Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
05P2320
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: SORETO DE BARROS
Descritores: TRÁFICO DE ESTUPEFACIENTES
TRÁFICO DE MENOR GRAVIDADE
BEM JURÍDICO PROTEGIDO
CRIME DE PERIGO
QUALIFICAÇÃO JURÍDICA
ILICITUDE CONSIDERAVELMENTE DIMINUÍDA
IMAGEM GLOBAL DO FACTO
Nº do Documento: SJ200605180023203
Data do Acordão: 05/18/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Decisão: REJEITADO O RECURSO.
Sumário : I - Os dois tipos de ilícito de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo art. 21.º e pelo art. 25.°, ambos do DL 15/93, de 22-01, protegem o mesmo bem jurídico e revestem a mesma natureza quanto ao tipo de lesão do bem que exigem: o bem jurídico primordialmente protegido nos apontados ilícitos é a integridade física dos cidadãos, em suma, a saúde pública, falando-se mesmo na protecção da própria humanidade, se encarada a sua destruição a longo prazo, ou ainda na protecção da liberdade das pessoas, numa alusão implícita à dependência que a droga gera.

II - Ambos os crimes constituem crimes de perigo abstracto ou presumido: à sua verificação e punição basta tão-só a ocorrência de qualquer uma das actividades previstas no apontado art. 21.º, sendo que o fundamento da respectiva punição decorre do seu perigo potencial e, por isso, tal punição é independente da verificação de qualquer perigo em concreto e, muito menos, de um determinado resultado ou de uma efectiva violação de um bem jurídico.

III - Avaliar se estamos perante uma situação de tráfico de menor gravidade do art. 25.º do referido diploma legal implica uma compreensão global do facto, devendo valorar-se complexivamente todas as concretas circunstâncias do caso - onde o aspecto quantitativo não deixa de ser de importância - com vista à obtenção de um resultado final, qual seja o de saber se, objectivamente, a ilicitude da acção é de relevo menor que a tipificada para os artigos anteriores.

IV - Resultando dos autos que:

- o arguido detinha duas porções de cocaína, com o peso total de 70,74 g, e dois "sabonetes"" de haxixe, com o peso total de 501,6 g, além de 2,499 g do mesmo estupefaciente;

- a quantia de € 280 era proveniente da venda de haxixe;

- a maior parte do haxixe era destinada à venda a terceiros (e a parte restante ao seu consumo);

- além das duas variedades de estupefaciente, este arguido tinha na sua residência dois papéis onde anotava as quantias respeitantes às vendas de haxixe que fazia, (as quais, nos 14 termos da fundamentação, permitem ver que ele vendeu centenas de contos de haxixe), dois telemóveis, ambos utilizados nos contactos necessários para a venda de haxixe;

- na altura dos factos não trabalhava, era sustentado pela família, e o produto da venda do haxixe era por si usado para consumir haxixe e para adquirir bens para si; a valoração global do facto permitirá encontrar, no caso, algum enfraquecimento da ilicitude, mas não, como exige a previsão do mencionado art. 25.º, uma ilicitude consideravelmente diminuída, devendo, pois, a qualificação jurídico-penal da conduta do arguido fazer-se por referência ao art. 21.º, n.º 1, do DL 15/93, de 22-01. *

* Sumário elaborado pelo Relator.

Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:


1. O Tribunal da Comarca do Seixal, por acórdão de 02.11.04, proferido no âmbito do processo n.º 531/03, decidiu :

- Condenar o arguido AA, por um crime de tráfico de produtos estupefacientes, previsto no artigo 21º n.º 1 do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, na pena de cinco anos de prisão;

- Condenar o arguido BB, por um crime de tráfico de produtos estupefacientes, previsto no artigo 21º n.º 1 do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, na pena de quatro anos e seis meses de prisão;

- Condenar o arguido CC, por um crime de tráfico de produtos estupefacientes, previsto no artigo 25º n.º 1 do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, na pena de um ano e seis meses de prisão, com execução suspensa por três anos.
(...)
1.1 Foi interposto recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa, que - para o que, agora, importa - decidiu, por acórdão de 07.04.05, manter inalterada a matéria de facto considerada assente pela 1.ª Instância, mas, subsumindo a conduta delituosa imputada ao arguido BB à previsão do art.º 25.º, do Dec. Lei n.º 15/93, fixou a respectiva pena em três anos e seis meses de prisão .

1.2 Recorre, agora, para o Supremo Tribunal de Justiça, terminando a motivação com as seguintes conclusões :

"1ª - Conforme explanado na 'questão introdutória', e por se esgrimirem duas teses diametralmente opostas, pugna o ora recorrente pela interpretação que entende ser admissível o presente recurso, interposto de decisão proferida em recurso pela Relação de Lisboa;

2ª - O tribunal colectivo do 2.° Juízo de Competência Criminal do Seixal, por acórdão proferido em 2 de Novembro de 2004, condenou Arguido/Recorrente, como autor de um crime previsto e punido no artigo 21°, n.° 1, do Decreto-Lei n.° 15/93, de 22 de Janeiro.

3ª - Inconformado, interpôs o arguido BB recurso para a Relação de Lisboa, que concedendo provimento parcial, procedeu à requalificação jurídico-criminal dos factos - um crime de tráfico de menor gravidade (art. 25°, n.º 1, al. a) do D.L. n.º 15/93 de 22 de Janeiro);

4ª - Correspondendo ao aludido crime, uma moldura penal abstracta de 1 a 5 anos de prisão, o Tribunal da Relação condenou, contudo, este jovem arguido/recorrente, numa pena de 3 anos e 6 meses de prisão efectiva;
5ª - A pena aplicada in casu revela-se de per si excessiva, no conjunto da 'imagem global do facto', a tanto não sendo exigido (exigível) a defesa do ordenamento jurídico.

