem uma relação de comissão, nos termos do artigo 500.º, n.º 1 do Código Civil, entre o dono do veículo e o condutor do mesmo”.

3.- Comprovando-se apenas que o veículo ligeiro de mercadorias pertencia a uma sociedade, que transferiu para a ré Seguradora a responsabilidade civil, por contrato de seguro, e que o condutor prestava serviços por conta de uma outra empresa não identificada, desconhecendo-se qual a ligação entre esta a aquela, não está demonstrada a presunção legal de culpa do art.503 nº3 CC.

4. Na mudança de direcção exige-se especial dever de cuidado, não sendo permitido iniciar a manobra sem que o condutor previamente se assegure de que da mudança não resulta perigo ou embaraço para o restante tráfego.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

I - RELATÓRIO



1.1.- Os Autores – AA, BB e CC– instauraram acção declarativa, com forma de processo comum, contra a Ré – Fidelidade Companhia de Seguros SA.

Alegando, em síntese, que o seu marido e pai, respectivamente, faleceu na sequência de um acidente de viação imputável ao condutor de um veículo seguro na Ré, pediram a sua condenação a pagar-lhes a indemnização global de € 228.000,00, acrescida de juros de mora desde a citação da Ré.

1.2. - Contestou a Ré por impugnação, quer quanto ao acidente, ao alegar que o foi causado por culpa da vítima, quer quanto aos danos, concluindo pela improcedência da acção.

1.3. - Realizada a audiência de julgamento, foi proferida sentença que julgou improcedente a acção e absolveu a Ré do pedido.

1.4. - Os Autores recorreram de apelação e a Relação de Coimbra, por acórdão de 13-6-2023, decidiu:

“Pelo exposto, julga-se parcialmente procedente o recurso interposto pelos Autores e, em consequência, revoga-se a decisão recorrida, julgando-se parcialmente procedente a ação e, em consequência condena-se a Ré a pagar aos Autores as seguintes quantias:

- Solidariamente, a ambos os Autores, € 39.824,05;

- A cada um dos Autores € 17.500,00;

- Juros de mora, à taxa definida por lei, sobre estas quantias, até seu integral pagamento, desde a data da prolação deste acórdão, com exceção da indemnização por danos patrimoniais, de € 2.324,05, a pagar a ambos os Autores, em que a contagem dos juros se iniciou na data de citação da Ré.

Indefere-se o pedido de condenação dos Autores, por litigância de má fé na fase de recurso.

Custas da ação e do recurso pela Ré, na proporção de 25%, e pelos Autores, na proporção de 75%.”

1.5. Inconformada, a Ré recorreu de revista, com as seguintes conclusões:

a) Não alterando a Relação a matéria de facto que vem da 1ª instância no que concerne à dinâmica do acidente, a revogação parcial da decisão é, deste modo, relativa a matéria de direito ou, no que dá no mesmo, é uma interpretação diferente sobre a matéria de facto apurada na 1ª instância, portanto matéria de direito, susceptível de recurso para o STJ.

b) As zonas de penumbra ou dúvidas que a Relação invocou estão devidamente esclarecidas na sentença da primeira instância, quer na fundamentação da matéria de facto, quer na documentação junta (auto de ocorrência), quer na acta de inspecção ao local, quer nas presunções judiciais que decorrem da experiência da vida; vale isto para a velocidade, para a distância a que se encontrava quando o ciclomotor iniciou a manobra e para o local exacto da hemifaixa em que se deu o embate.

c) A manobra de direcção do ciclomotorista é imprevisível e brusca, devendo manter-se tal factualidade nos termos decididos pela 1ª instância. Mantendo-se, a exclusividade da culpa é irrefutável.

d) Não compete ao tribunal, em sede de recurso, excluir uma parte da matéria de facto com fundamento na escolha semântica de dois adjectivos utilizados; compete-lhe, outrossim, verificar se, face à matéria alegada e provada nas instâncias com base nos depoimentos testemunhais, na documentação e na motivação da matéria de facto, os dois adjectivos correspondem ou não aos factos ocorridos, pois o que importa são os factos e não a escolha ou qualificação vocabular. Por isso, com base numa pretensa contradição semântica entre os vocábulos, estes não podem ser excluídos.

