Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
54/22.9PEBRR.S1
Nº Convencional: 5.ª SECÇÃO
Relator: JORGE GONÇALVES
Descritores: RECURSO PER SALTUM
VÍCIOS DO ART.º 410 DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL
PERDA ALARGADA
MEDIDA CONCRETA DA PENA
PREVENÇÃO GERAL
PREVENÇÃO ESPECIAL
Data do Acordão: 05/09/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário :

I – O STJ, em matéria de tráfico de droga, tem jurisprudência firmada no sentido de que constituem imputações genéricas, a impedir o exercício do direito de defesa e o contraditório, a imputação de factos sem indicação do lugar, sem delimitação temporal, sem indicação do grau de participação de cada arguido, nem as circunstâncias em que, por exemplo, o produto estupefaciente foi vendido. Devendo os factos imputados ser claros e precisos, não podem ser utilizados na acusação (e, consequentemente, na sentença) conceitos vagos, abstratos e imprecisos, genéricos e conclusivos, porquanto isso não apenas impede um eficaz exercício do direito de defesa, como impede o exercício do contraditório ínsito naquele, ficando ou podendo ficar prejudicada a possibilidade de o arguido se defender.


II - A Lei n.º 5/2002, de 11 de janeiro, consagrou uma presunção legal – de que o património do condenado que não seja congruente com os seus rendimentos normais tem origem em atividade criminosa – que assenta na condenação do arguido pela prática de um dos crimes catalogados no respetivo artigo 1.º, situação em que o legislador prescinde da prova de uma ligação dos bens e rendimentos ao crime e impõe ao arguido o ónus de ilidir a presunção e de provar a licitude daqueles bens e rendimentos, nos termos dos artigos 9.º, da Lei n.º 5/2002, e 350.º, n.º 2, do Código Civil.


III - A formulação utilizada pelo artigo 7.º da Lei n.º 5/2002 assenta na incongruência patrimonial, ou seja, não é a probabilidade de uma anterior atividade criminosa que fundamenta o regime da perda alargada, mas sim a desconformidade inexplicável entre o rendimento lícito que apresenta o arguido e o seu património globalmente considerado, em associação com a condenação por um dos crimes de catálogo. Com base na verificação dos requisitos supra identificados - condenação por crime de catálogo, titularidade de património e património incongruente com o rendimento lícito - os quais constituem a “base da presunção”, o legislador presume que a diferença entre o valor do património detetado e aquele que seria congruente com o seu rendimento lícito provém de atividade criminosa, não se incluindo, entre os pressupostos, a demonstração da existência de uma atividade ou “carreira” criminosa para além do crime pelo qual o arguido foi condenado.

Decisão Texto Integral:





RECURSO n.º 54/22.9PEBRR.S1


Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


I – RELATÓRIO


1. O Ministério Público deduziu acusação, no processo 54/22.9PEBRR, contra AA, com os sinais dos autos, imputando-lhe a prática de factos suscetíveis de integrar a prática, como autor material e em concurso efetivo, de:


- um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punido pelos artigos 14.º, n.º 1, e 26.º, ambos do Código Penal, e pelo artigo 21.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, por referência às tabelas I-B e I-C, anexa ao referido diploma legal; e


- um crime de detenção de arma proibida, previsto e punido pelos artigos 14.º, n.º 1, e 26.º, ambos do Código Penal, e pelo artigo 86.º, n.º 1, alíneas c) e e), por referência aos artigos 2.º, n.º 1, alíneas ae) e az), e 3.º, n.ºs 1 e 4, alínea a), todos da Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro [arma de fogo e munições da classe B1].


Nos termos do disposto nos artigos 109.º, n.ºs 1, 2 e 4, 110.º, n.ºs 1, alínea b), 4, 5 e 6, 112.º e 112.º-A, todos do Código Penal, o Ministério Público requereu contra o arguido a perda a favor do Estado da vantagem obtida com a prática do crime, bem como dos instrumentos que se destinavam a servir à sua prática, e bem assim, subsidiaria e complementarmente, a perda ampliada de bens a favor do Estado, ao abrigo dos artigos 1.º, n.º 1, alínea a), 7.º, 8.º, n.º 2, e 12.º, todos da Lei n.º 5/2002 de 11 de janeiro, efetuando-se a respetiva liquidação.


Por acórdão de 27 de novembro de 2023, proferido pelo tribunal coletivo do Juízo Central Criminal de... - Juiz ..., do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, o arguido foi condenado, de acordo com o dispositivo, nos seguintes termos que se transcrevem:


«Nos termos e pelos fundamentos expostos, o Tribunal Coletivo julga a acusação procedente e, em consequência, decide:


a) condenar o arguido AA pela prática de um crime de detenção de arma proibida, previsto e punido pelos artigos 14.º, n.º 1, e 26.º, ambos do Código Penal, e pelo artigo 86.º, n.º 1, alíneas c) e e), por referência aos artigos 2.º, n.º 1, alíneas ae) e az), e 3.º, n.ºs 1 e 4, alínea a), todos da Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro [arma de fogo e munições da classe B1], na pena de 1 (um) ano e 10 (dez) meses de prisão dias;


b) condenar o arguido AA pela prática, como autor material, de um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punido pelos artigos 14.º, n.º 1, e 26.º, ambos do Código Penal, e pelo artigo 21.º, n.º 1, do Decreto-lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, por referência às tabelas I-B e I-C, anexa ao referido diploma legal, na pena de 7 (sete) anos de prisão;


c) em cúmulo jurídico, nos termos do disposto no artigo 77.º, n.º 1 e 2, do Código Penal, das penas de prisão referidas nas alíneas a) e b), na pena única de 7 (sete) anos e 6 (seis) de prisão;


(…)


e) declarar perdidas a favor do Estado a arma de fogo curta - pistola, da marca Bernardelli, modelo 68, de calibre 6,35 mm (.25), as munições, de calibre 6,35 mm a favor do Estado e das munições de salva apreendidas nos autos, nos termos do disposto no artigo 109º, nº 1, do Código Penal;


f) declarar perdidos a favor do Estado os produtos estupefacientes e os instrumentos apreendidos (01 (uma) balança de precisão, da marca Scale, modelo SH-125, com prato; 02 (duas) embalagens de fita castanha; 01 (uma) etiqueta, com a marca Royal Salute; 01 (um) saco de compras em plástico, de cor castanha, da marca Mini Preço; 01 (uma) colher de chá; 01 (uma) caixa de sapatos, da marca Air Jordan; 01 (um) saco de compras em plástico, de cor castanha, da marca Continente; 01 (um) saco de compras em plástico, de cor amarela, da marca Intermarché; 01 (um) saco de compras em plástico, de cor azul, da marca Elecclerc; 01 (um) saco de compras em plástico, de cor preto, da marca Pingo Doce; 02 (duas) embalagens plásticas; 01 (uma) manga plástica, de cor preta; 01 (uma) folha de papel; 01 (uma) caixa, contendo vários medicamentos esteroides anabolizantes; 01 (uma) caixa, contendo seringas com agulhas de dois tamanhos diferentes da marca PIC) e as quantias monetárias apreendidas (sete mil, trezentos e sessenta euros), nos termos do disposto nos artigos 109º, nº 1, e 110.º, n.º 1, al. b), do Código Penal e artigos 35º, nº 1 e 2, e 36.º, n.º 1, ambos do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro; e


g) declarar a perda ampliada de bens a favor do Estado no valor de € 212.721,61 (duzentos e doze mil, setecentos e vinte e um euros e sessenta e um cêntimos) e, consequentemente, o arguido condenado a pagar ao Estado esse montante, com respetiva liquidação de bens, nos termos requeridos pelo Ministério Público ao abrigo dos artigos 1.º, n.º 1, alínea a), 7.º, 8.º, n.º 2, e 12.º, todos da Lei n.º 5/2002 de 11 de janeiro, contra o arguido AA, mantendo-se, na íntegra, os termos decisórios da decisão de arresto decretado no apenso H.


(…).»


2. O referido arguido interpôs recurso do referido acórdão para este Supremo Tribunal, formulando as seguintes conclusões (transcrição):


1. Verifica-se o vício da insuficiência da matéria de facto para a decisão – artigo 410º n.º2 a) do CPP


a. Nos pontos da matéria de facto 4, 5, 7 e 9;


b. Como já decidiu o STJ, não se apurando a quantidade de haxixe transacionado, o tribunal não esgotou o objeto do processo;


c. Se não se sabe que grau quantitativo de tráfico estamos lidando, porque, nem aproximadamente, se pode extrair dos factos qual a quantidade global traficada por cada arguido, porque o tribunal não apurou e não procurou apurar sequer (pois não consta dos factos provados e também dos não provados), e que, afinal, se resume em saber qual a quantidade de droga envolvida em cada transação enunciada, mais precisamente. qual o peso líquido, ainda que aproximado, de cada «pacote» de droga transacionado, estando em causa duas condenações em penas de prisão, respectivamente de cinco anos e seis meses e oito anos, o tribunal recorrido não esgotou (…) o objecto do processo, assim deixando a matéria de facto exposta ao vício de insuficiência a que alude o artigo 410.°, n.º 2, a), do Código de Processo Penal.


d. Na situação de 4 não se provaram as quantidades, e nas outras, não se provou sequer um ato de tráfico ainda que genérico;


e. Estes factos são genéricos e por isso não escritos, pois nem sequer preenchem o elemento do tipo que não é indiferente à quantidade do haxixe, ou a qualidade, como, em ultima análise, se está perante o vicio previsto no artigo 410º n.º2 c) do CPP.


2. Verifica-se contradição entre os factos provados


a. Provou uma atividade de tráfico iniciada em maior de 2022 – 1 – quando a primeira situação concreta ocorreu em 16 de agosto de 2022 e em quantidade não apurada de haxixe - 4;


b. Provou-se que o arguido se deslocou dez vezes entre a residência da ... e locais de tráfico – 3 – quando apenas duas vezes isso comprovadamente aconteceu – 4 e 8/9


3. O provado em 1 excede claramente a factualidade em concreto dada como provada e depois considerada ao nível da aplicação da pena pois se avaliou uma atividade de tráfico que vai muito além do provado nos pontos 4 e 8 a 11.


4. A perda alargada não pode proceder


a. Desde logo porque a matéria de facto é manifestamente insuficiente para tal decisão – pontos 34 a 36;


b. Dá como provado uns quadros de valores sem mais;


c. O MP deve demonstrar a existência de indícios ou elementos que tornem plausível a existência de uma atividade criminosa anterior;


d. O que não sucedeu porque se deu como provado um ato isolado em 16 de agosto de 2022 e depois as apreensões em 17 e 18 de Agosto de 2022


e. Da factualidade provada não se prova de todo, a existência de uma atividade criminosa, praticada ao longo do tempo, seja desde 2017 até ao ano de 2022, no mês de Agosto, em que aí sim, se prova um único ato de cometimento do crime de tráfico de estupefacientes por parte do arguido AA.


5. Por fim, ao nível da medida da pena, também esta indeterminação total devia ter sido ponderada a favor recorrente


a. No momento da aplicação da medida concreta da pena, devia-se ter considerado o mínimo de quantidade de haxixe transacionada;


b. Como as situações de facto que vêm imputadas ao recorrente reportam-se a quantidades não apuradas de haxixe no dia 16 de agosto ou à detenção do estupefaciente que lhe foi apreendido dia 17 e 18 de outubro de 2022.


c. Apenas se pode concluir pelo tráfico nos dias 16 de Agosto e depois nas apreensões de 17 e 18 de Outubro de 2022;


d. O arguido era ele próprio consumidor e toxicodependente;


e. Está a fazer tratamento voluntário no EP....


f. O que implica uma redução substancial da pena aplicada.


Violaram-se as disposições que foram sendo citadas ao longo da motivação de recurso.


NESTES TERMOS E DEMAIS DE DIREITO DEVERÁ O PRESENTE RECURSO OBTER PROVIMENTO E EM CONSEQUÊNCIA:


a) Anular-se o acórdão ou reenviar-se para novo julgamento;


b) Revogar-se a decisão de perda alargada;


c) Aplicar-se uma pena mais perto do mínimo legal.


3. O Ministério Público, junto da 1.ª instância, respondeu ao recurso, pronunciando-se no sentido de que o acórdão recorrido deve ser confirmado e mantido.


4. Neste Supremo Tribunal de Justiça (doravante STJ), o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto, na intervenção a que se reporta o artigo 416.º do Código de Processo Penal (diploma que passaremos a designar de CPP), emitiu parecer no sentido de que o recurso não merece provimento, devendo, em consequência, ser confirmado o acórdão recorrido.


5. Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º2, do CPP, não foi apresentada resposta ao parecer. Procedeu-se a exame preliminar, após o que, colhidos os vistos, os autos foram à conferência, por dever ser o recurso aí julgado, de harmonia com o preceituado no artigo 419.º, n.º3, do mesmo diploma.


II – FUNDAMENTAÇÃO


1. Dispõe o artigo 412.º, n.º 1, do CPP, que a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido, constituindo entendimento constante e pacífico que o âmbito do recurso é definido pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação, que delimitam as questões que o tribunal ad quem tem de apreciar, sem prejuízo das que sejam de conhecimento oficioso.


Atentas as conclusões apresentadas, que traduzem de forma condensada as razões de divergência da recorrente com a decisão impugnada, as questões que a recorrente suscita são as seguintes:


A. Vícios previstos no artigo 410.º, n.º 2, do CPP;


B. Perda alargada de bens;


C. Medida da pena.


2. Do acórdão recorrido


2.1. O tribunal a quo considerou provados os seguintes factos (transcrição):

1. Desde, pelo menos, data não concretamente apurada de maio de 2022, o arguido AA dedicava-se à detenção, que não para seu consumo, transporte, armazenamento, divisão, distribuição e cedência de canábis (resina) e cocaína (cloridrato), com vista à obtenção de benefícios.

2. O arguido AA mantinha tal atividade, predominantemente, na ..., no concelho da ..., e na cidade de ..., concelho ....

3. Em execução de tal desiderato, o arguido AA detinha e armazenava o produto estupefaciente, na sua residência sita na Rua..., no concelho da ..., e na sua garagem, sita no Largo..., e após, efetuava deslocações, ao final da tarde e durante a noite, em pelo menos dez ocasiões, através do uso de vários veículos automóveis, entre os referidos locais de armazenamento e os locais de cedência de produto estupefaciente a terceiros.

4. No dia 16 de agosto de 2022, pelas 19 horas e 19 minutos, o arguido AA saiu da sua residência, sita na Rua..., e iniciou a condução do veículo automóvel da marca Peugeot, modelo 206, com a matrícula ..-AA-.. até à garagem, sita no Largo..., estacionando o referido veículo junto da mesma, e entrando na garagem. Volvido um minuto, o Arguido sai da garagem com um saco de supermercado de cor verde enrolado, contendo quantidade de haxixe não apurada.

5. No dia 24 de agosto de 2022, pelas 22 horas e 45 minutos, o arguido AA saiu da sua habitação, sita na Rua..., e iniciou a condução do veículo automóvel da marca Peugeot, modelo 206, com a matrícula ..-AA-.. até ao estabelecimento comercial “B..... ....”, na cidade de ..., onde estacionou, permanecendo no interior referido veículo. Pelas 23 horas e 50 minutos, pessoa cuja identidade se desconhece estacionou a viatura da marca Honda, modelo Civic, com a matrícula ..-..-IJ, ao lado do veículo onde o arguido se encontrava, sendo que, nessa ocasião, entregou um embrulho de cor clara, através da janela do seu veículo automóvel, ao condutor daquele veículo, de quem recebeu dinheiro, em montante não apurado, e regressou novamente ao seu veículo, abandonando o local.

6. No dia 25 de agosto de 2022, pelas 00 horas e 15 minutos, o arguido AA estacionou o veículo automóvel da marca Peugeot, modelo 206, com a matrícula ..-AA-.., no parque de estacionamento, do estabelecimento comercial “M... .....”, em ..., permanecendo no interior referido veículo. Pelas 00 horas e 53 minutos, pessoa cuja identidade se desconhece estacionou a viatura da marca Renault, modelo Clio, com a matrícula NA-..-QO, junto ao veículo onde o arguido se encontrava, sendo que, nessa ocasião, o arguido AA entregou uma placa de haxixe àquele, de quem recebeu uma caixa de cor branca, que guardou na bagageira, abandonando o local, até à sua residência, sita na sita na Rua...

7. No dia 26 de setembro de 2022, pelas 01 hora e 13 minutos, o arguido AA estacionou o veículo automóvel da marca Skoda, com a matrícula ..-OF-.., junto ao posto de combustível BP, em ..., sendo que, pela 01 hora e 20 minutos, um individuo cuja identidade se desconhece aproximou-se do veículo onde o arguido se encontra, e entregou-lhe uma caixa de sapatos de cor preta, com tampa branca, contendo dinheiro, através da janela do condutor, e, após, o Arguido abandonou o local em direção a ....

8. No dia 16 de outubro de 2022, pelas 16 horas e 32 minutos, o arguido AA saiu da sua residência, sita na Rua..., e iniciou a condução do veículo automóvel da marca Skoda, com a matrícula ..-OF-.., até ao parque de estacionamento subterrâneo do ..., em ....

9. No mesmo dia, pelas 18 horas e 17 minutos, o arguido AA saiu do estacionamento no veículo automóvel da marca Skoda, com a matrícula ..-OF-.., e, transportando produto estupefaciente, conduziu até à garagem, sita no Largo..., onde armazenou o produto estupefaciente detido, estacionando o referido veículo em frente à mesma e retirando do interior da bagageira um saco de plástico rígido de cor preta e um saco em plástico de cor vermelha e branca, ambos volumosos.

