Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
07B078
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: JOÃO BERNARDO
Descritores: REMISSÃO PARA DOCUMENTOS
REGISTO
PRESUNÇÃO
Nº do Documento: SJ200702220000782
Data do Acordão: 02/22/2007
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: NEGADA A REVISTA.
Sumário : 1 . Verificando-se já na primeira instância o suporte factual em que uma parte se estriba para arguir uma nulidade referente à matéria factual fixada na sentença, não pode ela arguí-la perante o Supremo Tribunal de Justiça se omitiu essa arguição para a Relação.
2 . A remissão feita na enumeração factual para o conteúdo de certo documento não traduz insuficiência factual, desde que elaborada de modo a entender-se o porquê da referência ao documento em tal enumeração.
3 . O Supremo Tribunal de Justiça tem de acatar os factos integrantes de posse sobre determinada área de terreno que lhe chegam da Relação e, se conducentes à usucapião, não relevar contra eles o registo - feito pela parte que os não praticou - de aquisição de propriedade que, segundo sustenta, englobaria tal área. *

* Sumário elaborado pelo Relator.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:


I –
"AA", BB, CC e DD intentaram a presente acção declarativa ordinária contra:
A Casa Pia de Lisboa.

Alegaram, em síntese, que:
Os primeiros são usufrutuários e os segundos proprietários de um prédio misto sito no lugar de ..., em Setúbal, cujos demais elementos de identificação indicam.
Esse prédio inclui uma faixa de terreno em toda a extensão nascente-poente, compreendida desde a Estrada de .....
A ré está a realizar obras no prédio que fica a nascente do prédio dos autores confinando com este e estendeu-as à dita faixa de terreno, tendo mesmo danificado a vedação ali existente.

Pediram, em conformidade, que esta seja condenada a reconhecer-lhes os seus ditos direitos sobre o referido prédio, a abster-se de praticar qualquer acto que perturbe ou diminua a posse, uso e fruição do mesmo e a repô-lo no estado em que se encontrava antes da sua intervenção incluindo a vedação.

A ré contestou, mas a contestação foi mandada desentranhar por ter sido apresentada fora de prazo.

O Estado deduziu incidentes de intervenção principal espontânea e de oposição que foram admitidos (o segundo em obediência a acórdão da Relação proferido em recurso de agravo).
Sustentou, em síntese, que o prédio que os autores referem como propriedade da Casa Pia, pertence antes a ele, Estado, e inclui a faixa de terreno de que os AA se arrogam.

II –
A acção prosseguiu a sua tramitação e foi proferida, após audiência de julgamento, sentença, em que, sempre quanto ao que agora importa, se de decidiu do seguinte modo:
Condenou-se a ré e o interveniente Estado Português a reconhecerem os primeiros autores como usufrutuários e a 2.ª e 3.º autores como proprietários do prédio misto, denominado “..” ou “....” situado no sítio de ..., da freguesia de Nossa Senhora da Anunciada, concelho de Setúbal, o qual se encontra descrito na 1.ª Conservatória do Registo Predial de Setúbal, sob o n.º 00053/150485 – Nossa Senhora da Anunciada, anteriormente descrição predial n.º 8.051, a folhas 78 do Livro B – 31 e inscrito a favor dos autores, pelas inscrições F-1 e G-1 e que tem como confrontação a Sul, em toda a extensão nascente-poente, a Estrada do ... ou Estrada de .....
Mais se condenou a R. Casa Pia de Lisboa a repor o marco que existia junto à Estrada do ..., no ângulo formado pela extrema nascente com a extrema sul da propriedade dos autores.
No mais absolveu-se a ré e a interveniente do pedido.

III –
Apelou o Estado Português, mas sem êxito, porquanto o Tribunal da Relação de Évora confirmou a sentença recorrida.
IV –
Ainda inconformado, pede revista.

