Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JSTJ000 | ||
Relator: | SIMAS SANTOS | ||
Descritores: | TRÁFICO DE ESTUPEFACIENTE TRÁFICO DE MENOR GRAVIDADE TRAFICANTE-CONSUMIDOR RECURSO RECURSO PENAL MANIFESTA IMPROCEDÊNCIA RECURSO PARA O SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA | ||
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Nº do Documento: | SJ200310090031705 | ||
Data do Acordão: | 10/09/2003 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | T J SEIXAL | ||
Processo no Tribunal Recurso: | 141/02 | ||
Data: | 05/06/2003 | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | RECURSO PENAL. | ||
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Sumário : | 1 – Tendo a detenção para consumo de doses de estupefacientes que não excedam o consumo médio individual durante o período de 10 dias passado a constituir contra-ordenação, por coerência do sistema, há que entender que o n.º 3 do art. 26.º do DL n.º 15/93, passou a referir-se ao período de 10 dias de acordo com o art. 2.º da Lei n.º 30/2000, verificando-se uma derrogação parcial do mencionado n.º 3, só a partir daí se configurando uma situação de tráfico normal. 2 – É manifestamente improcedente o recurso quando é clara a sua inviabilidade, quando no exame necessariamente perfunctório a que se procede no visto preliminar, se pode concluir, face à alegação do recorrente, à letra da lei e às posições da jurisprudenciais sobre as questões suscitadas, que aquele recurso está votado ao insucesso. O que sucede quando o recorrente não impugna os fundamentos invocados na decisão recorrida para a qualificação jurídica efectuada e, perante os textos legais, não oferece dúvidas a sua bondade. | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam do Supremo Tribunal de Justiça I 1.1.O Tribunal do Círculo Judicial de Almada (Seixal, proc. CC 141/02.0GCSXL) decidiu, por acórdão de 6.5.2003: — 1° Absolver da acusação o arguido, NMVL; — 2° Condenar os arguidos JMMS, como autor material de um crime de tráfico de estupefacientes do art. 21.º, n°1, do DL n.º 15/93, de 22-1, na pena de quatro (4) anos e dez (10) meses de prisão; CVM, como autor material de um crime de tráfico de estupefacientes do art. 21.º, n.º 1, do DL n.º 15/93, de 22-1, na pena de cinco (5) anos e seis (6) meses de prisão; JRFEO, como autor material de um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade do art. 25.º, al. a), do DL n.º 15/93, de 22-1, na pena de dois (2) anos de prisão; LPF, como autor material de um crime de detenção ilegal de arma de defesa do art. 6.º, da Lei n.º 22/97 de 27 de Junho, na pena de cinco (5) meses de prisão que, nos termos do art. 50.º, do Código Penal, se suspende na sua execução por dois anos. 1.2. Inconformado, recorreu o arguido JRFEO para a Relação de Lisboa (cfr. fls. 1062), concluindo na sua motivação, que dirigiu aos Juízes do Supremo Tribunal de Justiça, sem articular, como o ordena o n.º 1 do art. 412.º do CPP: • O despacho recorrido violou o disposto nos art.ºs 25.° e 26.° do Código Penal • Não deveria o Meritíssimo Juiz de Tribunal a quo ter feito aplicação do art. 25.º do DL n.º. 15/93 de 22 de Janeiro, quando o mesmo nem vinha acusado da prática de tráfico de menor gravidade. • Sendo que se provaram os factos constantes da acusação • O arguido vendia à consignação por conta de outrem, com o único objectivo de obter produto estupefaciente para o seu próprio consumo. • O próprio acórdão refere que “o arguido procedeu a actos de cedência e detinha estupefacientes para venda, com intenção de conseguir produto para seu consumo pessoal, o que constitui crime de traficante — consumidor”. • Existe, em nosso entender contradição insanável entre a fundamentação e a decisão. • O Tribunal a quo deveria ter condenado o arguido pela prática de um crime p. e p. pelo art. 26.º do D.L. n.º. 15/93 de 22 de Janeiro, tal como se encontrava acusada. • E deveria o mesmo ter sido condenado em um ano de prisão. V. Exªs concedendo provimento ao presente recurso, alterando a decisão e aplicando o artigo 26°. do D.L. n.º. 15/93 de 22 de Janeiro, por ser o tipo legal de crime que se encontra preenchido farão como sempre a boa administração da JUSTIÇA! 