6ª - O Venerando Tribunal da Relação, violou as normas constantes dos arts. 70, 71° e 72° do C.P,;

7ª - Por não se conformar com pena aplicada, recorre o arguido para este Alto Tribunal, pedindo a diminuição da sua pena de prisão e a suspensão da respectiva execução;

8ª - Compete ao S.T.J. a apreciação de entre as questões suscitadas, as que envolvam exclusivamente o reexame de matéria de direito, nestas se incluindo, sem dúvida, a concernente à dosimetria da pena aplicada em recurso;

9ª - A doutrina, aliás, mostra-se de acordo com a ideia de que é susceptível de revista a questão do limite ou da moldura da culpa, assim como a forma de actuação dos fins das penas no quadro da prevenção.
Bem como,

10ª - a determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exacto de pena, por se constatar que a quantificação operada, conforme referido infra, se revela de todo desproporcionada;

llª - Resulta do facto de não terem sido devidamente valoradas as circunstâncias atenuantes que militam a favor do recorrente, nomeadamente a sua juventude e o não possuir antecedentes criminais;

12ª - E tanto mais flagrante se torna a ausência de uma devida valoração, quanto confrontada a factualidade imputada ao aqui recorrente, com a que é assacada ao co-arguido AA e que mereceu, afinal, a aplicação de igual pena.
Quando,

13ª - conforme se demonstrou infra, a respectiva ilicitude do facto, não pode deixar de ter-se como bastante mais elevada, bem como a respectiva culpa.

14ª - No que àquele co-arguido respeita, resultou provado que, não era consumidor, que durante largos meses se dedicou à venda de produtos estupefacientes a terceiros, nomeadamente haxixe, ecstasy e cocaína, foi presenciada pela G.N.R. uma transacção de cerca de 300gr, com posterior apreensão e aquando da busca realizada na sua residência, detinha, para além de duas variedades de ecstasy, mais de 200gr de haxixe;

15ª - Constata-se, in casu, a verificação do invocado vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada (art. 410°, n.° 2, al. a) do C.P.P.);

16ª - A aplicação das penas visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade (art. 40°, n.° 1 do C.P.).

17ª - Impõe-se, finalmente, ponderar as condições pessoais do arguido que se encontram retratadas na matéria de facto considerada provada;

18ª - No que tange à dosimetria concreta da pena, nos termos do art. 71°, n.°s 1 e 2 do C.P., a determinação da sua medida deve respeitar os limites definidos na lei, e feita em função da culpa do agente e das exigências da prevenção, considerada a finalidade das penas indicada no art. 40° do Cód. Penal;
19ª - Tudo ponderado, dentro de uma moldura penal abstracta que oscila entre 1 e 5 anos de prisão, acha-se ajustada, salvo o devido e merecido respeito por opinião adversa, a fixação de uma pena concreta perto do limite mínimo, suspensa na respectiva execução;

Nos termos supra alinhados, e sempre com o douto suprimento de V. Exas., deve ser concedido provimento ao presente recurso, e nessa confluência, reduzida a pena de prisão aplicada ao recorrente BB, devendo o quantum da mesma ficar-se perto do limite mínimo, suspendendo-se a respectiva execução, eventualmente por um período algo dilatado no tempo, assim resultando amplamente cumprida a finalidade intrínseca da pena e a inerente reintegração e ressocialização do agente. "

1.3 O recurso foi admitido com subida imediata, nos próprios autos, com efeito suspensivo . (fls. 1061)

1.4 Respondeu o Ministério Público, que concluiu do seguinte modo :

- o acórdão recorrido cabe no âmbito do disposto no artigo 400º, n.º 1, al. e) do Código de Processo Penal, não sendo passível de recurso ;
- a admissão deste recurso por parte deste Tribunal não vincula o Tribunal Superior (artigo 414.º, n.º 3 do CPP) ;
- tratando-se, pois, de uma decisão irrecorrível, deverá o recurso ser rejeitado no Supremo Tribunal de Justiça, não se conhecendo por isso do seu objecto ;
- caso assim se não entenda, sempre será de negar provimento do recurso e confirmar o Acórdão sob recurso .
1.5 Na oportunidade conferida pelo art.º 416.º, do Código de Processo Penal, o Exmo. Procurador Geral Adjunto emitiu o seguinte Parecer :
­
" I Recurso próprio, com os efeitos fixados a fls. 1061, nada obstando ao seu conhecimento da competência deste Supremo Tribunal - art.º 432, al. b) do Cód. Proc. Penal.
Na verdade, contrariamente ao defendido pelo nosso Ex.mo Colega junto da Relação de Lisboa, acompanhamos o entendimento sufragado no Ac. deste STJ de 24 de Fevereiro de 2005, Processo n.° 63.05, 5ª, sobre a admissibilidade do recurso.
Como ali se decidiu em situação precisamente igual à presente, o objecto do processo com a prolação da decisão da Relação não ficou estabilizado no art.º 25 do Dec.-Lei n.° 15/93 uma vez que podia ainda ser discutida a qualificação dos factos pelo art°21 n°1 e a respectiva condenação, sendo a pena aplicável para efeitos de recurso a desse art. 21.º .
Certo é que o M° P° não recorreu para o STJ, mas tal facto só surge "a posteriori" e por uma razão que tem a ver com a relativa discricionariedade (técnica) que envolve sempre a decisão de recorrer ou não recorrer, e não a partir de um elemento legal, objectivo, que define, à partida, a possibilidade de recurso.
(...)
Esse elemento só pode ser, de acordo com a lei, a pena aplicável em abstracto ao crime que está (ou podia estar, no prazo de interposição do recurso) em discussão nos autos. E esse é, ... , o do art. 21 ° (fim de citação).

