Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
20421/22.7T8LSB.L1.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: ISABEL SALGADO
Descritores: RECURSO DE REVISTA EXCECIONAL
DUPLA CONFORME
REAPRECIAÇÃO DA PROVA
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
LIVRE APRECIAÇÃO DA PROVA
ALTERAÇÃO DOS FACTOS
ADMISSIBILIDADE
VIOLAÇÃO DE LEI
QUESTÃO NOVA
MATÉRIA DE FACTO
MEIOS DE PROVA
CONFISSÃO DE DÍVIDA
PAGAMENTO
JUROS
Data do Acordão: 11/06/2025
Votação: UNANIMIDADE COM * DEC VOT
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: INDEFERIDA
Sumário :
I. No capítulo da apreciação das provas, como vem sendo reiterado, a intervenção do Supremo Tribunal de Justiça fica reservada ao controlo de alegadas violações de lei substantiva ou processual, assim se compreendendo a regra vertida no artigo 674º, nº3, do CPC

II. Ressalvadas as situações de excepção, o Supremo Tribunal não interfere na convicção a que as instâncias chegaram sobre a matéria de facto sujeita ao princípio geral da prova livre, pelo que não é admissível a revista com semelhante fundamento.

III. A revista excecional para além de ter de satisfazer um dos pressupostos previstos no artigo 672º n.º 1, do CPC, só é possível desde que a revista, em termos gerais, seja admissível e, o seu único obstáculo, a dupla conforme.

Decisão Texto Integral:

Acordam em Conferência os Juízes no Supremo Tribunal de Justiça

1. DETAILSMIND – ENGENHARIA E CONSTRUÇÃO, S.A., intentou contra WLA6 PROPERTIES, LDA. acção declarativa sob a forma de processo comum, pedindo o pagamento da quantia em dívida de € 177.455,89 (após ampliação) juros de mora e taxas de justiça.

No prosseguimento dos ulteriores termos da instância, realizada a audiência final, foi proferida sentença na qual a acção foi julgada parcialmente procedente, e a Ré condenada no pagamento à Autora da quantia de € 78.373,03 e absolvida no demais.

2. A Autora interpôs recurso de apelação da sentença.

Em suporte da motivação recursiva requereu em síntese, que a Relação procedesse:

“ [..] à alteração da matéria de facto, designadamente o facto n.º 18 para os termos já expostos e requeridos em sede de alegações, e revogue a sentença proferida nos termos supra peticionados, condenando a Ré/Apelada a pagar à A./Apelante a totalidade do montante devido pela “Dívida”, a título de capital, quer dos correspondentes juros de mora, vencidos e vincendos e demais despesas e quaisquer outras despesas emolumentares e contingências judiciais (Cláusula Sexta), sem qualquer limite de 10%.

O recurso foi jugado improcedente e, a sentença confirmada.

3. Mantendo o seu inconformismo, a Autora interpôs recurso de revista do acórdão da Relação. O instrumento de recurso tem o seguinte teor:

«[..]Vem do mesmo interpor RECURSO de REVISTA para o Supremo Tribunal de Justiça nos termos do disposto nos arts. º 671.º, n.º 1, 674.º, n.º 1 als. a), b) e c) e n.º 3 do Cód. de Processo Civil, e, subsidiariamente, RECURSO de REVISTA EXCECIONAL nos termos do art.º 672.º, n.º 1 als. a) e c) do Cód. De Processo Civil.

A Recorrente, além de se não conformar com a fixação que os Tribunais a quo fizeram da matéria de facto, seja porque foram desconsiderados elementos probatórios essenciais, seja porque os factos provados estão em total oposição ao decidido, seja porque a fixação dos factos materiais padece de nulidade por inobservância dos poderes de cognição do Tribunal, por violação do disposto nos arts.º 5.º e 615.º, n.º 1 al. d) do Cód. de Processo Civil, discorda-se ainda, e também relativamente à “solução” de direito que foi dada pelo Tribunal a quo, às duas “questões” de direito suscitadas e apreciadas [..].»

*

Nas contra-alegações o recorrido pronunciou-se pela não admissão da revista.

