Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
99B118
Nº Convencional: JSTJ00036777
Relator: NORONHA NASCIMENTO
Descritores: LIBERDADE DE IMPRENSA
LIBERDADE DE INFORMAÇÃO
DIREITO À IMAGEM
DIREITO AO BOM NOME
DIFAMAÇÃO COM PUBLICIDADE
COLISÃO DE DIREITOS
OBRIGAÇÃO DE INDEMNIZAR
NEXO DE CAUSALIDADE
PODERES DE COGNIÇÃO
Nº do Documento: SJ199904290001182
Data do Acordão: 04/29/1999
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL LISBOA
Processo no Tribunal Recurso: 9586/94
Data: 01/28/1998
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Área Temática: DIR CIV - DIR PERS / DIR OBG / DIR RESP CIV.
DIR CONST - DIR FUND. DIR PROC CIV.
Legislação Nacional: CONST76 ARTIGO 24 ARTIGO 25 ARTIGO 26.
CCIV66 ARTIGO 70 ARTIGO 484 ARTIGO 563.
Jurisprudência Nacional: ACÓRDÃO RL IN CJ ANOXXIII TIII PAG101.
Sumário : I - A causalidade "naturalística" é insindicável nos recursos de revista, já que tal corresponde à apreciação de matéria de facto.
Só a "causalidade jurídica" é sindicável pelo Supremo, já que, quanto a esta, se trata de valorar e enquadrar normativamente a cronologia naturalística dos factos, em ordem a apurar se tal cronologia permite a fixação da conexão normativa de causa / efeito entre o facto e o dano.
II - A nossa lei consagra a teoria da causalidade adequada, na sua formulação negativa, - a mais ampla - segundo a qual um facto é causa adequada de um dano desde que haja sido uma condição da sua eclosão, isto é que não seja de todo indiferente para a produção desse dano (artigo 563º do CCIV).
III - Tendo uma agência noticiosa difundido, através de diversos órgãos da imprensa escrita, factos graves de carácter objectivamente difamatório de um cidadão - imputando-lhe a qualidade de cabecilha de uma rede de droga - notícia depois profusamente divulgada por esses mesmos órgãos, há que considerar tal conduta como causa adequada dos danos sofridos pelo visado na sua dignidade e personalidade moral
IV - Tal difusão - que se provou ser falsa - representa um verdadeiro abuso do direito à informação e à liberdade de imprensa (artigo 37º da Constituição de 1976), tanto mais que é flagrantemente violador de direitos com idêntica dignidade constitucional e legal como o direito ao bom nome e reputação e à imagem pública e cívica (artigos 24º, 25º e 26º da Constituição de 1976 e 70º e 484º do CCIV).
Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:


O A. A, que usa o nome artístico de "...." propôs acção declarativa contra a "Agência de Informação B", "Jornal C" e outros pedindo a sua condenação solidária a pagar-lhe a quantia de 67820000 escudos a título de indemnização. Após a tramitação processual normal, veio a ser proferida decisão em 1ª instância que condenou solidariamente aqueles dois Réus e ainda os outros RR a pagar ao A. a quantia de 10400000 escudos e juros à taxa legal de 15% ( sendo 7400000 escudos relativos a danos patrimoniais e 3000000 escudos relativos a danos não patrimoniais) e ainda a pagar solidariamente ao A. a quantia a liquidar em execução de sentença referente a danos patrimoniais relativos à diminuição de espectáculos do A. e ao cancelamento de espectáculos contratados e marcados para o Rio de Janeiro e São Paulo.
Inconformados, apelaram apenas a "Agência B" e "Jornal C", tendo a apelação sido julgada improcedente.
De novo inconformadas recorrem de revista aquelas duas Rés formulando as seguintes conclusões:
I) Recurso da Ré "Jornal C":
1º) o Jornal não fez qualquer imputação ao A.,-" não há nexo de imputação do facto ao agente" - em termos de o mesmo ser inequívoco e isento de dúvidas;
2º) o Jornal limitou-se a reproduzir um telegrama da "Agência B" pressupondo rigor e idoneidade por parte desta no fornecimento do material noticioso, agindo assim sem culpa já que - perante as circunstâncias - não lhe era exigível outra conduta.
3º) a notícia divulgada no dia 17/5/88, rectificada no dia seguinte, não é de molde a ter produzido os efeitos danosos provados nos autos;
4º) o acórdão recorrido violou os arts. 483, 487 nº 2, 562, 563, 564 do C. Civil.
Pede assim, a revogação do acórdão com a sua consequente absolvição do pedido.