Conclui as respectivas alegações do seguinte modo:

1º - É inegavelmente cómoda a forma de organizar a especificação, com referência a documentos juntos aos autos, em que apenas se diz que são dados como reproduzidos os documentos juntos e que se mostram concretizados, mediante a indicação das "fls." em que se encontram inseridos.
Tal forma de organização tem a vantagem de cobrir toda a matéria de facto que conste dos documentos referidos e apenas a desvantagem de não concretizar os factos articulados e que, pelos documentos, se mostrem provados.
Isso não impede que, na decisão da causa, os factos por eles plenamente provados, sejam devidamente considerados e apreciados.
2° - Cumpre à Relação seriar por forma detalhada e exaustiva as ocorrências materiais provadas, sem o que o Supremo ficará impossibilitado de definir o direito aplicável.
3° - É deficiente e imprópria a forma usada na fixação dos factos recorrendo a meras referências a documentos que não são factos mas sim meios de prova que as partes utilizam para a prova dos mesmos.
4° - Tendo sido defeituosa a forma de selecção da matéria de facto, deve o processo baixar à Relação para explicitação e ampliação daquela matéria.
5º - O douto Acórdão recorrido, ao não ter concretizado e individualizado os factos que, pelos documentos, se mostrem provados, é nulo, nos termos dos art.ºs 716° nº l, 668°, nº 1 al b) e 3 do Código de Processo Civil, pelo que
6° - Deve ser anulado o acórdão recorrido e determinar-se a baixa do processo ao Tribunal da Relação de Évora para que o mesmo Tribunal proceda à ampliação da matéria de facto, de modo a que as ocorrências materiais constantes dos documentos de fls. 78 a 83 sejam levados aos factos provados.
Ampliação da matéria de facto
7º - O eventual erro na apreciação das provas e na fixação da matéria de facto pelo tribunal recorrido só poderá ser objecto do recurso de revista quando haja ofensa de uma disposição expressa da lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova (art.ºs 729°, n.º 2 e 722°, n.º 2 do CPC).
8° - É jurisprudência pacífica que o S.T.J. não pode censurar o não uso pela Relação da faculdade de alterar a decisão de facto ao abrigo dos vários números do art. 7120 do Código de Processo Civil.
9° - Porém é ao Supremo Tribunal de Justiça que cabe a última palavra sobre a aplicação, aos factos definitivamente fixados pela Relação, do regime jurídico julgado adequado – nº 1 do artigo 729° do Código de Processo Civil.
10º - Nos termos do art.º 729 nº 3 do Código de Processo Civil, o Supremo Tribunal de Justiça pode oficiosamente mandar ampliar a decisão de facto se constarem do processo os factos e for necessário deles conhecer em ordem a constituir base suficiente para a decisão de direito.
11 - Consta da certidão emitida pela pertinente Conservatória de Registo Predial junta pelo Oponente Estado, aquando da dedução de Oposição e Intervenção Principal, que a aquisição do prédio de que o Estado Português é também proprietário, e referido no art.° 4 dos factos provados, ocorreu por usucapião tendo sido registada em 31 de Dezembro de 1990.
12° - O registo da aquisição da propriedade pelo Estado por usucapião é um documento autêntico, por revestir as características dos mencionados preceitos, sendo certo que a sua força probatória não foi elidida por falsidade - art.ºs 369° a 372° do Código Civil.
13° - Ao não alterar a matéria de facto, aditando que a aquisição do prédio referido no art.° 4 dos factos provados velo Estado Português ocorreu por usucapião tendo sido registada em 31 de Dezembro de 1990, violou o douto Acórdão recorrido os art.ºs 363°, nº 2, 369°, 371 0, nº 1, 383°, nº 1 todos do Código Civil e 712°, nº 1 al. a) do Código de Processo Civil.
14º - Deve, pois ser anulado o acórdão recorrido e determinar-se a baixa do processo ao Tribunal da Relação de Évora para que o mesmo Tribunal proceda à ampliação da matéria de facto, aditando que a aquisição do prédio referido no art.° 4 dos factos provados pelo Estado Português ocorreu por usucapião. tendo sido a mesma registada em 31 de Dezembro de 1990.
