Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
05S3821
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: VASQUES DINIS
Descritores: JUSTA CAUSA DE DESPEDIMENTO
DEVERES DO TRABALHADOR
DEVER DE ZELO E APLICAÇÃO
DEVER DE LEALDADE
FALTA DE CUMPRIMENTO DOS DEVERES
PERDA DE CONFIANÇA
Nº do Documento: SJ200605030038214
Data do Acordão: 05/03/2006
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA.
Sumário : I - O despedimento com justa causa, pressupõe, nos termos do n.º 1 do artigo 9.º do Regime Jurídico da Cessação do Contrato Individual de Trabalho e da Cessação do Contrato de Trabalho a Termo (LCCT), aprovado pelo Decreto- -Lei n.º 64-A/89, de 27 de Fevereiro, um comportamento ilícito e culposo do trabalhador, de tal gravidade objectiva, que - apreciado no quadro da gestão da empresa, tento em conta, entre outras circunstâncias relevantes, o grau de lesão de interesses da entidade empregadora, o carácter das relações entre as partes ou entre os trabalhador e os seus companheiros - torne, prática e imediatamente, impossível a subsistência da relação laboral, ou seja, torne inexigível ao empregador a manutenção do vínculo, o que supõe um juízo de prognose sobre a viabilidade daquela relação, que só não poderá manter-se se o trabalhador destruir ou abalar, de forma irreparável, a confiança na idoneidade futura da sua conduta.
II - Incorre em violação grave dos deveres de lealdade e de executar o trabalho com zelo e diligência, consignados no artigo 20.º, n.º 1, alíneas a) e b), o trabalhador - com percurso profissional ascendente ao longo de mais de 19 anos de serviço - que, ocupando a terceira posição hierárquica, num determinado sector da organização da empresa, e sendo responsável pela verificação da boa realização de obras contratadas com entidade terceira, apõe a sua rubrica em dois autos de medição, certificando, para efeito de pagamento, a boa realização de trabalhos que não chegaram a ser efectuados, e, assim, criando uma situação apta a causar prejuízos à entidade patronal.
III - Tais comportamentos geram irremediável quebra de confiança na idoneidade futura do comportamento do trabalhador, tornando imediata e praticamente impossível a manutenção da relação laboral, não obstando à aplicação da sanção expulsiva o facto de, na pendência do inquérito e do processo disciplinar, o trabalhador se manter em funções, exercendo tarefas de responsabilidade, correspondentes à sua categoria profissional, não relacionadas com pagamentos de serviços a terceiros.
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça:

I

1. "AA" propôs, no Tribunal do Trabalho de Lisboa, contra "Empresa-A.", acção, pedindo:
- A declaração da ilicitude do seu despedimento;
- A condenação da Ré a reintegrá-lo, sem prejuízo da categoria, antiguidade, posto de trabalho e retribuição, e a pagar-lhe:
- Todas as retribuições vencidas desde o despedimento até à notificação da decisão judicial;
- A importância de € 125,00 (cento e vinte e cinco euros), a título de sanção pecuniária compulsória, por cada dia em que, por qualquer forma, a contar da citação, a Ré se abstenha de atribuir tarefas ao Autor.

Alegou, em síntese, que:

- Foi admitido ao serviço da CP, em 17 de Janeiro de 1983, com a categoria de Engenheiro Técnico, e integrado na Empresa-A, em Janeiro de 1998, tendo, como último posto de trabalho, a Empresa-B (Zona Operacional de Conservação) Sul, sita em Beja, e o vencimento base de € 2.500,00;
- Desde 1 de Outubro de 2000, passou a desempenhar as funções de responsável pela Via e Geotecnia da Empresa-B, directamente dependente do responsável da Empresa-B, Eng. BB, o qual por sua vez reportava ao Director Coordenador de Conservação Eng. CC, este directamente dependente do Conselho de Administração da Ré;
- Estava incumbido da efectivação de trabalhos de Programação e Planeamento das Obras de Via e Geotecnia, na já referida Empresa-B, sendo que todos os trabalhos eram submetidos a apreciação e autorização prévias;
- Na sequência de processo disciplinar, foi despedido no dia 31 de Julho de 2002;
- Só no dia 20 de Março de 2002 tomou conhecimento da instauração do processo disciplinar, verificando-se a caducidade do exercício do procedimento disciplinar;
- Não foram, no referido processo, realizadas as diligências probatórias requeridas, nem foi informado do motivo por que não se realizaram, o que consubstancia falta de audição do arguido e constitui nulidade insuprível, do que decorre a nulidade do despedimento;
- Não violou qualquer dever profissional, designadamente o de lealdade, e não foi alegada factualidade para sustentar a impossibilidade de subsistência da relação laboral;
- Durante a instrução do processo disciplinar, até meados de Abril de 2002, continuou a beneficiar de especial relação de confiança, traduzida na atribuição de funções de responsabilidade, e foi objecto de avaliação profissional, com resultado acima da média e promovido, com conhecimento a 19 de Março de 2002.