4. Prefigurando-se em análise perfunctória a não admissão do recurso, ouvidas as partes, seguiu-se decisão da relatora que não admitiu a revista.

A recorrente apresenta reclamação, ao abrigo da faculdade prevista no artigo 652º, nº3, ex vi artigo 679º do CPC, para que o Colégio se pronuncie e a revista seja admitida.

Aponta ao despacho singular o vício de nulidade por falta de fundamentação e de omissão de pronúncia, e em prol da admissibilidade da revista, renovou o argumentário anterior, destacando :

“ [..]que suscita a violação de preceitos adjectivos relacionados com a aplicação do art. 662º do CPC “, concretamente a violação por violação das normas de direito probatório - “ [..] impõe a admissão da revista nos termos da al. a) do n.º 1, n.º 2 e n.º 3 do art.º 674.º do Cód. de Processo Civil.”

E, quanto à admissão subsidiária como revista excecional, sustenta que o acórdão revidendo, “ [..]nas opções de direito que tomou violou o estabelecido nos arts.º 783.º e 785.º do Cód. Civil, em oposição e desconsideração pelo entendimento jurisprudencial constante do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, processo n.º 442/15.7T8PVZ.P1.S1, datado de 13/07/2017, e no acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, processo n.º 3161/12.2TBLRA-A.C1,datado de 17/07/201”; a revista excecional justifica-se também ao abrigo da al. a) do n.º 1 do art.º 672.º do Cód. de Processo Civil na medida em que tem relevância e pertinência para fixação de jurisprudência relativamente à questão da imputação dos juros moratórios, que é controversa.”

Não foi apresentada resposta pela Ré.

*

5.1. Discordante da decisão singular, a reclamante começa por apontar as nulidades por falta de fundamentação e por omissão de pronúncia.

A reclamação para a conferência do despacho do relator - artigo 652º, nº3, do CPC - constitui um meio reclamatório especial, correspondendo a um “instrumento”, pelo qual a parte visa obter a alteração da decisão singular, por outra, que lhe seja favorável, a proferir pelo colectivo1.

O colectivo decide em conferência sobre o objecto da reclamação em plena autonomia e por maioria, do que poderá resultar a confirmação, substituição ou alteração da decisão anterior do relator.

Neste quadro processual, não tem o Colégio de se pronunciar sobre os argumentos dos reclamantes acerca da regularidade e mérito da decisão singular, alegadamente proferida em seu prejuízo; outrossim, é convocado para conhecer do tema decisório e apreciar a matéria2.

Posto isto, a questão sobre a qual a conferência se tem de pronunciar é a seguinte – o acórdão da Relação que confirmou a sentença admite revista com os fundamentos invocados pela recorrente?

5.2. Num primeiro aspecto, tendo a Recorrente interposto a revista, alegando que o tribunal a quo na reapreciação da matéria de facto não observou as regras previstas no artigo 662º do CPC e normas de direito probatório, apesar da convergência de julgados das instâncias, constitui jurisprudência uniforme do Supremo Tribunal que semelhante circunstância descaracteriza a dupla conformidade decisória3.

Aplicado aos autos, defendendo a Recorrente tal fundamento da revista, configurar-se, portanto, uma situação de interposição de revista ordinária e não excepcional.

Não sendo absoluta a asserção – o Supremo apenas conhece de matéria de direito, e às instâncias a competência exclusiva da apreciação e fixação da matéria de facto – a lei é taxativa a identificar as situações de excepção em que se admite revista neste domínio - artigo 674º, nº3 ex vi artigo 682º do CPC.

Decorre, pois, que, no domínio da matéria de facto é consentido ao Supremo Tribunal de Justiça sindicar o invocado exercício deficiente pelo Tribunal da Relação dos poderes consignados no artigo 662.º do CPC, enquanto norma de direito adjetivo.

Esta intervenção reveste caráter excecional e residual e destina-se, essencialmente, a garantir a observância das normas de direito probatório material, sendo as decisões da Relação adotadas ao abrigo do artigo 662.º, nº1 e 2,do CPC, irrecorríveis, conforme o imperativo do seu n.º 4 do CPC.