Aquisição do direito de propriedade pelo Estado
15º - A posse juridicamente relevante tem de revestir os caracteres estabelecidos e definidos nos artigos 1258.º a 1262.º do Código Civil, para conduzir à usucapião
16º - Os prazos de aquisição da propriedade por usucapião dependem da existência ou não de «justo título e registo» e ser exercida «de boa ou má fé» - cfr. art.ºs 1294° a 1295° do mesmo diploma.
17º - Em 1 de Agosto de 1977, entrou em vigor o cadastro geométrico, ou cadastro das propriedades rústicas do concelho de Setúbal.
18º - A faixa de terreno confinante com a via pública em causa nos presentes autos, no Mapa da Matriz Predial rústica pertence ao prédio denominado "....", ou "..."
19º - O documento de fls. 78, emitido pela Direcção Geral do Património é um documento autêntico - art.ºs 369° a 372° do Código Civil.
20º - o Mapa da Matriz Predial rústica constante de fls. 81, reproduzindo o cadastro das propriedades rústicas do concelho de Setúbal que nunca foi contestado, também é documento autêntico - art°s 369° a 372° do Código Civil.
21° - Se o cadastro das propriedades rústicas do concelho de Setúbal nunca foi contestado, designadamente por qualquer dos Autores, tem de entender-se que os prazos de aquisição da propriedade por usucapião têm de iniciar-se na data de entrada em vigor do cadastro das propriedades rústicas do concelho de Setúbal, ocorrido em 1 de Agosto de 1977 - art.° 1259° do Código Civil.
22° - O Estado inscreveu a totalidade da propriedade do prédio denominado "...." ou "..." a seu favor por usucapião em 31 de Dezembro de 1990, conforme resulta da certidão de registro predial junta pelo Oponente Estado
23° - O Estado tem vindo a praticar actos de posse, designadamente aos nºs 2, 19, 20 e 22 dos factos provados.
24° - Ora, da conjugação dos art.ºs 1296° do Código Civil e art.° 10 da Lei nº 54, de 16 de Julho de 1913, resulta que a aquisição por usucapião da faixa de terreno em causa só poderia ocorrer decorridos que fossem no mínimo 22 anos e 6 meses e um máximo de 30 anos, ou seja, 1 de Fevereiro de 2000, ou 1 de Agosto de 2007.
25º - Os Autores AA e BB, usufrutuários, não podiam adquirir a propriedade por usucapião - art.° 1439° e 1290° do Código Civil.
26º - Os Autores CC e DD que invocam a existência do título de propriedade do terreno (incluindo a faixa sul daquele), relativamente a tal parcela, tal não poderia suceder, uma vez que o seu direito de reivindicação se encontra prejudicado pelos direitos do Estado adquiridos por usucapião e já registada - art.° 1313° do código Civil.
27º - O Estado tem vindo a praticar actos de posse, designadamente os referidos nos nºs 2, 19, 20 e 22 dos factos provados.
28º - Assim, violou o douto Aresto impugnado, nesta parte, as normas legais previstas nos art.ºs 1259°, 1265°, 1290°, 1313°,1439°, todos do Código Civil e Lei 54 de 16 de Julho de 1913.
Assim, deve ser julgada a Revista procedente e, consequentemente, revogar-se o Acórdão recorrido e
a) - determinar-se a baixa do processo ao Tribunal da Relação de Évora para que o mesmo Tribunal proceda à ampliação da matéria de facto, de modo a que as ocorrências materiais constantes dos documentos de fls. 78 a 83 sejam levadas aos factos provados.
b) - determinar-se a baixa do processo ao Tribunal da Relação de Évora para que o mesmo Tribunal proceda à ampliação da matéria de facto, aditando que a aquisição do prédio referido no art.° 4 dos factos provados pelo Estado Português ocorreu por usucapião tendo sido a mesma registada em 31 de Dezembro de 1990.
c) - considerar que, uma vez que o Estado inscreveu a propriedade a seu favor por usucapião em 31 de Dezembro de 1990 , não podiam os Autores adquirir a propriedade da faixa de terreno por usucapião, atentas as disposições conjugadas dos art.ºs 1259°, 1265°, 1290°,1313°,1439°, todos do Código Civil e Lei 54 de 16 de Julho de 1913.