f) A matéria de facto apurada, mesmo que se aceitasse a zona de penumbra da Relação, determina culpa exclusiva do condutor do ciclomotor, por violação grosseira do artigo 35 do CE (o condutor só pode efectuar manobra de mudança de direcção em local e por forma a que não resulte perigo e embaraço para o trânsito”), e de outros normativos relativos aos cuidados gerais de conduta(3º/2, 11º/2 do CE), bem como dos cuidados comportamentais relativos à negligência em geral que decorrem do ordenamento jurídico português (CC e CP, à cabeça), que é objectivamente um comportamento temerário.

g) Para que as zonas de penumbra pudessem relevar teria a eventual culpa do lesante de ser causal do acidente. E, para tal, teria de ser feita a prova da culpa causal das zonas de penumbra, em concreto, para o acidente, ou seja, em concreto, dizer quais os factos penumbrosos que poderiam ser causais, se provados, para o acidente.

h) A relevância disto decorre de, para além do mais, do artigo 503 nº3 do CC prever apenas presunção da culpa, não presunção do nexo causal.

i) A imputação de culpa ao lesado, é grave pelos factos apurados e grave pela avaliação que o tribunal da Relação lhe conferiu (75%). Sendo grave jamais seria aplicável o artigo 570 nº 1 e 2 do CC, mesmo de jure constituendo.

j) A culpa comprovada é incompatível com uma presunção, salvo em situações muito específicas, como é o caso das actividades perigosas, que é de RC por actos ilícitos, que não é o caso dos autos.

k) No caso dos autos, de culpa comprovada do lesado, muito grave, não permite o concurso mesmo na interpretação mais mitigada do nº2 do artigo 570 do CC.

l) Quando a responsabilidade tiver como fundamento uma presunção de culpa, a indemnização está excluída (570 nº 2).

m) Estando um veículo seguro numa empresa de aluguer de viaturas e sendo seu condutor uma pessoa singular, sabendo-se que aquele condutor presta serviços por conta de uma empresa, não se sabendo quem é essa empresa e se naquele dia e hora do acidente prestava serviços por conta dessa empresa, não se pode concluir que seja naquele dia e hora condutor por conta de outrem.

n) A litigância de má-fé é de conhecimento oficioso e pode ser conhecida quer nas instâncias quer na relação quer no STJ, desde o processo contenha elementos que permitam tal decisão; a falsificação de um auto de ocorrência num acidente de viação é um acto de extrema gravidade, mormente quando com a falsificação se pretende obter vantagens concordantes com as alegações feitas na PI.

o) Foram violadas normas de direito substantivo e processual, no essencial as citadas, que aqui se resumem: 35 do CE, 483, 503/3 e 570/2 do CC , 607, ex vi 549 do CPC, devendo revogar-se o acórdão, decidindo-se como na 1ª instância.

1.6. - Os Autores contra-alegaram no sentido da improcedência do recurso.


II – FUNDAMENTAÇÃO


2.1. – O objecto do recurso

A questão essencial submetida a revista, delimitada pelas conclusões, consiste em saber se o condutor do veículo automóvel de matrícula ..-NJ-.. Peugeot Partner pertencente a L..., Lda. (com a apólice válida nº...66 da aqui Ré Seguradora) deve ser responsabilizado pelo acidente de viação.

2.2. – Os factos provados

1º No pretérito dia ... de Março de 2016, o sinistrado BB (cônjuge marido da 1ª Autora e pai dos 2ºs e 3ºs Autores) circulava com o seu ciclomotor de matrícula ..-DU-.., na Estrada Nacional ...44 (no sentido C...-P...), quando, ao KM 1, sofreu um acidente de viação [art1pi].

2º Após descrever uma curva que se desenhava à sua esquerda a que se seguia uma reta de mais de 100 metros e de ter percorrido nessa reta cerca de 40 metros em sentido ascendente foi-se aproximando do eixo da via, sinalizando a sua intenção de virar à esquerda para entrar no portão que dá acesso ao logradouro da sua casa de habitação [art2pi].

3º O condutor do ciclomotor de matrícula ..-DU-.. executou a mudança de direção obliquamente na direção do portão da moradia para onde se dirigia [art15cont alterado].