A Ré contestou, suscitando a incompetência territorial do Tribunal do Trabalho de Lisboa, e concluindo pela improcedência da acção.

No despacho saneador, foi julgada improcedente a excepção da incompetência relativa.

Efectuado o julgamento, foi proferida sentença que julgou a acção improcedente.

2. O Autor apelou da sentença, tendo o Tribunal da Relação de Lisboa, no parcial provimento do recurso, decidido condenar a Ré a reintegrá-lo no seu posto de trabalho, sem prejuízo da categoria, antiguidade e retribuição, e a pagar-lhe as retribuições vencidas desde o despedimento até ao trânsito do acórdão, bem como no pagamento da quantia de € 100,00, por cada dia de atraso no cumprimento da obrigação de reintegração, a contar da data do mesmo trânsito.

Dessa decisão vem interposto o presente recurso de revista, cuja alegação termina com as conclusões assim redigidas:

A) Como fundamento da declaração de ilicitude de despedimento considerou a Veneranda Relação de Lisboa, face às razões que apontou, não se verificarem ".... dois dos requisitos ou pressupostos da justa causa de despedimento ..." (vide fls. 21, do acórdão em Revista) os quais, cremos, serem expendidos, pela negativa, a fls. 20 do acórdão em recurso, isto é, a assunção de tais comportamentos pelo trabalhador "... não se apresenta com uma gravidade tal que, por si só, tenha a virtualidade de justificar a adopção da sanção disciplinar mais grave aos dispor da Ré/Apelada para censurar esses comportamentos." e "... não se apresenta de molde a quebrar a confiança que a Ré/Apelada, até então, tinha colocado no Apelante e no exercício das funções de que o incumbira, e a tornar inexigível para aquela a manutenção do vínculo laboral entre ambos existente.".
B) As razões apontadas no acórdão em Revista para revogar a sentença recorrida, com fundamento na violação do artigo 9.º, n.º 1 e do artigo 12º, n.º 5, do regime jurídico aprovado pelo Decreto-Lei n.º 64-A/89, de 27 de Fevereiro (doravante, abreviadamente, denominado LCCT), em virtude de não se verificar justa causa para despedimento são, essencialmente, as razões alegadas pelo trabalhador Apelante - e contrariadas nas alegações da Apelada.
C) O elenco de factos e circunstâncias subjacentes às razões apontadas (a fls. 20 e 21, do acórdão) para erodir a gravidade dos comportamentos descritos (a fls. 18 e 19, do acórdão) e a impossibilidade da subsistência da relação de trabalho consta do elenco arrolado sob o número 6 das alegações expostas acima
D) O objecto da presente Revista cinge-se a saber se as considerações de Direito sobre o referido elenco de razões são, ou não, capazes para desqualificar os comportamentos do trabalhador como justa causa para o seu despedimento. Vejamos, detalhadamente, da sua consistência para o efeito.
E) A primeira razão, aludida na alínea I) do número 6 supra, consiste no acórdão em recurso entender que os comportamentos do trabalhador estão circunscritos a um curto espaço de tempo (i.e., de 20.10.2001 a 03.11.2001), designadamente, quando comparado com todo o seu percurso profissional, quer ao serviço da CP, E.P. (i.e., desde 17.01.1983), quer ao serviço da sucessora Empresa-A, ora Recorrente (i.e., desde 01.01.1998).
F) Ressalve-se, porém, que já se havia alegado ser irrelevante para o objecto do recurso de Apelação quaisquer questões relativas aos factos respeitantes a esse uso, pois, não tendo sido por provado que esse uso houvesse sido ordenado e autorizado pelo trabalhador, decidiu a sentença recorrida que o facto de "... não dar conhecimento do uso de equipamento pela Empresa-C. não constitui justa causa de despedimento.".
G) Ficaram provados os comportamentos fundamento de justa causa de despedimento sucintamente descritos nas alegações sob números 12, 13 e 14 acima.