Contra-alegou a parte contrária, pugnando pela manutenção do decidido.

V –
Ante as conclusões das alegações, importa tomar posição sobre se:
A forma por que foi seleccionada a matéria de facto, na parte em que se remeteu para documentos juntos aos autos, é deficiente, implicando a nulidade do acórdão recorrido;
Deve ser ampliada a matéria de facto em ordem a que dela fique a constar que a aquisição do prédio referido no n.º 4 dos factos provados ocorreu a favor do Estado Português por usucapião, tendo tal aquisição sido registada em 31.12.1990;
Os AA não poderiam adquirir, por usucapião, os direitos de que se arrogam sobre a faixa de terreno em disputa, uma vez que o Estado vem praticando sobre ela actos de posse e registou a aquisição da propriedade a favor dele, na data referida.

VI –
Vem provada a seguinte matéria de facto:

1 - Os 1.ºs autores, são usufrutuários, e a 2.ª e o 3° autores proprietários e possuidores do prédio misto, no sítio de ..., denominado "...", ou "....", freguesia de Nossa Senhora da Anunciada, Concelho de Setúbal, o qual se encontra descrito na Conservatória do Registo Predial de Setúbal sob o n.º 00053/150485 – N.ª Sr.ª da Anunciada, anteriormente descrição predial n.º 8051, a folhas 78 do livro 8-31.º e inscrito a favor dos autores pelas inscrições F-1 e G-1.
2 - Em 18/10/1996, foi celebrado um Protocolo de Acordo entre os Ministérios das Finanças, do Equipamento, do Planeamento e da Administração do Território, da Solidariedade Social e, bem assim, do Município de Setúbal, através do que, entre o mais, "o Ministério das Finanças, através da Direcção Geral do Património, cede, a titulo precário, nos termos e ao abrigo do disposta no Decreto-Lei no 24.489, de 13 de Setembro de 1934, à Casa Pia de Lisboa, o imóvel, propriedade do Estado, denominada antigo ..., em Setúbal e respectiva cerca, com área total de" 63.760 m2.
3 - "Esta cedência manter-se-á enquanto o imóvel estiver afecto aos fins prosseguidos pela Casa Pia de Lisboa ", sendo certo que, o objectivo era a "instalação no .... e nas áreas adjacentes (. .. ) um colégio com valências similares às dos estabelecimentos que possui em Lisboa, com capacidade para 500 crianças e jovens (. .. )"
4 - O Estado Português é também proprietário de um prédio, inscrito, na parte rústica, sob o art. 8, Secção D, da freguesia da Anunciada, designada por "5. ..." ou "... de 5. ...." , descrito sob o n.º 00917/31190, da Conservatória do Registo Predial de Setúbal, o qual sendo prédio misto, é constituído por uma parcela de terreno de cultura arvense e um edifício denominado "...., com a área coberta de 1.800 m2 e logradouro com a área de 4.000 m2, sendo a área do prédio 63.760 m2, confrontando a norte, com EE.
5 - O prédio identificado em 1 confronta por todo o lado Sul com Estrada do ....
6 - A Estrada do ..., também denominada e conhecida por Estrada de ..., sempre teve o traçado e o leito que hoje apresenta.
7 - Este prédio era constituído por uma parte foreira e por outra parte livre.
8 - Essa parte livre era "uma faixa de terreno, em toda a extensão Nascente-Poente da propriedade, e compreendida desde a Estrada de ..., até parte mais profunda do vale que separa as duas serras que ali há ".
9 - Os autores desde 10/12/1984 procedem ao arranjo agrícola do prédio lavrando o terreno, plantando árvores, pastando animais, construção e arranjo de edifícios e vedação da propriedade .
10 - Vedação esta efectuada com um murete em pedra, encimado com postes e rede, em especial a todo o comprimento da extrema Nascente, e até à Estrada do ...., onde a vedação terminava somente com postes e rede.
11 - Onde se encontrava colocado um marco de pedra, junto da Estrada do ..., no ângulo formado pela extrema Nascente com a extrema Sul.
12 - No lado Poente do prédio dos autores da Estrada do ...., também termina em postes de madeira e rede e tem colocado um marco de pedra.
13 - Os actos referidos no ponto 9. eram já exercidos pelo anterior proprietário do prédio, quer pessoalmente, quer através de rendeiros da propriedade
14 - O que acontecia pelo menos desde 1948.
15 - Todos os actos referidos foram praticados pelo autor e anteriores proprietários ininterruptamente.
16 -À vista de toda a gente.
17- E sem oposição de outrem.
18 - Sendo os autores conhecidos por todos e pelos vizinhos como os verdadeiros proprietários do prédio .
19 - A Casa Pia de Lisboa iniciou obras no prédio que fica a Nascente do prédio dos autores entre as quais a de vedar o referido prédio
20 - Para construir essa vedação, e na parte que é visível do exterior, a Casa Pia de Lisboa abriu ao longo da sua extrema Poente, por conseguinte junto à extrema Nascente do prédio dos Autores, uma vala, e um caminho, para fazer os alicerces do muro de vedação
21 - A abertura desta vala e do caminho, deixou as fundações do muro de vedação da propriedade dos autores, que se encontravam totalmente enterradas, totalmente a descoberto, sem o apoio da terra e com um desnível superior a um metro mas actualmente foi construído um muro nessa vala, muro esse de suporte de terras.
22 - E no fim da sua extrema Poente, junto à Estrada do ...., a ré, continuou a abrir a vala no sentido Nascente Poente, junto à Estrada do .....
23 - Para proceder à abertura desta extensão da vala, no sentido Nascente - Poente, a ora ré, derrubou o marco do prédio dos autores, que se encontrava colocado no ângulo da extrema Nascente - Sul do prédio dos autores e derrubou diversos postes e parte da rede de vedação do prédio dos autores.
24 - Na parte final da vala aberta pela Ré, lado Poente, a ora ré também derrubou um poste de madeira e a rede que vedava a propriedade dos autores.
25 - A referida faixa de terreno situa-se dentro das vedações do prédio dos autores.
26 - Tem-se como reproduzido o teor do documento de fls. 78, emitido pela Direcção Geral do Património em que a mesma informa a Sr.ª Procuradora deste tribunal que as delimitações do terreno referido na alínea D) são as constantes do mapa de fls. 81 que resultaram de uma alteração cadastral levada a cabo nos finais dos anos 50 e princípios dos anos 60.
27 - Tem-se como reproduzido o teor do doc. fls. 83 emitido pelo Instituto de Cartografia e Cadastro em que o mesmo informa que os limites do prédio referido na alínea O) são os constantes do mapa anexo ao mesmo e que tais limites se mantêm desde 1/8/77, dai data de entrada em vigor do cadastro geométrico do Concelho.

