Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 2.ª SECÇÃO | ||
Relator: | ANA PAULA LOBO | ||
Descritores: | CONTRATO DE COMPRA E VENDA ALTERAÇÃO ANORMAL DAS CIRCUNSTÂNCIAS MUNICÍPIO LICENCIAMENTO DE OBRAS OFENSA DE CASO JULGADO DECLARAÇÃO DE NULIDADE PRAZO DE PRESCRIÇÃO ABUSO DE DIREITO ABUSO DE PODER BOA FÉ ACORDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA OPOSIÇÃO DE ACÓRDÃOS REVOGAÇÃO DA SENTENÇA CONDENAÇÃO EM QUANTIA A LIQUIDAR | ||
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Data do Acordão: | 04/03/2025 | ||
Nº Único do Processo: | | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | REVISTA | ||
Decisão: | CONCEDIDA | ||
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Sumário : | Quando, na definição do quadro normativo aplicável, com enquadramento no instituto jurídico de modificação do contrato por alteração anormal das circunstâncias, art.º 437.º do Código Civil, o Supremo Tribunal de Justiça, desviando-se das instâncias, elege como elementos relevantes certas qualidades do comprador, e a concreta amplitude do desequilíbrio contratual, estas não podem, em decisão posterior, proferida no mesmo processo, vir a considerá-las irrelevantes. | ||
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Decisão Texto Integral: |
Recorrentes: AA, BB, CC, DD, EE, FF, autores habilitados Recorrida: Município de Guimarães
* I – Relatório I - 1. Na acção presente acção declarativa com processo comum instaurada por GG, contra o Município de Guimarães, foi formulado o seguinte pedido: A condenação do Réu a reconhecer que alterou, culposamente, as condições do contrato de compra e venda identificado no artigo 1º desta petição e a pagar-lhe o montante necessário ao restabelecimento do equilíbrio do contrato de compra e venda que deverá ser determinado nomeadamente pela diferença entre o valor do terreno face à construção que nele realmente foi implantada, deduzido do montante que por ele pagou devidamente actualizado com a desvalorização da moeda e do custo da infra-estruturação, valor esse acrescido dos juros de mora desde a citação até efectivo pagamento. Em fundamento da sua pretensão alegou ter celebrado com o Réu, em 13.02.1981, um contrato de compra e venda de uma parcela de terreno com a área de 11.650 m2, com vista à implantação da Escola de Formação Profissional de Guimarães sob a ameaça de a parcela ser expropriada para esse fim. Antes da celebração dessa venda, tinha a intenção de urbanizar a propriedade em que a parcela se integrava, com a finalidade de construir prédios de habitação multifamiliar e comércio tendo para tanto apresentado junto do réu um pedido de viabilidade construtiva, que, apesar do parecer favorável dos serviços técnicos do Município Réu, veio a ser indeferida com fundamento em a parcela (que, mais tarde, foi vendida) estar incluída em área para a qual estava em estudo um plano geral de urbanização (PGU), e, estar abrangida dentro dos limites de protecção à Universidade do Minho, cujos condicionantes ainda não se encontravam definidos. Pouco depois daquele indeferimento, o Réu contactou a A. para aquisição da parcela, argumentando que esta se encontrava interdita à construção urbana e estava destinada à edificação da mencionada escola de formação e que, se não fosse aceite o negócio, haveria lugar à expropriação da parcela; a concreta finalidade – que ficou a constar da escritura pública de venda – foi determinante para a realização da venda e determinação do preço do solo que, por tais condicionantes foi avaliado por valor inferior àquele que seria se estivesse em causa um terreno apto a construção urbana. O Réu não respeitou o fim para que adquiriu a parcela e, aos dias de hoje, encontram-se implantadas na mesma, residências universitárias – três corpos de construção em altura – e dois blocos de habitação multifamiliar e comércio assim destruindo o equilíbrio do negócio que celebrou. O réu invocou a prossecução do interesse público. A A. faleceu no decurso da acção tendo sido julgados habilitados, os actuais recorrentes. I - 2. A sentença proferida pelo Juiz ... do Juízo Central Cível de ... do Tribunal Judicial da Comarca de Braga, em 13.09.2022 julgou a acção parcialmente improcedente e condenou o Município Réu a pagar aos Habilitados a diferença a liquidar em ulterior incidente de liquidação entre o preço declarado na escritura pública a que se alude em a. dos factos provados, e o preço de mercado que os prédios tinham à data da escritura de doação referida em j., dos factos provados, deduzido do preço já pago por aquele. I - 3. O Tribunal da Relação de Guimarães, por acórdão proferido em 4 de Maio de 2023, julgou a acção improcedente e absolveu o réu do pedido. Os A.A. interpuseram recurso de revista do referido acórdão. I - 4. Por acórdão do Supremo Tribunal de Justiça proferido em 18 de Abril de 2024 foi deliberado: « (…) conceder parcialmente a revista, revogar o acórdão recorrido na parte em que considerou não ser aplicável o disposto no art.º 437.º do Código Civil, e, determina-se a baixa dos autos ao tribunal recorrido para que tome conhecimento das demais questões que lhe foram presentes no recurso de apelação cujo julgamento julgou prejudicado». I - 5. Em 10 de Outubro de 2024 o Tribunal da Relação proferiu o acórdão, ora recorrido, onde julgou improcedentes ambas as apelações, confirmando a sentença recorrida. I - 6. Com fundamento em violação de caso julgado e incumprimento do dever de acatamento das decisões proferidas no processo pelo Tribunal superior voltaram os autores a apresentar recurso de revista, desta vez do último acórdão proferido pelo Tribunal da Relação para revogação do mesmo de molde a reafirmar a anterior decisão do Supremo Tribunal de Justiça. Para o efeito apresentaram alegações, que culminam com as seguintes conclusões: 1. In casu não estamos perante um caso de dupla conforme no verdadeiro sentido que a lei criou, porquanto, embora a decisão da Relação tenha confirmado a da 1ª Instância, fê-lo já depois de proferido o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18/04/2024, há muito transitado. 2. Tendo o acórdão do Supremo definido que para o desequilíbrio das prestações releva o facto de o réu, na sua qualidade de licenciador ter permitido a terceiro construção, não pode a Relação desrespeitar este entendimento, definindo que após a doação que fez à Universidade do Minho ficou desresponsabilizada pela expropriação. 3. Há ofensa do caso julgado por parte da Relação de Guimarães no acórdão recorrido. 4. É sempre admissível recurso quando há violação, ofensa, do caso julgado. 5. A decisão do douto acórdão viola o princípio constitucional da hierarquia dos Tribunais, ofende o caso julgado e a norma do artigo 619º, nº 1 do CPC. 6. O presente recurso é admissível nos termos dos artigos 629º, nº 2, a) e 671º, nº 1 e nº 2, a) todos do CPC. * O recorrido, Município de Guimarães, em suporte do acórdão recorrido apresentou contra-alegações que culminam com as seguintes conclusões: 1. Vêm os habilitados interpor recurso de douto Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães que confirmou integralmente a sentença recorrida, proferida pelo Juízo Central de ... (Juiz ...), em primeira instância, no dia 13-09-2022, e acompanhou, na totalidade, a solução aí adotada. 