10. No dia 17 de outubro de 2022, por volta das 23 horas 30 minutos, no interior da garagem, sita no Largo..., o arguido AA tinha guardados, por detrás de uns sofás, os seguintes objetos e/ou substâncias:

a. 54 (cinquenta e quatro) placas de canábis, com a planta Cannabis, com o peso total de 5049,861 gr/ml, grau de pureza de 26,7% (THC), correspondente a 26966 (vinte e seis mil, novecentos e sessenta e seis) doses;

b. 08 (oito) placas de canábis (resina), com a marca Super Silver Haze, com grau de pureza de 26,7% (THC), correspondente a 2893 (dois mil oitocentos e noventa e três) doses;

c. 7 (sete) placas de canábis (resina), com a marca Marijuana, com grau de pureza de 26,8% (THC), correspondente a 3400 (três mil e quatrocentas doses);

d. 2 (duas) placas de cocaína (cloridrato), ambas com a marca da bandeira da Alemanha, com o peso total de 2005,00 gr/ml, grau de pureza de 86,5%, correspondente a 8671 (oito mil, seiscentos e setenta e uma) doses;

e. 1 (uma) placa de cocaína (cloridrato), com a marca foto de cavalo, com o peso de 1.004,00 gr/ml, grau de pureza de 89,1%, correspondente a 4472 (quatro mil, quatrocentos e setenta e duas) doses;

f. 1 (uma) placa de cocaína (cloridrato), com a marca London, com o peso de 1.027,00 gr/ml, grau de pureza de 92,3%, correspondente a 4739 (quatro mil, setecentos e trinta e nove) doses;

g. 1 (uma) placa de cocaína (cloridrato), ambas com a marca Burberry, com o peso total de 1.022,00 gr/ml, grau de pureza de 83,1%, correspondente a 4246 (quatro mil, duzentos e quarenta e seis) doses;

h. cocaína (cloridrato), encontrada desfeita no interior de um tupperware com a tampa cor-de-rosa, com o peso de 51,878 gr/ml, grau de pureza de 39,7%, correspondente a 102 (cento e duas) doses;

i. 01 (uma) embalagem, com saquetas plásticas, utilizadas para acondicionar produto estupefaciente;

j. 01 (um) x-acto cor de laranja;

k. 01 (uma) caixa tupperware, com a tampa cor-de-rosa, utilizado para acondicionar cocaína (cloridrato);

l. 01 (uma) balança de precisão, da marca Scale, modelo SH-125, com prato, que contém resíduos de cocaína (cloridrato);

m. 02 (duas) embalagens de fita castanha, para acondicionar placas de haxixe;

n. 01 (uma) etiqueta, com a marca Royal Salute, para acondicionar placas de cocaína;

o. 01 (um) saco de compras em plástico, de cor castanha, da marca Mini Preço;

p. 01 (uma) colher de chá, com resíduos de cocaína (cloridrato);

q. 01 (uma) caixa de sapatos, da marca Air Jordan, utilizada para transporte de produto estupefaciente;

r. 01 (um) saco de compras em plástico, de cor castanha, da marca Continente;

s. 01 (um) saco de compras em plástico, de cor amarela, da marca Intermarché;

t. 01 (um) saco de compras em plástico, de cor azul, da marca Elecclerc;

u. 01 (um) saco de compras em plástico, de cor preto, da marca Pingo Doce;

v. 02 (duas) embalagens plásticas, próprias para acondicionar 1 (um) quilograma de cocaína (cloridrato), com resíduos de cocaína (cloridrato);

w. 01 (uma) manga plástica, de cor preta, própria para acondicionar placas de 1 (um) quilograma de cocaína (cloridrato);

x. 01 (uma) arma de fogo curta - pistola, da marca Bernardelli, modelo 68, de calibre 6,35 mm (.25), acompanhada de 2 (dois) carregadores, que se encontrava no interior de uma bolsa amarela;

y. 05 (cinco) munições, de calibre 6,35 mm, da marca GECO FMJ, que se encontravam no interior da arma de fogo referida na alínea anterior;

z. 25 (vinte e cinco) munições, de calibre 6,35 mm, fabricadas por GECO FMJ, que se encontravam também no interior da bolsa amarela; e

aa. 03 (três) munições de salva, que se encontravam também no interior da bolsa amarela.

11. No dia 18 de outubro de 2022, por volta das 00 horas e 15 minutos, no interior da sua residência, sita na Rua..., o arguido AA tinha guardados os seguintes objetos e/ou substâncias:

a. vários pedaços de canábis (resina), que se encontravam no interior de uma caixa plástica, na garagem, em cima da máquina de lavar a roupa, e 1 (um) pedaço de canábis (resina), que se encontrava dentro do armário da cozinha, junto ao frigorífico, com grau de pureza de 26,7% (THC), correspondente a 213 (duzentas e treze doses);

b. 01 (uma) folha de papel, com apontamentos de iniciais de nomes e valores indicativos;

c. 01 (um) relógio da marca Diesel, modelo .....81, de cor preta, com bracelete vermelha, com o n.º de série ....03;

d. 300 (trezentas) notas com o valor facial de € 20,00 (vinte euros), emitidas pelo Banco Central Europeu, com o valor total de € 6.000,00 (seis mil euros), que se encontravam no interior de uma gaveta, dentro do roupeiro, no quarto de dormir do Arguido;

e. 02 (duas) notas com o valor facial de € 50,00 (cinquenta euros), emitidas pelo Banco Central Europeu, com o valor total de € 100,00 (cem euros), que se encontravam por baixo da mesa de centro da sala;

f. 43 (quarenta e três) notas com o valor facial de € 20,00 (vinte euros), emitidas pelo Banco Central Europeu, com o valor total de € 860,00 (oitocentos e sessenta euros), que se encontravam por baixo da mesa de centro da sala;

g. 29 (vinte e nove) notas com o valor facial de € 10,00 (dez euros), emitidas pelo Banco Central Europeu, com o valor total de € 290,00 (duzentos e noventa euros), que se encontravam por baixo da mesa de centro da sala;

h. 01 (uma) nota com o valor facial de € 20,00 (vinte euros), emitida pelo Banco Central Europeu, que se encontrava em cima da mesa de jantar;

i. 09 (nove) notas com o valor facial de € 10,00 (dez euros), emitidas pelo Banco Central Europeu, com o valor total de € 90,00 (noventa euros), que se encontravam em cima da mesa de jantar;

j. 01 (uma) televisão, da marca LG, de cor branca, sem número de série;

k. 01 (uma) televisão, da marca Samsung, modelo QE65Q60AAU, de cor preta, com o n.º de série ohoo3odr600453;

l. 01 (uma) televisão, da marca Samsung, modelo QE6560AAU, de cor cinza escuro, com o n.º de série ohoo3odr600453, que se encontrava no quarto de dormir do arguido;

m. 01 (uma) caixa, contendo vários medicamentos esteroides anabolizantes;

n. 01 (uma) caixa, contendo seringas com agulhas de dois tamanhos diferentes da marca PIC;

o. 01 (uma) sweat-shirt, de cor branca, da marca Diesel, modelo F-ANG-HOOD-CUTY, com os dizeres “Denim – Diesel” gravados, comprado em Outlet, com etiqueta com o valor aposto de € 93,00 (noventa e três euros);

p. 01 (uma) sweat-shirt, de cor verde limão, da marca Diesel, modelo S-GIR-HOOD-NEW D LOG, com os dizeres gravados “Denim”, na parte da frente, comprado em Outlet, com etiqueta com o valor aposto de € 100,00 (cem euros);

q. 01 (uma) sweat-shirt, de cor cinza, da marca Diesel, modelo S-GIR-HOOD-NEW D LOG, com os dizeres gravados “Denim”, na parte da frente, comprado em Outlet, com etiqueta com o valor aposto de € 100,00 (cem euros);

r. 01 (uma) sweat-shirt, de cor preta, da marca Diesel, modelo S-GIR-HOOD-NEW D LOG, com os dizeres gravados “Denim”, na parte da frente, comprado em Outlet, com etiqueta com o valor aposto de € 100,00 (cem euros);

s. 01 (uma) sweat-shirt, de cor preta, da marca Diesel, modelo S-GIRK-K21, com os dizeres gravados a vermelho “Denim”, na parte da frente, comprado em Outlet, com etiqueta com o valor aposto de € 60,00 (sessenta euros);

t. 01 (uma) sweat-shirt, de cor amarelo queimado, da marca Tommy Hilfiger, modelo MW0MW20952, com os dizeres gravados “Tommy Hilfiger”, na parte da frente, comprado em Outlet, com etiqueta com o valor aposto de € 69,00 (sessenta e nove euros);

u. 01 (uma) sweat-shirt, de cor branca, da marca Tommy Hilfiger, modelo XM0XM01966, com os dizeres gravados “Tommy Hilfiger”, na parte da frente, comprado em Outlet, com etiqueta com o valor aposto de € 83,00 (oitenta e três euros); e

v. 01 (um) casaco, de cor verde tropa, da marca Tommy Hilfiger, modelo MW0MW12223, com os dizeres gravados “Tommy Hilfiger”, na parte da frente, comprado em Outlet, com etiqueta com o valor aposto de € 121,00 (cento e vinte e um euros).

12. No dia 18 de outubro de 2022, por volta das 00 horas 00 minutos, o arguido AA era, ainda, possuidor de:

a. 01 (um) veículo automóvel da marca Ford, modelo Focus, com a matrícula ..-DJ-..; e

b. 02 (dois) telemóveis, da marca Iphone, modelo 13 Mini, com os IMEI .............66 e .............26.

13. O arguido AA destinava as substâncias canábis (resina) e cocaína (cloridrato) referidas à cedência a terceiros.

14. O dinheiro apreendido ao arguido AA, no valor total de €7.360,00 (sete mil, trezentos e sessenta euros), proveio desta sua atividade.

15. A balança apreendida ao arguido AA foi utilizada para pesar as substâncias referidas, que distribuía.

16. Os veículos automóveis de marca Peugeot, modelo 206, matrícula ..-AA-.. e de marca Skoda, matrícula ..-OF-.. pertencentes ao arguido AA foram utilizados para o transporte das substâncias nos moldes supra referidos.

17. O arguido AA conhecia as características e a natureza estupefaciente das substâncias que tinha consigo e sabia que não possuía autorização para a sua aquisição, detenção, venda, fornecimento ou cedência a outrem, por qualquer título, mas ainda assim quis mantê-las na sua posse com o intuito de as vender a terceiros, o que só não conseguiu por as mesmas terem sido apreendidas pelas autoridades policiais.

18. A pistola da marca Bernardelli é uma arma de fogo curta, semiautomática, com carregador amovível com capacidade para 7 (sete) munições calibre 6,35 mm que, após cada disparo, se carrega automaticamente e que não pode, mediante uma única ação sobre o gatilho, fazer mais de um disparo; possui sistema de segurança do gatilho por partilha de travamento; e encontra-se em condições de efetuar disparos, mas em mau estado de conservação.

19. As munições de calibre 6,35 mm encontram-se em razoável estado de conservação, aptas a serem utilizadas.

20. O arguido AA não é titular de licença de uso e porte de armas de fogo.

21. O arguido AA sabia que a propriedade, a posse e mesmo a simples detenção da arma e munições referidas era legalmente condicionada à titularidade da respetiva licença de uso e porte de arma e ao registo da arma em seu próprio nome.

22. Em todos os momentos, o arguido AA agiu de modo livre, deliberado e consciente bem sabendo que o seu comportamento era proibido e punido por lei.

23. O arguido foi condenado:

a. Proc. 4/09.8..., por decisão transitada em julgado em 2012/06/25, pela prática de dois crimes de lenocínio, no dia 2009/01/02, na pena de 1 ano e 6 meses e prisão, em cúmulo jurídico, na pena única de 2 anos de prisão, suspensa na execução por igual período na condição de entregar à APAV, naquele prazo, a quantia de €1.000,00 (mil euros), extinta pelo cumprimento;

b. Proc. 8/09.0..., por decisão transitada em julgado em 2017/01/26, pela prática de um crime de detenção de arma proibida, no dia 2010/11/25, na pena de 220 dias de multa, extinta pelo pagamento;

c. Proc. 714/13.5..., por decisão transitada em julgado em 2015/08/14, pela prática de um crime de detenção de arma proibida e um crime de tráfico de estupefacientes, ambos em 2013, na pena única de 5 anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período, sujeita a regime de prova, extinta pelo cumprimento.

24. O arguido AA é o primogénito da fratria de dois irmãos germanos. Tem um irmão mais velho, consanguíneo e dois irmãos mais novos, uterinos. Na sua infância há a registar a separação dos progenitores, quando tinha apenas seis anos de idade, tendo o arguido ficado a viver com a progenitora.

25. Ainda que o arguido tenha iniciado a frequência da escola na idade normal, apenas estudou até ao segundo ciclo de escolaridade, tendo abandonado a escola aos 15 anos de idade. Fez um curso de formação profissional de serralharia civil, mas nunca exerceu esta profissão. Nesta idade, 15 / 16 anos, que começou a consumir estupefacientes, inicialmente canábis e, posteriormente opiáceos.

26. O arguido iniciou a sua vida profissional na oficina de mecânica automóvel do pai e, mais tarde, ingressou na Câmara Municipal ..., com funções nas oficinas da edilidade durante dez anos. Posteriormente, pediu licença de vencimento e, mais tarde, desvinculou-se da autarquia para, em parceria com a companheira com quem vivia em união de facto, passarem a explorar um “bar de alterne” na zona de .... O arguido AA veio a separar-se da companheira em 2011 e reintegrou o agregado familiar materno e começou a sobreviver dos rendimentos auferidos com trabalhos temporários em vários setores de atividade.

27. Em 2012, estabeleceu união de facto com BB, com quem viria a casar em ...-...-2014, quando estava em prisão preventiva no Estabelecimento Prisional ..., à ordem do processo n.º 714/13.5... À data, o arguido trabalhava com a esposa na exploração de um bar em ..., mantinha o consumo de estupefacientes e mantinha convivialidade com pessoas conotadas com atividades de diversão noturna e consumo de estupefacientes. Ainda que tivesse recorrido aos serviços de tratamento de toxicodependências em ambulatório e também estivesse internado numa comunidade terapêutica, esses consumos mantiveram-se e começaram a incluir o consumo de cocaína.

28. Quando saiu em liberdade, o arguido, vivia ora em ..., ora em ..., com a esposa, filha do casal, nascida a ...-...-2016, e com a sogra.

29. No âmbito do processo identificado no facto provado 23.c., o arguido ficou a cumprir pena na comunidade, em regime de prova, entre 14-08-2015 a 14-08-2020, de cujo plano de reinserção constavam objetivos de desenvolvimento de competências cognitivas facilitadoras da reinserção social e o tratamento à toxicodependência. Da informação constante no seu processo individual indica o cumprimento dos objetivos estabelecidos no PRS, tendo feito tratamento à toxicodependência na Equipa de Tratamento ..., com recurso a opiáceo de substituição (metadona).

30. À data dos factos provados, o arguido residia sozinho, em casa cedida mediante o pagamento mensal de €800,00. Vivia com esposa, BB, com quem pernoitava alguns dias da semana. BB, a filha do casal e a sogra residiam em ....

31. O arguido recaiu no consumo de drogas e passou a usar de forma compulsiva cocaína, tendo, em abril de 2022, um surto psicótico, com alteração do conteúdo dos pensamentos, com ideias delirantes persecutórias e comportamentos agressivos, na sequência do que o arguido recorreu novamente aos serviços do CRI – Equipa de Tratamento Especializada .... Ainda que a interrupção dos consumos dos opiáceos tenha sido relativamente fácil de controlar, com recurso a substância de substituição, o consumo de canábis e, sobretudo, o consumo de cocaína não foi controlado, pelo que AA manteve o consumo dessa substância e manteve relacionamentos interpessoais com consumidores e traficantes de drogas.

32. No Estabelecimento Prisional o arguido mantém um comportamento adequado e está ocupado a frequentar a escola. Está a fazer tratamento nas consultas de psicologia e de psiquiatria. Tem visitas regulares da esposa, BB, que lhe leva alguns bens alimentares, dinheiro e roupa lavada.

33. O arguido AA revela sentido crítico face ao desvalor da conduta em apreço, afirmando que se deixou envolver em situações socialmente problemáticas que deixou de controlar devido ao facto de ser estar dependente de drogas, particularmente cocaína.

34. AA foi constituído arguido no dia 17 de outubro de 2022.

35. O arguido AA declarou os seguintes rendimentos nos cinco anos imediatamente anteriores à sua constituição como arguido, entre 17 de outubro de 2017 e 17 de outubro de 2022:





36. Da comparação do património do arguido AA com o rendimento disponível auferido pelo mesmo, apurou-se que a vantagem da atividade criminosa, correspondente ao período de cinco anos anterior à sua constituição como arguido, é no valor total de €212.721,61 (duzentos e doze mil, setecentos e vinte e um euros e sessenta e um cêntimos), correspondente à diferença entre o valor do património adquirido durante o período em referência e os rendimentos líquidos declarados, nos seguintes termos:


2.2. Quanto a factos não provados ficou consignado no acórdão recorrido (transcrição):


Da audiência de discussão e julgamento, não resultaram provados, com interesse para a decisão da causa, os seguintes factos:

a. O arguido mantinha a atividade descrita em 1 dos factos provados, em ..., no concelho de ..., e na cidade de ..., concelho ....

b. Os 02 (dois) telemóveis, da marca Iphone, modelo 13 Mini, com os IMEI .............66 e .............26 apreendidos ao arguido AA foram utilizados para efetuar contactos com vista à venda das substâncias referidas.

c. O relógio, as peças de roupa e os televisores apreendidos ao arguido AA foram obtidos com os proventos da venda das substâncias referidas.


A restante matéria alegada não foi considerada provada ou não provada, por não ter relevância ou interesse para a decisão da causa ou consubstanciar matéria de direito ou matéria conclusiva.


2.3. O tribunal recorrido fundamentou a sua convicção nos seguintes termos (transcrição):


A decisão do Tribunal tem de assentar na convicção da verdade dos factos apurados em audiência de julgamento, convicção essa formada apenas com os elementos probatórios de que é lícito recorrer-se (cfr. artigos 125º, 126º e 355º do Código de Processo Penal).