1.3. Respondeu o Ministério Público à motivação, concluindo: 1 - não houve assim qualquer contradição entre a matéria dada como provada e a decisão nem houve qualquer erro notório na apreciação prova. 2 - o acórdão recorrido fez correcta aplicação do direito à matéria de facto dada como provada 3 - E da matéria de facto dada como provada, outro enquadramento jurídico não podia ter sido feito a não ser, considerar que a conduta do arguido integrava a prática como autor material de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo art. 25°, n.º 1, al. a) do Dec. Lei n.º 15/93, de 22-01, na pena de dois anos de prisão; 4 - Fez o Tribunal correcta aplicação das sanções penais, mostrando-se criteriosa a dosimetria da pena. 5 - Nenhuma nulidade foi cometida. II O recurso foi remetido para este Supremo Tribunal de Justiça e teve o Ministério Público vista dos autos. Colhidos os vistos legais, vieram os autos à conferência para a análise da manifesta improcedência do recurso, pelo que cumpre conhecer e decidir. III E conhecendo. 3.1. Dados os termos das conclusões e do texto da motivação, impõe-se a clarificação do real objecto do presente recurso. Com efeito, o recorrente, sem invocar expressamente o disposto na al. c) do n.º 2 do art. 410.º do CPP, sustenta todo o seu recurso na alegada existência de contradição insanável entre a fundamentação e a decisão. Ora, a traduzir esta alegação o verdadeiro fundamento da impugnação, então estaria afastada a competência deste Supremo Tribunal de Justiça, pois que é sua jurisprudência uniforme que, no recurso para si interposto, não conhece da questão de facto, mesmo se consubstanciada em algum do vícios do n.º 2 do art. 410.º do CPP. Sucede, porém, que embora se refira o recorrente à contradição insanável entre a fundamentação e a decisão, o certo é que pretende assacar-lhe o erro por excelência de direito: a errada subsunção dos factos ao direito. O que coloca a raiz da impugnação dentro dos poderes de cognição do Supremo Tribunal de Justiça. Isto posto, importa sublinhar que o recorrente só impugna a qualificação jurídica da sua conduta e já não a medida concreta da pena infligida no quadro da moldura penal abstracta considerada pela 1.ª Instância. Pretende ele que deveria ser condenado como autor de um crime previsto e punido pelo art. 26.º do DL n.º 15/93 e não de um crime previsto e punido pelo art. 25.º do mesmo diploma legal, como o foi. 3.2 Vejamos então. Foi efectivamente o arguido acusado como autor do referido crime do art. 26.º do DL n.º 15/93, mas na audiência de discussão e julgamento o Senhor Juiz Presidente proferiu o seguinte despacho (cfr. fls. 1017 e 1018): “O arguido JRFEO está acusado de crime de traficante consumidor (art. 26.º, do DL. Lei n.º 15/93, de 22/01), por proceder à venda de estupefaciente por contra de outrem, tendo em seu poder, para o efeito, heroína com o peso líquido de 3,254gr. E cocaína com o peso líquido de 0,556gr., com intenção de obter produtos para seu próprio consumo. Contudo, tendo em conta a tabela anexa à Portaria N° 94/96, de 26/03, o estupefaciente por ele detido é muito superior ao consumo médio individual durante o período mencionado no n.º 3, daquele art. 26°, o que, afasta a aplicação deste e impõe a subsunção dos factos constantes da acusação ao art. 25°, ai. a), do Dec. Lei. N° 15/93, em relação a este arguido. Constando estes factos da acusação, verifica-se uma mera alteração da qualificação jurídica dos factos, o que se comunica ao arguido José Oliveira, para os efeitos do art. 358°, n.ºs 2 e 3 do Código de Processo Penal”. De seguida, o Defensor do arguido JRFEO disse prescindir do prazo para defesa. Dispõe-se no invocado art. 358.º, a propósito da alteração não substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia que, se no decurso da audiência se verificar uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, com relevo para a decisão da causa, o presidente, oficiosamente ou a requerimento, comunica a alteração ao arguido e concede-lhe, se ele o requerer, o tempo estritamente necessário para a preparação da defesa (n.