VII –
Observados os factos, sigamos para a primeira das questões referidas em V.
A respeito da qual se levanta logo uma questão de índole adjectiva. O recurso de revista – refere em termos genéricos o artigo 721.º, n.º1 do Código de Processo Civil – cabe do acórdão da Relação que conheça do mérito da causa.
Daqui resulta que só pode constituir matéria de recurso o que a Relação decidiu – incluindo os respectivos fundamentos – ou devia ter decidido.
De fora ficam as questões que não foram levantadas para a Relação e não eram de conhecimento oficioso.
Entre estas está, no nosso caso, a remissão que se faz na enumeração factual para documentos juntos aos autos. Foi tal remissão levada a cabo na primeira instância e, sobre ela, não foi arguido qualquer vício que levasse a Relação a tomar posição, de sorte que já não pode, em sede de recurso de revista, arguir-se nulidade por aí. Seria posicionar o Supremo a sindicar uma decisão de primeira instância, o que, como é sabido, só pode ter lugar nos casos expressamente previstos.

VIII –
Estando vedada a arguição de nulidade, nem por isso, todavia, o assunto morreu. É que, visto sob outro prisma poderia ele encerrar uma situação de insuficiência factual, a sindicar, oficiosamente, por este tribunal, nos termos do n.º3 do artigo 729.º do dito código. Entender-se-ia, por hipótese, neste modo de ver as coisas, que a matéria constante do documento era necessária para constituir base suficiente para a decisão de direito e, concomitantemente, que a remissão feita para os documentos era insuficiente.
Certo é, porém, que, nem uma coisa, nem a outra se verificam.
Os documentos de folhas 78 e 83 para os quais se remete nos pontos 26 e 27 da enumeração factual integram ofícios, um da Direcção Geral do Património, outro do Instituto Português de Cartografia e Cadastro, cujo conteúdo nada vale contra os factos integrantes de posse que constam de outros dos pontos da enumeração factual. No fundo, constituem elementos de contacto entre entidades oficiais e a Ex.ma Procuradora que, vista a sua unilateralidade, nada provam. Encerram antes argumentos que a parte agora recorrente poderia esgrimir aquando da discussão factual.
No que concerne à remissão para eles, em lugar da sua transcrição, total ou parcial, cremos dever ceder a correcção estética duma peça processual à eficiência e celeridade a que alude explicitamente o artigo 265.º, n.º1, ainda do dito código. Realmente, mesmo o princípio da auto-suficiência dos acórdãos dos tribunais superiores cedeu perante as necessidades referidas, estatuindo agora o legislador que, quando não tenha sido impugnada, nem haja lugar a qualquer alteração da matéria de facto, o acórdão limitar-se-á a remeter para os termos da decisão de 1.ª instância que decidiu aquela matéria (artigo 713.º, n.º 6 do Código de Processo Civil). Ou seja, o legislador permite a aplicação de toda a matéria de facto pelo caminho da enunciação por remissão e mal se compreenderia que o juiz de primeira instância não pudesse remeter para o teor dum documento.
Aliás, documentos hão – e sem atentarmos propriamente na definição latíssima do artigo 362.º do Código Civil – que não podem incluir-se materialmente na enumeração factual. Basta pensar-se nos mapas ou levantamentos topográficos, tão importantes em certo tipo de acções.
Além disso, tem o intérprete de ter sempre presente – mesmo na interpretação das leis processuais – a parte final do n.º 9 deste código e ponderar o que possibilitam hoje os meios de que dispomos. Quase todos os documentos juntos aos autos podem ser com toda a facilidade fotocopiados e juntos à peça processual que para eles remete ou enviados, se necessário, por E Mail. Qualquer dúvida no trânsito intelectual que a remissão implica será facilmente debelada.
Decerto que, impondo a lei, na elaboração da MFA e da BI, uma selecção factual, a simples referência ao teor dum documento – passando a haver pontos da enumeração factual com redacção de “o teor do documento de folhas …” ou idêntico - deixa a duvida sobre por que foi ele incluído em tal selecção. Fica uma situação de vazio sobre a sua conexão com o demais então articulado. Por isso, em princípio, essa simples remissão deve ser evitada. Por outro lado, a simples remissão também será insuficiente nos casos em que o juiz já pode tomar posição sobre se os factos constantes do documento se podem considerar provados. Ocorrendo esta hipótese – que é diferente da da existência do documento - há-de ele considerá-los efectivamente provados incluindo a remissão que porventura fizer essa qualidade. Entre referir, por exemplo, que a parte apresentou à contraparte a factura de folhas… que se dá como reproduzida e poder consignar que a parte levou a cabo as entregas constantes dessa factura, a diferença existe, mas não se situa no acto de remissão.
Outrossim, na sentença, se os factos constantes do documento para que se remeteu interessarem, passam eles a vir a lume. Não geralmente na enumeração factual, mas ao longo da discussão jurídica. E se aqui figurarem, podem não estar no lugar mais adequado sob o ponto de vista de organização do aresto, mas nele figuram e não pode haver omissão relevante.
Do que vem de expor-se, logo se vê que não há qualquer censura às instâncias, inexistindo qualquer insuficiência factual por aqui.