H) Sobre a gravidade dessas reiteradas condutas, dispõe a sentença do Tribunal de primeira instância que "... são, cada uma por si, fundamento para despedimento com justa causa e, a ter havido apenas negligência do A., só como negligência grosseira pode ser considerada." (vide fls. 12 da sentença) pois, conforme antes considerou, "... ainda que se conceda actuação seja somente negligente, nem por isso ela deixa de ser grave, pois qualquer técnico de que a R. se socorre para confirmar trabalhos cujo pagamento está a ser reclamado por terceiros, não poderá nunca dar por realizados trabalhos sem a prévia e total certificação da sua realização." (vide fls. 11, da sentença), pelo que é inabalável no uso do critério do bonus pater familiae serem, objectivamente, consideradas condutas culposas (e, no mínimo, por negligência grosseira) sendo, cada uma de per si, manifestamente, graves.
I) Maior é a gravidade quanto aos (inexistentes) trabalhos de remoção de terras cuja (falsa) realização e conclusão foi certificada pelo ora Recorrido, conforme descrito no número 12 acima, porque é manifesto que essa conduta do trabalhador não pode ter sido meramente negligente, mas sim dolosa, pois, ficou provado que o ora Recorrido tinha conhecimento que esses trabalhos de remoção de terras haviam sido realizados nos anos de 1998 e 1999 com o seu próprio assentimento.
J) Foi a especial relação de confiança que a ora Recorrente investiu ao longo do tempo no ora Recorrido (e que o permitia exercer com autonomia a função de acompanhamento e certificação da conclusão de trabalhos cujo pagamento era reclamado por terceiros à Recorrente), que sofreu ruptura irreversível, mercê da gravidade dos comportamentos sucintamente descritos nos números 12, 13 e 14 acima, porquanto, pela sua antiguidade, retribuição, funções e posição hierárquica, impendia sobre o ele um especial dever de lealdade, zelo e diligência no desempenho da sua prestação de trabalho (que, note-se, violou tanto por acção como, também, por omissão pois, posteriormente, perpetuou o seu incumprimento nunca elaborando os autos de mediação concordantes com a realidade, em reposição da verdade e do cumprimento dos seus deveres).
K) A invocada antiguidade do ora Recorrido impende a seu desfavor, pois, era precisamente em razão desse predicado que sobre ele impendia uma especial obrigação de observância dos deveres de lealdade, zelo e diligência que, ao invés, foram reiteradamente violados em resultado de uma suposta "negligência grosseira" cuja justificação é incompreensível, uma vez mais, face à sua antiguidade e posição na empresa, levando a inevitável e irreversível suspeição sobre a razão desses seus comportamentos e sobre a idoneidade da sua conduta futura.
L) A não ser assim, face à maior antiguidade de um trabalhador perante a prática de um facto grave, ou por ser a primeira vez, resultaria sempre a benesse de não constituir justa causa de despedimento o que, obviamente, não é admissível em geral e, muito menos, no caso dos autos, pelo que não pode proceder a aludida razão.
M) No concreto caso dos autos, contesta-se que a falta de efectivos prejuízos materiais seja relevante para aferir da inexigibilidade da manutenção do vínculo laboral, pois, atendendo ao carácter das relações entre as partes, o que está é causa é a irremediável lesão da confiança existente, em virtude dos comportamentos graves e culposos assumidos pelo ora Recorrido, conforme descritos nos números 12, 13 e 14 supra.
N) Para essas condutas concretizarem fundamento de justa causa de despedimento não carecem de materializar-se em efectivo dano pecuniário, bastando a virtual qualidade de constituírem "... situação susceptível de criar prejuízo..." material à Recorrida. Caso contrário cair-se-ia no absurdo de exigir à empresa que aguardasse a produção de efectivo prejuízo material para poder alegar justa causa de despedimento (quando esta já sofre uma efectiva situação de perigo) o que, naturalmente, não pode ser.
O) Consequentemente, uma vez mais, impõe-se deixar aqui expresso o frontal desacordo com a Veneranda Relação de Lisboa quando decide que "... pouco interessa para a decisão da causa o apuramento de meras conjecturas ou possibilidades em termos de matéria de facto. O que apenas poderia relevar seria o apuramento de factos concretos que pudessem levar o Tribunal a concluir que a rubrica aposta pelo Autor nas aludidas facturas e autos de mediação havia, efectivamente, causado prejuízo à Ré e qual o respectivo montante." (vide 2.º parágrafo de fls. 12, do acórdão em recurso).