O juiz deve decidir sob a impressão de quanto viu e ouviu, com o contributo dialético dos sujeitos processuais (princípio do contraditório, consagrado na lei processual penal e na Lei Fundamental). Exige-se, pois, ao tribunal, a partir da indicação e exame das provas que serviram para formar a sua convicção, a enunciação das razões de ciência extraídas daquelas, os motivos porque optou por uma das versões em confronto (quando as houver), os motivos de credibilidade dos depoimentos, os fundamentos dos documentos ou exames que privilegiou na sua convicção – cfr. artigo 205º da Constituição da República Portuguesa e artigo 374º, nº 2, do Código de Processo Penal. Tudo de forma a permitir a reconstituição e análise crítica do percurso lógico que seguiu na determinação dos factos como provados ou não provados (cfr. artigo 124º, nº 1, do Código de Processo Penal), tendo por referência a valoração da prova pela credibilidade, sendo esta composta pela seriedade, isenção razão de Ciência – fonte de conhecimento dos factos e coerência lógica, tanto interna (depoimento confrontado consigo mesmo) como externa (depoimento confrontado com os demais).


Assim, considerando os pressupostos supra enunciados e tendo presente as regras da experiência comum e a livre convicção do Tribunal (cfr. artigo 127º do mesmo diploma), cumpre proceder à análise da prova produzida e examinada em audiência de julgamento, no caso sub judice.


Primeiramente, relativamente ao produto estupefaciente encontrado na posse do arguido e apreendido, considerou-se o teor dos relatórios periciais de fls. 861 a 863 e informação de fls. 866 e 867, de onde resulta a natureza, características, quantidades e número de doses individuais, por referência aos respetivos graus de pureza.


Concretizando, a al. a. do facto provado 10, corresponde a 54 placas de canábis, com a planta Cannabis, sendo a soma dos três primeiros itens (20+10+20) e a segunda parte do quinto item (4) do auto de apreensão nº 1 de fls. 151, por referência à al. 5 do exame pericial de fls. 862 e 863; a al. b., ou seja, oito placas de canábis (resina), com a marca Super Silver Haze, identificadas no quarto item do auto de apreensão nº 1 de fls. 151, corresponde à al. 7 do exame pericial de fls. 862 e 863, mediante simples cálculo aritmético; a al. c., ou seja, sete placas de canábis (resina), com a marca Marijuana, identificadas na segunda parte do quinto item do auto de apreensão nº 1 de fls. 151, decorre da al. 6 do exame pericial de fls. 862 e 863, mediante simples cálculo aritmético; al. d. referente a duas placas de cocaína (cloridrato), ambas com a marca da bandeira da Alemanha, identificadas como itens seis e sete do auto de apreensão nº 1 de fls. 151, decorre da al.1 do exame pericial de fls. 862 e 863; al. e. referente a uma placa de cocaína (cloridrato), com a marca foto de cavalo, identificada no oitavo item do auto de apreensão nº 1 de fls. 151, decorre da al. 4 do exame pericial de fls. 862 e 863; al. f. referente a uma placa de cocaína (cloridrato), com a marca London, identificada no nono item do auto de apreensão nº 1 de fls. 151, resulta da al. 3 do exame pericial de fls. 862 e 863; al. g. referente a uma placa de cocaína (cloridrato), com a marca Burberry, identificada como item dez do auto de apreensão nº 1 de fls. 151, decorre da al. 6 do exame pericial de fls. 862 e 863; al. h. correspondente à cocaína (cloridrato), encontrada desfeita no interior de um tupperware com a tampa cor de rosa, com o peso de 51,878 gr/ml, que se encontra identificada como item onze do auto de apreensão nº 1 de fls. 151, corresponde à al. 11 do exame pericial de fls. 862 e 863, mediante simples cálculo aritmético; e al. a. do facto provado 11, correspondente à canábis identificada nos dois primeiros itens do auto de apreensão nº 2 de fls. 141, resulta da al. 8 do exame pericial de fls. 862 e 863, mediante simples cálculo aritmético.


Por sua vez, no que respeita à arma de fogo curta - pistola, da marca Bernardelli, modelo 68, de calibre 6,35 mm (.25) e às munições encontradas na posse do arguido e apreendidas, considerou-se o teor da reportagem fotográfica, que consta de fls. 529 a 531, conjugado com o auto de exame de fls. 634 e 634v. (facto provado 10., al. aa.), o auto de exame de fls. 635 e 635v. (factos provados 19 e 10., als. y. e z.) e o auto de exame de fls. 636 a 637 (factos provados 18 e 10, al. x.).


Atendeu-se, igualmente, às declarações tomadas ao arguido, em audiência de julgamento, conjugadas com os autos de busca e apreensão e os relatórios de vigilância, bem assim os fotogramas, nos termos infra expostos, documentos estes esclarecidos pela inquirição das testemunhas infra indicadas, cujos depoimentos se reputaram como seguros e isentos; concretizando.


A factualidade vertida como provada em 1. resulta, primordialmente, das declarações tomadas ao arguido, que, em suma, relatou que, inicialmente, em data concreta que não logrou recordar-se do mês de abril do ano 2022, comprou cinco gramas de cocaína por €250,00 (duzentos e cinquenta euros) a um indivíduo, que conheceu num bar noturno, em .... Posteriormente, como continuava a adquirir, dia sim, dia não, cocaína a este indivíduo, por empatia e confiança (sic.) existente entre ambos, os pagamentos foram sendo dilatados e foi endividando-se, motivo pelo qual, da segunda vez que tal sucedeu e ascendendo a dívida aos €750,00, o arguido aceitou a proposta do indivíduo aquando do primeiro endividamento (que mencionou situar-se em €500,00), de não lhe efetuar tal pagamento e, em troca, guardar e distribuir produto estupefaciente que iria sendo cedido segundo as suas indicações.


Neste contexto, o arguido admitiu as deslocações descritas no libelo acusatório, entre as quais as vertidas nos factos provados de 4 a 9, que se encontram documentadas o relatório de vigilância 09, de fls. 34 e 35 (facto provado 4); o relatório de vigilância 12 de fls. 40 a 42 (factos provados 5 e 6); imagens vídeo constantes do dvd junto a fls. 77; o relatório de vigilância 25 de fls. 91 a 98 (facto provado 7); o relatório de vigilância 28 de fls. 130 e 131 (factos provados 8 e 9); e imagens constantes do cd-rom junto a fls. 247, cujo teor foi esclarecido de forma coerente e credível pela inquirição, em audiência de julgamento, das testemunhas CC, DD, EE e FF, todos agentes principais da Esquadra de Investigação Criminal..., que tomaram conhecimento desses factos no exercícios das funções e competências, cujos depoimentos de reputaram como espontâneas e seguros.


Assim, contextualizando as declarações tomadas ao arguido, este admitiu que, pelo menos em três ocasiões distintas, em datas que não logrou recordar-se, mas que situou genericamente, conforme infra exposto, esse indivíduo, que quis apenas identificar como “...”, entregou-lhe, diretamente ou de alguém por seu intermédio e a seu mando, quantidades de produto estupefaciente, concretamente cocaína e haxixe, que recebeu, transportou e guardou na sua garagem a fim de, posteriormente, distribuir e ceder a terceiros segundo as indicações daquele, o que alegou ter feito em troca do recebimento de quinze a vinte gramas de cocaína e placas de haxixe, que alegou destinar ao seu consumo.


Assim, o arguido afirmou que, na primeira ocasião, situada no fim do mês de maio do ano de 2022 (recordando ter sido antes do dia de aniversário de sua filha, a 31 de maio), o indivíduo entregou-lhe, além de um telemóvel para entrar em contacto consigo, três sacos com cerca de cem gramas de cocaína cada, a fim de guardar e, por sua vez, entregar a terceiros, segundo as indicções que, posteriormente, lhe foram dadas. Concretizou, a título exemplificativo que, após ter guardado tal produto estupefaciente na sua garagem, recebeu indicações do indivíduo “...” para ceder um daqueles sacos de cem gramas de cocaína a um terceiro, com quem se encontrou em ... (facto provado 3).


Num segundo momento, em data que o arguido não logrou recordar, mas situou no início de julho de 2022, o indivíduo contactou-o e entregou-lhe uma placa de um quilo de cocaína e um quilo e meio de haxixe, que o arguido afirmou ter transportado para a sua garagem e aí ter guardado até receber, posteriormente, indicações por parte daquele para cedência a terceiros. Afirmou ainda que, nesse segundo momento e como forma de compensação, o indivíduo entregou-lhe uma placa de haxixe de cem gramas (pólen) e cerca de quinze a vinte gramas de cocaína, que segundo o próprio destinaria ao seu consumo.


Finalmente, a terceira ocasião e, de acordo com as declarações tomadas ao arguido, a última vez, concretamente no domingo anterior à realização das buscas, ou seja, no dia 16/10/ 2022, o indivíduo “...” deu-lhe indicações para se dirigir ao ..., em ... – facto provado 8 -, onde se encontrou com dois indivíduos, a mando daquele. Afirmou que, nestas circunstâncias, os dois indivíduos pediram-lhe o telemóvel, que tinha sido dado pelo indivíduo “...” pela ocasião da primeira entrega, e deram-lhe indicações para, dali a dois dias, deslocar-se até à saída da A. em direção a ..., pelas 23h, com os sacos que, então, entregaram e transportou, sem o abrir, até à garagem (facto provado 9), onde se inteirou do seu conteúdo e de lá retirado, produto estupefaciente e balança de precisão, além da arma de fogo e as munições (cuja factualidade vertida como provada de 18 a 22, o arguido confessou), posteriormente encontrados e apreendidos durante a busca aí realizada no dia seguinte (facto provado 10).


A factualidade vertida como provada a 10 e 11, decorre das declarações tomadas ao arguido, que admitiu a detenção, transporte, guarda, distribuição e cedência dos produtos estupefacientes encontrados e apreendidos, cuja descrição consta do auto de busca e apreensão n.º 1 de fls. 150 a 152, 301, 302, 584 e 585 e fotogramas de fls. 153 a 155, bem assim do auto de busca e apreensão n.º 2, de fls. 140, 141, 586 e 587 e fotogramas de fls. 143 a 147 e auto de busca e apreensão n.º 6 de fls. 251, 252, 254 a 257, 590 e 591, a que acresce o teor dos fotogramas, que constam de fls. 170 a 178, conjugado com o depoimento das testemunhas FF e EE, ambos agentes principal, da Esquadra de Investigação Criminal ...; por referência ao auto de notícia por detenção de fls. 132 a 134, 248(a), 249, 594 e 595 e fotogramas da apreensão geral, de fls. 135. O facto provado 12 resulta, além das declarações tomadas ao arguido, do auto de apreensão n.º 5 de fls. 743 (na posse do arguido).


Ademais, o arguido admitiu que, em pelo menos dez ocasiões, cujas datas situou genericamente após aquela primeira ocasião, ocorrida no fim do mês de maio do ano de 2022, distribuiu e cedeu a terceiros o produto estupefaciente, por si detido e transportado, entre as quais assinalou, concretamente, o dia 16/08/2022, o transporte de quantidade que não logrou recordar-se de haxixe, que detinha anteriormente na sua garagem (facto provado 4); no dia 25/08/2022, o transporte e entrega de uma placa de haxixe a terceiro, que lhe entregou, como disfarce, uma caixa branca (facto provado 6); e, no dia 16/10/2023 (factos provados 8 e 9), o transporte e armazenamento, na sua garagem, de produto estupefaciente encontrado e apreendido no dia seguinte (facto provado 10).


Neste particular, entende-se que as declarações tomadas ao arguido ficaram, claramente, aquém da realidade histórica.


Com efeito, o arguido alegou que o indivíduo “...” lhe entregava produto estupefaciente, que transportava e armazenava na sua garagem, sita em ..., sem proceder à divisão de qualquer uma das substâncias, ou seja, recebia o produto embalado, guardava-o e cedia-o da mesma forma, sendo a distribuição realizada segundo as indicações deste na zona do ..., em .... Ora, do confronto do auto de apreensão nº 1 de fls. 150 e ss. e dos fotogramas de fls. 153 e ss., concretamente da visualização dos fotogramas de fls. 154v. decorre que uma embalagem de quilo de cocaína encontra-se aberta e de onde foi retirado cocaína; o que, para além de contrariar e infirmar as declarações prestadas pelo arguido, este não apresentou justificação para tal circunstância, alegando singelamente não ter noção (sic). Acresce que, considerando a forma de acondicionamento, a quantidade (peso de 51,878 gr/ml) e, sobretudo, o grau de pureza de 39,7%, a que corresponde 102 (cento e duas) doses, não se mostra verosímil que a cocaína (cloridrato) encontrada desfeita no interior do tupperware com a tampa cor de rosa se destinasse ao consumo do arguido, nos termos por si alegados ao longo das declarações tomadas em audiência de julgamento.


Outrossim, do conjunto de factos indiciários, como seja o lapso de tempo em que decorreu tal atividade do arguido (entre o fim do mês de maio e dia 17 de outubro de 2022, a grandeza das quantidades e natureza das substâncias apreendidas na posse do arguido (mais de cinco quilos cocaína e mais de sete quilos de canábis), tanto mais considerando os elevados graus de pureza de alguns dos produtos estupefacientes (e.g. todas as placas de cocaína apreendidas revelaram ter um grau entre 83,1% e 92,3%), de que se perfazem as quantidades de doses individuais consignada nos factos provados 10 e 11, bem assim como a disposição dos embrulhos do produto estupefaciente pela garagem, alguns dos quais abertos (cfr. fls. 154v.), onde se encontravam igualmente espalhados instrumentos utilizados comummente para parcelamento do mesmo (nomeadamente balança de precisão com resíduos de cocaína, colher de chá, com resíduos de cocaína, x-acto, bem assim como várias embalagens com saquetas plásticas, algumas das quais com resíduos de cocaína, além de fita castanha), permite concluir, à luz das regras da lógica e das máximas da experiência comum, que o arguido detinha, que não para seu consumo, o produto estupefaciente por si transportado, procedendo à divisão do mesmo a fim de ser distribuído e cedido a terceiros (facto provado 3).


Finalmente, pese embora os esforços encetados pelo arguido no sentido de tentar alegar a proveniência do dinheiro não ser do tráfico, quer ao longo das declarações tomadas em audiência de julgamento, quer perante a DGRSP (cfr. teor do relatório social junto a fls. 1000 a 1002v.), importa considerar o panorama fáctico objetivo constantes dos presentes autos, nos termos supra expostos.


Neste particular, o arguido admitiu ter recebido dinheiro de terceiros para entregar ao indivíduo “...”, a título de pagamento da cedência de produto estupefaciente, que afirmou entregar posteriormente àquele, tal como mencionou ter sucedido, concretamente, no dia 24/08/2023, em que recebeu de terceiro dinheiro, em montante que não logrou recordar-se, embrulhado num saco de plástico (facto provado 5); e, no dia 26/09/2022 (facto provado 7), recebeu de terceiro dinheiro, que quantificou inicialmente entre três a quatro mil euros, e posteriormente alegou tratar-se da quantia de seis mil euros, guardada e encontrada no interior da sua residência (facto provado 11, al. d), transportada na caixa de sapatos, posteriormente encontrada na sua garagem, em ... (facto provado 10, al. q.). Nesta senda, o arguido admitiu singelamente que, nas ocasiões em que procedia à entrega de dinheiro diretamente ao indivíduo “...”, este dava-lhe cerca de €100,00 a €150,00 para custear as despesas de deslocação, além de lhe dar dez gramas de cocaína.


As declarações singelamente prestadas pelo arguido ficaram, uma vez mais, muito aquém da realidade histórica.


Da conjugação dos factos objetivos supra expostos, concretamente o lapso de cinco meses em que decorreu tal atividade do arguido, pelo transporte e armazenagem das substâncias detidas pelo arguido, cuja natureza e quantidades se evidenciaram na apreensão de mais de cinco quilos cocaína e mais de sete quilos de canábis com os supra descritos graus de pureza, a que acresce a circunstância de igualmente terem sido apreendidas as quantias em dinheiro que perfazem a quantia global de €7.360,00 (sete mil, trezentos e sessenta euros), dispostas e ocultadas na casa onde apenas o arguido residia, resulta evidente, à luz das regras da lógica e das máximas da experiência comum, que o arguido obtinha benefícios desta sua atividade, nomeadamente recebendo tal valor da distribuição e cedência a terceiros de produtos estupefacientes já efetuadas.


Assim, pese embora, neste particular as declarações tomadas ao arguido terem sido genericamente certificadas pelo teor do depoimento da testemunha GG, o Tribunal não se convenceu que as fontes de rendimentos do arguido fossem, quer da venda de automóveis, quer da exploração de bar, ou bares, de diversão noturna no ....


Daqui resultam apenas como provadas as condições pessoais do arguido vertidas de 26 a 34, desconsideram-se as afirmações consignadas, a este respeito, no teor do relatório elaborado pela DGRSP, junto aos autos de fls. 1000 a 1002v..


Outrossim, desconsideram-se as afirmações constantes do teor deste relatório social a propósito da precariedade económica alegadamente vivenciada pelo arguido, no “desenrolar do processo judicial n.º 70/17.2... e dos confinamentos decretados, devido à pandemia Covid-19,”, porquanto tais dificuldades económicas não se evidenciam da conjugação da informação da Caixa Geral de Depósitos (fls. 333 e 334), da informação do Banco de Portugal (fls. 544 e 545) ou da informação da Autoridade Tributária e Aduaneira (fls. 721 e 722), antes pelo contrário, tal como sustentado pelo teor do relatório final de investigação patrimonial e financeira, que consta de fls. 625 a 631, por referência ao APENSO I – Investigação financeira e patrimonial GRA. Com efeito, daqui resulta à saciedade que, entre 17 de outubro de 2017 e 17 de outubro de 2022 (data da sua constituição como arguido nos presentes autos, facto provado 39) - lapso temporal que abrange necessariamente quer o processo judicial n.º 70/17.2..., quer os sucessivos confinamentos devido à pandemia) -, o arguido declarou os rendimentos constantes do facto provado 35, concluindo-se, mediante comparação do seu património com aquele rendimento disponível auferido pelo mesmo, que o arguido obteve vantagem total de €212.721,61 (duzentos e doze mil, setecentos e vinte e um euros e sessenta e um cêntimos), que corresponde à diferença entre o valor do património adquirido durante o período em referência e os rendimentos líquidos declarados (facto provado 36).


O facto provado 16 resulta dos documentos referentes às pesquisas na base de dados da Conservatória do Registo Automóvel pela matrícula ..-OF-.., que consta de fls. 205, e pela matrícula ..-DJ-.., que consta de fls. 206, além das declarações tomadas ao próprio arguido.