II) Recurso da Ré "Agência de Informação B":
1º) no caso presente estão em jogo e em confronto dois direitos fundamentais constitucionalmente garantidos (o direito de informação e de liberdade de imprensa e o direito ao bom nome, reputação e honra dos cidadãos) e que devem prevalecer reciprocamente ou devem ceder consoante as circunstâncias concretas em que são exercidos;
2º) no caso concreto dos autos, a Ré - recorrente não infringiu nenhum dever especial de diligência nem fez qualquer imputação ao A. que nem sequer constava dos ficheiros da agência "B";
3º) não há assim culpa da Ré "B" nem há qualquer nexo causal entre a sua conduta e os danos sofridos pelo Autor;
4º) as instâncias procederam ainda a uma compressão desproporcionada - quanto à Ré "B" - do direito constitucional de informação com violação dos arts 37 e 38 da Constituição da República.
Pede, assim, a revogação do acórdão recorrido com a sua consequente absolvição do pedido.
Contra-alegou o A., defendendo a bondade da decisão em crise.
1º) As questões colocadas por ambas as recorrentes nos seus recursos estão - todas elas - devidamente escalpelizadas e respondidas no bem elaborado acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa.
Daí que se remeta para ele quer a descrição da matéria de facto quer a decisão nos termos exactos dos arts. 713 nº 5 e 726 do C. Proc. Civil.
Sem embargo, acrescentaremos algo mais, não porque o acórdão recorrido o exija mas apenas em função de alguns pequenos pormenores constantes das alegações de recurso.
2º) Ambas as recorrentes fixam como pontos basilares das suas conclusões o terem agido sem culpa e o não haver nexo de causalidade entre as suas condutas e os danos sofridos pelo Autor; a isto a Ré "B" adita outra questão qual seja a compressão desproporcionada fixada pelas instâncias ao direito de informar, com violação dos comandos constitucionais.
Nada mais há a acrescentar quanto à culpa das Rés.
As imputações noticiosas de factos ao A. feitas pelas Rés e o enquadramento em que aquelas são feitas foram escalpelizadas pelas instâncias de modo rigorosamente correcto a ponto de dizer mais pecar por inútil. A culpa dos Réus - como juízo valorativo de censura acerca de um dado comportamento - é manifesta e inquestionável.
No tocante ao nexo causal, também nada de novo há que dizer.
Conforme jurisprudência deste Supremo Tribunal a causalidade naturalística é insindicável nos recursos de revista já que isso corresponde à apreciação da matéria de facto; a causalidade jurídica é sindicável por este Tribunal já que aqui, do que se trata é de valorar e enquadrar normativamente a cronologia naturalística dos factos de modo a saber se essa cronologia permite a fixação da conexão normativa de causa/efeito entre o facto e o dano.
A recorrente "C", nas suas alegações, reporta-se manifestamente à causalidade naturalística.
O que ela aí diz é tão simplesmente que as notícias que veiculou não tinham a virtualidade de produzir os danos que o A. sofreu; ou seja, entre os factos por si cometidos, em termos noticiosos, e as lesões sofridas pelo A. não havia nada que os pudesse relacionar em termos causais.
O que nos aparece, por conseguinte, na forma como a Ré C coloca a questão é tão só a causalidade naturalística: saber se aquele conjunto de factos provocou aquele dano.
Assim sendo, esta conclusão das alegações da Ré "C" é insindicável porque está fora dos poderes de cognição deste Tribunal.
Diferente nos parece ser a óptica através da qual a Ré "B" aborda o problema.
Sinteticamente o que esta Ré diz é o seguinte: não há causalidade entre a sua conduta de agência noticiosa e os danos do Autor porque as notícias "difamatórias" não foram difundidas por si mas sim pelos vários jornais e periódicos que tiveram acesso aos telegramas da Ré "B".
Vale isto por dizer que - no entender desta recorrente - o nexo causal da sua conduta (telegramas noticiosos) está excluído já que as notícias que emite são ou não são publicadas por iniciativa dos órgãos de informação que as recebem.
Aqui, estamos já no âmbito da causalidade jurídica: saber se a conduta da Ré foi causa adequada dos danos sofridos pelo A. nos termos exactos em que o artº 563 do C. Civil nos delimita o nexo causal.
A ser assim, a questão colocada é sindicável por este Supremo.
3º) A nossa lei civil consagra a causalidade adequada na sua formulação negativa ao fixar os princípios legais que devem reger a conexão causa / efeito (artº 563 do C. Civil).
Na verdade, a causalidade adequada admite duas variantes: a positiva, mais restrita, mais correlacionada com o conceito ético de culpa referente ao facto, e aplicada no direito criminal; e a negativa, mais ampla, onde a previsibilidade e a culpa se relacionam com o facto em si mas não com as suas consequências, e aplicada na esfera do direito civil.
A maior amplitude da variante negativa (expressa no citado art 563) permite, assim, um leque indemnizatório de danos que a sua congénere positiva jamais alcançaria. No fundo a variante negativa está próxima da teoria da equivalência das condições como, de certo modo, a previsão daquele art. 563 nos dá a entender.