No capítulo da apreciação das provas, como vem sendo reiterado, a intervenção do Supremo Tribunal de Justiça, em recurso, fica reservada ao controlo de alegadas violações de lei substantiva ou processual, assim se compreendendo a regra vertida no artigo 674º, nº3, do CPC; i.e. apenas se encontra legitimado a decidir sobre a violação das regras de direito probatório e se o uso de presunções judiciais ofende qualquer norma legal (por ex, a que proíbe o uso de presunções), se padece de manifesta ilogicidade ou se parte (base da presunção) de factos não provados, ou seja, se há violação e errada aplicação da lei do processo4.

Tem-se, por isso, uniformemente observado, que em recurso de revista não é possível controlar decisões sobre a matéria de facto, salvo se, no fundo, resultarem da aplicação de regras de direito, por se basearem em meios de prova com valor legalmente tabelado ou se estiver em causa a admissibilidade de meios de prova, que afinal correspondem a erros de direito.

Como exemplos impressivos, pode o Supremo Tribunal “ […] cassar uma decisão sustentada em determinado facto cuja prova , dependente de documento escrito, foi declarada a partir de depoimento testemunhal. De documento de valor inferior, de confissão ineficaz ou de presunção judicial…ou descurado o valor probatório pleno de determinado documento[ …]5.”

Para dizer que, caso não ocorra nenhum dos citados desvios, em que poderia admitir-se a intervenção do Supremo – cfr. arts. 682.º, n.º 2 e 674.º, n.º 3, do CPC- fica arredada a revista quanto à decisão sobre a matéria de facto, na medida em que não cabe no seu âmbito de atribuições a reapreciação de provas sujeitas ao princípio da livre apreciação, ou, o controlo de ilações de facto.

5.3. Contextualizando.

Evidencia a análise das alegações e das conclusões da revista que a Recorrente e ora reclamante, discorda da valoração das provas trilhada pela Relação; e defende a alteração da redacção do facto provado sob o nº 18: “A Autora sabia que o pagamento de € 900.000,00 feito pela Ré se destinava a pagar a dívida de capital na totalidade6”.

O acórdão recorrido julgou improcedente a impugnação do facto e apreciou o tópico conforme se transcreve:

“ [..] A recorrente pugna por que se considere errada a decisão recorrida quanto ao ponto 18 dos factos provados, porquanto, no seu entender, os depoimentos das testemunhas AA, Diretor financeiro da Apelante, e BB, Técnico Oficial de Contas da Apelada e economista, apontam no sentido de que os €900 000, 00 liquidados pela recorrida devem ser imputados às dívidas mais antigas da Ré para com a Autora. Essencialmente, a Apelante defende a sua posição com base no depoimento prestado pela testemunha AA, entendendo-o como prova bastante para que o Tribunal a quo tivesse de considerar provado”.

E, no passo adiante do acórdão, no desenvolvimento do iter decisório , repristinou a fundamentação da 1ª instância:

“[..] Finalmente quanto ao facto provado em 18, o Tribunal teve em consideração tanto o documento junto a fls. 184 vs. e 185 que fundou o facto provado em 17, em conjugação com as declarações de parte do Legal Representante da Ré CC, que confirmou que a quantia de € 900.000,00 destinava-se em primeiro lugar ao pagamento de todas as facturas e para fazer face a alguns juros vencidos, mas tem noção que ficariam alguns juros por pagar. Ora, as declarações do Legal Representante têm respaldo no recibo junto a fls. 184 vs. 185, ou seja, no recibo emitido pela Autora do qual resulta que o pagamento efectuado pela Ré de € 900.000,00 foi em primeiro imputado às facturas respeitantes à empreitada e em último lugar ao valor da factura n.º 1930 que respeita aos juros vencidos. Assim, impõe-se referir que o documento particular que o credor entrega ao devedor, designado literalmente por “recibo”, com o sentido de “quitação” pela quantia em dívida, porque integra declaração, faz prova quanto à realidade destes factos, criando uma espécie de “presunção” de que o pagamento existiu e a forma como o pagamento existiu. Deste modo, face a esse documento com as declarações nele insertas, cabia ao credor, ora Autora, demonstrar que o que nele consta e que se presume como tal, não correspondia à realidade, ou seja, incumbia-lhe fazer contraprova daquilo que resulta do “recibo”, o que não ocorreu no caso concreto...)A testemunha AA, director financeira da Autora desde Janeiro de 2021, não mereceu a credibilidade deste Tribunal. Assim, refere que aquando do documento de confissão de dívida, a dívida era de cerca de € 885.000,00 e que os juros vencidos já ascendiam a € 280.000,00 e as custas e despesas com honorários de advogados cerca de 97 mil Euros.