Finalmente, considerando a globalidade dos factos objetivos dados como provados, analisados conjunta e criticamente segundo as regras da lógica e de acordo com os princípios da experiência comum, resultaram inferidos os factos integradores dos elementos psicológicos, emocionais e volitivos, com que o arguido atuou, sendo a proibição e punibilidade dos comportamentos da natureza dos descritos do geral conhecimento dos cidadãos e, concomitante e necessariamente, também, deste, que além de admitir tal factualidade em audiência de julgamento, apresentou juízo crítico face ao desvalor da conduta em apreço.


Os antecedentes criminais do arguido decorrem do teor do certificado de registo criminal constantes dos autos a fls. 1020 e ss..


No que respeita aos factos considerados como não provados, importa salientar que nenhuma prova foi produzida, em audiência de julgamento, que sustentasse os mesmos, além de terem sido negados pelo arguido e, relativamente aos televisores apreendidos, a própria testemunha HH confirmou que faziam parte integrante do mobiliário existente no imóvel, em momento anterior, à cedência ao arguido mediante o pagamento mensal de €800,00.


2.4. Na fundamentação de direito do acórdão recorrido, consta, nas partes relativas à determinação da pena e à perda alargada (transcrição parcial):


« (…) O crime de tráfico de estupefaciente, previsto pelo artigo 21.º, nº 1, do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de janeiro, é punido com pena de prisão de 4 (quatro) a 12 (doze) anos.


O crime de detenção de arma proibida, previsto nos termos do disposto no artigo 86º nº 1 alínea c) da Lei 5/2006, de 23 de fevereiro, é punido com pena de prisão de um a cinco anos ou com pena de multa de 10 a 600 dias (artigos 41º, nº 1, e 47º, nº 1, ambos do Código Penal.


Na escolha da pena, devem considerar-se as finalidades das penas, nomeadamente a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade, não podendo nunca a pena ultrapassar a medida da culpa (artigo 40º, nº 1 e 2 do Código Penal).


A necessidade de proteção de bens jurídicos (prevenção geral) traduz-se “na tutela das expectativas da comunidade na manutenção (ou mesmo reforço) da vigência da norma infringida”, vide Figueiredo Dias, in Consequências Jurídicas do Crime, 1993, p. 228) e decorre do princípio político-criminal básico da necessidade da pena consagrado no artigo 18º, nº 2, da Constituição da República Portuguesa.


Toda a pena tem, como suporte axiológico-normativo, uma culpa concreta. Daí que não haja pena sem culpa - nulla poena sine culpa. A culpa constitui também o limite máximo da pena – cfr. artigo 40º, nº 2, do Código Penal, ou seja, em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa.


Aplicando-se, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, como in casu sucede, deve dar-se preferência a esta, desde que realize de forma adequada e suficiente as finalidades supra referidas (artigo 70º, nº1 do mesmo diploma legal). Atentas as conhecidas desvantagens advenientes da privação da liberdade, deve subtrair-se à disponibilidade de cada pessoa o mínimo dos seus direitos, liberdades e garantias, permitindo a realização livre, tanto quanto possível, da personalidade de cada um.


Ora, no que concerne as exigências de prevenção geral do crime de detenção de arma proibida, estas revelam-se prementes, atentos os significativos índices de violência associada à detenção e ao porte de armas, especialmente se os seus detentores não têm licença de uso e de porte de arma, não sendo de ignorar os motivos, nem sempre límpidos, que estão na base de tal opção de se munirem com armas, necessitando, por isso, a comunidade de ver reforçada a sua crença no sistema jurídico-penal.


Por outro lado, as exigências de prevenção especial são elevadas, porquanto o arguido conta com antecedentes criminais por ilícitos de idêntica natureza, tendo sido condenado, além do mais, duas vezes por crime de detenção de arma proibida, a primeira por factos praticados em 2010/11/25 e decisão transitada em julgado em 2017/01/26 e, a segunda, praticada em 2013, concomitantemente com um crime de tráfico de estupefacientes, por decisão transitada em julgado em 2015/08/14, pelo que não se justifica a preferência de princípio concedida pelo Código à pena pecuniária, não demonstrando ser adequada para que o arguido mantenha uma conduta de acordo com o Direito, nem apta à sua ressocialização.


Seguidamente, cumpre determinar a medida concreta da pena a aplicar ao arguido, que se encontra em função das exigências de prevenção geral e da culpa, que definirão os limites mínimo e máximo, respetivamente, sendo assim criada a moldura dentro da qual se hão-de fazer sentir as exigências de prevenção especial ou de ressocialização, atendendo a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo, possam ser consideradas contra ou a seu favor, nos termos do disposto nos nº 1 e 2 do artigo 71 º do Código Penal. Ainda que não taxativamente, a lei elenca os fatores de determinação concreta da pena, os quais, fundamentalmente, estão relacionados com a execução do facto (alíneas a), b) e c) do n.º 2), a personalidade do agente (alíneas d) e f) do n.º 2) e, por último, os fatores relativos à conduta do agente anterior ou posterior ao facto.


No que concerne as exigências de prevenção geral ou de integração positiva do crime de tráfico de estupefacientes, que se reconduzem à necessidade de assegurar a satisfação das exigências da consciência jurídica coletiva e de reposição da norma jurídica violada, as mesmas consideram-se prementes. Com efeito, a natureza das infrações e os bens jurídicos violados reclamam uma atuação dissuasora mais efetiva relativamente ao fenómeno social em causa, porquanto, como se trata de um crime contra a saúde pública, o “sentimento jurídico da comunidade” apela a uma eliminação do tráfico de estupefacientes destruidor de vidas e famílias.


Depõem contra o arguido a ilicitude, que se reputa como elevada, traduzida na sua insensibilidade às condutas devidas, considerando a detenção, que não para consumo, transporte, armazenamento, divisão, distribuição e cedência de canábis (resina) e cocaína (cloridrato) a terceiros, em pelo menos dez ocasiões, entre data não concretamente apurada de maio de 2022 até 16/10/2023, em que lhe foram apreendidas concretamente 54 (cinquenta e quatro) placas de canábis, com a planta Cannabis, com o peso total de 5049,861 gr/ml, grau de pureza de 26,7% (THC), correspondente a 26966 (vinte e seis mil, novecentos e sessenta e seis) doses; 08 (oito) placas de canábis (resina), com a marca Super Silver Haze, com grau de pureza de 26,7% (THC), correspondente a 2893 (dois mil, oitocentos e noventa e três) doses; 7 (sete) placas de canábis (resina), com a marca Marijuana, com grau de pureza de 26,8% (THC), correspondente a 3400 (três mil e quatrocentas doses); 2 (duas) placas de cocaína (cloridrato), ambas com a marca da bandeira da Alemanha, com o peso total de 2005,00 gr/ml, grau de pureza de 86,5%, correspondente a 8671 (oito mil, seiscentos e setenta e uma) doses; 1 (uma) placa de cocaína (cloridrato), com a marca foto de cavalo, com o peso de 1.004,00 gr/ml, grau de pureza de 89,1%, correspondente a 4472 (quatro mil, quatrocentos e setenta e duas) doses; 1 (uma) placa de cocaína (cloridrato), com a marca London, com o peso de 1.027,00 gr/ml, grau de pureza de 92,3%, correspondente a 4739 (quatro mil, setecentos e trinta e nove) doses; 1 (uma) placa de cocaína (cloridrato), ambas com a marca Burberry, com o peso total de 1.022,00 gr/ml, grau de pureza de 83,1%, correspondente a 4246 (quatro mil, duzentos e quarenta e seis) doses; cocaína (cloridrato), encontrada desfeita no interior de um tupperware com a tampa cor de rosa, com o peso de 51,878 gr/ml, grau de pureza de 39,7%, correspondente a 102 (cento e duas) doses; e vários pedaços de canábis (resina), que se encontravam no interior de uma caixa plástica, na garagem, em cima da máquina de lavar a roupa, e 1 (um) pedaço de canábis (resina), que se encontrava dentro do armário da cozinha, junto ao frigorífico, com grau de pureza de 26,7% (THC), correspondente a 213 (duzentas e treze doses), bem assim os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram, relevando quer a obtenção fácil de benefícios, quer a circunstância de o próprio arguido ser consumidor, o que terá condicionado o desenvolvimento do ilícito, a que acresce a forte intensidade do dolo, porque direto.


No que respeita as exigências de prevenção especial, importa considerar que são elevadas, porquanto, à data da prática dos factos, o arguido contava com duas condenações pela prática de crime detenção de arma proibida (facto provado 23.b e c), a última das quais pela prática de um crime de tráfico, tendo sido imposta pena única de 5 anos de prisão, suspensa por igual período, por decisão transitada em julgado em 2015/08/14. Após, extinta pelo cumprimento (cfr. factos provados 23.c. e 29) e volvidos menos de dois anos, o arguido pratica os factos sub judice, implicando-o com a prática dos mesmos dois ilícitos.


Daqui resulta à saciedade que as condenações impostas e as sucessivas penas sofridas pelo arguido não foram suficientes para este adotar postura conforme ao direito e às regras em sociedade, pese embora o arguido, ora, em audiência de julgamento ter revelado sentido crítico face ao desvalor da conduta em apreço, afirmando que se deixou envolver em situações socialmente problemáticas que deixou de controlar devido ao facto de ser estar dependente de drogas, particularmente cocaína.


Acresce que ao longo da atual situação de reclusão, o arguido mantém um comportamento adequado e está ocupado a frequentar a escola, submeteu-se a tratamento nas consultas de psicologia e de psiquiatria.


Assim, sopesadas todas estas circunstâncias, o Tribunal entende que as condutas do arguido deve ser censurada mediante a aplicação da pena de 7 (sete) anos de prisão, pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punido pelo artigo 21º, nº 1, do Decreto-Lei nº 15/93, de 22.01, com referência às Tabelas I-B e I-C do mesmo diploma legal e ao mapa anexo à Portaria n.º 94/96, de 26 de março, e da pena de pena de 1 (um) ano e 10 (dez) meses de prisão, pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de detenção de arma proibida encontra-se previsto e punido pelos artigos 14.º, n.º 1, e 26.º, ambos do Código Penal, e pelo artigo 86.º, n.º 1, alíneas c) e e), por referência aos artigos 2.º, n.º 1, alíneas ae) e az), e 3.º, n.ºs 1 e 4, alínea a), todos da Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro [arma de fogo e munições da classe B1].


3. Do cúmulo das penas:


Nos termos do artigo 77º, nº 1 do Código Penal, quando o agente tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles, é condenado em pena única.


De acordo com o disposto no nº 2 do mesmo preceito legal, a pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar cinte e cinco anos tratando-se de prisão e novecentos dias dias tratando-se de pena de multa, e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes.


Considerando que, no caso sub judice, foram aplicadas ao arguido duas penas de prisão, sendo uma delas de 7 (sete) anos e outra de 1 (um) ano e 10 (dez) meses, o mesmo é afirmar que a moldura abstrata da pena única a aplicar ao arguido tem 8 (oito) anos e 10 (dez) meses como limite máximo e 7 (sete) anos como limite mínimo.


Na medida desta pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do arguido, de acordo com os argumentos supra expendidos respeitantes aos mesmos, que ora se consideram reproduzidos.


Face ao supra exposto, entende-se como adequada e proporcional condenar o arguido na pena única de 7 (sete) anos e 6 (seis) meses de prisão.





4. Da perda a favor do Estado:


Ao abrigo do disposto no artigo 109.º, n.º 1, do Código Penal, o Ministério Público requereu que os bens descritos em 4.º e em 5.º na acusação, apreendidos ao arguido AA, sejam declarados perdidos a favor do Estado, pelo facto de se traduzirem numa vantagem (directa e seus sucedâneos) obtida com a atividade criminosa e em instrumentos destinados a servir a sua prática, nos termos e para os efeitos das disposições conjugadas dos artigos 109.º, n.ºs 1, 2 e 4, 110.º, n.ºs 1, alínea b), 4, 5, 6, 112.º e 112.º-A, todos do Código Penal.


O artigo 109º, n.º 1, do Código Penal estatui que “são declarados perdidos a favor do Estado os objetos que tiverem servido ou estivessem destinados a servir para a prática de um facto ilícito típico, ou que por este tiverem sido produzidos, quando, pela sua natureza ou pelas circunstâncias do caso, puserem em perigo a segurança das pessoas, a moral ou a ordem públicas ou oferecerem sério risco de ser utilizados para o cometimento de novos factos ilícitos típicos”.


Por sua vez, o artigo 110º, n.º 1, do Código Penal prevê que “são declarados perdidos a favor do Estado:


a) Os produtos de facto ilícito típico, considerando-se como tal todos os objetos que tiverem sido produzidos pela sua prática; e


b) As vantagens de facto ilícito típico, considerando-se como tal todas as coisas, direitos ou vantagens que constituam vantagem económica, direta ou indiretamente resultante desse facto, para o agente ou para outrem.


Como supra se deixou exposto, não há qualquer dúvida de que as armas e as munições apreendidas são proibidas nos termos legais, que pela natureza respetiva e pelas circunstâncias do caso concreto em que as mesmas foram apreendidas, põem em perigo a segurança das pessoas e a ordem pública, oferecendo o risco de ser utilizadas para o cometimento de factos ilícitos.


Assim sendo, determino a perda da arma de fogo curta - pistola, da marca Bernardelli, modelo 68, de calibre 6,35 mm (.25), das munições, de calibre 6,35 mm a favor do Estado e das munições de salva, nos termos do artigo 109º, número 1, do Código Penal, e a sua entrega à PSP (artigo 78º da Lei 5/2006, de 23 de fevereiro).


Por sua vez, nos termos do disposto no artigo 35º, nº 1 e 2, do Decreto-Lei nº 15/93, de 22.01, os objetos que tiverem servido ou estivessem destinados a servir para a prática de uma infração prevista no presente diploma ou que por esta tiverem sido produzidos, bem assim como as plantas, substâncias e preparações incluídas nas tabelas I a IV, são sempre declaradas perdidas a favor do Estado.


Finalmente, de acordo com o disposto no artigo 36.º do Decreto-Lei nº 15/93, de 22.01, toda a recompensa dada ou prometida aos agentes de uma infração prevista no presente diploma, para eles ou para outrem, é perdida a favor do Estado.


Assim, conforme previsto nos artigos 109º, nº 1, do Código Penal e 35º, nº 1 e 2, do Decreto-Lei nº 15/93, de 22.01, por tais objetos terem servido para a prática de uma infração prevista no presente diploma, bem assim como por se tratarem de substâncias incluídas nas tabelas I a IV, declara-se perdidas a favor do Estado os produtos estupefacientes e os instrumentos apreendidos ao arguido (01 (uma) balança de precisão, da marca Scale, modelo SH-125, com prato; 02 (duas) embalagens de fita castanha; 01 (uma) etiqueta, com a marca Royal Salute; 01 (um) saco de compras em plástico, de cor castanha, da marca Mini Preço; 01 (uma) colher de chá; 01 (uma) caixa de sapatos, da marca Air Jordan; 01 (um) saco de compras em plástico, de cor castanha, da marca Continente; 01 (um) saco de compras em plástico, de cor amarela, da marca Intermarché; 01 (um) saco de compras em plástico, de cor azul, da marca Elecclerc; 01 (um) saco de compras em plástico, de cor preto, da marca Pingo Doce; 02 (duas) embalagens plásticas; 01 (uma) manga plástica, de cor preta; 01 (uma) folha de papel; 01 (uma) caixa, contendo vários medicamentos esteroides anabolizantes; 01 (uma) caixa, contendo seringas com agulhas de dois tamanhos diferentes da marca PIC).


Outrossim, nos termos conjugados dos supra citados artigos 110.º, n.º 1, al. b), do Código Penal e 36.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, tendo resultado provado que as quantias monetárias apreendidas (sete mil, trezentos e sessenta euros) constituíram produto da cedência de estupefacientes, declara-se a sua perda a favor do Estado.


Finalmente, relativamente ao relógio, às peças de roupa e aos televisores apreendidos, por não se ter provado terem sido obtidos com os proventos da cedência das substâncias referidas e considerando a factualidade dada como não provada em c., que acresce a circunstância de terem deixado de assumir relevância para a prova a produzir, determina-se o levantamento da apreensão, com a consequente restituição do relógio e das peças de roupa ao arguido e dos televisores à testemunha HH, de acordo com o artigo 186º do Código Penal.


6. Da perda ampliada de bens a favor do Estado:


O Ministério Público requereu a perda ampliada de bens a favor do Estado e respetiva liquidação de bens, ao abrigo dos artigos 1.º, n.º 1, alínea a), 7.º, 8.º, n.º 2, e 12.º, todos da Lei n.º 5/2002 de 11 de janeiro, efetuando-se a respetiva liquidação, contra o arguido AA, concluindo, a final, seja o valor de € 212.721,61 (duzentos e doze mil, setecentos e vinte e um euros e sessenta e um cêntimos) declarado perdido a favor do Estado.


O artigo 7.º da Lei n.º 5/2002, de 11 de janeiro, dispõe que “1 - Em caso de condenação pela prática de crime referido no artigo 1.º, e para efeitos de perda de bens a favor do Estado, presume-se constituir vantagem de atividade criminosa a diferença entre o valor do património do arguido e aquele que seja congruente com o seu rendimento lícito.


2 - Para efeitos desta lei, entende-se por «património do arguido» o conjunto dos bens:


a) Que estejam na titularidade do arguido, ou em relação aos quais ele tenha o domínio e o benefício, à data da constituição como arguido ou posteriormente;


b) Transferidos para terceiros a título gratuito ou mediante contraprestação irrisória, nos cinco anos anteriores à constituição como arguido;


c) Recebidos pelo arguido nos cinco anos anteriores à constituição como arguido, ainda que não se consiga determinar o seu destino.


3 - Consideram-se sempre como vantagens de atividade criminosa os juros, lucros e outros benefícios obtidos com bens que estejam nas condições previstas no artigo 111.º do Código Penal”.