Na variante positiva um facto é causa adequada de um dano quando é previsível que ele o provoque, atendendo às circunstâncias em que o agente actuou e conhecidas deste (circunstâncias onde se englobam as especificidades peculiares conhecidas do agente e que têm um peso decisivo no processo causal); na variante negativa um facto é causa adequada de um dano desde que seja uma condição da sua eclosão, sem a qual o dano não teria ocorrido (a menos que o facto seja totalmente indiferente para a eclosão do dano de acordo com as regras da experiência comum).
A simples formulação das duas modalidades da causalidade adequada mostra-nos a sem razão de recorrente "B".
Esta noticiou por telegrama algo que atingia a honestidade do Autor e que de seguida foi reproduzido por vastos órgãos da imprensa escrita.
Dizer que as lesões na esfera patrimonial do A. advieram da reprodução da informação pelos órgãos da imprensa escrita e não directamente do teor dos telegramas publicitados é irrelevante; os telegramas noticiosos da Ré Lusa foram a condição indispensável sem a qual as notícias dos jornais não tinham sido veiculadas e, portanto, foram a condição sem a qual as lesões do A. não teriam ocorrido.
Vale isto por dizer que a conduta da Ré "B" foi causa adequada dos danos sofridos pelo Autor nos termos precisos em que o artº 563º do C. C. define o nexo causal. Sem os telegramas da Ré que condicionam as posteriores notícias jornalísticas, estas nunca teriam visto a luz do dia; o que significa que a Ré - recorrente não tem qualquer razão neste particular.
4º) Resta-nos abordar aquilo que a Ré "B" denomina de compressão desproporcionada do direito de informar.
Tal como ela defende tal conceito estamos em crer que a Ré pretende, sim, um direito de informar ilimitado onde qualquer outro direito - constitucionalmente tutelado - terá que se vergar à omnipotência informativa.
Ainda aqui remetemos para o que - sobre a matéria - escreveu o acórdão recorrido. Aditaremos um pouco mais na senda do que está expresso no Ac. Rel. Lx. Col. Jurisp., ano XXIII, tomo III, págs. 101 e segs. em decisão também relatada pelo ora relator (com a rectificação apenas de que se designa por "Relatório Calcutt" o que aí se denomina de "Relatório Calentt" por mero erro tipográfico).
O caso dos autos põe frente a frente dois direitos frequentemente conflituantes e consagrados constitucionalmente: os direitos basilares de cidadania e o direito de informar.
O direito de informar é, hoje, aceite unanimemente como exigência basilar das sociedades democráticas de expressão pluralista; consagra-o o artº 37 da Constituição da República.
Os direitos de cidadania, que são a base da vida social, constituem o núcleo da própria personalidade (física e moral) do ser humano; daí que o direito à vida, à integridade física e moral, ao bom nome, à imagem, à liberdade, à reserva de intimidade tenham consagração constitucional (arts 24, 25, 26) e na lei civil (arts 70 e 484 do C. C.).
Porque tais direitos têm, todos, tutela constitucional nenhum deles sobreleva os outros , em princípio, devendo - no seu exercício concreto - cada um ceder o estritamente necessário e em termos proporcionais de molde a possibilitarem a concretização adequada dos restantes.
Necessidade, proporcionalidade e adequação são os princípios basilares para a conjugação prática do exercício em concreto desses direitos; será, pois, caso a caso que há que fixar as regras a observar e que permitirão decidir quais os direitos conflituantes a comprimir, quais os limites a observar e os interesses dominantes a proteger.
Face a este breve esquisso, e tomando como ponto de partida a factualidade provada, a única conclusão a extrair será a de que a recorrente "B" entende que o direito de informar é de tal modo supremo que pode atropelar sem mais o direito ao bom nome e à dignidade da personalidade moral do cidadão.
Transmitir noticiosamente para os jornais que alguém - facilmente identificado e identificável - é um dos cabecilhas da droga sem elementos sérios que sustentem a notícia, não é exercer o direito à informação e à liberdade de imprensa; é abusar deles.
Aqui não há compressão do direito exercido pela Ré; há uma sanção (civil é certo) porque - ao abusar nesse exercício - a Ré deixou de o exercer.
O abuso do direito (figura geral da teoria do direito) corresponde em regra à violentação de direitos de terceiro; e tal princípio tanto se aplica aos direitos consagrados como aos não consagrados constitucionalmente.
Improcedem por conseguinte, todas as conclusões das alegações dos recorrentes.

Termos em que se negam as revistas, confirmando-se na integra o bem elaborado acórdão recorrido.
Custas pelos recorrentes.
Lisboa, 29 de Abril de 1999.
Noronha Nascimento,
Ferreira Vidigal,
Moura Cruz.