II Não obstante a admissibilidade do recurso, e porque se justifica, até, a alteração da qualificação para o primevo crime do art.º 21° do Dec. -Lei n.° 15/93, sem prejuízo da proibição reformatio in pejus do art.º 409 do Cód. Proc. Penal, como é jurisprudência fixada (Ac Pleno Secções Criminais de 7 de Junho de 1995, DR I-A Série, de 6 de Julho de 1995), cremos que o mesmo deverá ser rejeitado ante a sua manifesta improcedência .
Na verdade, e como resulta das conclusões (1057 a 1059), o recorrente pretende uma pena concreta perto do limite mínimo, suspensa na respectiva execução, considerando que a pena aplicada in casu revela-se de per si excessiva, no conjunto da "imagem global do facto ", e tanto não sendo exigido (exigível) à defesa do ordenamento jurídico, não tendo sido devidamente valoradas as circunstâncias atenuantes que militam a (seu) favor ... , nomeadamente a sua juventude e o não possuir antecedentes criminais, sustentando, por outro lado, haver insuficiência para a decisão da matéria de facto provada (?), porquanto o tribunal aplicou pena igual ao co-arguido AA quando a respectiva ilicitude do facto, não pode deixar de ter-se como bastante mais elevada, bem como a respectiva culpa.
Sem necessidade de grandes considerações, acompanhamos de perto a fundamentação da lª instância e voto de vencido na Relação.
A invocada desigualdade de tratamento na fixação da medida concreta das penas entre o recorrente e o arguido AA nada tem a ver com o aludido vício do art.º 410.2, al. a) do Cód. Proc. Penal (cujo reexame, de resto, escaparia aos poderes de cognição deste STJ, como tribunal de revista).
A argumentação parte da consideração de que a ilicitude do facto e culpa do arguido AA é superior, o que resta demonstrar.
Porém, e como se antecipou, afigura-se-nos que a ilicitude do facto não se mostra consideravelmente diminuída de forma a possibilitar a qualificação do tráfico como de menor gravidade.
Na verdade, como se diz no Ac. deste STJ de 18-11-2004 (321.04-5ª), Para efeitos de qualificação/punição do crime de tráfico como de "menor gravidade" para além das quantidades traficadas ou em vias do o serem, a lei - artigo 25. ° do DL n.º 15/93, de 22/1 - aponta claramente para outros índices de aferição da ilicitude, "nomeadamente os meios utilizados, a modalidade ou as circunstâncias da acção, a qualidade das plantas, substâncias ou preparações", e só no fim, a "quantidade". Assim, não obstante a quantidade, olhada isoladamente, poder não constituir óbice à incriminação privilegiada do tráfico, tal não invalida a circunstância de todos os demais elementos daquela avaliação complexiva, a poderem excluir.
No caso concreto, o tribunal recorrido entendeu que não se tendo logrado apurar outra(s) actividade(s) de tráfico desenvolvida, para além da mera detenção no que respeita à cocaína (socialmente mais erosiva), esse desconhecimento só favorece o arguido.
Reafirmando-se que a quantidade pode não ser o aspecto decisivo da valoração jurídica do caso, não deixa aqui de ser um elemento importante, de ponderação para o efeito, aliado ao tipo ou qualidade de estupefacientes detidos,
Tudo a avaliar, repete-se, no conjunto da "imagem global do facto ", para se ajuizar da eventual verificação da "hipótese atenuada de tráfico ".
As apuradas circunstâncias de tempo, modo e lugar que traçam os factos, na ausência, repete-se de maior concretização de actuação do arguido na disseminação das substâncias, a sua relativa inserção familiar e demais condições apuradas.
Concordando-se, em tese geral, com as considerações tecidas sobre a necessidade de se proceder à referida avaliação da "imagem global do facto", façamos a análise crítica da fundamentação do caso concreto, ou seja, a sua desconstrução.
Este arguido detinha duas porções de cocaína, com o peso total de 70,74 gramas, e dois "sabonetes" de haxixe, com o peso total de 501,6 gramas, além de 2,499 gramas do mesmo estupefaciente. A quantia de € 280 era proveniente da venda de haxixe. A maior parte do haxixe era destinada à venda a terceiros (e a parte restante ao seu consumo).
Além das duas variedades de estupefaciente, este arguido tinha na sua residência dois papéis onde o mesmo anotava as quantias respeitantes às vendas de haxixe que fazia, (as quais, nos termos da fundamentação, permitem ver que ele vendeu centenas de contos ... de haxixe), ... dois telemóveis, ambos utilizados .... nos contactos necessários para a venda de haxixe
Na altura dos factos não trabalhava, era sustentado pela família, e o produto da venda do haxixe era por si usado para consumir haxixe e para adquirir bens para si.
Tal vale por dizer que este arguido, que consumia haxixe, vendeu centenas de contos de haxixe, detinha o total de 504,099 gramas de haxixe, a maior parte para venda, e € 280 provenientes de vendas (de haxixe) já efectuadas, detendo, igualmente, 70,74 gramas de cocaína.