2. Verifica-se, assim, existir no presente caso dupla conforme, pois, o acórdão recorrido confirmou a decisão de 1.ª Instância, na sua totalidade, com a mesma fundamentação e com aplicação do mesmo quadro normativo, inexistindo voto de vencido; 3. Pelo que o presente recurso não é admissível (cfr. n.º 3, do artigo 671.º do Código de Processo Civil). 4. Todavia, alegam os habilitados, ora recorrentes, que o douto acórdão recorrido consubstancia uma ofensa de caso julgado, sendo assim o recurso em causa admissível, ao abrigo da alínea a), do n.º 2, do artigo 629.º do Código de Processo Civil. 5. Sucede que a ofensa ao caso julgado pressupõe a existência de uma decisão anterior e definitiva, já transitada em julgado, sobre determinada situação concreta ou relação material controvertida, o que não se verifica no presente caso. 6. Com efeito, foi por douta determinação do Supremo Tribunal de Justiça que os autos baixaram para o Tribunal da Relação de Guimarães para permitir que esse Tribunal conhecesse e decidisse quanto à medida, forma e/ou critérios a atender para reposição do equilíbrio do negócio: 7. Não existindo, assim, qualquer decisão do Supremo Tribunal de Justiça, quanto a essa questão, muito menos, qualquer contradição entre o acórdão recorrido e o aludido acórdão do Supremo Tribunal de Justiça; 8. O qual só se pronunciou e decidiu quanto à aplicação do artigo 437.º do CC ao presente caso e a verificação in casu dos seus requisitos cumulativos. 9. Assim, em momento algum do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça em causa, se pode concluir pela existência de qualquer referência ou decisão quanto à forma, medida ou critérios a fixar na reposição do reequilíbrio contratual, nem os fundamentos aí invocados constituem qualquer pressuposto necessário e fundamental para determinar a forma, medida e critérios do reequilíbrio financeiro, pelo que nunca poderá haver violação ou ofensa do caso julgado. 10. Termos em que o recurso interposto pelos habilitados, ora recorrentes, não pode ser admitido e/ou julgado, por existir dupla conforme. 11. Na eventualidade do recurso em causa, interposto pelos habilitados, ser admitido e/ou julgado, o que por mera hipótese e cautela de patrocínio se coloca, sempre se dirá que a douta decisão vertida na decisão de 1.ª Instância e mais tarde confirmada pelo acórdão recorrido, não merece qualquer reparo. 12. Os autores, ora recorrentes, não assacaram nenhum vício à decisão recorrida nem erro de julgamento, não alegando, conforme era sua obrigação, a existência de normas jurídicas violadas, ou o sentido em que estas deveriam ser interpretadas ou aplicadas, ou qual a norma que deveria ter sido aplicada, na eventualidade de ter invocado erro na determinação da norma aplicável (cfr. n.º 2, do artigo 639.º do C.P.C.). 13. Ao contrário do defendido pelos autores, ora recorrentes, o Supremo Tribunal de Justiça entendeu, de igual forma, que o momento a que se deve reportar os critérios que relevam para o cálculo do valor necessário para repor o equilíbrio das prestações acordadas pelas partes é o momento da celebração do contrato de doação do terreno em causa à Universidade do Minha, em 1989, para construção das residências universitárias; 14. E como tal, o equilíbrio contratual é reposto pelo pagamento da diferença correspondente ao preço de mercado que os prédios alienados pela falecida Autora tinham à data em que houve lugar a doação à Universidade do Minho, devidamente atualizada até à decisão que a vier a fixar em sede de ulterior incidente de liquidação (e deduzido do preço já pago pelo Réu), conforme decisão de 1.ª Instância, confirmada pelo douto acórdão recorrido; 15. Sendo certo que no caso dos presentes autos está em causa a conduta do réu Município enquanto contraente colocado numa posição equiparável a um privado -aquisição de um imóvel por escritura -, e não a sua atuação ao abrigo das normas urbanísticas de licenciamento - posição de autoridade, cuja atuação só poderá ser sindicada em jurisdição própria. 16. Nessa medida, as alegações de recurso apresentadas pelos habilitados extravasam largamente o objeto dos presentes autos, contendo, aliás, afirmações que não só não constam dos factos provados nem têm qualquer relevância para os autos, como se trata de meras conjunturas falsas. 17. O acórdão recorrido não merece, assim, qualquer reparo, devendo ser mantido na sua integra, uma vez que faz uma apreciação e aplicação irrepreensível do direito aos factos. Termos em que não deve ser admitido o recurso interposto pelos autores habilitados, ora recorrentes; E caso assim se não entenda, o que por mera hipótese e cautela de patrocínio se coloca, deve negado provimento ao recurso, sendo o mesmo julgado totalmente improcedente, mantendo-se o douto Acórdão recorrido, como é de JUSTIÇA. * I.2 – Questão prévia - admissibilidade do recurso O recurso de revista é admissível ao abrigo do disposto no art.º 629.º, n.º 2, a), parte final do Código de Processo Civil. * I.3 – O objecto do recurso Tendo em consideração o teor das conclusões das alegações de recurso e o conteúdo da decisão recorrida, cumpre apreciar as seguintes questões: 1. Ofensa de caso julgado por incumprimento do dever de acatar decisão de tribunal superior. * I.4 - Os factos As instâncias consideraram provados os seguintes factos: a. Por escritura pública celebrada a 13.02.1981, na Secretaria da Câmara Municipal de Guimarães, perante o Chefe da Secretaria, Notário Privativo daquela, a Autora, casada no regime de separação de bens com Dr. AA, declarou ser dona e legítima possuidora da propriedade denominada Assento do Casal do Marnato ou da Dourada, situada na freguesia de Azurém e que, pelo preço total de Esc. 7.200.000$00, vendia à Câmara Municipal de Guimarães, representada pelo seu Presidente, os prédios rústicos dessa propriedade identificados como campos do Quintal, do Lameiro e do Fundo ou Campo Grande e leira do Lameirinho, inscritos na matriz rústica da freguesia de Azurém sob os artigos .52, .53, .54 e .55 e descritos na Conservatória do Registo Predial de Guimarães sob parte do prédio nº ....90, a fls. 84 do Livro B-100. b. Declarou, também, que aquele conjunto se situava à margem da estrada nacional 207-4 para S. Torcato, confrontava a norte com prédios da vendedora e terrenos de Dr. HH e II, nascente com a estrada nacional 207-4, sul com terras de Dr. JJ e caminho de servidão e do poente com Dr. JJ, terminando em bico com o caminho para a Escola do Magistério Primário, tendo a área aproximada de 12.000 m2. c. Declarou, ainda, que a venda era feita livre de quaisquer ónus ou encargos e com a