º 1), disciplina correspondentemente aplicável quando o tribunal alterar a qualificação jurídica dos factos descritos na acusação ou na pronúncia (n.º 3). Ora, foi exactamente o que aconteceu no caso sujeito. O Presidente, uma vez que o Tribunal Colectivo admitiu a hipótese de alterar a qualificação jurídica da conduta atribuída ao recorrente, procedeu como o impunham os n.ºs 1 e 3 do art. 358.º, tendo a defesa prescindido de prazo. Daí que não se compreenda a invocação, na motivação de recurso (cfr. fls. 1069), da surpresa do recorrente perante a sua condenação pela prática de um crime do art. 25.º, al. a) do DL n.º 15/93, diverso do imputado na acusação. Impõe-se, assim, concluir que o Tribunal a quo podia convolar, como convolou, a incriminação da acusação para a que veio a ser acolhida na decisão recorrida, sendo certo que o recorrente não impugnou essa possibilidade. 3.3.1. Resta, pois, considerar a anunciada questão da subsunção dos factos provados à previsão do art. 25.º, al. a) do DL n.º 15/93, contestada pelo recorrente. São eles, no que se refere ao recorrente, os seguintes: No dia 3 de Abril de 2002, cerca das 17h., foi interceptado no Bairro de Santa Marta de Corroios o arguido JRFEO, o qual procedia à venda de estupefaciente “à consignação” por conta do arguido CVM; Revistado, foram encontradas na posse do JRFEO heroína com o peso líquido de 3,254gr. e cocaína com o peso líquido de 0,556gr.; Os referidos produtos foram submetidos a exame laboratorial, conforme relatório toxicológico de fls.155, cujo teor aqui se dá por reproduzido; O JRFEO tinha em seu poder, ainda, a quantia de € 30 proveniente de vendas de estupefaciente já efectuadas, bem como duas folhas de agenda constantes de fls.128 onde anotava as quantidades de droga vendidas; O arguido JRFEO procedia aos referidos actos de venda com o único objectivo de obter produto estupefaciente para o seu próprio consumo; Os arguidos JMMS, CVM e JRFEO conheciam as características estupefacientes dos produtos que transaccionavam e, bem assim, que a sua detenção para venda a terceiros era proibida e punida por lei; Os arguidos JMMS, CVM, JRFEO e LPF agiram de forma livre e voluntária, com perfeita consciência de que as condutas descritas não eram permitidas; O arguido JRFEO, por acórdão de 13-02-95, por crime de furto qualificado, cometido em 07-11-94, foi condenado na pena de sete meses de prisão, suspensa na sua execução por dois anos, suspensão posteriormente revogada (C.C. n°3153/94, 2° Cr. Almada); Em 14-11-95, por crime de roubo cometido em 11-07-95, foi condenado na pena de dois anos de prisão, suspensa na sua execução por quatro anos (C.C. n.º 2254/95, do 3.º Cr. Almada); Em 16-07-96, por crime de roubo cometido em 05-03-96, foi condenado na pena de dois anos e seis meses de prisão (C.C. n.º 659/96, do 1.º Cr. Almada); Consumia estupefacientes desde cerca de oito anos antes; Vivia com a mãe e não exercia qualquer emprego remunerado; Na escola completou o 6° ano de escolaridade; Não se provou que o arguido JRFEO tenha sido interceptado por indicação de um consumidor. 3.3.2. Subsumindo estes factos ao direito, escreveu-se no acórdão recorrido: «Tudo visto. (…) O arguido JRFEO, procedeu a actos de cedência e detinha estupefaciente para venda, com intenção de conseguir produto para seu consumo pessoal, o que constitui crime de traficante-consumidor. Contudo, tendo em conta a tabela anexa à Port. n.º 94/96, de 26-3, a heroína por ele detida é muito superior ao consumo médio individual durante dez dias [o art. 26.º, n.º 3, refere cinco dias, no entanto, aceitando a orientação do douto Ac. do S.T.J. de 20-03-2002, na C.J. Acs. do STJ ano X, tomo 1, pág.243, considera-se derrogado parcialmente aquele preceito que deve referir-se a um período de dez dias], o que afasta a aplicação do art. 26 (cfr. n.º 3). Ponderando o facto de estarmos perante consumidor de estupefacientes, sem meios para fazer face ao vício e considerando as quantidades detidas, deve a ilicitude ser tida como consideravelmente diminuída, o que justifica a condenação deste arguido pelo crime do art. 25.º, al. a), do citado Dec. Lei n.