Daqui resulta que os pressupostos da aplicação da perda alargada são a condenação por um dos crimes do catálogo, no qual se inclui o crime de tráfico de estupefacientes - artigo 1.º, n.º 1, al. a), da Lei n.º 5/2002, de 11 de janeiro; a existência de património que esteja na titularidade ou mero domínio e benefício do condenado, em desacordo com aquele que seria possível obter face aos seus rendimentos lícitos; e a demonstração de que esse património do condenado é desproporcional em relação aos seus rendimentos lícitos.


Presume-se, para efeitos de confisco, que a diferença entre o valor do património detetado e aquele que seria congruente com o rendimento lícito do arguido provém de atividade criminosa; trata-se, por conseguinte, de uma presunção ilidível da proveniência ilícita do património desconforme.


Com efeito, esta presunção poderá ser afastada, nos termos do artigo 9.º da Lei n.º 5/2002, de 11 de janeiro, através da prova de que os bens resultaram de rendimentos lícitos, de que estavam na titularidade do arguido há pelo menos cinco anos a contar da data de constituição de arguido ou que adquiriu os referidos bens com rendimentos obtidos há mais de cinco anos, também a contar da data de constituição de arguido.


Neste particular, o Tribunal Constitucional pronunciou-se, no Acórdão n.º 392/2015, in Diário da República n.º 186/2015, Série II de 2015-09-23, também a propósito de uma condenação pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punido pelo artigo 21.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 23 de janeiro, não julgando inconstitucionais as normas constantes dos artigos 7.º e 9.º, n.os 1, 2 e 3, da Lei n.º 5/2002, de 11 de janeiro, respeitantes ao regime probatório da factualidade subjacente a perda alargada de bens a favor do Estado.


Assim, em conformidade com o artigo 12.º, n.º 1, da Lei n.º 5/2002, de 11 de janeiro, incumbe ao Tribunal declarar, na sentença condenatória, o valor que deve ser perdido a favor do Estado.


Revertendo ao caso concreto, verifica-se que a condenação do arguido AA pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, sendo um dos crimes do catálogo de acordo com o previsto no artigo 1.º, n.º 1, al. a), da Lei n.º 5/2002, de 11 de janeiro.


Por outro lado, da factualidade provada, concretamente dos factos provados 35 e 36, resulta que o valor de € 212.721,61 (duzentos e doze mil, setecentos e vinte e um euros e sessenta e um cêntimos), resultante da incongruência entre o património do arguido AA e o rendimento comunicado à autoridade tributária, que é resultado dos proveitos económicos advindos da atividade de tráfico de estupefacientes em causa e dos rendimentos por assim obtidos.


Pelo exposto, impõe-se julgar totalmente procedente, por provada, a perda ampliada de bens a favor do Estado no valor de €212.721,61 (duzentos e doze mil, setecentos e vinte e um euros e sessenta e um cêntimos), por corresponder ao valor do património incongruente com o rendimento lícito e, consequentemente, o arguido condenado a pagar ao Estado esse montante, com respetiva liquidação de bens, nos termos requeridos pelo Ministério Público ao abrigo dos artigos 1.º, n.º 1, alínea a), 7.º, 8.º, n.º 2, e 12.º, todos da Lei n.º 5/2002 de 11 de janeiro, contra o arguido AA, mantendo-se, na íntegra, os termos decisórios da decisão de arresto decretado no apenso H (artigo 11º, nº 3, “a contrario sensu”, da mesma lei). »


*


3. Apreciando


3.1. O presente recurso direto para o STJ tem por objeto o acórdão proferido pelo tribunal coletivo que condenou o arguido/recorrente: pela prática de um crime de detenção de arma proibida, previsto e punido pelos artigos 14.º, n.º 1, e 26.º, ambos do Código Penal, e pelo artigo 86.º, n.º 1, alíneas c) e e), por referência aos artigos 2.º, n.º 1, alíneas ae) e az), e 3.º, n.ºs 1 e 4, alínea a), todos da Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro [arma de fogo e munições da classe B1], na pena de 1 (um) ano e 10 (dez) meses de prisão dias; pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punido pelos artigos 14.º, n.º 1, e 26.º, ambos do Código Penal, e pelo artigo 21.º, n.º 1, do Decreto-lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, por referência às tabelas I-B e I-C, anexa ao referido diploma legal, na pena de 7 (sete) anos de prisão; em cúmulo jurídico, nos termos do disposto no artigo 77.º, n.º 1 e 2, do Código Penal, das penas de prisão referidas nas alíneas a) e b), na pena única de 7 (sete) anos e 6 (seis) de prisão.


Além do mais, foi também declarada a perda ampliada de bens a favor do Estado, no valor de 212.721,61 € (duzentos e doze mil setecentos e vinte e um euros e sessenta e um cêntimos).


O recurso circunscreve-se ao reexame de matéria de direito, da competência do STJ [artigos 432.º, n.ºs 1, al. c), e 2, e 434.º do CPP], sem prejuízo do disposto na parte final da alínea c), do n.º 1 do artigo 432.º, na redação introduzida pela Lei n.º 94/2021, de 21 de dezembro, segundo o qual se pode recorrer com os fundamentos previstos nos n.ºs 2 e 3 do artigo 410.º.


3.2. Dos alegados vícios


Os vícios previstos no artigo 410.º, n.º2, do CPP, reportam-se à decisão sobre a matéria de facto - vícios da decisão e não de julgamento, não confundíveis nem com o erro na aplicação do direito aos factos, nem com a errada apreciação e valoração das provas ou a insuficiência destas para a decisão de facto proferida -, que se evidenciam a partir do texto da decisão recorrida, por si só considerado ou em conjugação com as regras da experiência comum, sem possibilidade de apelo a outros elementos que lhe sejam estranhos, mesmo que constem do processo [cf. Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, 16. ª ed., p. 873; Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português – Do procedimento (Marcha do Processo), 2023, p. 323-326; Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos em Processo Penal, 6.ª ed., 2007, pp. 77 e ss.; Maria João Antunes, RPCC, Janeiro-Março de 1994, p. 121].


Por outras palavras, trata-se de vícios de lógica jurídica ao nível da matéria de facto, intrínsecos à decisão como peça autónoma, que tornam impossível uma decisão logicamente correta e conforme à lei.


Verifica-se o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, previsto no artigo 410.º, n.º 2, alínea a), quando a matéria de facto provada seja insuficiente para fundamentar a decisão de direito e quando o tribunal, podendo fazê-lo, não investigou toda a matéria de facto relevante, acarretando a normal consequência de uma decisão de direito viciada por falta de suficiente base factual, ou seja, os factos dados como provados não permitem, por insuficiência, a aplicação do direito ao caso que foi submetido à apreciação do julgador. Dito de outra forma, este vício ocorre quando a matéria de facto provada não basta para fundamentar a solução de direito e quando não foi investigada toda a matéria de facto contida no objeto do processo e com relevo para a decisão, cujo apuramento conduziria à solução legal.


Quanto à contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, vício previsto no artigo 410.º, n.º 2, alínea b), consiste na incompatibilidade, insuscetível de ser ultrapassada através da própria decisão recorrida, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação e a decisão. Ocorrerá, por exemplo, quando um mesmo facto com interesse para a decisão da causa seja julgado como provado e não provado, ou quando se considerem como provados factos incompatíveis entre si, de modo a que apenas um deles pode persistir, ou quando for de concluir que a fundamentação da convicção conduz a uma decisão sobre a matéria de facto provada e não provada contrária àquela que foi tomada – e assim é porque, como já se disse, todos os vícios elencados no artigo 410.º, n.º 2, do C.P.P., reportam-se à decisão de facto e consubstanciam anomalias decisórias, ao nível da elaboração da sentença, circunscritas à matéria de facto.


Finalmente, o vício do erro notório na apreciação da prova, a que se reporta a alínea c) do n.º2 do artigo 410.º, verifica-se quando um homem médio, perante o teor da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente se apercebe de que o tribunal, na análise da prova, violou as regras da experiência ou de que efetuou uma apreciação manifestamente incorreta, desadequada, baseada em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios, verificando-se, igualmente, este vício quando se violam as regras sobre prova vinculada ou das leges artis. O requisito da notoriedade afere-se, como se referiu, pela circunstância de não passar o erro despercebido ao cidadão comum, ao homem médio - ou, talvez melhor dito (se partirmos de um critério menos restritivo, na senda do entendimento do Conselheiro José de Sousa Brito, na declaração de voto no Acórdão n.º 322/93, in www.tribunalconstitucional.pt, ou do entendimento do acórdão do STJ, de 30.01.2002, Proc. n.º 3264/01 - 3.ª Secção, sumariado em SASTJ), ao juiz “normal”, dotado da cultura e experiência que são supostas existir em quem exerce a função de julgar, desde que seja segura a verificação da sua existência -, devido à sua forma grosseira, ostensiva ou evidente, consistindo, basicamente, em decidir-se contra o que se provou ou não provou ou dar-se como provado o que não pode ter acontecido.


Alega o recorrente que os factos provados 4, 5, 7 e 9 são demasiado genéricos e padecem de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e de erro notório na apreciação da prova, e bem assim que existe contradição entre os factos provados 1 e 4, e 3, 4, 8-9.


Recordemos os pontos mais pertinentes e relevantes da factualidade provada:


«(…)


1. Desde, pelo menos, data não concretamente apurada de maio de 2022, o arguido AA dedicava-se à detenção, que não para seu consumo, transporte, armazenamento, divisão, distribuição e cedência de canábis (resina) e cocaína (cloridrato), com vista à obtenção de benefícios.


2. O arguido AA mantinha tal atividade, predominantemente, na ..., no concelho da ..., e na cidade de ..., concelho ....


3. Em execução de tal desiderato, o arguido AA detinha e armazenava o produto estupefaciente, na sua residência sita na Rua..., no concelho da ..., e na sua garagem, sita no Largo..., e após, efetuava deslocações, ao final da tarde e durante a noite, em pelo menos dez ocasiões, através do uso de vários veículos automóveis, entre os referidos locais de armazenamento e os locais de cedência de produto estupefaciente a terceiros.


4. No dia 16 de agosto de 2022, pelas 19 horas e 19 minutos, o arguido AA saiu da sua residência, sita na Rua..., e iniciou a condução do veículo automóvel da marca Peugeot, modelo 206, com a matrícula ..-AA-.. até à garagem, sita no Largo..., estacionando o referido veículo junto da mesma, e entrando na garagem. Volvido um minuto, o Arguido sai da garagem com um saco de supermercado de cor verde enrolado, contendo quantidade de haxixe não apurada.


5. No dia 24 de agosto de 2022, pelas 22 horas e 45 minutos, o arguido AA saiu da sua habitação, sita na Rua..., e iniciou a condução do veículo automóvel da marca Peugeot, modelo 206, com a matrícula ..-AA-.. até ao estabelecimento comercial “B..... ....”, na cidade de ..., onde estacionou, permanecendo no interior referido veículo. Pelas 23 horas e 50 minutos, pessoa cuja identidade se desconhece estacionou a viatura da marca Honda, modelo Civic, com a matrícula ..-..-IJ, ao lado do veículo onde o arguido se encontrava, sendo que, nessa ocasião, entregou um embrulho de cor clara, através da janela do seu veículo automóvel, ao condutor daquele veículo, de quem recebeu dinheiro, em montante não apurado, e regressou novamente ao seu veículo, abandonando o local.


6. No dia 25 de agosto de 2022, pelas 00 horas e 15 minutos, o arguido AA estacionou o veículo automóvel da marca Peugeot, modelo 206, com a matrícula ..-AA-.., no parque de estacionamento, do estabelecimento comercial “M... .....”, em ..., permanecendo no interior referido veículo. Pelas 00 horas e 53 minutos, pessoa cuja identidade se desconhece estacionou a viatura da marca Renault, modelo Clio, com a matrícula NA-..-QO, junto ao veículo onde o arguido se encontrava, sendo que, nessa ocasião, o arguido AA entregou uma placa de haxixe àquele, de quem recebeu uma caixa de cor branca, que guardou na bagageira, abandonando o local, até à sua residência, sita na sita na Rua...


7. No dia 26 de setembro de 2022, pelas 01 hora e 13 minutos, o arguido AA estacionou o veículo automóvel da marca Skoda, com a matrícula ..-OF-.., junto ao posto de combustível BP, em ..., sendo que, pela 01 hora e 20 minutos, um individuo cuja identidade se desconhece aproximou-se do veículo onde o arguido se encontra, e entregou-lhe uma caixa de sapatos de cor preta, com tampa branca, contendo dinheiro, através da janela do condutor, e, após, o Arguido abandonou o local em direção a ....


8. No dia 16 de outubro de 2022, pelas 16 horas e 32 minutos, o arguido AA saiu da sua residência, sita na Rua..., e iniciou a condução do veículo automóvel da marca Skoda, com a matrícula ..-OF-.., até ao parque de estacionamento subterrâneo do ..., em ....


9. No mesmo dia, pelas 18 horas e 17 minutos, o arguido AA saiu do estacionamento no veículo automóvel da marca Skoda, com a matrícula ..-OF-.., e, transportando produto estupefaciente, conduziu até à garagem, sita no Largo..., onde armazenou o produto estupefaciente detido, estacionando o referido veículo em frente à mesma e retirando do interior da bagageira um saco de plástico rígido de cor preta e um saco em plástico de cor vermelha e branca, ambos volumosos.


10. No dia 17 de outubro de 2022, por volta das 23 horas 30 minutos, no interior da garagem, sita no Largo..., o arguido AA tinha guardados, por detrás de uns sofás, os seguintes objetos e/ou substâncias:


a. 54 (cinquenta e quatro) placas de canábis, com a planta Cannabis, com o peso total de 5049,861 gr/ml, grau de pureza de 26,7% (THC), correspondente a 26966 (vinte e seis mil, novecentos e sessenta e seis) doses;


b. 08 (oito) placas de canábis (resina), com a marca Super Silver Haze, com grau de pureza de 26,7% (THC), correspondente a 2893 (dois mil, oitocentos e noventa e três) doses;


c. 7 (sete) placas de canábis (resina), com a marca Marijuana, com grau de pureza de 26,8% (THC), correspondente a 3400 (três mil e quatrocentas doses);


d. 2 (duas) placas de cocaína (cloridrato), ambas com a marca da bandeira da Alemanha, com o peso total de 2005,00 gr/ml, grau de pureza de 86,5%, correspondente a 8671 (oito mil, seiscentos e setenta e uma) doses;


e. 1 (uma) placa de cocaína (cloridrato), com a marca foto de cavalo, com o peso de 1.004,00 gr/ml, grau de pureza de 89,1%, correspondente a 4472 (quatro mil, quatrocentos e setenta e duas) doses;


f. 1 (uma) placa de cocaína (cloridrato), com a marca London, com o peso de 1.027,00 gr/ml, grau de pureza de 92,3%, correspondente a 4739 (quatro mil, setecentos e trinta e nove) doses;


g. 1 (uma) placa de cocaína (cloridrato), ambas com a marca Burberry, com o peso total de 1.022,00 gr/ml, grau de pureza de 83,1%, correspondente a 4246 (quatro mil, duzentos e quarenta e seis) doses;


h. cocaína (cloridrato), encontrada desfeita no interior de um tupperware com a tampa cor-de-rosa, com o peso de 51,878 gr/ml, grau de pureza de 39,7%, correspondente a 102 (cento e duas) doses;


i. 01 (uma) embalagem, com saquetas plásticas, utilizadas para acondicionar produto estupefaciente;


j. 01 (um) x-acto cor de laranja;


k. 01 (uma) caixa tupperware, com a tampa cor-de-rosa, utilizado para acondicionar cocaína (cloridrato);


l. 01 (uma) balança de precisão, da marca Scale, modelo SH-125, com prato, que contém resíduos de cocaína (cloridrato);


m. 02 (duas) embalagens de fita castanha, para acondicionar placas de haxixe;


n. 01 (uma) etiqueta, com a marca Royal Salute, para acondicionar placas de cocaína;


o. (…);


p. 01 (uma) colher de chá, com resíduos de cocaína (cloridrato);


q. 01 (uma) caixa de sapatos, da marca Air Jordan, utilizada para transporte de produto estupefaciente;


(…)


v. 02 (duas) embalagens plásticas, próprias para acondicionar 1 (um) quilograma de cocaína (cloridrato), com resíduos de cocaína (cloridrato);


w. 01 (uma) manga plástica, de cor preta, própria para acondicionar placas de 1 (um) quilograma de cocaína (cloridrato);


(…)


11. No dia 18 de outubro de 2022, por volta das 00 horas e 15 minutos, no interior da sua residência, sita na Rua..., o arguido AA tinha guardados os seguintes objetos e/ou substâncias:


a. vários pedaços de canábis (resina), que se encontravam no interior de uma caixa plástica, na garagem, em cima da máquina de lavar a roupa, e 1 (um) pedaço de canábis (resina), que se encontrava dentro do armário da cozinha, junto ao frigorífico, com grau de pureza de 26,7% (THC), correspondente a 213 (duzentas e treze doses);


(…)


d. 300 (…) notas com o valor facial de € 20,00 (…), emitidas pelo Banco Central Europeu, com o valor total de € 6.000,00 (…), que se encontravam no interior de uma gaveta, dentro do roupeiro, no quarto de dormir do Arguido;


e. 02 (…) notas com o valor facial de € 50,00 (…), emitidas pelo Banco Central Europeu, com o valor total de € 100,00 (…), que se encontravam por baixo da mesa de centro da sala;


f. 43 (…) notas com o valor facial de € 20,00 (…), emitidas pelo Banco Central Europeu, com o valor total de € 860,00 (…), que se encontravam por baixo da mesa de centro da sala;


g. 29 (…) notas com o valor facial de € 10,00 (…), emitidas pelo Banco Central Europeu, com o valor total de € 290,00 (…), que se encontravam por baixo da mesa de centro da sala;


h. 01 (…) nota com o valor facial de € 20,00 (…), emitida pelo Banco Central Europeu, que se encontrava em cima da mesa de jantar;


i. 09 (…) notas com o valor facial de € 10,00 (…), emitidas pelo Banco Central Europeu, com o valor total de € 90,00 (…), que se encontravam em cima da mesa de jantar;


(…)


12. No dia 18 de outubro de 2022, por volta das 00 horas 00 minutos, o arguido AA era, ainda, possuidor de:


a. 01 (um) veículo automóvel da marca Ford, modelo Focus, com a matrícula ..-DJ-..; e b. 02 (dois) telemóveis, da marca Iphone, modelo 13 Mini


(…).