P) Sendo, em geral, certo que o preenchimento da cláusula geral de justa causa de despedimento não está dependente da verificação de efectivos prejuízos materiais, tal conclusão não exclui, conforme a doutrina citada, que a virtualidade da sua ocorrência seja considerada quando é inerente às especiais circunstâncias envolventes do caso concreto, aliás, a potencialidade da sua ocorrência tem imperativamente de ser considerada perante o comando legal do artigo 12.º, n.º 5, da LCCT, que obriga o Tribunal a atender "... às demais circunstâncias que no caso se mostrem relevantes." conforme adiante se evidenciará.
Q) Não é possível ao julgador ignorar a capacidade das requisições de serviço, dos autos de medição e das facturas rubricados pelo ora Recorrido habilitarem a "Empresa-C" a receber da ora Recorrente os reclamados pagamentos de Esc. 13.083.900$00 (total das facturas n.º 150/2001, n.º 151/2001, n.º 152/2001, n.º 265/2001 e n.º 266/2001) e de Esc. 1.041.300$00 (total da factura n.º 269/2001) conforme valores presentes, respectivamente, na alínea Z) e EE) da matéria dada por assente e constante da Fundamentação do acórdão em recurso de fls. 9.
R) No tocante ao auto de medição e factura n.º 270/2001 (no valor de Esc. 5.696.100$00), somente reconheceu a risco de habilitarem o pagamento reclamado pela "Empresa-C.", sem o quantificar, porquanto uma diminuta parte do respectivo serviço havia sido prestado (foram colocadas 219 travessas - vide número 14 supra), ao contrário dos casos referido no número anterior, em que os serviços não haviam sido prestados na sua totalidade e, portanto, era simples de ver que o risco de prejuízo equivalia a todo o valor do pagamento reclamado - vide alínea MM) da matéria dada por assente e constante da Fundamentação do acórdão em recurso de fls. 10.
S) O determinante para a boa decisão de Direito não é saber se a circunstância constituída pelo devir de causa (comportamento trabalhador) a efeito (promoção de pagamento) pode, ou não, integrar o teor matéria de facto assente nos termos decididos em primeira instância, ou seja, concluindo que o efeito dessa causa constitui um risco de causar prejuízos, mas se essa circunstância envolvente dos comportamentos do ora Recorrido deve ser ponderada em sede de qualificação como justa causa de despedimento (e deve, conforme foi acima expresso no número 31 acima, por força do comando legal do artigo 12º, n.º 5, da LCCT.
T) Deve manter-se escrita a formulação dada às respostas presentes nas alíneas Z), EE) e MM) pois, apenas consiste no reconhecimento de uma causa/efeito da vida real que pode ser apreendida sem recurso a qualquer conceito jurídico sendo que, no caso, não é um juízo concluído indevidamente ou que se confunda com o thema decidendum, não se lhe aplicando a cominação do artigo 646º, n.º 4, do Código de Processo Civil (vide, a propósito, acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 09.10.2003, no proc. n.º 03B1816, publicado in www.dgsi.pt) e, ainda, pela seguinte razão:
U) Existem nos presentes autos as circunstâncias de facto que esclarecem a razão por que não se verificaram em concreto os prejuízos materiais (ou seja, o efectivo pagamento das facturas relativas aos serviços não prestados) que são as presentes na informação elaborada pelo Director da Empresa-B e que originou o não pagamento das aludidas facturas e a instauração do processo disciplinar que resultou no despedimento dos autos (conforme presente na alínea D) da matéria dada por assente e constante da Fundamentação do acórdão em recurso a fls. 7) o que, por outro lado, também revela que o não pagamento das facturas (e consequente inexistência de efectivos prejuízo materiais), resultou da conduta do Director responsável pela Empresa-B e não de posterior acção do ora Recorrido que reconhecesse e remediasse a sua indevida conduta ou revelasse o seu arrependimento (o que, aliás, nunca aconteceu).