Embora se concorde com a conclusão de que não se tendo logrado apurar outra(s) actividade(s) de tráfico desenvolvida, para além da mera detenção no que respeita à cocaína ..., esse desconhecimento só pode favorecer o arguido, já entendemos por excessiva a inferência que daí se retira, no que respeita à subsunção.
Se é certo que a detenção é a actividade delituosa que compreende menor ilicitude, tal não significa que não seja um mais a aditar à de maior gravidade (venda e detenção para venda de haxixe), além de que a cocaína é dos estupefacientes mais danosos para a saúde.
E não é despiciendo referir que cerca de 70 gramas de cocaína não é uma quantidade insignificante, pressupondo uma confiança e envolvência de relevo com o dono do estupefaciente (no comércio de estupefacientes, nada se faz por solidariedade, desinteressada ou gratuitamente, sobretudo quando estão em causa valores de relevo - cerca de € 7.000).
Assim, e em suma, temos uma pessoa com 25 anos de idade, que não trabalhava, sendo sustentado pela família, consumidor de haxixe, que vendeu centenas de contos de haxixe e detinha o total de 504,099 gramas, a maior parte para vender e € 280 provenientes de vendas (de haxixe) já efectuadas, detendo, igualmente, 70,74 gramas de cocaína, com um valor comercial de cerca de €7.000, utilizando o lucro das vendas para adquirir haxixe para o seu consumo e adquirir bens.
Cremos, com todo o respeito pelo tribunal recorrido, que a imagem global do facto é fortemente indicadora do tipo do art.º 21 do Dec.-Lei n.° 15/93, compreendendo­-se, por inteiro, na correspondente moldura.
Porém, ainda que se admitisse que a moldura penal ajustada era a fixada pelo tribunal recorrido, numa relativa extensão deste tipo privilegiado que a própria jurisprudência deste Supremo Tribunal tem abraçado, certo é que a ilicitude do facto no tipo privilegiado é elevada, como é, igualmente, a culpa do arguido.
E na respectiva moldura de 1 a 5 anos de prisão, a pena de 3 anos e 6 meses é perfeitamente adequada à sua culpa e finalidades de prevenção (geral e especial), não merecendo qualquer censura.
Assim, improcede claramente a pretensão do recorrente, o mesmo é dizer o seu recurso é manifestamente improcedente.
Uma consideração final quanto à alegada desigualdade de tratamento relativamente ao co-arguido AA.
É certo que a lª instância considerou que se justificava uma diferença de penas entre estes arguidos (fixou ao arguido BB uma pena de 4 anos e 6 meses de prisão e de 5 anos ao arguido AA), enquanto que a Relação optou por penas idênticas.
Sendo a culpa individual, não se vislumbra, no caso concreto, que tenha sido violado o princípio da equidade. Embora o arguido AA se dedicasse à venda de estupefacientes (haxixe, ecstasy e cocaína) desde Outubro, em quantidades e a número de pessoas não apurados, e detivesse cerca de 0,5 Kg de haxixe (onde se inclui os 294,322 gramas vendidos ao arguido CC) e 15 pastilhas de ecstasy destinados a venda, o ora recorrente detinha idêntica quantidade de haxixe (também destinada a venda), vendera anteriormente centenas de contos deste produto, acrescendo a detenção de 70,74 gramas de cocaína. Não tem antecedentes criminais registados.
O AA não prestou declarações e o recorrente fez confissão da detenção dos objectos apreendidos e de algum modo, parcialmente, a finalidade da detenção do haxixe, começando por fazer crer que tinha mais de meio quilo de haxixe para consumir.
O AA ajudava o pai no estabelecimento de reparação de electrodomésticos, trabalhando actualmente de forma mais assídua, enquanto que o recorrente não trabalhava (nem trabalha) sendo sustentado pela família.
Como se vê, impõe-se a conclusão de não ocorrer qualquer circunstância, quer inerente à ilicitude, quer à culpa, que impusesse uma necessária diferença de penas.
Em suma, e pelo exposto, deverá o recurso ser rejeitado nos termos do art.º 420.1 do Cód. Proc. Penal, ante a sua manifesta improcedência, justificando-se, por outro lado, a alteração da subsunção jurídico-penal dos factos nos termos supra indicados. " (fim de transcrição)

1.6 Respondeu o recorrente (art.º 417.º, n.º 2., do C:P.P.), a argumentar que a pretendida 'requalificação jurídica não podia prevalecer, pois, sendo o recurso movido pela defesa, a proibição da "reformatio inpejus" impede a modificação da medida da pena em prejuízo do arguido (art. 409.º, n.º 1, do CPP), o que necessariamente ocorreria caso fosse modificada a qualificação jurídica no sentido indicado', além de 'não estarmos em presença de errado enquadramento ou subsunção jurídica '.
No mais, mantém a discordância quanto à 'dosimetria da pena aplicada' e quanto à 'desigualdade que a mesma representa, quando em comparação com a aplicada, também em sede de recurso, ao co-arguido AA . (fls. 1097 a 1112)

2. No exame preliminar, o relator admitiu que o recurso pudesse ser rejeitado, por manifesta improcedência .

2.1 Realizada a conferência, cumpre decidir, adiantando-se, desde já, as seguintes notas :

- o recurso é rejeitado sempre que for manifesta a sua improcedência ou se verifique causa que devia ter determinado a sua não admissão nos termos do artigo 414.º, n.º2 . (art.º 420.º, n.º 1., do C.P.P.) ;
- o recurso é manifestamente improcedente quando, através de uma avaliação sumária dos seus fundamentos, se pode concluir, sem margem para dúvidas, que ele está votado ao insucesso ; (Ac. STJ de 01.03.00, proc. 12/00)
- em caso de rejeição do recurso, o acórdão limita-se a identificar o tribunal recorrido, o processo e os seus sujeitos processuais e a especificar sumariamente os fundamentos da decisão ; (n.º 3., do citado art.º 420.º)
- o recurso é julgado em conferência quando deva ser rejeitado . (n.º 4., al. a), do art.º 419.º, do C.P.P.)

2.2 O Ministério Público junto do Tribunal da Relação suscitou a questão de o recurso não ser admissível, uma vez que, aí, o arguido havia sido condenado pelo crime previsto pelo art.º 25.º, a), do Dec. Lei n.º 15/93, punível com pena de prisão de um a cinco anos, sendo que, nos termos da al. e), do n.º 1., do art.º 4000.º, do C.P.P., 'não é admissível recurso (...) de acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações, em processo por crime a que seja aplicável pena de multa ou pena de prisão não superior a cinco anos (...)' .