condição de, havendo lugar à indemnização do caseiro que fabricava os terrenos, a mesma seria da responsabilidade da Câmara Municipal. d. Por sua vez, o Presidente da Câmara Municipal declarou aceitar o contrato para a sua representada na forma expressa cujas condições haviam sido aceites por deliberação de 12.12.1980 e firmadas em contrato promessa de 29.11.1980 e que o terreno se destinava à implantação da Escola de Formação Profissional. e. Por escritura pública celebrada a 20.12.1983, na Secretaria da Câmara Municipal de Guimarães, perante o Chefe da Secretaria, Notário Privativo daquela, KK em representação da Câmara Municipal de Guimarães e a Autora declararam rectificar a escritura identificada em a. a d. do seguinte modo: - a área dos terrenos transaccionados era de 11.650 m2 e não de 12.000 m2 como por lapso fora referido; - as confrontações eram: norte com prédios da vendedora e terrenos de Dr. HH e II, nascente com a estrada nacional 207-4 e a vendedora, sul com terras de Dr. JJ e caminho de servidão e do poente com Dr. JJ. f. Em 08.01.1980 deu entrada na Câmara Municipal de Guimarães requerimento de AA dirigido ao Presidente daquela, no qual intitulando-se proprietário da Quinta da Dourada, situada na freguesia de Azurém, com os limites eram assinalados em planta junta, solicitava “uma informação sobre a viabilidade da sua urbanização para construção tendo em atenção que todo o terreno da propriedade se acha dentro do perímetro da cidade e é manifesta a carência de habitações no local”, assim como, na hipótese afirmativa, “lhe sejam fornecidos os parâmetros gerais de condicionamento que a Administração entende dever exigir de acordo com os planos directores de urbanização em estudo”. g. Por extracto da acta nº 16 de 14.04.1980, referente à reunião conjunta entre os técnicos da Direcção Regional de Planeamento Urbanístico do Norte e o Gabinete de Planeamento e Gestão Urbanística, foi exarado o seguinte parecer dos Arquitectos Urbanistas encarregados da elaboração do PGU de Guimarães relativamente à pretensão identificada em f.: “O terreno a Poente da Rua de S. Torcato está dentro dos limites de protecção à Universidade cujos condicionantes não estão ainda definidos. O terreno a Nascente é, em princípio, passível de urbanização não sendo, no entanto possível de imediato fornecer os condicionantes em virtude de o PGU estar ainda em estudo. Nesta conformidade e na falta dos elementos para apreciação do mesmo, dá-se parecer desfavorável ao abrigo da alínea g) do nº 1 do art. 7º do DL 289/73 por, tal como é apresentado, vir a contrariar estudos de urbanização cuja concretização se aguarda para breve”. h. Em 13.05.1980 o pedido identificado em f. foi “indeferido nos termos da informação conjunta do DRPUN e PGU”, o que foi comunicado ao requerente por ofício nº 2252/S. i. A Autora, em 13.02.1981, celebrou com o Réu um contrato de compra e venda titulado por escritura pública outorgada no Notário Privativo do Réu, a que se alude em a. j. Por escritura pública celebrada a 24.11.1989, nas Primeiras Instalações do Campus Universitário da UM, em Azurém, Guimarães, perante a Chefe de Divisão dos Serviços Administrativos e de Pessoal da Câmara Municipal de Guimarães, enquanto Notária Privativa, o Presidente da Câmara declarou que, de harmonia com a deliberação efectuada em 06.03.1989, fazia doação pura e simples à Universidade do Minho, representada pelo seu Reitor, do terreno de construção com a área de 11.650 m2, situado na rua de S. Torcato, da cidade de Guimarães, destinado a uma residência universitária, assim identificado: - Propriedade denominada da Dourada ou Assento do Casal do Marmoto situada na Rua de S. Torcato, freguesia de Azurém, descrito na Conservatória do Registo Predial de Guimarães sob o nº .28-Azurém, registado em G-1 a favor da Câmara Municipal e inscrito na matriz sob os artigos .51, .52, .53, .54, .55 e já participado para a sua inscrição como terreno de construção na 1ª Repartição das Finanças do Concelho no dia 22 de Junho do ano em curso, confrontando de norte com prédios de GG, de Dr. HH e II, sul com terras de Dr. JJ e caminho de servidão, do nascente com a rua da sua situação e do poente com Dr. JJ, terminando em bico com o caminho da Escola do Magistério Primário. k. Mais declarou o Presidente da Câmara que, conforme a deliberação citada, concedia à Universidade do Minho, atempadamente, o apoio com a realização de infra-estruturas necessárias no terreno doado. l. O Reitor da Universidade do Minho, em representação desta, declarou aceitar a doação e mais benefícios de forma expressa. m. Actualmente no prédio identificado em a. estão implantadas residências universitárias - 3 (três) corpos de construção em altura. n. Antes da venda a que se alude em a., era intenção da Autora urbanizar a propriedade, com a área total de 3 (três) hectares, que se localizava dentro dos limites da planta que anexou ao requerimento datado de 19.12.1979, mencionado em f.. o. Essa propriedade, para além de se situar dentro do perímetro urbano da cidade de Guimarães era servida por via pública pavimentada (a Rua de S. Torcato) urbana e dotada de abastecimento de energia eléctrica e abastecimento de água. p. Exactamente as mesmas que serviam as construções existentes na zona. q. Os Serviços Técnicos de Obras da Câmara Municipal de Guimarães emitiram, com relação ao pedido enunciado em f. e n., o seguinte parecer: “Não vemos inconveniente em certificar favoravelmente o requerido.” r. Após o indeferimento a que se alude em h., o Réu contactou a Autora e o marido, mostrando-se disponível para lhe adquirir a parte do prédio objecto da escritura. s. A Autora sabia, de acordo com a informação que o próprio Réu lhe prestara, que a parcela vendida não seria susceptível de urbanização para habitação privada, mas sim para um estabelecimento de ensino. t. A falecida Autora não venderia o prédio ao Réu se não fosse para o fim indicado na escritura referida em a. e este sabia-o. u. O preço fixado na venda foi baseado numa avaliação inferior à que seria se o solo fosse avaliado para construção. v. O facto de se destinar à construção de uma escola levou-a a aceitar vender por um valor inferior ao que seria fixado em expropriação se o solo fosse classificado como apto para construção. w. O preço pago não foi determinado em avaliação que o classificasse como apto para construção. x. O valor de construção (habitacional) rondava, pelo menos, o correspondente a 25.000$00 por m2 à data da escritura mencionada em a.. y. Deduzindo-lhe os custos de infra-estruturação, o valor do terreno era superior àquele por que foi pago, se avaliado nos termos indicados em v... z. A Autora negociou a escritura mencionada em a., perante a inviabilização da construção particular e com base na informação de que o terreno se destinava à construção de uma escola profissional. aa. Hoje, no prédio, para além do mencionado em m., estão implantados dois blocos de habitação multifamiliar