V) Entre as mais importantes atribuições da Rede Ferroviária Nacional - Empresa-A, está, precisamente, o cumprimento da finalidade de "...construção, instalação e renovação das infra-estruturas ferroviárias, sempre com observância das regras gerais sobre o regime financeiro a que estão sujeitos os investimentos em infra-estruturas ferroviárias de longa duração (ILD)." na observância do seu objecto principal que consiste na "... prestação do serviço público de gestão da infra-estrutura integrante da rede ferroviária nacional..." (vide, respectivamente, o teor do artigo 3.º, n.º 1 e do artigo 2.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 104/97, de 29 de Abril, que constituiu a Empresa-A, ora Recorrente). Sublinhado nosso.
W) Na prossecução do interesse público ditado pela mencionada finalidade, a ora Recorrida integrou o ora Recorrido nos seus quadros, em Janeiro de 1998, com um vencimento mensal base no valor de Eur. 2.259,57, acrescido de diuturnidades no montante de Eur. 62,13, tendo o ora Recorrido, em Outubro de 2000, por nomeação do Conselho de Administração, passado a desempenhar as funções de Responsável pela Via e Geotecnia, incumbindo-lhe a efectivação de trabalhos de Programação e Planeamento das Obras de Via e Geotecnia, na dependência do responsável pela direcção da Empresa-B, Eng.º BB, o qual por sua vez reportava ao Director Coordenador de Conservação, este directamente dependente do Conselho de Administração da ora Recorrida - vide, as alíneas A), B) e C), da matéria dada por assente e constante da Fundamentação do acórdão em recurso de fls. 6 a 12.
X) Atendendo ao principal interesse da actividade Recorrente e ao seu reflexo na sua relação com o Recorrido, conforme descrito nos números 39 e 40 acima, de imediato se apreende que o interesse da ora Recorrente importava uma especial relação de confiança no ora Recorrido expressa, nomeadamente, pela sua directa nomeação para as funções de Responsável pela Via e Geotecnia, cujo efeito lhe conferiu uma relevante posição na empresa, pois, entre si e o Conselho de Administração da Empresa-A, passaram a mediar apenas duas posições hierárquicas superiores na escala da empresa (o Director da Empresa-B, Eng.º BB e, acima deste, o Director Coordenador de Conservação, Eng.º CC).
Y) Para cumprimento dessas funções o ora Recorrido era responsável pelos meios que eram postos à sua disposição para detectar as necessidades de conservação da via e por elaborar as consequentes propostas que considerasse necessárias para a conservação da via, sendo certo que todos os trabalhos de conservação propostos que envolvessem responsabilidades da ora Recorrente com terceiros, eram superiormente submetidos a apreciação e autorização prévia onde, o ora Recorrido, não tinha poder decisório, porém, uma vez autorizada a sua proposta e desenrolado o procedimento de adjudicação da obra a terceiro, a realização desses trabalhos voltava à sua guarda para proceder ao seu acompanhamento e fiscalização, gerindo com autonomia os meios para esse fim postos à sua disposição pela empresa - vide, as alíneas OO), BBB), CCC) e DDD), da matéria dada por assente e constante da Fundamentação do acórdão em recurso de fls. 6 a 12.
Z) A ora Recorrente, pela sua natureza, exerce a sua actividade sujeita a "... regras gerais sobre o regime financeiro a que estão sujeitos os investimentos em infra-estruturas ferroviário..." e, portanto, carece de orçamentar a prossecução dessa actividade mediante um permanente trabalho de levantamento e controlo das necessidades de "... construção, instalação e renovação ..." dessas infra-estruturas, bem como o controlo da sua respectiva execução e conclusão (o que deve ser inerente ao dispêndio do erário público).
AA) Foi precisamente no âmbito da realização dessa missão que a ora Recorrente nomeou o ora Recorrido e lhe conferiu os poderes e meios necessário para o efeito (a desempenhar quanto à via e geotecnia sob a jurisdição de toda a Empresa-B) e, por outro lado, foi precisamente no exercício desses poderes de controlo das necessidades de obras, sua execução e conclusão que o ora Recorrido lesou a confiança que lhe tinha sido conferida pela ora Recorrente, assumindo uma sucessão de condutas que resultaram provadas e que, sinteticamente, se traduziram na participação na elaboração de falsas requisições de serviço em nome da ora Recorrente (vide número 12 acima), de falsos autos de medição atestando a conclusão de trabalhos inacabados (vide número 14 acima) e de outros nem sequer