No entanto, quando confrontado com o documento junto aos autos a fls. 184 vs. e 185 (facto provado em 17), designadamente para referir a que diz respeito a factura 1930, o mesmo não teve qualquer convicção, dizendo que “deverá ser juros”. Ora, aí já se percebe que o valor mencionado pela testemunha em dívida em Setembro de 2021 era de cerca de 280 mil Euros e posteriormente em Dezembro de 2021 a Autora emite uma factura relativas a juros das facturas em dívida no valor de € 92.581,00, valor substancialmente inferior. E não se diga que não está contabilizada os juros de uma factura, como realmente acontece, ou seja, a factura n.º 1354, porque essa factura tem o valor de € 607,50 e data de vencimento de 31 de Julho de 2020, ascendendo os juros a € 60,35. Também não se diga que não estão contabilizados na factura 1930 os juros respeitantes ao valor em dívida da factura n.º 1442, porquanto tal factura está expressamente mencionada na factura n.º 1930.

Assim, há um total desfasamento dos valores mencionados pela testemunha da Autora, director financeiro, e os constantes dos documentos pela própria Autora emitidos. Não demonstrando objectividade no que toca a estes pontos, o Tribunal também não pode considerar esse depoimento quanto a eventuais interpretações do acordo de confissão de dívida e pagamento (sendo que apenas tem conhecimento do mesmo, sem ter intervindo nas negociações ou na sua subscrição).

Quanto à testemunha da Ré BB e apesar de ter um depoimento objectivo e isento, pouco ou nada acrescentou para a descoberta da verdade, porquanto apenas confirmou o registo do pagamento de € 900.000,00, não tendo conhecimento do cálculo dos juros do acordo, nem a taxa aplicada.”

Mais, considerou ainda o tribunal a quo em reforço da ausência de motivo para a pretendida alteração da redacção do facto 18, que a argumentação da Recorrente introduzia uma “ questão nova” que não alegara na petição inicial:

“ [..] importa verificar se se logrou provar se houve ou não acordo quanto a cessação de contagem de juros relativamente aos valores em dívida.

E, a este respeito, o “Acordo de Confissão e Pagamento”, ressalvou expressamente na cláusula segunda que os juros vencidos e vincendos não estavam contabilizados, vindo os vincendos até 31.12.2021 a ser contabilizados em €92.581,00.

Portanto, em termos lógicos, tendo o pagamento dos €900 000, 00 tido lugar a 12.01.2022, o primeiro abatimento a ser feito seria aos juros civis contabilizados até 31.12.2021, permanecendo a contagem de juros enquanto a dívida de capital não se encontrasse totalmente liquidada.

No que concerne à redação assente (ponto 18 dos factos provados) – fundada em alegação em sede de contestação -, tendo a Autora assumido o recibo mencionado e apresentado na contestação, tal como se considerou em sede de convicção probatória ao nível da sentença recorrida, e não tendo a mesma Autora, sequer, em sede de resposta, alegado quaisquer circunstâncias que relevassem como erro na declaração (art. 247º do CC) ou erro de cálculo ou de escrita (art. 249º do CC), é inevitável concluir como o juiz a quo, não obstante o depoimento da testemunha AA no sentido da imputação do pagamento, em primeira linha, aos juros vencidos, atribuindo a responsabilidade pela imputação feita no recibo assente em 17) ao automatismo do programa contabilístico. E foram esses mesmos inteligência ou automatismo do sistema contabilístico invocados como causa de pedir recursal, o que constitui uma novidade em termos processuais. Com efeito, a Autora não o invocou na petição inicial – em rigor, omitiu o recibo em causa -, como o não fez na resposta. Sucede que, ademais, a Autora não aproveitou, então, a oportunidade para erigir a questão processual, sendo cumprido os devidos contraditórios, sob pena de violação da norma estrutural do art. 3º n.º 3 do CPC. Estamos, pois, perante uma questão nova .[..]“