4º Foi colhido pelo veículo que circulava em sentido contrário, já dentro do aglomerado urbano da vila de ..., na parte lateral direita, junto ao pousa-pé, projetando-o para a valeta direita da estrada, considerando o sentido de marcha do veículo ligeiro de mercadorias onde ficou imobilizado e consciente [art3pi].

5º O condutor do veículo ligeiro de mercadoria (de seu nome DD conduzia o veículo ligeiro ..-NJ-.. Peugeot Partner pertencente a L..., Lda. (com a apólice válida nº...66 da aqui Ré) [art4pi].

6º Avistou o ciclomotor com o pisca esquerdo ligado [art4pi].

7º O acidente verificou-se dentro da malha urbana da vila de ..., onde a velocidade é limitada a 40Km/Hora, após essa placa indicativa e num local onde a velocidade máxima permitida é de 40 KM/Hora, conforme placa existente logo a seguir à placa sinalizadora da vila, considerando o sentido de marcha do veículo ..-NJ-.. [art6pi].

8º A estrada no local encontrava-se em bom estado de conservação e tem uma largura de seis metros, sendo que fazia bom tempo, havia boa luminosidade e o piso estava completamente seco [art7pi].

9º Não existem rastos de travagem por parte do condutor do veículo Peugeot [art13pi].

10º No sentido de marcha seguida pelo ciclomotor, não circulava qualquer veículo no momento em que ocorreu o acidente [art14pi].

11º A estrada desenha uma curva 40 a 50 metros à frente do veículo ..-NJ-.. [art15pi].

12º O condutor do veículo ligeiro de mercadorias Peugeot ..-NJ-.. prestava serviços por conta de uma empresa ligada ao Grupo M... [art16pi].

13º Em consequência do acidente, o sinistrado BB foi transportado pelo INEM, de imediato para as urgências do Centro Hospitalar Universitário ..., onde lhe foi detetada uma contusão medular cervical C3-C4, no contexto de traumatismo vertebro-medular [art17pi].

14º Aquando da observação no serviço de urgência, referiu que tinha dor intensa nos ombros e na região lombar, com sensação de parestesias dos membros superiores e perda de força nos membros inferiores, apresentando-se, porém, consciente e orientado [art18pi].

15º Da observação efetuada e em resultado da lesão apresentava uma situação de tetraparésia com membro superior grau 4 a nível próxima e G2 a nível distal e com membro inferior (flexão coxa): G4 à esquerda e G3 à direita [art19pi].

16º Tendo-se detetado em exames complementares mormente após realização de TAC Cervical - uma fratura do corpo de C2 e da articular de C7 à direito e após Ressonância Magnética uma contusão medular em C3- C4 associada a canal estenótico a esse nível [art20pi].

17º O sinistrado permaneceu internado, 46 dias, num sofrimento físico e psíquico atroz [art21pi].

18º Tendo, findo o internamento, sido transferido para a Unidade de Cuidados Continuados ... no dia 26 de Abril de 2016 [art22pi].

19º Depois do acidente e decorrente das lesões acima descritas, o sinistrado padecia de quadro de tetraparésia, que levou ao desenvolvimento de úlcera de pressão sagrada sobreinfetada; foi traqueostomizado, vindo a desenvolver quadro de infeções com expetoração purulenta; foi algaliado de forma crónica, com posteriores infeções urinárias e episódios de hematúria; todos esses fatores, associados principalmente à sua dependência de terceiros, que o obrigava a permanecer longos períodos de repouso no leito, culminaram com quadro de volvo do sigmóide e infeção generalizada (sépsis) [art24pi].

20º O quadro lesional acima descrito determinou a sépsis e, em consequência desta, vindo a falecer, no dia 29 de Julho de 2018 [art25pi].

21º Durante todo este período de tempo, o sinistrado esteve consciente [art26pi]. 22º Tendo em todos esses momentos sentidos dores, angústia, assistindo à degradação das suas condições de saúde, teve plena consciência do agravamento do seu estado de saúde, o que lhe provocou não só a ele um enorme sofrimento físico como também psicológico, mas também aos aqui Autores um grande desgaste psicológico, uma dor imensa e um enorme abalo moral, quadro esse que foi vivido diariamente por todos eles [art27pi].