Como já se referiu, o Exmo. Procurador Geral Adjunto não acompanhou esta posição, tendo indicado jurisprudência deste Supremo Tribunal de Justiça onde se decidiu, em caso idêntico, pela admissibilidade, não havendo, agora, razões para alterar tal entendimento (1) .
2.3 Posto isto, é necessário ter presente a matéria que as instâncias deram como assente :

"Desde Outubro de 2003 que o arguido AA se vinha dedicando à venda de produtos estupefacientes a terceiros, nomeadamente haxixe, ecstasy e cocaína;
Fazia-o em diversos locais mas principalmente junto do " ...", nos Foros da Amora;
No dia 1 de Outubro de 2003, pelas 22h23m, esse arguido procedeu à venda de produto estupefaciente a outros indivíduos, o mesmo sucedendo no dia 13 de Novembro de 2003, aqui apenas com uma venda a um indivíduo;
No dia 28 de Novembro de 2003, junto do Socionimo-A", no Barreiro, o arguido AA vendeu ao arguido CC duas porções de haxixe, designadas por um "sabonete" mais "um quarto", com o peso total de 294,322g;
Pelo menos parte desse produto era para o consumo do arguido CC;
O arguido CC tinha nessa ocasião em seu poder a quantia de 475€ ;
No dia 11 de Março de 2004, pelas 16h15m, na sua residência, sita na Endereço-A, Foros da Amora, o arguido AA tinha em seu poder, dentro do roupeiro do seu quarto, no bolso de um blusão, 7 pastilhas de ecstasy rosas, 8 pastilhas de ecstasy azuis, 15,021 g de haxixe, cortado em porções designadas por "línguas" e uma faca de mato utilizada para cortar o haxixe; dentro da mesa de cabeceira, 200,596 g de haxixe, numa porção designada por "sabonete" e uma faca de cozinha queimada na ponta, utilizada para cortar o haxixe; e ainda um telemóvel utilizado por si para os contactos necessários à venda dos produtos estupefacientes e 7,769 g de haxixe;
Todo o haxixe e as pastilhas de ecstasy eram destinadas à venda a terceiros;
No dia 11 de Março de 2004, cerca das 17h50m, o arguido BB tinha, na sua residência, na Rua das Beiras, n...., no quarto, num gavetão debaixo da cama, dois "sabonetes" de haxixe, com o peso total de 501,600 g e duas porções de cocaína, com os pesos de 62,552 g e 10,188 g, e dois papéis onde o mesmo anotava as quantias respeitantes às vendas de haxixe que fazia; na mesa de cabeceira, dois telemóveis, um Philips e um Siemens, ambos utilizados pelo arguido nos contactos necessários para a venda de haxixe, 270€ e uma faca com a lâmina queimada, utilizada para cortar o haxixe e ainda na sua posse outra porção de haxixe, com o peso de 2,499 g e a quantia de 10€;
A maior parte do haxixe era destinado à venda a terceiros e a parte restante era destinada ao consumo do arguido, sendo que as quantias em dinheiro eram provenientes da venda de haxixe;
Todos os arguidos conheciam as características dos produtos estupefacientes que detiveram nas circunstâncias acima referidas, sabendo que a sua posse injustificada ou venda são proibidos e punidos por lei;
O arguido AA, à data dos factos referidos, ajudava o pai no seu estabelecimento de reparação de electrodomésticos, sem compromisso e horário certo, e usava o produto da venda de estupefacientes para adquirir bens para si;
Actualmente trabalha de forma mais assídua no estabelecimento do pai, vive com os pais, juntamente com a sua filha de 7 anos de idade, e é uma pessoa com problemas graves de saúde;
É considerado pelos vizinhos pessoa bem reputada, pacífica e respeitadora, sendo por eles estimado;
Não tem antecedentes criminais registados;
O arguido BB iniciou-se no consumo de drogas aos 13 ou 14 anos de idade, tendo acabado por se viciar no consumo de heroína durante anos;
Há cerca de 4 anos fez um tratamento, mantém-se abstinente do consumo de heroína desde então, mas aumentou consideravelmente o consumo diário de haxixe;
Na altura dos factos não trabalhava, era sustentado pela família, e o produto da venda do haxixe era por si usado para consumir haxixe e para adquirir bens para si;
Vive com a mãe e com o padrasto e é também muito apoiado por uma tia materna;
Tem o 6º Ano de Escolaridade;
Não tem antecedentes criminais registados;
O arguido CC consumia haxixe;
Trabalhava e trabalha numa empresa de construção civil, auferindo o vencimento mensal de 750€;
Vive com a mulher numa casa arrendada por 40€ mensais e têm a seu cargo uma filha de ambos, de 18 meses de idade, e uma filha da mulher, com 14 anos, encontrando-se o casal à espera de outro filho para o presente mês;
Tem o 4º Ano de Escolaridade;
Foi condenado no processo n.º 430/02, do 1º Juízo Criminal de Setúbal, por decisão de 9 de Junho de 2003, por um crime de condução sem carta, cometido em 12 de Janeiro de 2002, na pena de 90 dias de multa;

Factos não provados:
Que a quantia de 475€ apreendida ao arguido CC fosse proveniente do tráfico de produtos estupefacientes;
Que este arguido se dedicasse ao tráfico de produtos estupefacientes;
Que todo o haxixe apreendido ao arguido BB fosse por ele destinado à venda;
Que a cocaína apreendida ao arguido BB fosse por ele destinada à venda ou ao consumo;
Que os arguidos AA e BB vivessem exclusivamente do produto da venda de drogas, entendida esta expressão como excluindo para o primeiro a ajuda dos pais e os trabalhos esporádicos que efectuava e para o segundo o sustento pelos familiares;
Que o arguido AA na altura da detenção trabalhasse em permanência para o pai, mediante o vencimento mensal de 600€, quantia com a qual fizesse face a todas as suas despesas;
Que doenças sofra este arguido;

Matéria não factual da acusação:
A acusação contem inúmeras afirmações meramente descritivas da provas e sem qualquer conteúdo factual. É o que acontece nos parágrafos 2º e 5º a 9º. Resulta tal de manifesta confusão entre o que é a análise da prova indiciária e a indicação dos factos a submeter a julgamento. O que o Ministério Público deve provar é se o crime foi cometido e não que diligências é que fez para se convencer no inquérito dessa probabilidade indiciária.
Porque não têm conteúdo factual nem interesse para a decisão, não são referidos aqui.
Por outro lado, há na acusação afirmações com conteúdo factual e interesse para o objecto do processo, mas feitas em termos dubitativos ou hipotéticos. É o que acontece nos parágrafos 1º (em que se adivinha que se pretende imputar ao arguido AA a actividade de tráfico), 3º e 4º (em que se consegue perceber que se quer imputar actos de venda concretos).
Estes pontos da acusação não são aqui também referidos, dado que foram objecto de alteração não substancial, comunicada aos intervenientes processuais . "