º 15/93. Na determinação da pena concreta, ponderados os critérios do art. 71, do Código Penal, nomeadamente, o grau do ilícito (…), o JRFEO detinha e cedeu para obter produto para seu consumo (…); a gravidade das suas consequências (para os consumidores, suas famílias e sociedade em geral); a intensidade do dolo (agiram com dolo directo); a conduta anterior e posterior (primários, excepto o JRFEO com três condenações, duas por roubo, uma por furto), o tribunal colectivo, considerando o elevado grau da culpa e as fortes exigências de prevenção geral (…), entende que só pena privativa da liberdade se apresenta adequada à satisfação das necessidades de prevenção (quer especial, no que diz respeito à necessidade de uma pena de prisão para influenciar comportamento dos arguidos, quer geral, como reposição da confiança da comunidade, afectada por este tipo de comportamentos). (…). Quanto ao crime de tráfico de menor gravidade (pena de um a cinco anos de prisão), considerando que o arguido JRFEO agiu impulsionado pela necessidade de satisfazer a sua dependência, mas não ignorando os seus antecedentes criminais, que não abonam em favor da sua personalidade, entende-se como adequada a pena de dois anos de prisão.» Vê-se, assim, que o recorrente não atacou, nem nas conclusões nem no texto da motivação, os fundamentos da decisão recorrida quanto à operada convolação para o crime de tráfico de menor gravidade. O que vale por dizer que não enunciou as razões da sua discordância em relação à qualificação jurídica efectuada. Como se viu, a decisão recorrida entendeu que se verificavam os elementos «positivos» do tipo legal de traficante–consumidor: venda a terceiros de produtos estupefacientes com intenção exclusiva de conseguir produto para seu consumo pessoal. Mas afastou-se desse tipo por virtude da ocorrência do elemento «negativo»: não ultrapassar o produto detido uma determinada quantidade [no caso, tida por ultrapassada]. Pode dizer-se, pois, que o recorrente não impugnou os fundamentos da decisão, não se sabendo como interpreta o art. 26.º do DL n.º 15/93, e se se afasta, e porque, da interpretação feita pelo Tribunal a quo. De todo o modo, não merece censura a decisão recorrida quanto à qualificação jurídica efectuada e que interpretou «actualisticamente» o mencionado art. 26.º, numa visão mais favorável ao arguido, face ao instrumento de despenalização do consumo e teve em atenção a Portaria n.º Portaria n.º 94/96, de 26 de Março. Entendeu este Supremo Tribunal de Justiça que a detenção para consumo de doses que não excedam o consumo médio individual durante o período de 10 dias passou a constituir contra-ordenação. Por coerência do sistema, há que entender que o n.º 3 do art. 26.º do DL n.º 15/93, passou a referir-se ao período de 10 dias de acordo com o art. 2.º da Lei n.º 30/2000, verificando-se uma derrogação parcial do mencionado n.º 3, só a partir daí se configurando uma situação de tráfico normal (cfr. Ac. do STJ de 20.3.02, Acs do STJ X, 1, 243). E dúvidas não restam, face à quantidade de estupefaciente encontrado com o recorrente, de que esse tecto de 10 dias foi ultrapassado. O que significa que o recurso é improcedente. Mas é também manifesta essa improcedência. Na verdade, é manifestamente improcedente o recurso quando é clara a sua inviabilidade, quando no exame necessariamente perfunctório a que se procede no visto preliminar, se pode concluir, face à alegação do recorrente, à letra da lei e às posições da jurisprudenciais sobre as questões suscitadas, que aquele recurso está votado ao insucesso. Ora, como se viu, o recorrente não impugnou os fundamentos invocados na decisão recorrida para a qualificação jurídica efectuada e, perante os textos legais, não oferece dúvidas a sua bondade. IV Pelo exposto, acordam os juízes da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em negar provimento ao recurso, manifestamente improcedente, do arguido. Custas pelo recorrente, com a taxa de justiça de 3 Ucs. Pagará o recorrente 3 Ucs, nos termos do n.º 4 do art. 420.º do CPP. Lisboa, 9 de Outubro de 2003 Simas Santos (Relator) Santos Carvalho Costa Mortágua |