23º Antes do acidente, o sinistrado era uma pessoa perfeitamente autónoma, deslocando-se praticamente todos os dias para o centro da vila de ... para conviver com amigos e familiares [art28pi].

24º Apesar de reformado, fazia o “amanho” de alguns terrenos agrícolas [art29pi].

25º Era um homem bem-disposto, trabalhador e cheio de alegria de viver [art31pi].

26º Os autores e o falecido eram muito unidos e conviviam assiduamente [art39pi].

28º Os AA. sentiram profundamente a morte da vítima lamentando o sucedido [art41pi].

29º E ainda vivem esse quadro de angústia e sentimento de perda do seu marido e pai [art42pi].

30º O falecido durante o período de vinte e seis meses de internamento, na Unidade de Cuidados Continuados ..., despendeu, a quantia de € 9296,02 [art57e61-f) pi].

31º Tal prestação constituía o suplemento que era devido pelo utente e que a Segurança Social não comparticipava [art58pi].

32º Pelo contrato de seguro titulado pela apólice referida em 4º da Petição Inicial, o proprietário do veículo onde circulava o condutor, com a matrícula transferiu para a aqui Ré a sua responsabilidade civil por danos causados a terceiros emergentes da sua circulação [art49pi].

2.3. A responsabilidade pelo acidente

A pretensão dos Autores situa-se no âmbito da responsabilidade civil extra-contratual (art.483 e segs. do CC). São pressupostos da obrigação de indemnização, o facto ilícito, o nexo de imputação subjectiva (a culpa) e a existência de danos causados adequadamente por esse mesmo facto. Incumbe ao autor, como facto constitutivo do seu direito, a prova dos pressupostos do direito de indemnização (arts.342 nº1 e 487 C.C.), designadamente da culpa, através da chamada “prova da primeira aparência”, salvo havendo presunção legal de culpa.

Na situação dos autos, no dia ... de Março de 2016, na Estrada Nacional ...44 (no sentido C...-P...), ao KM 1, ocorreu um acidente de viação, através de colisão entre o ciclomotor matrícula ..-DU-.., conduzido por BB, que veio a falecer, e o veículo ligeiro ..-NJ-.. Peugeot P, conduzido por DD.

A sentença julgou a acção improcedente por entender que a responsabilidade do acidente é exclusivamente imputada ao condutor do ciclomotor, visto ter fectuado a manobra de mudança de direcção com violação das regras dos arts.29 e 35 CE.

Já a Relação, alterando o facto nº3, concluiu que o condutor do ciclomotor agiu culposamente, mas não tendo a Ré feito prova da exclusividade do comportamento culposo do lesado, não está, por isso, ilidida a presunção de culpa que incide sobre o condutor do veículo automóvel (art.503 nº3 CC), tendo aplicado a norma do art.570 nº1 do CC, repartindo a responsabilidade na proporção de 75% para a vítima e 25% para o condutor do veículo automóvel.

A Ré não aceita o veredicto da Relação, alegando, por um lado, não se poder concluir que o condutor do veículo conduzisse por conta de outrem, logo sobre ele não recai a presunção de culpa, e, por outro, a resulta da factualidade apurada a culpa exclusiva do lesado, pelo que pediu revista.

Está provado que “O condutor do veículo ligeiro de mercadoria (de seu nome DD) conduzia o veículo ligeiro ..-NJ-.. Peugeot Partner pertencente a L..., Lda. (com a apólice válida nº...66 da aqui Ré) [art4pi].” e “O condutor do veículo ligeiro de mercadorias Peugeot ..-NJ-.. prestava serviços por conta de uma empresa ligada ao Grupo M... [art16pi].”

O art.503 nº3 do CC preceitua – “Aquele que conduzir o veículo por conta de outrem responde pelos danos que causar, salvo se provar que não houve culpa da sua parte; se, porém, o conduzir fora do exercício das suas funções de comissário, responde nos termos do nº1”.

O Assento (posteriormente transformado em acórdão de uniformização de jurisprudência) de 14 de Abril de 1983 (publicado no DR 1ª Série de 28/6/1983) fixou a seguinte jurisprudência: “A primeira parte do nº 3 do artigo 503 do Código Civil estabelece uma presunção de culpa do condutor do veiculo por conta de outrem pelos danos que causar, aplicável nas relações entre ele como lesante e o titular ou titulares do direito a indemnização”.