A Recorrente não questiona o acórdão da Relação por não cumprir em boa forma o iter processual legalmente imposto em termos de reapreciação crítica da prova (violação ou errada aplicação da lei de processo), situação em que a revista é por norma admissível7.

O dissídio reporta em exclusivo à desaprovação da matéria provada sob o ponto 18, assente em prova documental e pessoal, não constituindo factualidade sujeita a prova tarifada ou que documente inobservância de regra de direito probatório8.

O sentido probatório alcançado pelo tribunal a quo reporta a facto passível de demonstrar por todos os meios de prova consentidos em direito e, o erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objeto de recurso de revista.

E, com as ressalvas retro assinaladas, está vedado ao Supremo Tribunal modificar ou sancionar a decisão fáctica fixada pela Relação quando esteja em causa a valoração de meios de prova sem valor tabelado, sujeitos à livre apreciação do julgador9.

De outro passo, na perspectiva da violação de normas de direito probatório, é justamente, a Recorrente que parece desconsiderar o valor de prova plena do acordo de confissão de dívida junta a fls. 184/5, ao alegar “ ex novo”, e, portanto, sem êxito, a prevalência probatória dos elementos da sua escrita - contabilidade e os depoimentos das testemunhas que indica e também objecto de avaliação crítica pelo tribunal a quo10.

Donde, não competindo ao Supremo Tribunal interferir na convicção a que as instâncias chegaram sobre a matéria de facto sujeita ao princípio geral da prova livre, – art.º 366.º, 396.º do Código Civil e 466.º do Código de Processo Civil - insindicável pelo Supremo Tribunal de Justiça nos termos do disposto no art.º 682.º e 674.º do Código de Processo Civil exposto no artigo 607.º, n.º 5, do CPC, à luz desta limitação recursória , não é admissível a revista.

6. A recorrente interpôs, a título subsidiário, revista excecional sob os fundamentos previstos nas alíneas a) e c) do no nº2, do artigo 672º do CPC.

A revista excecional está sujeita a formalidades próprias, em razão da sua especificidade, e para além de ter de satisfazer um dos pressupostos previstos no artigo 672º n.º 1, do CPC, só é possível desde que a revista, em termos gerais, seja precedentemente admissível, com o único obstáculo da dupla conforme .

No caso, a impossibilidade da revista decorre do fundamento/objecto da impugnação do acórdão da Relação - decisão sobre a matéria de facto- que está fora do perímetro de intervenção do Supremo Tribunal , conforme estabelece o artigo 674º, nº, 3 do CPC.

Dando por adquiridas as razões que motivaram a não admissão da revista (normal) também fica comprometida a impugnação do acórdão sob a via da revista excepcional.

6.1. A questão crucial objecto da revista, associada ao ponto 18 dos factos provados prende-se com a discussão do dies a quo da contagem dos juros de mora em razão dos pagamentos parcelares da quantia em dívida.

Em termos jacentes, a Recorrente anuncia que “não está de acordo com a solução de direito” do acórdão recorrido.

Sucede que as conclusões ( e o corpo das alegações) da revista respeitam afinal e apenas à discussão da matéria da prova do facto 18, cuja reapreciação pela Relação a recorrente dissente; este é o único ponto que condicionou a solução de direito do acórdão recorrido (em confirmação da sentença) no segmento com o qual a Recorrente não se conforma .

Como se disse, não é admissível o recurso de revista cujo objecto de discordância do recorrente corresponde à apreciação da prova , em consonância com o disposto no artigo 674.º n.º 3, do CPC, salvo nas hipóteses de ofensa de disposição expressa da lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova.