e comércio no rés-do-chão, os quais tiveram um valor de venda (concretamente não apurado). bb. Com um índice de ocupação correspondente a 1,46 m2. cc. O Réu licenciou as construções a que se alude em m. e aa.. dd. A construção de uma escola de formação não seria susceptível de comercialização e consequente lucro. ee. Foram estabelecidas negociações entre AA e o Presidente da Câmara Municipal de Guimarães com relação ao prédio a que se reporta a escritura mencionada em a.. ff. Nesse âmbito, quer AA quer o Município Réu solicitaram a peritos que apresentassem o seu relatório de avaliação. gg. Assim, em 08.10.1980, LL, apresentou o seguinte relatório de avaliação: “(…) Dr. AA Área Total = 13.100m2 a) Zona marginal = 3.000m2 x 1.500,00 = 4.500c b) Zona agrícola = 9.300m2 x 220,00 = 2.046c c) Construções e logradouros 800m2 x P/Est. 5.512c TOTAL 12.058 c. (…)” hh. Por sua vez, AA anexou à missiva referida em ii., um relatório de avaliação (da autoria de MM) com o seguinte conteúdo: A. Zona agrícola e hortícola com ramadas nas bordaduras 9200m2 x 230$00….. 2024 contos B. Zona marginal apta a construção 3000m2 x 1800$00 …. 5400 contos C. Zona de construções: 1. Casa principal com 3 pisos, toda em pedra, razoavelmente bem conservada 132m2 x 20 000$00 …….… 2640 contos 2. Casa de caseiro em 2 pisos, boa construção de pedra, funcional para os fins a que se destina 72m2 x 10 000$00 ……..….. 720 contos 3. Dependências agrícolas compostas de telheiro, cortes, barras, alpendre e eira de pedra 234m2 x 3 500$00 ………... 819 contos 4. Garagem sita a norte, boa construção de pedra 40 x 6 000$00 ……………. 240 contos 5. Logradouro e zona ocupada pelas construções 800m2 x 1500$00 ………...1200 contos 13.043 contos.” ii. Em 24.10.1980, AA comunicou ao Presidente da Câmara Municipal o seguinte: “Em referência à conversa pessoal que tive com V. Exa. sobre a pretensão da Câmara de adquirir parte dos terrenos sitos no lugar da Dourada da freguesia de Azurém, dos quais sou proprietário comunico a V. Exa. que: 1. É minha intenção concordar com essa pretensão. 2. O preço que considero justo é o que consta do relatório junto, consoante estudo a que procedeu o Senhor Eng.º MM Guimarães, 24 de Outubro de 1980” jj. Em seguida, foi obtido consenso entre a falecida Autora e o Presidente da Câmara Municipal de Guimarães, como consta da proposta deste na reunião ordinária da Câmara Municipal de 12.12.1980, que foi aprovada por unanimidade, nos termos seguintes: “O proprietário vende o terreno correspondente às duas parcelas rústicas, no total de 12.300m2, pelo preço de 7.200 contos, reservando para si as construções e logradouros, pelo que se verifica, assim, uma baixa de 200 contos em relação ao valor do perito do proprietário, havendo, no entanto, uma decorrência para mais de 654 contos, em relação ao perito da Câmara, propondo a aquisição amigável pelo preço agora pedido”. kk. Por despacho de 14.07.1981, o Secretário de Estado do Emprego autorizou o Fundo de Desenvolvimento da Mão-de-Obra a aceitar a cedência gratuita pela Câmara Municipal de Guimarães, do direito de superfície, por 50 anos, da propriedade denominada “Dourada ou do Assento do Casal Marmoto, situada na Rua de S. Torcato, freguesia de Azurém, Guimarães”, para construção de um centro de emprego e formação profissional. ll. Esta cedência foi previamente aprovada por deliberação da Câmara Municipal de Guimarães de 13.02.1981 e da Assembleia Municipal de 15.05.1981. mm. Por escritura de 23.07.1981, foi constituído direito de superfície a favor do Fundo de Desenvolvimento da Mão-de-Obra do Ministério do Trabalho, nos termos que constam de fls. 73 a 77. nn. Por deliberação de 06.03.1989 da Câmara Municipal de Guimarães, mediante proposta do seu Presidente, foi solicitado ao Secretário de Estado e Formação Profissional a rescisão do protocolo de cedência do direito de superfície e aprovada a cedência daquele terreno à Universidade do Minho, para construção de uma residência universitária com apoio da Câmara Municipal para a realização das infra-estruturas necessárias. oo. Por ofício de 22.03.1989, o Instituto do Emprego e Formação Profissional (IEFP) comunicou ao Presidente da Câmara Municipal de Guimarães que não se previa, no então programa de construções do IEFP, “a construção do Centro de Guimarães” e ainda que aceitava a rescisão do acordo firmado em 1981, entre a Câmara Municipal de Guimarães e o ex- Fundo de Desenvolvimento da Mão-de-Obra. pp. Em 30.08.1989, os Serviços Sociais da Universidade do Minho, apresentaram projecto ao Réu para construção de residência universitária. qq. Em correspondência com as negociações prévias havidas entre o marido da falecida Autora, AA e o Presidente da Câmara Municipal de Guimarães, a compra ficou sujeita apenas à condição de indemnizar o caseiro. rr. Só por razões alheias ao Réu é que a construção da escola de formação profissional não foi efectivada. ss. A posterior doação à Universidade do Minho, para construção de uma residência universitária (para alojamento de estudantes), e apoio à realização das necessárias infra-estruturas urbanísticas teve subjacente a finalidade de manter os estudantes em Guimarães. tt. Por escritura celebrada a 12.12.1997, a Universidade do Minho declarou ceder a J..., Lda, uma parcela de terreno com a área de 5.530,00 m2, destinada a arredondamento de estremas do prédio da referida sociedade, a destacar do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º .28/Azurém. uu. Por decisão proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga, em 31.03.2016, foi declarada a nulidade do despacho de 05.05.1998, que deferiu o licenciamento do loteamento; do despacho de 18.08.2000, que deferiu o licenciamento da operação de loteamento; do despacho proferido a 02.03.2001, que deferiu o licenciamento da operação de loteamento no processo 373/2000, que levou à emissão do alvará n.º 21/2 em 06.05.2002; de todos os actos consequentes dos actos de deferimento referidos, designadamente o despacho de 25.08.2005, que deferiu o licenciamento de construção para o lote 1 do loteamento n.º 45/00, que levou à emissão do alvará n.º 1136/2006, de 16.12. vv. A decisão referida na al. anterior ressalvou os “efeitos que os mesmos tenham produzido em relação aos contra-interessados.” ww. A decisão a que se alude nas als. anteriores foi confirmada por Acórdão do Tribunal Central Administrativo, proferido em 12.04.2019 1.2. As instâncias consideraram não provados os seguintes factos: 1. A urbanização pretendida, através do pedido mencionado em n., era a construção de prédios de habitação multifamiliar e comércio no rés-do-chão. 2. O Município Réu comunicou à falecida Autora que, se não aceitasse alienar o prédio, seria expropriada por utilidade pública para este concreto fim. 3. A Autora fez questão que o concreto destino do terreno vendido indicado pelo próprio Réu ficasse a constar na escritura, de modo que fosse obrigatoriamente respeitado. 