Muito embora tenha sido questionada a inconstitucionalidade da norma, na interpretação do Assento, a verdade é que o Tribunal Constitucional tem reafirmado a sua conformação constitucional (cf., por ex., Ac TC de 7/6/94, BMJ 438, pág.71).

Por sua vez, o Assento de 26 de Janeiro de 1994 (Diário da República, 1ª Série, de 19 de Março de 1994), fixou a seguinte jurisprudência: “A responsabilidade por culpa presumida do comissário, estabelecida no artigo 503, n. 3, primeira parte, do Código Civil, é aplicável no caso de colisão de veículos prevista no artigo 506, n. 1, do mesmo Código”.

E o Assento de 2 de Março de 1994 (In Diário da República, 1ª Série, de 28 de Abril de 1994), determinou: “A responsabilidade por culpa presumida do comissário, nos termos do artigo 503, n. 3, do Código Civil, não tem os limites fixados no n. 1 do artigo 508 do mesmo diploma”.

O funcionamento da presunção de culpa, prevista no art.503 nº3 ( 1ª parte) CC, pressupõe uma relação de comissão ( art.500 CC ), que, segundo orientação jurisprudencial e doutrinária, se caracteriza pelos seguintes elementos: a) - vínculo entre o comitente e o comissário; b) - relação de subordinação ou de dependência do comissário perante o comitente, que autorize este a dar ordens ou autorizações àquele; c) - o facto haja sido praticado pelo comissário no exercício das funções que lhe foram confiadas, embora seja suficiente que o acto se integre no quadro geral da competência ou dos poderes confiados ao comissário.

Tem-se entendido que a comissão do art.500 CC não tem aqui o sentido preciso que reveste no art.266 e segs, do Código Comercial, mas o sentido amplo de serviço ou actividade realizado por conta e sob a direcção de outrem, podendo traduzir-se num acto isolado ou numa actuação duradoura.

Porém, a condução por conta de outrem só por si não pressupõe uma relação de comissão, nos termos do art.500 nº1 CC, pois esta não se presume, não podendo resultar da propriedade – direcção efectiva - uma segunda presunção no sentido de ser comissário do dono quem quer que conduza o veículo, devendo ser alegados e provados factos que tipifiquem essa comissão, conforme Assento de 30 de Abril de 1996 ( DR 1ª Série de 24 de Junho de 1996) ( transformado em AUJ ) - “o dono do veículo só é responsável, solidariamente, pelos danos causados pelo respectivo condutor, quando se aleguem e provém factos que tipifiquem uma relação de comissão, nos termos do artigo 500.º, n.º 1 do Código Civil, entre o dono do veículo e o condutor do mesmo”.

Sendo assim, a comissão reclama uma relação de dependência entre o comitente e o comissário – aquele dando, ou podendo dar instruções ou ordens a este – que permita responsabilizar o primeiro pela actuação do segundo, exigindo-se a necessária a prova da referida relação de dependência. Deste modo, a relação comissário/comitente é distinta do mero interesse (económico ou moral) na utilização do veículo, cuja direcção efectiva (traduzida no poder de facto sobre o veículo) pode coexistir entre o proprietário do veículo e o seu condutor, bastando recordar, entre outras, as figuras do comodato, mantendo, assim, a direcção efectiva do veículo.

Na situação dos autos, sabe-se apenas que o veículo ligeiro de mercadorias ..-NJ-.. pertencia à L..., Lda., que transferiu para a Ré Seguradora a responsabilidade civil, por contrato de seguro, e que o condutor prestava serviços por conta de uma empresa do Grupo M....

Considerando que para o estabelecimento da presunção legal de culpa há que demonstrar a direcção efectiva do veículo e a relação de comissão entre o titular dessa direcção efectiva e o condutor ( cf.,por ex., Ac STJ de 3/3/2009 ( proc nº 09A276), em www dgsi ), verifica-se que o condutor nem sequer prestava serviço para a proprietária do veículo automóvel, que é presuntivamente quem tem a direcção efectiva, mas para outra empresa concretamente (não identificada), desconhecendo-se qual a ligação entre esta a aquela.