13. O arguido AA destinava as substâncias canábis (resina) e cocaína (cloridrato) referidas à cedência a terceiros.


14. O dinheiro apreendido ao arguido AA, no valor total de € 7.360,00 (…), proveio desta sua atividade.


15. A balança apreendida ao arguido AA foi utilizada para pesar as substâncias referidas, que distribuía.


16. Os veículos automóveis de marca Peugeot, modelo 206, matrícula ..-AA-.. e de marca Skoda, matrícula ..-OF-.. pertencentes ao arguido AA foram utilizados para o transporte das substâncias nos mol-des supra referidos.


17. O arguido AA conhecia as características e a natureza estupefaciente das substâncias que tinha consigo e sabia que não possuía autorização para a sua aquisição, detenção, venda, fornecimento ou cedência a outrem, por qualquer título, mas ainda assim quis mantê-las na sua posse com o intuito de as vender a terceiros, o que só não conseguiu por as mesmas terem sido apreendidas pelas autoridades policiais.


(…)


22. Em todos os momentos, o arguido AA agiu de modo livre, deliberado e consciente bem sabendo que o seu comportamento era proibido e punido por lei.


(…)»


O critério normativo da concretização dos factos colhe-se nos artigos 243.º, n.º1, alíneas a) e b) e 283.º, n.º3, alínea b), do CPP, sabido que a acusação deve conter, sob pena de nulidade, a “narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada.”


O STJ, em matéria de tráfico de droga, partindo do enunciado normativo, tem jurisprudência firmada no sentido de que constituem imputações genéricas, a impedir o exercício do direito de defesa e o contraditório, a imputação de factos sem indicação do lugar, sem delimitação temporal, sem indicação do grau de participação de cada arguido, nem as circunstâncias em que, por exemplo, o produto estupefaciente foi vendido (acórdãos de 6.05.2004, proc. 04P908, de 15.12.2011, proc. 17/09.0TELSB.L1.S1, e de 11.07.2019, proc. 22/13.1PFVIS.C1.S1).


Atente-se que do artigo 283.º, n.º3, alínea b), resulta que, devendo a acusação, além de outros elementos, ser precisa, em princípio, relativamente a «quando» foi cometido o crime, tal não significa que essa indicação tenha necessariamente de se reportar a uma concreta data.


O que importa é que os limites temporais da ação se mostrem suficientemente demarcados, adstritos a um concreto período de tempo, circunstância que, conjugada com a descrição dos atos integrantes da atividade, dos respectivos intervenientes e local onde ocorreram, não conduz a uma compressão inadmissível do exercício dos direitos de defesa do arguido ou da sua posição processual, posto que transpareça devidamente enquadrada pelos demais elementos na norma referidos.


Essencialmente o que se entende é que, por estarmos no âmbito do direito penal, regido pelos princípios da tipicidade, da legalidade e pelo acusatório, impõem-se particulares exigências ao nível da certeza, da clareza, da precisão e da completude dos atos típicos imputados, de tal forma que o arguido deles acusado se possa eficazmente defender, razão por que desde há muito o STJ tem entendido que, devendo os factos imputados ser claros e precisos, não podem ser utilizados na acusação (e, consequentemente, na sentença) conceitos vagos, abstratos e imprecisos, genéricos e conclusivos, porquanto isso não apenas impede um eficaz exercício do direito de defesa, como impede o exercício do contraditório ínsito naquele, ficando ou podendo ficar prejudicada a possibilidade de o arguido se defender. Assim acontecerá com imputações em que não se indica minimamente o lugar, nem o tempo, nem a motivação, nem o grau de participação, nem as circunstâncias relevantes, mas um conjunto fáctico não concretizado, sendo que a aceitação das afirmações genéricas como «factos» inviabiliza o direito de defesa que ao arguido assiste, constituindo ofensa aos direitos constitucionais previstos no artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa (CRP).


Pois bem: a nosso ver, não é essa a situação quanto aos pontos de facto assinalados pelo arguido/recorrente.


Nos factos provados, começa por ser traçada a panorâmica geral em que se desenvolveu a atividade de tráfico, nos pontos 1 a 3.


No ponto de facto provado 4 descreve-se um ato de detenção de haxixe em quantidade não apurada.


Nos pontos de factos provados 5 e 7 referem-se atos de entrega de embrulhos, contra dinheiro, sem especificação do conteúdo desses embrulhos.


No ponto de facto provado 9 descreve-se a deslocação até à garagem sita no Largo..., “transportando produto estupefaciente” que foi armazenado nesse local, referindo-se dois sacos volumosos que foram retirados da bagageira, ainda que sem especificação do seu conteúdo.


No ponto de facto provado 6, refere-se a entrega pelo arguido de “uma placa de haxixe”, sem indicação da quantidade concreta em causa.


Tais factos, porém, não podem ser vistos isoladamente, mas em conjunto com a demais realidade provada.


Com efeito, ficou provado, em síntese, que desde meados de maio de 2022, o arguido dedicou-se à detenção, que não para seu consumo, transporte, armazenamento, divisão, distribuição e cedência de canábis e de cocaína (facto provado 1), predominantemente na ... e em ... (facto provado 2); no dia 16 de agosto de 2022, pelas 19h19, deslocou-se até à sua garagem de ... para apanhar um saco contendo uma quantidade não concretamente apurada de haxixe (facto provado 4); no dia 25 de agosto de 2022, às 00h53, na localidade de ..., entregou uma placa de haxixe a um indivíduo que conduzia o Renault Clio com a matrícula NA-..-QO (facto provado 6); no dia 16 de outubro de 2022, cerca das 18h16, transportou produto estupefaciente acondicionado em dois sacos de plástico desde o parque de estacionamento subterrâneo do ..., em ..., até à sua garagem de ... (factos provados 8 e 9).


No dia 17 de outubro de 2022, cerca das 23h30, na referida garagem de ..., foram-lhe apreendidas, entre o mais: 54 placas de canábis, com o peso total de 5049,861 gramas [grau de pureza de 26,7% (THC), correspondente a 26966 (vinte e seis mil novecentos e sessenta e seis) doses], 8 placas de resina de canábis, com a marca Super Silver Haze [com grau de pureza de 26,7% (THC), correspondente a 2893 (dois mil oitocentos e noventa e três) doses]; 7 placas de resina de canábis [com grau de pureza de 26,8% (THC), correspondente a 3400 (três mil e quatrocentas) doses]; 2 placas de cocaína com o peso total de 2005 gramas [grau de pureza de 86,5%, correspondente a 8671 (oito mil seiscentos e setenta e uma) doses]; 1 placa de cocaína com o peso de 1.004 gramas [grau de pureza de 89,1%, correspondente a 4472 (quatro mil quatrocentos e setenta e duas) doses]; 1 placa de cocaína com o peso de 1.027 gramas [grau de pureza de 92,3%, correspondente a 4739 (quatro mil setecentos e trinta e nove) doses]; 1 placa de cocaína com o peso total de 1.022 gramas [grau de pureza de 83,1%, correspondente a 4246 (quatro mil duzentos e quarenta e seis) doses]; 51,878 gramas de cocaína desfeitas no interior de um tupperware [grau de pureza de 39,7%, correspondente a 102 (cento e duas) doses]; e uma balança de precisão com resíduos de cocaína (facto provado 10).


No dia 18 de outubro seguinte, às 00h15, foram-lhe apreendidos na garagem da residência da ... vários pedaços de resina de canábis e num armário da cozinha da mesma habitação um outro pedaço de resina de canábis (facto provado 11), sendo que o arguido destinava as substâncias canábis (resina) e cocaína (cloridrato) referidas nos diversos factos provados à cedência a terceiros e que o dinheiro que lhe apreendido, no valor total de 7.360,00 €, proveio desta sua atividade (factos provados 13 e 14).


Quer isto dizer que, vistos os factos no seu conjunto, provou-se a duração, os lugares, a motivação, o grau de participação nos factos e o tipo de produtos estupefacientes que o arguido traficou.


Não se tendo apurado as quantidades concretas de estupefacientes a que se reportam os factos provados 4, 6 e 9 (quanto a este último, também não se diz se era canábis ou cocaína), certo é que tais factos, como já se enunciou, não podem ser vistos, nem analisados, isoladamente, mas em conjunto com o demais que ficou provado e que concretiza, de forma suficiente e sem contradições, o crime de tráfico de estupefacientes pelo qual o arguido foi condenado, avultando o facto incontornável da detenção pelo mesmo de quantidades muito significativas de estupefacientes, correspondentes a vários milhares de doses, destinados ao tráfico.


Neste contexto, a alegação pelo recorrente de que “não se sabe com que grau quantitativo de tráfico estamos lidando” é manifestamente desconforme à realidade, pois a falta de apuramento de quantidades concretas de estupefacientes, nos factos provados 4, 6 e 9, é complementada, com exuberância, pelas quantidades apreendidas, destinadas ao tráfico, correspondentes a milhares de doses, sendo de destacar o elevadíssimo grau de pureza da cocaína.


Atente-se que, entre os elementos de prova que relevaram para a convicção do tribunal, encontram-se, segundo se extrai da motivação da decisão de facto, as declarações do arguido, que “admitiu as deslocações descritas no libelo acusatório, entre as quais as vertidas nos factos provados de 4 a 9” e que a primeira vez que recebeu, transportou e guardou cocaína e haxixe a fim de proceder à sua distribuição e cedência foi “no fim do mês de maio do ano de 2022 (recordando ter sido antes do dia de aniversário de sua filha, a 31 de maio)”, tendo igualmente admitido que, “em pelo menos dez ocasiões, cujas datas situou genericamente após aquela primeira ocasião, ocorrida no fim do mês de maio do ano de 2022, distribuiu e cedeu a terceiros o produto estupefaciente, por si detido e transportado, entre as quais assinalou, concretamente, o dia 16/08/2022, o transporte de quantidade que não logrou recordar-se de haxixe, que detinha anteriormente na sua garagem (facto provado 4); no dia 25/08/2022, o transporte e entrega de uma placa de haxixe a terceiro, que lhe entregou, como disfarce, uma caixa branca (facto provado 6); e, no dia 16/10/2023 (factos provados 8 e 9), o transporte e armazenamento, na sua garagem, de produto estupefaciente encontrado e apreendido no dia seguinte (facto provado 10)”.


Os limites temporais da ação mostram-se suficientemente demarcados e adstritos a um concreto período de tempo, verificando-se que a descrição dos atos integrantes das condutas em questão permitiu ao arguido conhecer concretamente a conduta imputada e exercer os seus direitos de defesa e ao contraditório, que não foram prejudicados.


Não se verifica, pois, a invocada insuficiência.


Como também não ocorre a alegada contradição, prevista no artigo 410.º, n.º2, al. b), do CPP.


A circunstância de se dar como provada, no ponto de facto 1, uma atividade de tráfico iniciada em maio de 2022, não está em contradição – e, menos ainda, insanável – com o constante do ponto de facto provado 4, sendo que aquele até resulta, como já se viu, das declarações prestadas pelo próprio arguido /recorrente.


O mesmo se diga quanto ao ponto de facto provado 3 - para cuja prova também contribuíram as declarações do arguido - , que não está em contradição insanável com os pontos de factos provados 4 e 8/9.


Também não se vislumbra o referido vício decisório entre o ponto de facto 1 (que o arguido corroborou, segundo se depreende da motivação) e o que provado está nos pontos 4 e 8 a 11.


Em suma, os factos provados são suficientes para suportar a decisão de direito a que se chegou, nas suas diversas vertentes; visionando toda a matéria factual, não se verifica qualquer inconciliabilidade na fundamentação ou entre esta e a decisão; também não se patenteia a existência de erro notório na apreciação da prova, na definição que deixamos supra exposta.


Do que se conclui que do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugado com os ditames da experiência comum - enquanto critérios generalizantes e tipificados, assentes na experiência, de inferência factual, simples índices corrigíveis, critérios que definem conexões de relevância orientando caminhos de investigação e oferecendo probabilidades conclusivas (cf. Castanheira Neves, Sumários de Processo Penal, 1968, Coimbra, p. 45) -, não resulta a verificação de qualquer dos apontados vícios decisórios.


3.3. Da perda alargada


Alega o recorrente, também nesta sede, que a matéria de facto é “manifestamente insuficiente” para a decisão e que “não se prova de todo, a existência de uma atividade criminosa, praticada ao longo do tempo, seja desde 2017 até ao ano de 2022”.


Vejamos.


A Lei n.º 5/2002, de 11 de janeiro, veio estabelecer medidas de combate à criminalidade organizada e económico-financeira, consagrando um regime especial de recolha de prova, quebra do segredo profissional e perda de bens a favor do Estado, relativo a diversos crimes de catálogo, entre os quais se inclui, de acordo com o artigo 1.º, n.º 1, al. a), do referido diploma, o tráfico de estupefacientes, nos termos dos artigos 21.º a 23.º e 28.º do Decreto-Lei n.º 15/93.


Estabelece o artigo 7.º da Lei n.º 5/2002:


« Artigo 7.º


Perda de bens


1 - Em caso de condenação pela prática de crime referido no artigo 1.º, e para efeitos de perda de bens a favor do Estado, presume-se constituir vantagem de atividade criminosa a diferença entre o valor do património do arguido e aquele que seja congruente com o seu rendimento lícito.


2 - Para efeitos desta lei, entende-se por «património do arguido» o conjunto dos bens:


a) Que estejam na titularidade do arguido, ou em relação aos quais ele tenha o domínio e o benefício, à data da constituição como arguido ou posteriormente;


b) Transferidos para terceiros a título gratuito ou mediante contraprestação irrisória, nos cinco anos anteriores à constituição como arguido;


c) Recebidos pelo arguido nos cinco anos anteriores à constituição como arguido, ainda que não se consiga determinar o seu destino.


3 - Consideram-se sempre como vantagens de atividade criminosa os juros, lucros e outros benefícios obtidos com bens que estejam nas condições previstas no artigo 111.º do Código Penal.»


O artigo 8.º, por sua vez, determina:


« Artigo 8.º


Promoção da perda de bens


1 - O Ministério Público liquida, na acusação, o montante apurado como devendo ser perdido a favor do Estado.


2 - Se não for possível a liquidação no momento da acusação, ela pode ainda ser efetuada até ao 30.º dia anterior à data designada para a realização da primeira audiência de discussão e julgamento, sendo deduzida nos próprios autos.


3 - Efetuada a liquidação, pode esta ser alterada dentro do prazo previsto no número anterior se houver conhecimento superveniente da inexatidão do valor antes determinado.


4 - Recebida a liquidação, ou a respetiva alteração, no tribunal, é imediatamente notificada ao arguido e ao seu defensor.»


Finalmente, o artigo 9.º preceitua:


« Artigo 9.º


Prova


1 - Sem prejuízo da consideração pelo tribunal, nos termos gerais, de toda a prova produzida no processo, pode o arguido provar a origem lícita dos bens referidos no n.º 2 do artigo 7.º.


2 - Para os efeitos do número anterior é admissível qualquer meio de prova válido em processo penal.


3 - A presunção estabelecida no n.º 1 do artigo 7.º é ilidida se se provar que os bens:


a) Resultam de rendimentos de atividade lícita;


b) Estavam na titularidade do arguido há pelo menos cinco anos no momento da constituição como arguido;


c) Foram adquiridos pelo arguido com rendimentos obtidos no período referido na alínea anterior.


4 - Se a liquidação do valor a perder em favor do Estado for deduzida na acusação, a defesa deve ser apresentada na contestação. Se a liquidação for posterior à acusação, o prazo para defesa é de 20 dias contados da notificação da liquidação.


5 - A prova referida nos n.ºs 1 a 3 é oferecida em conjunto com a defesa.»


De harmonia com o artigo 350.º, n.º 2, do Código Civil, as presunções legais podem ser ilididas mediante prova em contrário, excepto nos casos em que a lei o proibir.


Ao deduzir acusação, o Ministério Público procedeu à liquidação a que se referem os citados artigos.


A referida Lei n.º 5/2002 consagrou, pois, um regime de perda alargada, baseado na diferença entre o património do arguido e aquele que seria compatível com o seu rendimento lícito.


Constituem pressupostos da aplicação do mecanismo da perda alargada:


a) A condenação por um dos crimes do catálogo:


b) A existência de um património que esteja na titularidade ou mero domínio e benefício do condenado, património este em desacordo com aquele que seria possível obter face aos seus rendimentos lícitos.


A noção de património consagrada no artigo 7.º é ampla, abrangendo mais do que aquilo que está meramente na titularidade do condenado, compreendendo também tudo o que estiver efetivamente ao seu dispor ou conjuntamente ao seu dispor e de terceiros, especialmente de terceiros com quem coabite ou viva em economia comum, ainda que esteja na titularidade desses (ou em contitularidade com esses) terceiros. Por outro lado, também estão em causa as vantagens que o condenado auferiu no período em que vigora a presunção, independentemente do destino que tenham tido.


c) A demonstração de que o património do condenado é desproporcional em relação aos seus rendimentos que tenham uma origem lícita.


Do exposto resulta que o artigo 7.º da Lei n.º 5/2002 estabelece uma presunção “juris tantum” tendente à aplicação desse mecanismo.


Com efeito, uma vez verificados os referidos pressupostos (condenação por crime de catálogo, património, incongruência com o rendimento lícito), o legislador presume, para efeitos de confisco, que a diferença entre o valor do património detetado e aquele que seria congruente com o rendimento lícito do arguido provém de atividade criminosa. Quer dizer, o conhecimento daqueles factos permite afirmar, com a necessária segurança, um facto desconhecido: a verdadeira origem dos bens. É nisto que se traduz a presunção da proveniência do património desconforme.


O arguido pode ilidir a presunção legal, demonstrando que, afinal, apesar de todas as aparências, o património não é incongruente.