4. O Réu alegava que, se fosse expropriada, o solo seria, nos termos do Código das Expropriações, avaliado pelo potencial agrícola, já que seria classificado como para outros fins. 5. A construção de residências é uma construção mais cara em relação à escola de formação profissional. 6. O valor de venda dos blocos de habitação e comércio foi de 4 (quatro) milhões de euros cada um. 7. O valor do terreno representava 25% do valor da construção. 8. O valor pago pelo Réu à Autora foi o correspondente a 600$00/m2. 9. O Réu não criou as condições para a construção da escola de formação profissional. 10. Foi AA que manifestou ao Réu o interesse em alienar a referida Quinta da Dourada. 11. O facto de na escritura mencionada em a. constar que "o terreno se destina à implantação da Escola de Formação Profissional" apenas significa que a finalidade subjacente era de interesse público e não meramente privado. * * * * II – Fundamentação 1. Ofensa de caso julgado por incumprimento do dever de acatar decisão de tribunal superior. Como se apresenta expresso no relatório que antecede, na presente acção a autora, e, presentemente, os autores habilitados peticionavam a condenação do réu «a reconhecer que alterou, culposamente, as condições do contrato de compra e venda identificado no artigo 1º desta petição e a pagar-lhe o montante necessário ao restabelecimento do equilíbrio do contrato de compra e venda que deverá ser determinado nomeadamente pela diferença entre o valor do terreno face à construção que nele realmente foi implantada, deduzido do montante que por ele pagou devidamente actualizado com a desvalorização da moeda e do custo da infra-estruturação, valor esse acrescido dos juros de mora desde a citação até efectivo pagamento. O Tribunal de 1.ª instância considerou que era devido aos autores o pagamento pelo Município Réu do valor correspondente à diferença a liquidar em ulterior incidente de liquidação entre o preço declarado na escritura pública a que se alude em a. dos factos provados, e o preço de mercado que os prédios tinham à data da escritura de doação à Universidade, por uso do instituto da modificação do contrato por alteração das circunstâncias. Desta decisão apresentaram apelação, ambas as partes, os AA por entenderem que o valor da indemnização deveria ter em conta a avaliação efectuada na segunda perícia por traduzir a totalidade do implantado no terreno, e o Município por entender que nenhuma quantia deveria ser condenada a pagar aos autores habilitados. O Tribunal da Relação conheceu apenas do recurso apresentado pelo réu, que julgou procedente, por ter entendido que não era aplicável ao caso o disposto no art.º 437.º do Código Civil. Tal decorre de todo o acórdão, mas está sumariado nos seguintes parágrafos: « Procede, assim, também por estes fundamentos, a apelação apresentada pelo réu, o que implica a revogação da sentença recorrida e a consequente improcedência da ação uma vez que aos recorrentes/autores não assiste o direito potestativo de impor ao réu a modificação (ou a resolução) do contrato de compra e venda em causa já que não se mostra preenchida a previsão do n.º 1 do artigo 437.º do CC. Com a procedência da apelação apresentada pelo réu e a consequente improcedência da ação fica necessariamente prejudicado o conhecimento do recurso apresentado pelos habilitados/autores, atento o seu objeto, sendo que este tem como pressuposto a verificação de todos os requisitos do direito à modificação do contrato por alteração anormal das circunstâncias que determinaram a decisão de contratar, o que não acontece. Pelo exposto, cumpre julgar procedente a apelação apresentada pelo réu e totalmente improcedente a apelação apresentada pelos habilitados/autores.». O Supremo Tribunal de Justiça, na revista, pelas razões constantes do acórdão entendeu que o Tribunal de 1.ª instância fizera o enquadramento jurídico correcto dos factos provados por ser aplicável aos autos o disposto no art.º 437.º do Código de Processo Civil, mas não decidiu repristinar a decisão proferida pelo tribunal de 1.ª instância, porque estava por conhecer o recurso de apelação dos autores cujo objecto era não só o momento a que deveria atender-se para definição do valor da indemnização, mas os concretos factos provados no processo que permitiriam essa determinação. Tal bastaria para concluir que o Supremo Tribunal de Justiça não entendia possível apenas confirmar a decisão de 1.ª instância, o que sempre teria de ser tido em conta pelo tribunal recorrido como limite da sua decisão. Mas o acórdão anterior desta instância não disse apenas que a situação sub judice era passível de enquadramento no instituto consagrado no art.º 437.º do Código Civil. Para tal concluir, e evidenciando a sua discordância com o entendimento antes professado pelas instâncias disse também, tomando expressa posição sobre os argumentos antes esgrimidos pelas partes e o respectivo tratamento que obtiveram das instâncias: « a matéria de facto, nomeadamente a sentença proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga, menciona que o despacho que deferiu o licenciamento do loteamento é de 05.05.1998, o despacho que deferiu o licenciamento da operação de loteamento é de 18.08.2000, o despacho que deferiu o licenciamento da operação de loteamento no processo 373/2000, que levou à emissão do alvará n.º 21/2 é de 02.03.2001, tendo este alvará sido emitido em 06.05.2002, o despacho que deferiu o licenciamento de construção para o lote 1 do loteamento n.º 45/00, que levou à emissão do alvará n.º 1136/2006, é de 25.08.2005, tendo o dito alvará sido emitido em de 16.12.2006, sendo certo que as construções a eles respeitantes, a ter sido cumprida a lei, ocorreram nos anos posteriores. As obras de infra-estruturas do alvará de loteamento n.º 45/00 foram recebidas provisoriamente em 01/09/2003 e, definitivamente em 13/09/2010, momento em que se encontravam concluídas, conforme documentos junto aos autos pelo recorrido Município de Guimarães em 19/09/2019. Não menos importante é que a declaração de nulidade de todos esses actos de deferimento com fundamento na violação do art.º 30º, nº 3 do Regulamento do Plano Director Municipal de Guimarães aprovado em 18/07/1994 pela Assembleia Municipal de Guimarães, que permitiu construção urbana em zona de equipamentos, ocorreu por sentença proferida em 31.03.2016, que foi confirmada por Acórdão do Tribunal Central Administrativo, proferido em 12.04.2019, muito depois de proposta esta acção. Assim, mesmo sem se conhecer a data exacta em que os recorrentes terão tido conhecimento, ou poderiam razoavelmente ter tido conhecimento de que tinha sido dado um destino diferente ao imóvel que venderam à Câmara Municipal, o certo é que as sucessivas operações de licenciamento, loteamento e construção decorreram ao longo de muitos anos até ganharem a forma final que hoje assumem e são determinantes, do ponto de vista dos recorrentes, para a definição do direito que se arrogam, muito distantes dos ditos 20 anos. Apesar disso, o prazo de prescrição ordinária é de 20 anos por tal ser o período temporal eleito pelo legislador para o exercício legitimo da generalidade dos direitos, a menos que comportamentos específicos gerem razoavelmente a confiança na contraparte de o seu titular a eles ter renunciado. Mas, nada se mostra alegado a este propósito, muito menos indiciariamente provado. Não existem, pois, factos provados que permitam concluir que os recorrentes ao pretenderem obter judicialmente a resolução ou modificação do contrato de compra e venda que celebraram com o Município de Guimarães, com fundamento em alteração anormal das circunstâncias, procedem a um ilegítimo exercício desse direito, seja por excederem manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito, como estabelecido no art.