As situações de excepção não se enquadram no âmbito do caso em juízo, como se viu, e os requisitos da revista normal são, também, hoc sensu, requisitos da revista excepcional, valem aqui as anteriores considerações de inadmissibilidade da revista por impropriedade do fundamento.

A admissibilidade da revista excepcional só poderia ser admitida se, no processo em causa, também o fosse a título normal ou extraordinário se inexistisse dupla conforme, o que pelas razões expostas não ocorre.

6.2. Não obstante o que ficou dito, existe outro obstáculo à admissão da revista no que se prende com alegação do fundamento excecional previsto na al) a do nº2 do artigo 672º do CPC.

A Recorrente limitou o esforço de alegação à discordância com a “orientação” seguida pela Relação, sem enunciar as razões concretas e objectivas, reveladoras de “complexidade ou controvérsia jurisprudencial ou doutrinária da questão”, a exigir superação pela intervenção do Supremo em futuros casos semelhantes.

Mais, a “questão” que a Recorrente atribuiu complexidade/ineditismo corresponde àquela outra, relativa à impugnação da convicção do julgador a quo, que se alicerçou em documento sem força probatória plena e prova testemunhal, e cuja reapreciação, nestes termos, está fora das atribuições do Supremo Tribunal.

De todo o modo, não pode garantir a admissibilidade da revista excecional a singela alegação genérica, de que a questão jurídica subjacente ao dissídio é relevante e controvertida na jurisprudência para justificar a revista excepcional com fundamento no disposto no art.º 672.º n.º 2 a) do CPC.

Na concretização da relevância da questão jurídica essencial cuja apreciação em 2ª instância lhe foi desfavorável, o recorrente limitou-se a uma genérica remissão / reprodução do conteúdo literal do citado preceito legal, pelo que, não alegou em suficiência as razões que demonstrem, que a apreciação da matéria releve na aplicação do direito, a dita complexidade ou controvérsia jurisprudencial ou doutrinária, para além do seu interesse casuístico de parte no litígio, que pretende uma terceira via de recurso.

A manifesta falta de cumprimento do ónus de alegação do fundamento determina a rejeição da revista - 637.º, n.º 2 e 672.º, n.º 2,in fine do CPC11.

6.3. Finalmente, no que respeita à alegada oposição entre o acórdão recorrido e o acórdão do STJ, processo n.º 442/15.7T8PVZ.P1.S1de 13/07/2017, para motivar a admissão (subsidiária) da revista excecional- alínea c) do nº2 do artigo 672º do CPC12.

A contradição de julgados equacionada e que releva como conditio da admissibilidade do recurso da revista pressupõe, entre o demais, a semelhança do núcleo central da situação de facto e das normas jurídicas interpretadas e aplicadas, i.e, a pronúncia sobre a mesma questão fundamental de direito, com resultados dissemelhantes.

Ora, as questões jurídicas e a base factual em cada um dos arestos na situação em análise não coincidem, conforme evidencia a sua análise comparativa.

No acórdão (fundamento) do Supremo Tribunal de Justiça proferido em 13-07-2017, cuidava -se de apreciar se, apesar da rejeição da impugnação da decisão da matéria de facto, a Relação deveria conhecer o seu objecto.

A questão decidida no acórdão recorrido não tem qualquer sobreposição com a descrita; o tribunal a quo admitiu e reapreciou a matéria de facto impugnada pelo recorrente ( ponto 18 dos factos provados), embora não contemple a argumentação da recorrente para alcançar a alteração, por a mesma constituir “questão nova” nunca antes alegada ou apreciada.

*

Em suma, a revista não é admissível.

7. Pelo exposto, acordam os Juízes em julgar improcedente a reclamação, mantendo -se a inadmissibilidade da revista.

Custas pela reclamante, fixando-se em 3 UC a taxa de justiça.