2.4 Perante esta factualidade, a 1.ª Instância subsumiu-a à previsão do art.º 21.º, do Dec. Lei n.º 15/93, mas o Tribunal da Relação de Lisboa, julgando procedente o recurso do arguido, procedeu ao respectivo enquadramento jurídico-penal na previsão do art.º 25.º, do mesmo diploma .
O Tribunal da Relação enunciou o seguinte juízo argumentativo :

" - Qualificação jurídica dos factos como crime do art. 25° do D.L. 15/93 e medida da pena:
Valem, também aqui, as considerações desenvolvidas supra, a propósito do recurso do co-arguido.
Não se tendo logrado apurar outra(s) actividade(s) de tráfico desenvolvida, para além da mera detenção no que respeita à cocaína (socialmente mais erosiva), esse desconhecimento só pode favorecer o arguido.
Reafirmando-se que a quantidade pode não ser o aspecto decisivo da valoração jurídica do caso, não deixa aqui de ser um elemento importante, de ponderação para o efeito, aliado ainda ao tipo ou qualidade de estupefacientes detidos.
Tudo a avaliar, repete-se, no conjunto da "imagem global do facto", para se ajuizar da eventual verificação da "hipótese atenuada de tráfico".
As apuradas circunstâncias de tempo, modo e lugar que traçam os factos, na ausência, repete-se de maior concretização de actuação do arguido na disseminação das substâncias, a sua relativa inserção familiar e demais condições pessoais apuradas, permitem desenhar uma imagem global do facto susceptível de algum enfraquecimento da ilicitude e concluir por uma hipótese atenuada de tráfico.
Alterada a qualificação jurídica dos factos, impõe-se reapreciar a pena, dentro da nova moldura de um a cinco anos de prisão.
Assim, e situando-nos já dentro do novo tipo "atenuado", impõe-se agora concluir pelo elevado grau da ilicitude do facto e da culpa do agente. Destaca-se o tipo de estupefaciente apreendido (também cocaína e já com alguma expressão no que se refere também à quantidade) .
Tendo novamente em conta todas as circunstâncias concretas (do caso) referidas supra (e avaliados ainda todos os factores relativos à personalidade do arguido), mas valorados agora no novo tipo legal, ponderando a intensidade da culpa do arguido, as exigências de prevenção bem como as exigências de prevenção especial, acha-se adequada, também aqui, a pena de três anos e seis meses de prisão) ."

2.4.1 Se, nos casos dos artigos 21.º e 22.º, a ilicitude do facto se mostrar consideravelmente diminuída, tendo em conta nomeadamente os meios utilizados, a modalidade ou as circunstâncias da acção, a qualidade ou a quantidade das plantas, substâncias ou preparações, a pena é de prisão de um a cinco anos (...) . (art.º 25.º, do Dec. Lei n.º 25.º, do Dec. Lei n.º 15/93) .

Assim, os dois tipos de ilícito de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo art.º 21.º e pelo art.º 25.º, ambos do Dec. Lei n.º 15/93, de 22.01, protegem o mesmo bem jurídico e revestem a mesma natureza quanto ao tipo de lesão do bem que exigem : o bem jurídico primordialmente protegido nos apontados ilícitos é a integridade física dos cidadãos, em suma, a saúde pública, falando-se mesmo na protecção da própria humanidade, se encarada a sua destruição a longo prazo, ou ainda na protecção da liberdade das pessoas, numa alusão implícita à dependência que a droga gera .
Ambos os crimes constituem crimes de perigo abstracto ou presumido : à sua verificação e punição basta tão-só a ocorrência de qualquer uma das actividades previstas no apontado art.º 21.º, sendo que o fundamento da respectiva punição decorre do seu perigo potencial e, por isso, tal punição é independente da verificação de qualquer perigo em concreto e, muito menos, de um determinado resultado ou de uma efectiva violação de um bem jurídico .
Avaliar se estamos perante uma situação de tráfico de menor gravidade do art.º 25.º do referido diploma legal implica uma compreensão global do facto, devendo valorar-se complexivamente todas as concretas circunstâncias do caso - onde o aspecto quantitativo não deixa de ser de importância - com vista à obtenção de um resultado final, qual seja o de saber se, objectivamente, a ilicitude da acção é de relevo menor que a tipificada para os artigos anteriores .

Ou, melhor dito : 'a essência da distinção entre os tipo fundamental e privilegiado reverte ao nível exclusivo da ilicitude do facto (consideravelmente diminuído), mediada por um conjunto de circunstâncias objectivas que revelem em concreto, e que devam ser conjuntamente valoradas por referência à matriz subjacente à enumeração exemplificativa contida na lei ' . (Ac. STJ de 23.02.05, proc 130/05)

E, daqui, pode retirar-se, com reflexos directos para a avaliação da decisão, que 'a sua (do arguido) relativa inserção familiar e demais condições pessoais apuradas' são circunstâncias que, relevando para outros efeitos, não podem intervir na definição do grau de ilicitude do facto (2) , e que, para integração da previsão do art.º 25.º, a lei exige que 'a ilicitude do facto se mostre consideravelmente diminuída (...)', não sendo suficiente que "as apuradas circunstâncias (...) permitam desenhar uma imagem global do facto susceptível de algum enfraquecimento da ilicitude e concluir por uma hipótese atenuada de tráfico" .
2.4.2 O Ministério Público, junto deste Supremo Tribunal, defendeu a 'alteração da qualificação para o primevo crime do art.º 21.º do Dec. Lei n.º 15/93, sem prejuízo da proibição da reformatio in pejus' . E, como adiantou, tal operação é possível, nos termos do acórdão n.º 4/95, de 07.06, que fixou a seguinte jurisprudência : 'o tribunal superior pode, em recurso, alterar oficiosamente a qualificação jurídico-penal efectuada pelo tribunal recorrido, mesmo para crime mais grave, sem prejuízo, porém, da proibição da reformatio in pejus . (DR, 1.ª Série, de 06.07.95)
2.4.3 O quadro factual a ter em consideração como suporte da qualificação jurídico-penal é, na síntese operada pelo Ministério Público, a seguinte :