Por outro lado, os factos são insuficientes para a caracterização de uma relação de comissão, na acepção definida, e muito menos para o apuramento de um segundo comitente.

Deste modo, não estando comprovada a relação de dependência entre o condutor e a proprietária do veículo, fica afastada a relação de comissão, implicando a inexistência da presunção de culpa do art.503 nº3 (1ª parte) CC).

Neste contexto, afastada a presunção legal de culpa do art.503 nº3 (1ª parte) CC sobre o condutor do veículo automóvel, sucumbe a argumentação exposta no acórdão recorrido.

Mudar de direcção é tomar uma via confluente daquela em que se segue e o condutor deve fazer o sinal regulamentar com a necessária antecipação, bem visível e significativo, de modo a não deixar dúvidas sobre a sua intenção aos restantes utentes da estrada, aproximar-se do eixo da via e realizar a manobra em sentido perpendicular aquele em que seguia. Em caso algum deve iniciar tal manobra sem previamente se assegurar que da sua realização não resulta perigo ou embaraço para o trânsito (arts.21 nº1, 35 nº1 e 44 do CE, na redacção da Lei nº116/2015 de 28/8, vidente na data do acidente)).

Da regra do art.44 nº1 do CE resulta que esta manobra comporta duas fases: na primeira exige-se a transposição do veículo da fila direita da meia-faixa por onde se segue para a esquerda da mesma, junto ao seu eixo; a segunda na mudança de direcção propriamente dita, ou seja na inversão do rumo do veículo (pelo lado destinado ao seu sentido de circulação).

A lei impõe especial dever de cuidado, não sendo permitido iniciar a mudança de direcção sem que o condutor previamente se assegure de que da mudança não resulta perigo ou embaraço para o restante tráfego, sendo patente que aqui tal não sucedeu.

Perante a factualidade apurada, sabe-se que o embate ocorreu no decurso da execução da manobra de mudança de direcção para a esquerda (cf pontos 3 e 4) e a culpa do acidente deve ser imputada ao condutor do ciclomotor, a vítima BB, como reconheceu o acórdão. Mas culpa exclusiva, pois os elementos factuais disponíveis não viabilizam um juízo de censura sobre o condutor do veículo automóvel, dado não se demonstrar haver praticado qualquer violação das regras de circulação estradal, nomeadamente que não haja adequado a sua velocidade ao local, dentro da Vila de ..., onde a velocidade é limitada a 40 Km/h.

O conceito de velocidade excessiva, definido no art.24 nº1 do CE, comporta duas realidades distintas: uma vertente absoluta (sempre que exceda os limites legais) e uma vertente relativa, a não adequação à situação concreta, que leva a que condutor não pare no espaço livre e visível à sua frente.

Não está provado que o condutor do veículo ligeiro ..-NJ-.. Peugeot circulasse a uma velocidade superior a 40 Km/h. Porém, com vertente relativa, a norma pretende que o condutor assegure que a distância entre ele e qualquer obstáculo visível é suficiente, para no caso de necessidade fazer parar o veículo sem ter de contar com os obstáculos que lhe surjam inopinadamente. Na verdade, o espaço livre e visível, para o efeito de se considerar excessiva a velocidade, tem sido concebido como a secção da estrada isenta de obstáculos que fica abrangida pelas possibilidades visuais do condutor.

É certo provar-se que o condutor do veículo automóvel avistou o ciclomotor com o pisca esquerdo ligado (ponto 6), mas para além de se desconhecer em que momento, a verdade é que nenhum condutor é obrigado a contar com a imprudência dos outros.

Porque o acidente é exclusivamente imputável ao próprio lesado, está excluída a responsabilidade da Ré, nos termos do art.505 do CC.

Procede a revista, com revogação do acórdão recorrido, absolvendo-se a Ré do pedido.


III – DECISÃO


Pelo exposto, decidem:

1)


Julgar procedente a revista e revogar o acórdão recorrido.

2)


Julgar a acção improcedente e absolver a Ré do pedido.

3)


Condenar os Autores nas custas do recurso e em ambas as instâncias.


Lisboa, Supremo Tribunal de Justiça, 4 de Junho de 2024.

Jorge Arcanjo (Relator)

Nelson Borges Carneiro

Maria João Tomé