Lisboa, 6.11.2025

Lisboa, 6 de Novembro de 2025

Isabel Salgado (relatora)

Emídio Francisco dos Santos

Ana Paula Lobo

Declaração de voto -Não acompanho a decisão que logrou vencimento, na parte em que se pronuncia sobre a não existência de oposição entre o acórdão recorrido e o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13/07/2017, proferido no processo n.º 442/15.7T8PVZ.P1.S1, dado que nos termos do disposto no art.º 672.º, n. 3 do Código de Processo Civil essa análise é da competência exclusiva da formação constituída por três juízes escolhidos anualmente pelo presidente de entre os mais antigos das secções cíveis, para garantir uniformidade na admissão da revista excepcional, competência que não pode ser derrogada por norma interna de gestão do Supremo Tribunal de Justiça.

_________

1. Cfr. RUI PINTO in julgar on line, maio de 2020, p.30; e ABRANTES GERALDES, in Recursos no Novo Código de Processo Civil, -anotação ao artigo 652º, 7ª edição, p.303.

2. Na mesma linha, também a admissão do requerimento do reclamante dirigido à conferência para que profira acórdão, não depende de justificação particular na defesa da posição contrária ao despacho do relator, conforme expressou o Tribunal Constitucional no Acórdão nº514/213.

3. Cfr.inter alia, AC.STJ de 19-01-2017 - Revista n.º 159854/10.8YIPRT.P1.S1 e de 14-09-2017 - Revista n.º 1676/13.4TBVLG.P1.S1,in www.dsgi.pt.

4. Cfr. inter alia os Ac.STJ de 3.11.2021 , proc nº 2777/12, de 31.3.2022, proc nº 505/17), in www dgsi.pt↩︎

5. Cfr. Abrantes Geraldes in Recursos em Processo Civil, 7ªp.478.

6. A redação proposta pela Autora recorrente era a seguinte : “ A Autora emitiu em 12/01/2022 recibo da quantia de 900.000,00 € (novecentos mil euros) transferida em 31/12/2021 pela Ré, a qual por força do programa automático de contabilidade, foi contabilisticamente alocado às facturas mais antigas.”

7. A fundamentação da decisão de facto consiste na indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal, que constitui a enunciação das razões de ciência reveladas ou extraídas das provas administradas, a razão de determinada opção relevante por um ou outro dos meios de prova, os motivos da credibilidade dos depoimentos, o valor de documentos e exames que o tribunal privilegiou na formação da convicção. Nos autos, ademais , é de registar que o acórdão prosseguiu a melhor técnica na reapreciação da prova e fundamentação da sua convicção autónoma , analisando de forma crítica todos os elementos probatórios convocados por ambas as partes e as razões da opção probatória.

8. A eventual discussão do ónus probatório sobre o aludido recibo foi tida como questão nova e, portanto, excluída também à nossa apreciação.

9. Au contraire, quanto a certos factos, a lei dita ao julgador a conclusão e relevância a retirar de certo meio de prova - a dita prova legal ou tarifada ( prova bastante, prova plena e prova pleníssima).

10. Cfr. arts. 347.º e 372.º, n.º 1, do CC.

11. Seguindo orientação consistente neste Supremo, inter alia nos Ac.STJ de 12/11/2020 proc. nº 2496/19.8T8STB.E1.S, e o Ac STJ de 14.11.2024 2188/18.5T8SLV-A.E1.S1, STJ de 11/05/2022, proc. 1924/17.1T8PNF.P1.S1, de 30/03/2022, Proc. n.º 5881/18.9T8MAI.P1.S2, de 17/03/2022, Proc. n.º 28602/15.3T8LSB.L2.S2, e de 11/05/2021, Proc. n.º 3690/19.7T8VNG.P1.S2, disponíveis in www.dgsi.pt.

12. Sobre o Ac.do Tribunal da Relação de Coimbra de 17-01-2017, proc. n.º 3161/12.2TBLRA - o recorrente só pode indicar um único acórdão fundamento e não vários para fundamentar a contradição de julgados quanto à mesma questão fundamental de direito; não obstante, diga-se que não há contradição, pois a ampliação da matéria de facto que se cuidava foi considerada pelo tribunal da Relação, enquanto o acórdão recorrido não admitiu por se tratar de questão nova suscitada pelo recorrente na apelação.