iniciados (vide número 13 acima), conferindo, portanto, a falsa realização e a falsa conclusão de trabalhos mediante a aposição da sua rubrica em autos de medição ou facturas sem correspondência com a realidade e emitidas sempre pelo mesmo terceiro (a "Empresa-C.") que reclamava o seu pagamento da ora Recorrente (vide números 12, 13 e 14 acima) isto, quando, o ora Recorrido até tinha a obrigação de saber que um dos pagamentos reclamado correspondia a trabalho já realizado em 1998 e 1999 com o seu próprio assentimento (vide número 14 acima) promovendo, desta forma, os pagamentos de serviços que não haviam sido prestados - conforme consta da alínea FF), da matéria dada por assente e constante da Fundamentação do acórdão a fls. 9 - e que, portanto, eram indevidos.
BB) É manifesto que as condutas do ora Recorrido são claramente da maior gravidade, não só por ter uma posição hierárquica relevante na hierarquia profissional da empresa como, para cúmulo, por ter actuado de forma inadequada exactamente na área laboral onde se lhe exigia ser especialmente cuidadoso, violando culposamente o especial dever de lealdade a que estava adstrito, atendendo ao teor de todas circunstâncias que envolveram suas condutas e, designadamente, as referidas nos números 39 a 43 supra.
CC) Perante o detalhado e justificado rol de factos e respectivas circunstâncias envolventes entendemos, no balanço entre os interesses da urgência da desvinculação e da manutenção do contrato, não existirem quaisquer elementos que ditem uma valoração cujo peso não penda a reconhecer irreversivelmente quebrada a confiança da ora Recorrente no ora Recorrido, com a consequente impossibilidade prática de subsistência da relação laboral, por ter deixado de existir o suporte psicológico mínimo para a sua manutenção, pelo que acertadamente decidiu o Tribunal de primeira instância a verificação de justa causa de despedimento
DD) Entendeu a Veneranda Relação de Lisboa descaracterizar a gravidade do comportamento do ora Recorrido, atendendo à circunstância que os seus trabalhos também eram submetidos a acompanhamento de execução por parte do responsável pela Empresa-B (i.e., o seu director, Eng.º BB), "... verificando-se que, por exemplo, as referidas facturas 150/2001; 151/201; 152/2001; 265/2001 e 266/2001 também foram objecto da rubrica de outros responsáveis, sem que a Ré/Apelada tivesse alegado ou demonstrado qualquer censura sobre esses outros responsáveis pela prática de tais factos." (vide o 2.º, parágrafo, a fls. 21, do acórdão em Revista). Sublinhado nosso.
EE) Se a Veneranda Relação de Lisboa reconhece que não está provado que a empresa, ora Recorrente, tenha agido disciplinarmente contra outros trabalhadores, como pode depois admitir determinante na ponderação sobre a verificação, ou não, de justa causa de despedimento, o facto de não se haver verificado "... qualquer censura sobre esses outros responsáveis pela prática de tais factos." sendo essa circunstância omissa na matéria de facto assente na fundamentação do acórdão em Revista? Sobre quem incide o ónus da prova dos factos descaracterizadores da justa causa de despedimento? Será que a entidade patronal tem o ónus de provar todos os factos e circunstâncias (i.e., pela positivas e pela negativo) que importem para a apreciação da justa causa?
FF) É ónus do ora Recorrido a prova (de acordo com as regras gerais do artigo 342.º, n.º 2, do Código Civil), das circunstâncias excluídas do quadro de factualidade constitutiva da situação da impossibilidade contratual ónus da ora Recorrente (artigo 12.º, n.º 4, LCCT), pelo que se insiste, ser inadmissível que a Veneranda Relação de Lisboa tenha tomado aquela decisão em desfavor da ora Recorrente, com fundamento na ausência da prova de uma factualidade cujo ónus impendia sobre o trabalhador e não sobre a empresa.
GG) Não está provado se existiu, ou não, procedimento disciplinar ou qualquer outra censura sobre a conduta de qualquer outro responsável da ora Recorrente, tal decisão é até desprovida de substância que possibilite ser conhecida pelo julgador pelo que essa decisão deve ser revogada pelos Venerandos Conselheiros do Supremo Tribunal de Justiça.