(...) "Este arguido detinha duas porções de cocaína, com o peso total de 70,74 gramas, e dois "sabonetes" de haxixe, com o peso total de 501,6 gramas, além de 2,499 gramas do mesmo estupefaciente. A quantia de € 280 era proveniente da venda de haxixe. A maior parte do haxixe era destinada à venda a terceiros (e a parte restante ao seu consumo).
Além das duas variedades de estupefaciente, este arguido tinha na sua residência dois papéis onde o mesmo anotava as quantias respeitantes às vendas de haxixe que fazia, (as quais, nos termos da fundamentação, permitem ver que ele vendeu centenas de contos ... de haxixe), ... dois telemóveis, ambos utilizados .... nos contactos necessários para a venda de haxixe
Na altura dos factos não trabalhava, era sustentado pela família, e o produto da venda do haxixe era por si usado para consumir haxixe e para adquirir bens para si.

Tal vale por dizer que este arguido, que consumia haxixe, vendeu centenas de contos de haxixe, detinha o total de 504,099 gramas de haxixe, a maior parte para venda, e € 280 provenientes de vendas (de haxixe) já efectuadas, detendo, igualmente, 70,74 gramas de cocaína."

Ora, 'a valoração global do facto' permitirá encontrar, no caso, "algum enfraquecimento da ilicitude" (como se concluiu na decisão sob recurso), mas não, como exige a previsão do citado art.º 25.º, uma 'ilicitude consideravelmente diminuída' .
Na verdade, se não merece censura a afirmação de que 'não se tendo logrado apurar outra(s) actividades(s) de tráfico desenvolvida, para além da mera detenção no que respeita à cocaína (3) (socialmente mais erosiva), esse desconhecimento só pode favorecer o arguido', tal 'favorecimento' não pode iludir a já expressiva quantidade de cocaína que o arguido detinha, subdividida em duas porções (62,552g e 10,188g), a acrescer à ilicitude emergente da detenção do haxixe (dois sabonetes, com o peso total de 501,600g), destinado, na maior parte, a venda e, ainda, "os dois papéis onde o mesmo anotava as quantias respeitantes à venda de haxixe que fazia" [de cuja leitura o tribunal, na fundamentação, extraiu a conclusão de que o arguido vendeu centenas de contos de haxixe], indiciando, portanto, disseminação de estupefaciente, a troco de dinheiro (sendo que as importâncias apreendidas eram, elas próprias, provenientes da venda de haxixe, que o arguido usava para adquirir haxixe para seu consumo e para adquirir bens para si) . E, no tocante aos 'meios utilizados', sobressai a utilização dos dois telemóveis apreendidos .

Conclui-se, em suma, que a qualificação jurídico-penal da conduta do arguido, ora recorrente, se há-de fazer por referência ao art.º 21.º, do Dec. Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro. E igual conclusão é válida para qualificar a conduta do arguido não recorrente, dada a equivalência de situações, que, na decisão sob recurso, conduziu, aliás, à fixação de idêntica sanção penal .

2.4.4 A moldura da pena estabelecida pelo art.º 21.º, do Dec. Lei n.º 15/93, é a prisão de 4 a 12 anos .
E a determinação da medida da pena é feita dentro dos limites definidos na lei, em função da culpa do agente e das exigências de prevenção. (art.º 71.º, n.º 1., do C.P.)

Mas, como ficou dito, o arguido foi condenado em três anos e seis meses de prisão .
Neste quadro legal, aparece como imediamente inviável a pretensão do recorrente de ver fixada a pena perto do limite mínimo da moldura prevista no art.º 25.º, do citado diploma (um ano de prisão), suspensa na sua execução .

Por outro lado, 'interposto recurso de decisão final somente pelo arguido, pelo Ministério Público, no exclusivo interesse daquele, ou pelo arguido e pelo Ministério Público no exclusivo interesse do primeiro, o tribunal superior não pode modificar, na sua espécie ou medida, as sanções constantes da decisão recorrida, em prejuízo de qualquer dos arguidos, ainda que não recorrentes .' (art.º 409.º, do C.P.P.)

Por outras palavras: não obstante a alteração da qualificação jurídico-penal da conduta, e da correspondente moldura legal, a pena imposta ao arguido/recorrente encontra-se estabilizada nos referidos três anos e seis meses, em consequência da disposição citada .

3. Na conclusão 15.ª, o recorrente afirma que 'se constata, in casu, a verificação do invocado vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada (art.º 410.º, n.º 2, al. a) do C.P.P.)' .

3.1 No recurso para a Relação, tinha alegado a existência de 'erro notório na apreciação da prova, insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, violação do princípio in budio pro reo e deficiente fundamentação da decisão .'

A decisão da Relação tratou de cada um dos vícios invocados (fls. 1021 a 1024) e, concretamente quanto ao da al. a), do art.º 410.º, enunciou o que deve compreender-se por tal vício e, relembrando a pertinente matéria apurada e a respectiva fundamentação, concluiu que 'é por demais evidente que todos os factos (uns provados, outros não provados) necessários à boa decisão foram devidamente investigados pelo tribunal, sendo os demonstrados, objectiva e subjectivamente típicos, suficientes para uma conclusão de direito .'