Neste sentido, dispõe-se no artigo 9.º da Lei n.º 5/2002 que a presunção poderá ser afastada através da prova de que os bens resultaram de rendimentos lícitos, de que estavam na titularidade do arguido há pelo menos cinco anos a contar da data de constituição de arguido, ou provando-se que adquiriu os referidos bens com rendimentos obtidos há mais de cinco anos, também a contar da data de constituição de arguido.


Finalmente, dispõe o artigo 12.º, n.º 1:


«Na sentença condenatória, o tribunal declara o valor que deve ser perdido a favor do Estado, nos termos do artigo 7.º»


Atente-se que a perda de bens determinada pelo artigo 7.º, n.º 1, não incide propriamente sobre bens determinados, mas sobre o valor correspondente à diferença entre o valor do património do arguido e aquele que seja congruente com o seu rendimento lícito.


O Ministério Público deve proceder à liquidação do património incongruente (“o montante apurado como devendo ser perdido a favor do Estado” – artigo 8.º, n.º 1), em incidente de liquidação enxertado no processo penal, e promover a sua perda a favor do Estado.


O tribunal, por seu lado, em ordem a decidir a liquidação, tem em consideração toda a prova produzida no processo.


O instituto da perda alargada e, mais especificamente, a norma relativa à presunção ilidível de que, em caso de condenação pela prática de crime referido no artigo 1.º da Lei n.º 5/2002, a diferença entre o valor do património do arguido e aquele que é congruente com o seu rendimento lícito constitui vantagem de atividade criminosa, foi já apreciada por parte do Tribunal Constitucional, nos Acórdãos n.º 101/2015 (DR, II Série, de 26-03-2015), n.º 392/2015 (Diário da República n.º 186/2015, Série II, de 2015-09-23) e n.º 498/2019 (este disponível no respectivo site).


Em todos esses Acórdãos, o Tribunal Constitucional não julgou inconstitucionais as normas constantes dos artigos 7.º e 9.º, n.ºs 1, 2 e 3, da Lei n.º 5/2002, de 11 de janeiro, respeitantes ao regime probatório da factualidade subjacente à perda alargada de bens a favor do Estado.


O Acórdão n.º 329/2015 faz uma descrição minuciosa da história legislativa e jurisprudencial do instituto da perda alargada – nos planos nacional, regional e internacional –, bem como de várias das mais relevantes experiências de direito comparado no domínio da recuperação de ativos pelo Estado.


Entendeu o Tribunal Constitucional, nos mencionados arestos:


- a perda alargada constitui um procedimento enxertado no processo penal onde não operam as normas constitucionais da presunção da inocência e do direito ao silêncio do arguido;


- a necessidade de o arguido carrear para o processo a prova de que a eventual incongruência do seu património tem uma justificação, demonstrando que os rendimentos que deram origem a tal património têm uma origem lícita, não coloca em causa a presunção de inocência de que o mesmo beneficia quanto ao cometimento do crime que lhe é imputado naquele processo, nem de qualquer outro de onde possa ter resultado o enriquecimento;


- a presunção legal estabelecida nos artigos 7.º e 9.º, n.º 1, 2 e 3, da Lei n.º 5/2002, de 11 de janeiro, não viola o princípio da presunção de inocência ou algum dos seus corolários, o princípio da estrutura acusatória do processo penal, ou qualquer outra garantia constitucional específica para âmbitos normativos penais ou sancionatório, entendimento que o Tribunal Constitucional considera estar em linha com a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH);


- a função dos artigos 7.º, n.º 2, alínea c), e 9.º, n.º 3, alínea b), da Lei n.º 5/2002 – mais especificamente, o período de cinco anos anteriores à constituição como arguido – não é senão mitigar o alcance da presunção de que o seu património advém de atividade criminosa. A partir do momento em que se admita que a presunção enunciada no n.º 1, do artigo 7.º, da Lei n.º 5/2002, é legítima, o seu confinamento a um determinado período temporal apresenta-se como uma limitação a um regime desfavorável ao indivíduo, apresentando-se, na sua estrutura, como uma norma que lhe é favorável, tratando-se de “um período de tempo absolutamente razoável de várias perspetivas”.


Diz-se no Acórdão n.º 392/2015:


«(…) no regime previsto nas normas questionadas nos presentes autos que regulam o incidente de perda de bens enxertado no processo penal, a necessidade de o arguido carrear para o processo a prova de que a eventual incongruência do seu património tem uma justificação, demonstrando que os rendimentos que deram origem a tal património têm uma origem lícita, não coloca em causa a presunção de inocência que o mesmo beneficia quanto ao cometimento do crime que lhe é imputado naquele processo, nem de qualquer outro de onde possa ter resultado o enriquecimento. E também não inviabiliza o direito ao silêncio ao arguido, não se vislumbrando em que medida da demonstração da origem lícita de determinados rendimentos possa resultar uma autoincriminação relativamente ao ilícito penal que lhe é imputado nesse processo, e muito menos um desvio à estrutura acusatória do processo penal. Não se descortina, pois, que exista um perigo real daquela presunção, que opera num incidente de perda de bens tramitado no processo penal respeitante ao crime cuja condenação é pressuposto da aplicação desta medida, contaminar a produção de prova relativa à prática desse crime.


Por estas razões se conclui que a presunção legal estabelecida nos artigos 7.º e 9.º, n.º 1, 2 e 3, da Lei n.º 5/2002, de 11 de janeiro, não viola o princípio da presunção de inocência, nem o direito do arguido ao silêncio, nem a estrutura acusatória do processo penal.»


Noutro passo:


«Embora não se exija a prova da conexão entre o ilícito criminal e os respetivos proventos, o regime da perda de vantagens da atividade criminosa exige que se mostrem verificados alguns requisitos, conforme decorre, designadamente, dos artigos 7.º e 9.º da Lei n.º 5/2002, de 11 de janeiro.


Assim, em primeiro lugar, terá de haver condenação por um dos crimes previstos no artigo 1.º da referida Lei n.º 5/2002, de 11 de janeiro (tráfico de estupefacientes, terrorismo e organização terrorista, tráfico de armas, tráfico de influência, corrupção ativa e passiva, peculato, participação económica em negócio, branqueamento de capitais, associação criminosa, contrabando, tráfico e viciação de veículos furtados, lenocínio e lenocínio de menores, tráfico de pessoas, contrafação de moeda e de títulos equiparados a moeda). Para além disso, terá de existir uma diferença entre o valor do património do arguido (integrado pelos bens enumerados nas alíneas a) a c), do n.º 2, do artigo 7.º) e aquele que seja congruente com o seu rendimento lícito. Existindo essa incongruência de valores, a lei presume que tal diferença constitui vantagem de uma atividade criminosa (sobre os requisitos necessários à aplicação desta medida, matéria sobre a qual não há unanimidade na doutrina, designadamente quanto à necessidade de demonstração da existência de uma atividade criminosa anterior, cfr. Augusto Silva Dias, ob. cit., págs. 44 e ss.; João Conde Correia, ob. cit., págs. 103 e ss.; José M. Damião da Cunha, ob. cit., págs. 124 e ss.; Pedro Caeiro, ob. cit., págs. 313 e ss.).


Para além destes requisitos de natureza material, a Lei n.º 5/2002, de 11 de janeiro, fixa um conjunto de regras processuais a que deve obedecer este mecanismo de perda de vantagens da atividade criminosa.


Desde logo, a referida discrepância entre o valor do património do arguido e aquele que seja congruente com o seu rendimento lícito terá de ser invocada pelo Ministério Público na acusação, em que deverá fazer a liquidação do montante apurado como devendo ser perdido a favor do Estado ou, não sendo possível a liquidação no momento da acusação, a mesma poderá ainda ter lugar até ao 30.º dia anterior à data designada para a realização da primeira audiência de discussão e julgamento (cfr. artigo 8.º, n.º 1 e 2, da Lei n.º 5/2002 de 11 de janeiro).


Esta liquidação é notificada ao arguido e ao seu defensor (cfr. artigo 8.º, n.º 4 da Lei n.º 5/2002, de 11 de janeiro), podendo o arguido apresentar a sua defesa na contestação, se a liquidação tiver sido deduzida na acusação, ou no prazo de 20 dias a contar da notificação da liquidação, caso esta tenha sido posterior à acusação (cfr. artigo 9.º, n.º 4 da Lei n.º 5/2002 de 11 de janeiro).


Conjuntamente com a sua defesa, o arguido poderá oferecer a prova no sentido de demonstrar a origem lícita dos bens (cfr. artigo 9.º, n.º 5, da Lei n.º 5/2002, de 11 de janeiro), de forma a ilidir a presunção estabelecida no n.º 1 do artigo 7.º, nos termos previstos nos n.ºs 1 a 3, do artigo 9.º, da Lei n.º 5/2002 de 11 de janeiro. Para tal, o arguido pode utilizar qualquer meio de prova válido em processo penal (cfr. artigo 9.º, n.º 2, da Lei 5/2002 de 11 de janeiro, e 125.º do Código de Processo Penal), não estando sujeito às limitações probatórias que existem, por exemplo, no processo civil ou administrativo.


E, no que respeita aos factos cuja prova permite ilidir a presunção, para além de poder provar que os bens resultam de rendimentos de atividade lícita, o arguido poderá, em alternativa, provar que os bens em causa estavam na sua titularidade há pelo menos cinco anos no momento da constituição como arguido ou que foram adquiridos com rendimentos obtidos no referido período (cfr. artigo 9.º, n.º 3, als. a), b) e c) da Lei n.º 5/2002 de 11 de janeiro).


Conforme decorre da referida exposição de motivos, a Lei n.º 5/2002 de 11 de janeiro e concretamente as medidas previstas no seu artigo 7.º, inserem-se numa tendência político-criminal atual que vai no sentido de demonstrar, quer ao condenado, quer à comunidade, que “o crime não compensa”, através de mecanismos destinados a impedir que o condenado pela prática de crime que lhe tenha permitido obter elevados proventos possa conservar no seu património as vantagens assim obtidas.


(...)


[E]mbora o legislador disponha de uma ampla margem de liberdade na concreta modelação de um determinado procedimento, não está autorizado a criar obstáculos que dificultem ou prejudiquem, arbitrariamente ou de forma desproporcionada, o direito a uma tutela jurisdicional efetiva.


Admitindo-se que o legislador não podia ser indiferente à evidência de que o nexo causal que é objeto da presunção legal questionada oferece grandes dificuldade de prova, o que é generalizadamente reconhecido, a criação de uma presunção legal de conexão não resulta num ónus excessivo para o condenado, uma vez que a ilisão da presunção será efetuada através da demonstração de factos que são do seu conhecimento pessoal, sendo ele que se encontra em melhores condi­ções para investigar, explicar e provar a concreta proveniência do património ameaçado. As presunções legais surgem exatamente para responder a essas situa­ções em que a prova direta pode resultar particularmente gravosa ou difícil para uma das partes, causando, ao mesmo tempo, o mínimo prejuízo possível à outra parte, dentro dos limites do justo e do adequado, enquanto a tutela da parte “prejudicada” pela presunção obtém-se pela exigência fundamentada e não arbitrária de um nexo lógico entre o facto indiciário e o facto presumido, o qual deve assentar em regras de experiência e num juízo de probabili­dade qualificada.


As normas sub iudicio correspondem a estas exigências, revelando-se que o legislador teve o cuidado de prevenir que, sendo mais difícil ao arguido provar a licitude de rendimentos obtidos num período muito anterior ao do processo, a prova da licitude dos rendimentos pode ser substituída pela prova de que os bens em causa estavam na sua titularidade há pelo menos cinco anos no momento da constituição como arguido ou que foram adquiridos com rendimentos obtidos no referido período (cfr. artigo 9.º, n.º 3, als. a), b) e c) da Lei n.º 5/2002 de 11 de janeiro). Esta limitação temporal faz com que a prova necessária para que possa ser ilidida a presunção se torne menos onerosa.


Acresce ainda que, no plano processual, o regime de perda de bens previsto na Lei n.º 5/2002, embora assente numa condenação pela prática de determinado ilícito criminal (integrante do catálogo previsto no artigo 1.º da Lei n.º 5/2002), está sujeito a um procedimento próprio, enxertado no procedimento criminal pela prática de algum dos aludidos crimes, no qual o legislador não deixou de ter em atenção diversas garantias processuais. Desde logo, como vimos, o montante apurado como devendo ser declarado perdido em favor do Estado deve constar de um ato de liquidação, integrante da acusação ou de ato posterior, onde se indicará em que se traduz a desconformidade entre o património do arguido e o que seria congruente com o seu rendimento lícito. Este ato de liquidação é notificado ao arguido e ao seu defensor, podendo o arguido apresentar a sua defesa, nos termos já referidos, assegurando-se, assim, um adequado exercício do contraditório, sendo que, conforme se referiu, para ilidir a presunção, o arguido pode utilizar qualquer meio de prova válido em processo penal, não estando sujeito às limitações probatórias que existem, por exemplo, no processo civil ou administrativo, além de que o próprio tribunal deverá ter em atenção toda a prova existente no processo, donde possa resultar ilidida a presunção estabelecida no artigo 7.º, n.º 1, da Lei 5/2002 de 11 de janeiro (artigo 9.º, n.º 1, do mesmo diploma).


Face ao exposto, é de concluir que as normas sindicadas não violam os princípios constitucionais do processo penal invocados pelo Recorrente, nem se vislumbra que viole qualquer outro parâmetro constitucional, pelo que, também nesta parte, deverá ser negado provimento ao recurso.»


Assinala o Acórdão n.º 498/2019:


«(…) do ângulo constitucional em que aqui estamos colocados, pode concluir-se, na linha dos Acórdãos n.ºs 101/2015 e 392/2015, que, no seu atual desenho legal, a presunção estabelecida no artigo 7.º, n.º 1, da Lei n.º 5/2002 se mostra já suficientemente firme, em resultado da articulação que faz de dois elementos essenciais: uma condenação penal e uma incongruência patrimonial.


Relativamente ao primeiro elemento, deve sublinhar-se que a aplicação da perda alargada não pode ser desencadeada por uma condenação pela prática de qualquer tipo legal de crime, mas apenas por determinados tipos legais de crime previstos em legislação aprovada para fazer face a modalidades específicas de criminalidade. Poderá sempre discutir-se se o catálogo de crimes a que o instituto se aplica deveria ser estreitado. No entanto, a limitação do instituto a um determinado e relativamente coerente conjunto de crimes denota logo um cuidado por parte do legislador em assegurar a consistência da presunção – e, para quem rejeite a teoria dos limites imanentes, a proporcionalidade da restrição do direito de propriedade causada pelo instituto da perda alargada –, já que, em teoria, muitos outros crimes (ou mesmo a generalidade dos crimes) são aptos a gerar vantagens económicas ou financeiras. O legislador, todavia, cingiu a perda alargada a tipos de crime que se perfilam como mais suscetíveis de gerar vantagens daquela natureza e/ou cujos agentes são mais tipicamente movidos por esse objetivo – numa expressão, à criminalidade reditícia. Daí que alguns dos crimes do catálogo previsto no artigo 1.º, n.º 1, da Lei n.º 5/2002 – mais especificamente, o lenocínio, o contrabando e o tráfico e viciação de veículos furtados –, crimes a que aquelas características são porventura menos intrínsecas ou intensas, apenas possam dar lugar à aplicação da perda alargada se se verificar concretamente que foram praticados de forma organizada (vd. o n.º 2 do referido artigo 1.º). É que, como se lê na Proposta de Lei n.º 94/VIII, que esteve na base da Lei n.º 5/2002, «só assim eles são abrangidos pela ratio desta proposta, que não visa a pequena criminalidade».


Por outro lado, se a finalidade da perda alargada é prevenir a prática de crimes – conforme decorre também exposição de motivos da Proposta de Lei n.º 94/VIII –, não pode deixar de salientar-se que a sua consequência é apenas a de colocar o sujeito na situação em que o mesmo se encontraria não fosse a obtenção das vantagens indevidas. É restabelecer o status quo ante; repor a situação patrimonial anterior, sem ultrapassá-la – i.e., sem colocar o sujeito numa situação pior do que aquela em que anteriormente se encontrava. Ora, na medida em que não piora a situação patrimonial anteriormente existente, a perda alargada não se expõe, também por aqui, ao conflito com o direito de propriedade: apenas são confiscadas vantagens. Neste sentido, vejam-se os já citados Acórdãos Phillips (parágrafos 48 ss.) e Gogitidze (sobretudo os parágrafos 101 ss.), onde o TEDH concluiu pela não violação do direito de propriedade consagrado no artigo 1.º do Protocolo n.º 1 à Convenção Europeia dos Direitos Humanos. Já em G.I.E.M., o TEDH identificou uma violação do direito de propriedade, porque o instituto aí em causa – a também já referida confisca urbanística – não se limitava a repor a situação patrimonial prévia, mas antes a degradava (vd. sobretudo o parágrafo 301). De resto, a circunstância de a situação patrimonial prévia constituir o limite da consequência da perda alargada regulada na Lei n.º 5/2002 robustece a ideia de que este instituto não apresenta natureza sancionatória, pelo menos para efeitos de aplicação de garantias que a Constituição da República Portuguesa reserva a âmbitos normativos dessa natureza.»


Não há qualquer razão para nos afastarmos do entendimento reiterado do Tribunal Constitucional – que é o das Relações e do STJ - quanto à inteira conformidade à Constituição da República Portuguesa das normas indicadas.


Em suma, a Lei n.º 5/2002 consagrou uma presunção legal – de que o património do condenado que não seja congruente com os seus rendimentos normais tem origem em atividade criminosa – que assenta na condenação do arguido pela prática de um dos crimes catalogados no respetivo artigo 1.º - como ocorre no caso em apreço -, situação em que o legislador prescinde da prova de uma ligação dos bens e rendimentos ao crime e impõe ao arguido o ónus de ilidir a presunção e de provar a licitude daqueles bens e rendimentos, nos termos dos artigos 9.º, da Lei n.º 5/2002, e 350.º, n.º 2, do Código Civil.


A formulação utilizada pelo artigo 7.º da Lei n.º 5/2002 assenta na incongruência patrimonial, ou seja, não é a probabilidade de uma anterior atividade criminosa que fundamenta o regime da perda alargada, mas sim a desconformidade inexplicável entre o rendimento lícito que apresenta o arguido e o seu património globalmente considerado, em associação com a condenação por um dos crimes de catálogo.