º 334.º do Código Civil.» Tal significa que o Supremo Tribunal de Justiça considerou que era legítimo o exercício do direito desencadeado pelos AA nesta acção e de particular relevância a declaração de nulidade dos actos de licenciamento das construções praticado pelo réu. Em particular quando analisou a questão jurídica de resolução/modificação do contrato por alteração anormal das circunstâncias o Supremo Tribunal de Justiça indicou que: «(…) apesar de as principais prestações do contrato de compra e venda estarem realizadas, o destino do bem adquirido só se corporizou no futuro. Ora a indicação desse destino não foi irrelevante, pelo contrário, foi decisiva para a declaração de vontade de contratar da vendedora, como decorre da matéria de facto provada. Como resulta da matéria provada a construção da escola profissional, naquele local, era também um factor determinante para o comprador se dispor a comprar os ditos terrenos apresentando-se mesmo como a única explicação para a manifestação de vontade do comprador em adquiri-los. O comprador é uma autarquia local que não é um promotor imobiliário, nem pode desenvolver actividade de especulação imobiliária. As despesas que efectua têm de ter enquadramento orçamental, serem autorizadas, tendo em conta o concreto fim a que se destinam, e, a respectiva relevância para a realização do interesse público municipal. Acresce que, neste caso, o comprador é um ente público que tem também o poder para licenciar construções e indeferir licenciamentos, para conceder, rejeitar ou suspender pedidos de informação sobre a viabilidade de construção, o gestor urbanístico por excelência, com especial obrigação de tratar com igualdade todos os seus munícipes. Toda a dinâmica pré contratual demonstra a relevância desse fim para a celebração do contrato, e, para ambas as partes. O terreno que o comprador tinha indicado à vendedora que não dispunha de aptidão edificativa, usando o seu “jus imperii urbanístico”, que pretendia adquirir para nele instalar uma escola profissional, o que se realizaria através da compra e venda, que veio a ocorrer, ou, através de expropriação por utilidade pública, com valorização do terreno segundo a sua aptidão agrícola, veio afinal, poucos anos depois, em violação da lei e com actos nulos, a ser licenciado para construção, por esse mesmo comprador. (…) A indicação do referido fim a que se destinava o terreno não era uma condição a que ficou subordinado o contrato, não era uma prestação a que o comprador estava obrigado por força desse contrato, mas um pressuposto do negócio sem o qual a vendedora não teria aceitado vender o terreno, muito menos pelo preço pago. (…) Na situação dos autos não divisamos a existência de qualquer erro do vendedor ou incumprimento de um dever lateral de conduta por parte do comprador. Há o desvio relativamente ao fim a que o comprador declarou destinar o bem adquirido, que, como antes indicamos, foi determinante para a realização da venda e a fixação do preço, desvio esse só aparente muitos anos após a celebração do contrato de compra e venda. A declaração efectuada pelo Presidente da Câmara na escritura de compra e venda quanto ao fim a que se destinava o terreno não é um mero formalismo sem conteúdo, por ter sido proferida na sequência do indeferimento do pedido de informação sobra a viabilidade de construção naquele terreno, mas também porque, como resulta da declaração de nulidade de todos os despachos de deferimento de loteamento, de emissão de alvará, de deferimento do licenciamento de construção, aquele terreno estar destinado a equipamentos. Foram alteradas, de forma profunda e anormal, as circunstâncias sobre as quais as partes formaram a sua vontade de contratar. (…) O comprador, em 1980 informou da inviabilidade da construção no terreno, que depois comprou, assente na área de protecção à Universidade que ainda não estava definida qual fosse, (…). Chegado a 1989 o comprador decidiu doar o prédio à Universidade para construção, indiferente também, ao que seria a classificação urbanística do terreno. No bem adquirido pelo recorrido não foi implementada a escola profissional, mas construídos cinco blocos de residências universitárias, habitações e áreas comerciais e, como definiram os Tribunais Administrativos e Fiscais, em violação da lei. O recorrido abandonou o projecto de construção da escola profissional, e, em 1989 doou o terreno, que qualificou de terreno para construção, para nele serem construídas residências universitárias, sem qualquer condicionante, veio, depois, a licenciar a sua edificação, que antes declarara à vendedora estar interdita pelas regras urbanísticas. Tal actuação do recorrido para além da nulidades dos despachos que proferiu assentes em violação das regras urbanísticas, afecta de forma grave os princípios da boa-fé e não pode ter-se por abrangida pelos riscos próprios do negócio. Com efeito não estamos perante dois particulares que transaccionam um terreno considerando que ele não tem aptidão edificativa e, mais tarde, por alteração do PDM, passa a ter essa aptidão. Esta alteração nem seria anormal nem exterior aos riscos próprios do negócio. Muito diversamente, na situação dos autos, o comprador é quem tem o poder de informar se o terreno tem capacidade edificativa, e informa a vendedora que não tem e, mais tarde, mesmo em desrespeito pelas regras urbanísticas em vigor, vem sobre esse mesmo terreno a conceder a outrem, à Universidade do Minho, e, depois, à empresa de construção - licença de construção. Não está em causa apenas o conteúdo do direito de propriedade, mas uma miríade de poderes-deveres que o recorrido usou/abusou em prejuízo da autora. Mesmo que, entre o negócio com a autora e o licenciamento da construção, o recorrido haja efectuado uma doação, negócio gratuito, à Universidade do Minho, tendo sido esta que vendeu os terrenos a quem obteve o licenciamento de parte das construções que nele hoje existem, parecendo que apenas a Universidade do Minho e este terceiro construtor terão obtido vantagens económicas dos terrenos, não tendo estes tido qualquer intervenção no negócio com a autora, o certo é