No presente recurso, em vez de questionar o (assim) decidido (4) , o recorrente vem alegar que 'resultou hipervalorizado o valor atribuído aos papéis manuscritos apreendidos no quarto do aqui recorrente', e que 'da análise dos referidos papéis, e de per si, não resulta uma certeza sem aquela margem de dúvida razoável, que sempre deveria funcionar em benefício do arguido, de que os mesmos não tivessem a finalidade apontada por este (...)' ; que 'nenhuma prova foi feita quanto à data da elaboração dos mesmos' e que, 'embora não se tivesse apurado, nem quando, nem como, nem em que data o havia feito, devendo esse 'desconhecimento' como tal, ter favorecido o arguido, tal como ocorreu com o arguido AA, não obstante a prova sólida, definida e bastante que contra si foi proferida .' E passa a abordar as alegadas 'discrepâncias' com o que ficou demonstrado em relação ao arguido AA, em relação ao qual se verificaria 'maior gravidade e ilicitude', enquadrável, a seu ver, no 'tráfico comum', a justificar , 'por uma questão de equidade e de justiça material, penas diferentes .'

Ora, como lembra o Senhor Procurador Geral Adjunto, 'a invocada desigualdade de tratamento na fixação da medida concreta das penas entre o recorrente e o arguido AA nada tem a ver com o aludido vício do art.º 410.2, al. a) do Cód. Proc. Penal (cujo reexame, de resto, escaparia aos poderes de cognição deste STJ, como tribunal de revista)'. (5)

Na verdade,
'1- No recurso para o Supremo Tribunal de Justiça de acórdão da relação tirado em recurso, não pode o recorrente invocar vícios da sentença da 1.ª instância previstos nas alíneas do art.º 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, pois o recurso visa exclusivamente o reexame da matéria de direito .
2- Essa é, por maioria de razão, a posição a assumir quando já perante a Relação a questão dos vícios foi suscitada pelo recorrente, pois então já foi assegurado um efectivo segundo grau de jurisdição em matéria de facto e encontra-se definitivamente encerrada a questão de facto .' (Ac. STJ de 25.03.04, proc. 725/04)

Não se conhecerá, pois, deste ponto do recurso .

4. Nos termos antes expostos, acorda-se em :
- subsumir a conduta do recorrente na previsão do art.º 21.º, n.º 1., do Dec. Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro (alteração que se estende à subsunção da conduta delituosa do arguido não recorrente), mantendo, no mais, o decidido ;
- rejeitar, por manifesta improcedência, o recurso do arguido BB .

Custas pelo recorrente, com cinco UCs. de taxa de justiça .
O recorrente vai ainda condenado ao pagamento de quatro UCs., nos termos do n.º 4., do art.º 420.º, do Código de Processo Penal .

Lisboa, 18 de Maio de 2006

Soreto de Barros (relator)

Armindo Monteiro

Sousa Fonte

----------------------------------------
(1) I- Tendo o recorrente começado por ser acusado pelo crime de tráfico de estupefacientes, previsto pelo art.º 21.º do DL 15/93, e essa acusação sido julgada procedente em 1.ª instância mas convolada em 2.ª instância para o crime de tráfico de menor gravidade, previsto no art.º 25.º do mesmo diploma legal, é susceptível de recurso para este Supremo Tribunal esse acórdão da Relação, mesmo que só interposto pelo arguido .
II- O princípio da igualdade, nomeadamente o da igualdade de armas, justifica esse entendimento, não sendo concebível que o arguido tivesse que ficar dependente do posição tomada pelo Ministério Público para recorrer ou deixar de recorrer .
III- O elemento legal, objectivo, que define, à partida, a possibilidade de recurso só pode ser a pena aplicável em abstracto ao crime que está (ou podia estar, no prazo de interposição do recurso) em discussão nos autos . (Ac. STJ de 24.02.05, proc. n.º 63/05)
(2) As circunstâncias de ter trabalhado de forma regular, ter uma companheira e um filho, ser portador de HIV e de beneficiar de apoio familiar, respeitam às condições pessoais do agente (al. d), do n.º 2., do art.º 71.º, do C. Penal) são completamente alheias à ilicitude, de cuja diminuição considerável deriva o privilegiamento do tráfico de estupefacientes . (Ac. STJ de 25.11.04, proc. n.º 3970/04)
(3) 'No que respeita à cocaína, disse que lhe tinha sido entregue por uma pessoa, que não quis identificar, para guardar .' (extraído da fundamentação da decisão de facto)
(4) 'A insuficiência a que alude a al. a) do nº 2 do art.º 410º do CPP decorre da circunstância de o tribunal não ter dado como provados ou não provados todos aqueles factos que, sendo relevantes para a decisão da causa, tenham sido alegados ou resultado da discussão .
Ocorre este vício quando, da factualidade vertida na decisão em recurso, se colhe que faltam elementos que, podendo e devendo ser indagados, são necessários para se poder formular um juízo seguro de condenação ou de absolvição .
Daí que aquela alínea se refira à insuficiência da matéria de facto provada para a decisão de direito e não à insuficiência da prova para a matéria de facto provada, questão do âmbito do princípio da livre apreciação da prova (art.º 127.º), que é insindicável em reexame da matéria de direito .'
(5) 1. A divergência do decidido pelas instâncias sobre a matéria de facto nada tem a ver com o vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada previsto no artº 410º, nº 2, alínea a) do CPP, como, aliás, o evidencia o próprio recorrente quando não aponta a falta de um único facto indispensável à qualificação jurídica ou à apreciação e julgamento das concretas questões de direito que suscitou.
2. Constitui jurisprudência firme do Supremo Tribunal de Justiça a de que a invocação dos vícios do citado preceito não pode constituir objecto de recurso para si interposto, sem prejuízo de, como tribunal de revista, deles poder/dever conhecer por sua própria iniciativa, para definir correctamente o direito do caso e impedir que a solução de direito assente em premissas deficientes ou mesmo erradas. (Ac. STJ de 10.03.04, proc. 135/04)