Com base na verificação dos requisitos supra identificados - condenação por crime de catálogo, titularidade de património e património incongruente com o rendimento lícito - os quais constituem a “base da presunção”, o legislador presume que a diferença entre o valor do património detetado e aquele que seria congruente com o seu rendimento lícito provém de atividade criminosa, não se incluindo, entre os pressupostos, a demonstração da existência de uma atividade ou “carreira” criminosa para além do crime pelo qual o arguido foi condenado. Como refere João Conde Correia (Da Proibição do Confisco à Perda Alargada, INMC, 2012, p. 110), em crítica à doutrina existente em sentido contrário, “esta exigência suplementar, imposta apenas por via exegética, não tem grande justificação, acabando por redundar numa espécie de revogação interpretativa do novo regime legal. No fundo, significa repristinar a prova da relação entre o crime pressuposto e o património que com este regime inovador se quis dispensar. Exigir este pressuposto adicional será impor ao Ministério Público uma diabolica probatio: é quase impossível demonstrar - ainda que com base em padrões probatórios menos exigentes – a probabilidade de uma atividade criminosa, maxime de um crime catálogo, quando se investigou e não se recolheram indícios suficientes da sua prática.”


A não exigência desse pressuposto adicional pelo legislador não faz recair sobre o arguido um ónus excessivo, pois ninguém melhor do que ele conseguirá justificar a proveniência do seu património, se este tiver sido obtido de forma lícita (sobre esta matéria, João Conde Correia, ob. cit.; Bernardo Costa Faria, Perda Alargada de Bens no Sistema Penal Português - As singularidades do confisco previsto na Lei n.º 5/2002: (...), Almedina, p. 32 e segs.; Hélio Rodrigues / Carlos Rodrigues, Recuperação de Ativos na Criminalidade Económico-Financeira, Sindicato dos Magistrados do Ministério Público, p. 225; Duarte Alberto Rodrigues Nunes, Admissibilidade da inversão do ónus da prova no confisco “alargado” de vantagens provenientes da prática de crimes, fevereiro de 2017, Julgar Online).


Como refere Duarte Nunes, “foi o próprio legislador que entendeu estabelecer, com base nas regras da experiência, a “probabilidade” de um arguido condenado por um crime do catálogo, desenvolver uma atividade criminosa de espetro mais alargado do que aquele que por norma é possível comprovar judicialmente”.


Daí, aliás, a Declaração de Retificação n.º 5/2002, de 6 de fevereiro, referindo que: “no n.º 1 do artigo 7.º, onde se lê ‘presume-se constituir vantagem da atividade criminosa’ deve ler-se ‘presume-se constituir vantagem de atividade criminosa’.”


Deste modo, a existência de uma atividade criminosa para além do crime pelo qual o arguido foi condenado não é pressuposto da perda alargada.


In casu, ficou provado a este propósito:

37. AA foi constituído arguido no dia 17 de outubro de 2022.

38. O arguido AA declarou os seguintes rendimentos nos cinco anos imediatamente anteriores à sua constituição como arguido, entre 17 de outubro de 2017 e 17 de outubro de 2022:





39. Da comparação do património do arguido AA com o rendimento disponível auferido pelo mesmo, apurou-se que a vantagem da atividade criminosa, correspondente ao período de cinco anos anterior à sua constituição como arguido, é no valor total de €212.721,61 (duzentos e doze mil, setecentos e vinte e um euros e sessenta e um cêntimos), correspondente à diferença entre o valor do património adquirido durante o período em referência e os rendimentos líquidos declarados, nos seguintes termos:


Tais factos estão probatoriamente sustentados:


«(…) pelo teor do relatório final de investigação patrimonial e financeira, que consta de fls. 625 a 631, por referência ao APENSO I – Investigação financeira e patrimonial GRA. Com efeito, daqui resulta à saciedade que, entre 17 de outubro de 2017 e 17 de outubro de 2022 (data da sua constituição como arguido nos presentes autos, facto provado 34) (…) –, o arguido declarou os rendimentos constantes do facto provado 35, concluindo-se, mediante comparação do seu património com aquele rendimento disponível auferido pelo mesmo, que o arguido obteve vantagem total de €212.721,61 (duzentos e doze mil, setecentos e vinte e um euros e sessenta e um cêntimos), que corresponde à diferença entre o valor do património adquirido durante o período em referência e os rendimentos líquidos declarados (facto provado 36).


(…)»


Conforme consta do acórdão recorrido, cumprido o contraditório, o arguido não apresentou contestação, nem requerimento probatório, sendo certo que, ao interpor recurso para o STJ, o arguido abdicou, igualmente, de impugnar a matéria de facto nos termos amplos previstos no artigo 412.º, n.ºs 3, 4 e 6, do CPP, não se vislumbrando, por outro lado, contrariamente ao que alega, qualquer insuficiência da matéria de facto, pelo que a mesma deve considerar-se definitivamente assente.


Não tendo o arguido ilidido ou, sequer, tentado ilidir os pressupostos em que assenta a presunção do artigo 7.º, n.º 1, da Lei n.º 5/2002, de 11 de janeiro [prática de um dos crimes de catálogo do artigo 1.º, da Lei n.º 5/2002, (factos provados 1. a 22.) e posse de um património cujo valor não é de todo compatível com o seu modo de vida lícito (factos provados 35. e 36.)], não podia o tribunal recorrido deixar de decidir como decidiu.


3.4. Determinação da pena


A tribunal recorrido condenou o arguido: na pena de 7 (sete) anos de prisão, pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punido pelo artigo 21.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22.01, com referência às Tabelas I-B e I-C do mesmo diploma legal e ao mapa anexo à Portaria n.º 94/96, de 26 de março; na pena de 1 (um) ano e 10 (dez) meses de prisão, pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de detenção de arma proibida encontra-se previsto e punido pelos artigos 14.º, n.º 1, e 26.º, ambos do Código Penal, e pelo artigo 86.º, n.º 1, alíneas c) e e), por referência aos artigos 2.º, n.º 1, alíneas ae) e az), e 3.º, n.ºs 1 e 4, alínea a), todos da Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro [arma de fogo e munições da classe B1].


Em cúmulo, o arguido foi condenado na pena única de 7 (sete) anos e 6 (seis) meses.


O arguido/recorrente, reportando-se ao crime de tráfico, limita-se a afirmar que as situações de facto que lhe foram imputadas reportam-se “a quantidades não apuradas de haxixe ou à detenção do estupefaciente que lhe foi apreendido dia 17 e 18 de outubro de 2022” e que só deve ser sancionado por um transporte de haxixe em quantidade na apurada em 4, o transporte do estupefaciente apreendido na garagem e o que lhe foi apreendido em casa.


Além disso, alega não ter sido ponderado que é “um consumidor e toxicodependente”, em tratamento voluntário no EP....


A determinação da pena envolve diversos tipos de operações, resultando do preceituado no artigo 40.º do Código Penal que as finalidades das penas se reconduzem à proteção de bens jurídicos (prevenção geral) e à reintegração do agente na sociedade (prevenção especial).


Hoje não se aceita que o procedimento de determinação da pena seja atribuído à discricionariedade não vinculada do juiz ou à sua “arte de julgar”. No âmbito das molduras legais predeterminadas pelo legislador, cabe ao juiz encontrar a medida da pena de acordo com critérios legais, ou seja, de forma juridicamente vinculada, o que se traduz numa autêntica aplicação do direito (cf., com interesse, Figueiredo Dias, Direito Penal Português – As consequências jurídicas do crime, Editorial Notícias, 1993, pp. 194 e seguintes).


Tal não significa que, dentro dos parâmetros definidos pela culpa e pela forma de atuação dos fins das penas no quadro da prevenção, se chegue com precisão matemática à determinação de um quantum exato de pena.


Estabelece o artigo 71.º, n.º1, do Código Penal, que a determinação da medida da pena, dentro da moldura legal, é feita «em função da culpa do agente e das exigências de prevenção». O n.º 2 elenca, a título exemplificativo, algumas das circunstâncias, agravantes e atenuantes, relevantes para a medida concreta da pena, pela via da culpa e/ou pela da prevenção, dispondo o n.º3 que na sentença são expressamente referidos os fundamentos da medida da pena, o que encontra concretização adjetiva no artigo 375.º, n.º1, do C.P.P., ao prescrever que a sentença condenatória especifica os fundamentos que presidiram à escolha e à medida da sanção aplicada.


Em termos doutrinais tem-se defendido que as finalidades da aplicação de uma pena residem primordialmente na tutela dos bens jurídicos e, tanto quanto possível, na reinserção do agente na comunidade e que, neste quadro conceptual, o processo de determinação da pena concreta seguirá a seguinte metodologia: a partir da moldura penal abstrata procurar-se-á encontrar uma submoldura para o caso concreto, que terá como limite superior a medida ótima de tutela de bens jurídicos e das expectativas comunitárias e, como limite inferior, o quantum abaixo do qual já não é comunitariamente suportável a fixação da pena sem pôr irremediavelmente em causa a sua função tutelar. Dentro dessa moldura de prevenção atuarão, de seguida, as considerações extraídas das exigências de prevenção especial de socialização. Quanto à culpa, compete-lhe estabelecer o limite inultrapassável da medida da pena a estabelecer (cf. Figueiredo Dias, ob. cit., pp. 227 e ss.).


Na mesma linha, Anabela Miranda Rodrigues, no seu texto O modelo de prevenção na determinação da medida concreta da pena (Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 12, n.º2, Abril-Junho de 2002, pp. 181 e 182), apresenta três proposições, em jeito de conclusões, da seguinte forma sintética:


«Em primeiro lugar, a medida da pena é fornecida pela medida da necessidade de tutela de bens jurídicos, isto é, pelas exigências de prevenção geral positiva (moldura de prevenção). Depois, no âmbito desta moldura, a medida concreta da pena é encontrada em função das necessidades de prevenção especial de socialização do agente ou, sendo estas inexistentes, das necessidades de intimidação e de segurança individuais. Finalmente, a culpa não fornece a medida da pena, mas indica o limite máximo da pena que em caso algum pode ser ultrapassado em nome de exigências preventivas.»


De acordo com o referido artigo 71.º, n.º 2, do Código Penal, há que considerar os fatores reveladores da censurabilidade manifestada no facto, nomeadamente os fatores capazes de fornecer a medida da gravidade do tipo de ilícito objetivo e subjetivo – indicados na alínea a), primeira parte (grau de ilicitude do facto, modo de execução e gravidade das suas consequências), e na alínea b) (intensidade do dolo ou da negligência) –, e os fatores a que se referem a alínea c) (sentimentos manifestados no cometimento do crime e fins ou motivos que o determinaram) e a alínea a), parte final (grau de violação dos deveres impostos ao agente), bem como os fatores atinentes ao agente, que têm que ver com a sua personalidade – fatores indicados na alínea d) (condições pessoais e situação económica do agente), na alínea e) (conduta anterior e posterior ao facto) e na alínea f) (falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto). Na consideração das exigências de prevenção, destacam-se as circunstâncias relevantes por via da prevenção geral, traduzida na necessidade de proteção do bem jurídico ofendido mediante a aplicação de uma pena proporcional à gravidade dos factos, reafirmando a manutenção da confiança da comunidade na norma violada, e bem assim as relevantes no plano da prevenção especial, que permitam fundamentar um juízo de prognose sobre o cometimento de novos crimes no futuro e assim avaliar das necessidades de socialização. Incluem-se aqui o comportamento anterior e posterior ao crime [alínea e)] e a falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto [alínea f)]. O comportamento do agente, a que se referem as circunstâncias das alíneas e) e f), adquire particular relevo para determinação da medida da pena em vista das exigências de prevenção especial.


Na determinação da pena relativa ao crime de tráfico de estupefacientes, o tribunal recorrido ponderou que, dentro do tráfico comum, a ilicitude do facto é elevada, considerando a detenção, que não para consumo, transporte, armazenamento, divisão, distribuição e cedência de canábis (resina) e cocaína (cloridrato) a terceiros, em pelo menos dez ocasiões, entre data não concretamente apurada de maio de 2022 até 16/10/2023, em que lhe foram apreendidas, concretamente: 54 (cinquenta e quatro) placas de canábis, com o peso total de 5049,861 gr/ml, grau de pureza de 26,7% (THC), correspondente a 26966 (vinte e seis mil novecentos e sessenta e seis) doses; 08 (oito) placas de canábis (resina), com a marca Super Silver Haze, com grau de pureza de 26,7% (THC), correspondente a 2893 (dois mil oitocentos e noventa e três) doses; 7 (sete) placas de canábis (resina), com a marca Marijuana, com grau de pureza de 26,8% (THC), correspondente a 3400 (três mil e quatrocentas doses); 2 (duas) placas de cocaína (cloridrato), ambas com a marca da bandeira da Alemanha, com o peso total de 2005,00 gr/ml, grau de pureza de 86,5%, correspondente a 8671 (oito mil seiscentos e setenta e uma) doses; 1 (uma) placa de cocaína (cloridrato), com a marca foto de cavalo, com o peso de 1.004,00 gr/ml, grau de pureza de 89,1%, correspondente a 4472 (quatro mil quatrocentos e setenta e duas) doses; 1 (uma) placa de cocaína (cloridrato), com a marca London, com o peso de 1.027,00 gr/ml, grau de pureza de 92,3%, correspondente a 4739 (quatro mil setecentos e trinta e nove) doses; 1 (uma) placa de cocaína (cloridrato), ambas com a marca Burberry, com o peso total de 1.022,00 gr/ml, grau de pureza de 83,1%, correspondente a 4246 (quatro mil duzentos e quarenta e seis) doses; cocaína (cloridrato), encontrada desfeita no interior de um tupperware com a tampa cor de rosa, com o peso de 51,878 gr/ml, grau de pureza de 39,7%, correspondente a 102 (cento e duas) doses; e vários pedaços de canábis (resina), que se encontravam no interior de uma caixa plástica, na garagem, em cima da máquina de lavar a roupa, e 1 (um) pedaço de canábis (resina), que se encontrava dentro do armário da cozinha, junto ao frigorífico, com grau de pureza de 26,7% (THC), correspondente a 213 (duzentas e treze doses).


Assinala-se a diversidade, qualidade e considerável quantidade dos produtos estupefacientes em causa – correspondentes a milhares de doses -, destacando-se o grau de pureza da cocaína.


O dolo é direto e de intensidade normal.


As exigências de prevenção geral são muito elevadas devido à frequência da prática do crime em causa e aos malefícios e insegurança causados na sociedade civil.


À data da prática dos factos, o arguido contava com duas condenações pela prática de crime detenção de arma proibida (facto provado 23.b e c) e uma pela prática de um crime de tráfico, tendo sido imposta pena única de 5 anos de prisão, suspensa por igual período, por decisão transitada em julgado em 14.08.2015. Após, extinta pelo cumprimento (cfr. factos provados 23.c. e 29) e volvidos menos de dois anos, o arguido praticou os factos sub judice.


Conclui-se que as exigências de prevenção especial também são muito significativas.


O arguido recaiu no consumo de drogas e passou a usar de forma compulsiva cocaína, tendo, em abril de 2022, um surto psicótico.


No Estabelecimento Prisional, mantém um comportamento adequado e está ocupado a frequentar a escola. Submeteu-se a tratamento nas consultas de psicologia e de psiquiatria.


Tem visitas regulares da esposa.


Revela sentido crítico face ao desvalor da conduta em apreço.


Tendo em vista a jurisprudência deste STJ, considerando a moldura penal abstrata aplicável – pena de 4 a 12 anos de prisão -, na ponderação dos fatores relevantes por via da culpa e da prevenção, julgamos ajustada ao crime de tráfico e às necessidades de prevenção geral e especial, sem esquecer a finalidade de reintegração do agente na sociedade, a aplicação da pena de 7 (sete) anos de prisão, como decidido no acórdão recorrido.


O mesmo se diga quanto à pena de 1 (um) ano e 10 (dez) meses de prisão, relativa ao crime de detenção de arma proibida, que, em rigor, o arguido não impugna, pois nada diz sobre a mesma.


Para a determinação da pena única conjunta, na consideração dos factos (do conjunto dos factos que integram os crimes em concurso) está ínsita uma avaliação da gravidade da ilicitude global, como se o conjunto de crimes em concurso se ficcionasse como um todo único, globalizado, que deve ter em conta a existência ou não de ligações ou conexões e o tipo de ligação ou conexão que se verifique entre os factos em concurso.


Refere Cristina Líbano Monteiro (A Pena «Unitária» do Concurso de Crimes, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 16, n.º 1, págs. 151 a 166) que o Código rejeita uma visão atomística da pluralidade de crimes e obriga a olhar para o conjunto – para a possível conexão dos factos entre si e para a necessária relação de todo esse bocado de vida criminosa com a personalidade do seu agente, estando em causa a avaliação de uma «unidade relacional de ilícito», portadora de um significado global próprio, a censurar de uma vez só a um mesmo agente.


Neste contexto, valorando o ilícito global perpetrado, ponderando em conjunto todos os factos em presença, a sua relacionação com a personalidade do recorrente e os fins das penas, sendo de manter as penas parcelares, no mesmo sentido se conclui quanto à pena única, resultante de cúmulo jurídico, de 7 (sete) anos e 6 (seis) meses de prisão que foi imposta pelo tribunal recorrido, a qual não merece qualquer reparo


Conclui-se que o recurso não merece provimento.


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III - DECISÃO


Nestes termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes do Supremo Tribunal de Justiça em negar provimento ao recurso interposto por AA e, em consequência, manter integralmente o acórdão recorrido.


Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 5 UC (cf. artigos 513.º do CPP e 8.º, n.º 9, do Regulamento das Custas Processuais, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 34/2008, de 26.02 e Tabela III anexa).


Supremo Tribunal de Justiça, 9 de Maio de 2024


(certifica-se que o acórdão foi processado em computador pelo relator e integralmente revisto e assinado eletronicamente pelos seus signatários, nos termos do artigo 94.º, n.ºs 2 e 3 do CPP)


Jorge Gonçalves (Relator)


Jorge Reis Bravo (1.º Adjunto)


Celso Manata (2.º adjunto)