IX –
Na segunda das questões referidas em V, o recorrente pretende que se determine a ampliação da matéria factual em ordem a nela se inserir que a aquisição do prédio referido no n.º 4 dos factos provados ocorreu a favor do Estado, por usucapião, tendo tal aquisição sido registada em 31.12.1990.
A ampliação factual – já o dissemos lendo o n.º3 do artigo 729.º do Código de Processo Civil – só se justifica se for necessária para constituir base suficiente para a decisão de direito.
No acórdão da Relação discorreu-se longamente sobre os limites da presunção derivada do artigo 7.º do Código de Registo Predial, em termos que aqui acolhemos.
Não há presunção de que beneficie aqui relevantemente o Estado. Claro que, com o registo, ele beneficia da presunção da titularidade nos termos do preceito acabado de falar. Mas a presunção que, no nosso caso, poderia relevar seria a da usucapião e a esta não chega este mesmo preceito.
De qualquer modo, conforme entendimento constante, esta presunção é “juris tantum”. E os demais factos provados integrantes da posse por parte dos autores constituiriam uma elisão, se elisão fosse necessária.

X –
Com esta matéria prende-se o último dos pontos aludidos em V.
Pretende-se que os AA não poderiam adquirir por usucapião, uma vez que o Estado vem praticando sobre a faixa de terreno em disputa actos de posse e registou a aquisição da propriedade.
Quanto ao registo, vale o que dissemos no número anterior.
No que respeita aos actos de posse, há que atender a que estamos em pleno campo factual, alheio, quer aos poderes que, por regra, este tribunal tem (artigo 26.º da LOTJ) quer ao domínio próprio do recurso de revista (artigos 722.º, n.ºs 1 e 2 e 729.º, n.ºs 1 a 3 do Código de Processo Civil).
Ora na enumeração factual constam actos de posse cuja duração excede a maior necessária para nascerem, por usucapião, os direitos que invocam na presente causa. Vejam-se os pontos 9 a 18, em especial o ponto 14.

Improcede, pois, toda a argumentação do Estado.
Não se pondo em causa a sua isenção de custas, uma vez que a acção deu entrada antes da entrada em vigor da actual redacção do artigo 2.º do Código das Custas Judiciais.

XI –
Face ao exposto, nega-se a revista.
Sem custas.

Lisboa, 22 de Fevereiro de 2007
João Bernardo
Arlindo Rocha
Duarte Soares