HH) Ainda que se achasse assente factualidade que demonstrasse inexistir qualquer processo disciplinar ou censura sobre a conduta do referido director responsável pela Empresa-B, o Eng.º BB, esta não seria bastante para considerar essa omissão de per si suficiente para fundar a posição assumida no acórdão em Revista, pois, seria ainda necessário existir matéria de facto assente cujas circunstâncias envolventes determinassem concluir que a conduta desse responsável era censurável ao ponto de carecer da instauração de processo disciplinar para aplicação da correspondente sanção.
II) A este propósito a matéria de facto assente nos autos aponta, precisamente, no sentido inverso (conforme o acima comentado no número 36, relativamente à factualidade assente nos autos sobre as circunstâncias que obviaram a efectivação de prejuízos materiais advenientes da conduta do trabalhador), pois, foi justamente o director responsável pela Empresa-B, Eng.º BB, que, no cumprimento de suas funções de acompanhamento da execução das tarefas do ora Recorrido, questionou a correcção das condutas deste e sobre elas elaborou uma informação escrita ao Director Coordenador da Conservação (junta de fls. 16 a 18, do processo disciplinar apenso) que desembocou no não pagamento das referidas facturas e na instauração do processo de inquérito e disciplinar que resultaram no despedimento dos autos, - conforme presente nas alínea D), E), F) e I), da matéria dada por assente e constante da Fundamentação do acórdão em recurso a fls. 7.
JJ) A circunstância do ora Recorrido não ter sido objecto de suspensão preventiva e de, no decurso do processo disciplinar, ter obtido um resultado positivo em sede de avaliação profissional, não se revestem de qualidade para revogar a decisão da primeira instância que determinou a impossibilidade da subsistência da relação laboral existente. Vejamos, já de seguida, o porquê.
KK) A suspensão preventiva do trabalhador é um acto discricionário da entidade patronal que a determinará no exercício do seu poder direcção em função das suas conveniências e em respeito pelo limites legais estabelecidos, como resulta da redacção do artigo 11.º, n.º 1, da LCCT, "... com a notificação da nota de culpa pode a entidade empregadora suspender preventivamente o trabalhador sem perda de retribuição.", onde a locução, por nós sublinhada, evidencia que a suspensão se trata de uma faculdade e não de uma obrigação legal.
LL) Se além da jurisprudência alegada ainda mais fosse necessário (e não é) para demonstrar como o entendimento expendido no acórdão em Revista é avesso ao Direito constituído, bastaria olhar para a falência da lógica do seu argumento, pois, quando as condutas do trabalhador foram conhecidas em 17.01.2002 pela ora Recorrente não consistiam em certezas, muito pelo contrário, consistiam num arrazoado de factos suspeitos, participados ao seu Conselho de Administração, os quais careciam da demonstração da sua veracidade e das envolventes circunstâncias que, eventualmente, até os pudessem justificar adiante (designadamente, em sede de resposta à nota de culpa ou subsequentes trâmites do processo disciplinar).
MM) É completamente inaceitável que o acórdão em Revista tome em conta um momento pretérito da relação laboral, anterior à decisão disciplinar (em que não havia certeza dos factos que impendiam sobre o então arguido), para elaborar um (pré) juízo de prognose, destinado a aferir da impossibilidade ou não da manutenção da relação de trabalho (para cúmulo, com base na ausência da suspensão preventiva do trabalhador e, portanto, na manutenção da prestação de trabalho do então arguido) quando os factos e as circunstâncias subjacentes à eventual impossibilidade, pressupostos de um juízo de prognose, ainda estavam desprovidos dessa qualidade, pois, consistiam em incertezas longe de substanciar a decisão disciplinar que os determinou como bastante motivo para justa causa de despedimento do então arguido.
NN) Não pode proceder o pretenso juízo de prognose elaborado pelo acórdão Revista, pois, como se viu, não está sustentado em bases de facto capazes de o suportarem ou infirmarem com alguma consistência sendo, portanto, inatendível para aferir a viabilidade futura da manutenção do vínculo laboral em razão dos factos que só posteriormente se vieram a provar.