que o Município comprou à autora esses terrenos, que doou, por um preço muito inferior ao devido, graças ao artifício de ter-lhe indicado que os terrenos não tinham capacidade construtiva e se destinavam à implementação de uma escola profissional, com isso obtendo um ganho evidente. O desequilíbrio entre as prestações decorre, não de se instalar ou não a escola profissional, mas de se ter convencido o vendedor de que não podia construir no dito terreno e vir, mais tarde, a permitir essa construção a um terceiro, sendo que a possibilidade/impossibilidade de construção é gerida exclusivamente pelo comprador – Município. O comportamento do recorrido que apenas se tornou manifesto em 1989, quando declara doar um terreno para construção, vindo a licenciar o loteamento e a construção, não só foi ilegal, como declararam os Tribunais Administrativos e Fiscais, mas fere a ética e a boa-fé que deve estar subjacente a qualquer negócio, sobretudo se nele tiver intervenção um ente público, como aqui ocorre, cuja missão é a realização do interesse público em conformidade com a lei. (…) Sendo certo que no contrato de compra e venda translativo da propriedade de um imóvel, a regra geral é a de que o vendedor, adquirido o direito de propriedade, goza do pleno direito de alterar o destino do bem, no caso concreto dos autos, os factos que resultaram provados pelas instâncias demonstram que a base objectiva do negócio pressuponha sempre que o imóvel nunca poderia vir a ser apto para construção, nos termos já acima expostos. (…) Consequentemente, impõe-se a revogação do acórdão recorrido na parte em que considerou não ser aplicável o disposto no art.º 437.º do Código Civil e determina-se, ao abrigo do disposto no art.º 679.º do Código de Processo Civil, a baixa dos autos ao tribunal recorrido para que, em face da definição do direito aplicável, tome conhecimento das demais questões que lhe foram presentes no recurso de apelação, cujo julgamento julgou prejudicado». Não pode considerar-se que a definição do quadro normativo levada a cabo pelo Supremo Tribunal de Justiça, e, a que estava a partir daí inexoravelmente vinculado o Tribunal recorrido, no caso concreto, se referia apenas à aplicação do disposto no art.º 437.º do Código Civil, que é uma clausula aberta, que o tribunal há-de concretizar afeiçoando-o à matéria provada para definir a justa solução do litígio. O Supremo Tribunal de Justiça analisou vários outros elementos a ter em conta na modificação do contrato, definindo alguns deles – como resulta dos sublinhados e negritos anteriores, ficando claro que, dada a especial condição do vendedor, ente público com exclusiva competência para autorizar a construção de imóveis, ao contrário do que seria normal acontecer com um normal comprador privado, por definição sem competência para autorizar ou indeferir pedidos de licenciamento de construção urbana, toda a construção que o réu permitiu no dito terreno, em desrespeito pela lei, o que é da maior relevância, e, não algo de somenos importância e irrelevante, como parece ter entendido o tribunal recorrido, há-de ser tido em conta para reestabelecer o equilíbrio das prestações do contrato em análise. A decisão proferida pelo Supremo Tribunal de Justiça transitou em julgado porque não é susceptível de recurso ordinário ou reclamação – art.º 628.º do Código de Processo Civil -, sendo obrigatória, nos seus precisos termos, dentro do processo para as partes e as instâncias. Mostra-se, pois, em frontal contradição com o antes constante do acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça, neste processo o acórdão recorrido quando fundamenta a sua decisão do seguinte modo: «(…) Neste enquadramento, não vemos motivos para considerar desajustada a solução adotada pela 1.ª Instância, com base nos seguintes fundamentos que sufragamos inteiramente: «(…) Ora, relativamente à data em que a Autora negociou e concluiu o contrato com o Município Réu, houve alteração da destinação dos prédios: consoante se mencionou, no presente, neles estão construídos três blocos que constituem a residência universitária da Universidade do Minho e ainda dois edifícios destinados a habitação multifamiliar e a comércio. Contudo, a modificação a que o Réu deu causa direta foi apenas a edificação dos blocos residenciais universitários. Isto porque a construção das edificações levadas a cabo por uma sociedade empreiteira teve como antecedente a celebração de uma escritura de permuta, no ano de 1997, entre ela e a Universidade do Minho. Salvo melhor opinião, o que se passou após a doação (que data do ano de 1989) já não foi da autoria do Município Réu, que, com esse ato, deixou de ter poderes de disposição sobre a coisa. É certo que o Réu, no exercício das suas competências, acabou por viabilizar as construções que foram instaladas no local (através de atos de licenciamento que, segundo se apurou, foram declarados nulos). Contudo, esse processo de licenciamento decorreu do exercício de competências que a lei defere aos municípios. O Réu, ao doar a parcela à Universidade do Minho, ficou privado de poderes de gozo e de fruição sobre os prédios; e ante o facto de este ter sido parcialmente transmitido a terceiro, por negócio de permuta, estava obrigado a tramitar e a apreciar a pretensão que este lhe viesse a formular sobre as potencialidades construtivas do referido imóvel, à luz dos instrumentos urbanísticos que estavam em vigor à data. Não é, por isso, imputável à conduta do Município Réu a construção de blocos de habitação e espaços comerciais em parte da parcela vendida pela falecida Autora. Embora a construção tenha sido autorizada por via de atos de licenciamento, este comportamento já não tem a ver com a aquisição de direito de privado do prédio à Autora primitiva. O que, nesta parte, é de censurar ao Réu é o facto de ter licenciado uma construção com violação dos instrumentos jurídicos urbanísticos aplicáveis ao local, conforme, aliás, já foi efetuado pelos Tribunais administrativos, que declararam a nulidade dos atos de licenciamento havidos. Todavia, essa censura, como decorre do que se acabou de escrever, está conexionada com a violação de normas de direito do urbanismo. É verdade que decorreu da produção de prova que o Réu esteve a par das negociações estabelecidas entre a Universidade do Minho e a sociedade terceira e que, no decurso das mesmas, inclusive efetuou um estudo sobre a conveniência da permuta, que lhe foi solicitado pela donatária. Ainda assim, essa participação teve lugar (bastantes anos) após a doação, depois de o Réu ter perdido o domínio jurídico da coisa, acontecendo que, na base da transmissão à Universidade do Minho, pretendeu prosseguir um interesse de natureza comunitária, que era o de permitir a fixação de estudantes universitárias em Guimarães. Depois, a necessidade da permuta radicou, não num facto atinente ao Réu, mas por interesse da Universidade do Minho (que havia prolongado a construção das residências por um imóvel terceiro). Daí se entende que a modificação do destino que existiu por força da intervenção da sociedade empreiteira beneficiária da permuta não é já imputável ao Réu. Outra seria a resposta se o Município tivesse conhecimento, ao tempo da doação, que a Universidade do Minho iria efetuar uma permuta com terceiro, sabendo do interesse deste em promover construção urbana privada, o que não se apurou. (…)». Em suma, acompanhamos a solução adotada na decisão recorrida, quanto à data ou momento a que se devem reportar os critérios que relevam para o cálculo do valor necessário para repor o equilíbrio das prestações acordadas pelas partes, a qual se revela adequada e equitativa à luz das circunstâncias do caso que relevam para o efeito, justificando-se uma modificação do contrato que permita restituir aos autores a diferença entre o valor de mercado que os prédios alienados pela falecida autora tinham à data em que o réu deixou de ter poderes de uso, fruição e disposição sobre os mesmos (coincidente com a doação feita à Universidade do Minho), devidamente atualizada até à decisão que a vier a fixar em sede de ulterior incidente de liquidação (e deduzido do preço já pago pelo réu, atualizado a essa data). Como tal, não existem razões para censurar a solução adotada na decisão impugnada.» Como estatui o art.º 4.º da Lei da Organização do Sistema Judiciário - Lei n.º 62/2013 de 26 de Agosto, os juízes julgam apenas segundo a Constituição e a lei e não estão sujeitos a quaisquer ordens ou instruções, salvo o dever de acatamento das decisões proferidas em via de recurso por tribunais superiores, dever este também mencionado no art.º 4.º do Estatuto dos Magistrados Judiciais, aprovado pela Lei n.º 21/85 de 30 de Julho, sob a epígrafe “Independência” - dever de acatamento pelos tribunais inferiores das decisões proferidas, em via de recurso, pelos tribunais superiores. Admite-se que o Tribunal recorrido tenha efectuado uma leitura menos profunda do acórdão anterior do Supremo Tribunal de Justiça e se tenha reconduzido a aplicar o instituto da alteração anormal das circunstâncias, como, afinal, tinha feito o tribunal de 1.ª instância, cuja decisão decidiu reproduzir, sem atentar devidamente que o momento decisivo para determinação do valor a ter em conta para concretizar o equilíbrio das prestações não era, no entendimento do Supremo Tribunal de Justiça, aquele em que fora efectuada a doação à Universidade, por deficiente interpretação deste acórdão, direccionada exclusivamente à decisão, sem igual ponderação dos respectivos fundamentos, e sem intenção de desrespeitar tal decisão. O pedido formulado na petição inicial foi de: «Nestes termos e nos melhores de Direito deve a presente acção ser julgada procedente e provada e, por via dela, condenado o Réu a reconhecer que alterou, culposamente, as condições do contrato de compra e venda identificado no artigo 1º desta petição e a pagar-lhe o montante necessário ao restabelecimento do equilíbrio do contrato de compra e venda que deverá ser determinado nomeadamente pela diferença entre o valor do terreno face à construção que nele realmente foi implantada, deduzido do montante que por ele pagou devidamente actualizado com a desvalorização da moeda e do custo da infra-estruturação, valor esse acrescido dos juros de mora desde a citação até efectivo pagamento.». Tendo em conta o que fica dito sobre a alteração anormal das circunstâncias e o seu reflexo na necessidade de reposição do equilíbrio das prestações este corresponderá à diferença entre o valor atribuído ao terreno vendido, à data do contrato de compra e venda celebrado entre a autora e o município, com base na sua aptidão exclusivamente agrícola e aquele que veio a mostrar-se real – valor do terreno com a capacidade construtiva nele actualmente existente-, deduzido a este último o custo das infra-estruturas atinentes a essa capacidade construtiva, também na data da celebração do contrato de compra e venda, e do valor efectivamente pago à autora. O valor de tal diferença de valores (pago e o que deveria ter sido pago) atento o longo tempo entretanto decorrido deverá sofrer a actualização decorrente da desvalorização da moeda, tendo em conta o decurso de tempo entre o momento em que a autora recebeu o valor escriturado do terreno que vendeu e aquele em que fica definido em abstracto o justo valor do terreno. Pelo exposto, impõe-se revogar parcialmente o acórdão e condenar o réu a pagar aos autores a quantia a liquidar em execução de sentença, relativa ao restabelecimento do equilíbrio das prestações efectuadas pelas partes no contrato de compra e venda a que se refere a alínea a) dos factos provados, nos termos do disposto no art.º 437.º do Código Civil, correspondente à diferença a apurar, em liquidação de sentença, entre o valor atribuído ao terreno vendido, à data do contrato de compra e venda celebrado entre a autora e o município, com base na sua aptidão exclusivamente agrícola, e, aquele que veio a mostrar-se real – valor do terreno com a capacidade construtiva nele actualmente existente, deduzindo a este o custo das infra-estruturas atinentes a essa capacidade construtiva, aferido à data da celebração do contrato de compra e venda, e o valor efectivamente pago à autora. O valor da diferença assim apurado será actualizado em termos monetários de acordo com as taxas de desvalorização da moeda até ao trânsito em julgado desta decisão e vencerá juros de mora a partir do momento em que a prestação devida se mostrar líquida nos termos do disposto no art.º 805.º do Código Civil. * * * * III – Deliberação Pelo exposto, acorda-se em conceder a revista, revogar parcialmente o acórdão e condenar o réu a pagar aos autores a quantia a liquidar em execução de sentença, relativa ao restabelecimento do equilíbrio das prestações efectuadas pelas partes no contrato de compra e venda a que se refere a alínea a) dos factos provados, nos termos do disposto no art.º 437.º do Código Civil, correspondente à diferença a apurar, em liquidação de sentença, entre o valor atribuído ao terreno vendido, à data do contrato de compra e venda celebrado entre a autora e o município, com base na sua aptidão exclusivamente agrícola e aquele que veio a mostrar-se real – valor do terreno com a capacidade construtiva nele actualmente existente, deduzindo a este o custo das infra-estruturas atinentes a essa capacidade construtiva, aferido à data da celebração do contrato de compra e venda, e o valor pago à autora no momento da celebração do contrato de compra e venda. O valor da diferença assim apurado será actualizado em termos monetários de acordo com as taxas de desvalorização da moeda até ao trânsito em julgado desta decisão, e, vencerá juros de mora a partir do momento em que a prestação devida se mostrar líquida nos termos do disposto no art.º 805.º do Código Civil. * Lisboa, 3 de Abril de 2025 Ana Paula Lobo (relatora) Isabel Salgado Maria Graça Trigo |