OO) O facto da ora Recorrente ter tomado conhecimento e imputado ao ora Recorrido a factualidade pretérita que veio a revelar-se causa do seu despedimento nunca poderia influir no resultado avaliação de desempenho do ora Recorrido, porquanto, a avaliação em questão resulta de valorações efectuadas na observância de vários requisitos objectivos de cariz técnico e profissional, previamente definidos, comuns a todos os trabalhadores (e aplicáveis ao período de trabalho prestado entre 01.05.2001 e 30.04.2002), as quais, naturalmente, não se poderiam alterar por reacção ao conhecimento de um contexto de factos suspeitos (objecto de inquérito prévio) que envolveram o ora Recorrido - sob pena dessa reacção constituir uma evidente violação dos direito e garantias do trabalhador (o que constituiria uma dissimulada sanção abusiva) - e, portanto, para esse efeito, impunham-se irrelevantes.
PP) A impossibilidade de permanência do contrato envolve um juízo de prognose sobre a viabilidade da relação de trabalho, a realizar segundo um padrão essencialmente psicológico - o das condições mínimas de suporte de uma vinculação duradoura, que implica frequentes e intensos contactos entre os sujeitos -, não pode o julgador, novamente, cometer o erro de remeter a elaboração dessa prognose para um momento passado, anterior à verificação do pressuposto psicológico essencial que é aquele em que a entidade patronal depara com a irreversível perda de confiança no trabalhador e decide pelo seu despedimento com justa causa.
QQ) Os pressupostos que motivaram a Veneranda Relação de Lisboa a apontar as razões enunciadas nas alíneas III) e IV) do número 6 acima, como descaracterizadoras da justa causa de despedimento, não têm essa qualidade, pois, padecem de fundamento lógico e de Direito que os habilite a tal fim, pelo que não devem ser consideradas pelos Venerandos Conselheiros do Supremo Tribunal de Justiça na apreciação da bondade da sentença proferida pelo Tribunal de primeira instância.
RR) Não podem ser aceites para apreciação da bondade dessa sentença, a razão arguida pela Veneranda Relação e indicada na alínea V) do número 6 acima, pois, encontra-se desprovida de matéria de facto que a sustente sendo certo que a matéria de facto que a esse propósito se encontra assente impõe apreciação inversa à ditada no acórdão em Revista.
SS) Remanescem as razões descritas nas alíneas I) e II) do número 6 acima, as quais se afiguram válidas enquanto critério de apreciação da justa causa de despedimento (i.e., a antiguidade e a potencialidade de prejuízos), contudo, dispondo em sentido diverso do entendido no acórdão em recurso, pois, conforme supra exposto, a adequada interpretação e aplicação desses parâmetros ao caso sub iudice constituem agravantes no contexto do comportamento do ora Recorrido (e não atenuantes).

Pelos termos acima expostos, nos demais de direito aplicável e com o sempre mui douto suprimento de Vossas Excelências, impetra a revogação do acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa, devendo, consequentemente, ser mantida a sentença proferida pelo Tribunal do Trabalho de Lisboa, concedendo-se o merecido provimento ao presente recurso de Revista.

Contra-alegou do Autor, pugnando pela confirmação do julgado.

Neste Supremo Tribunal, a Exma. Magistrada do Ministério Público emitiu douto parecer em que, preliminarmente, defende a necessidade de ampliação da matéria de facto, propugnando, no caso de assim não se entender, que seja negada a revista.

Respondeu a Ré, argumentando com a suficiência da matéria de facto, apurada nas instâncias, para a decisão de direito e concluindo como na alegação do recurso.

Corridos os vistos, cumpre decidir.

II

1. A matéria de facto provada, segundo a sentença da primeira instância, foi a seguinte, assim reproduzida no acórdão impugnado:
A. O A foi admitido ao serviço da CP, em 17 de Janeiro de 1983, com a categoria de Eng. Técnico, tendo sido integrado na Empresa-A, em Janeiro de 1998, tendo como último posto de trabalho a Empresa-B (Zona Operacional de Conservação) Sul, sita em Beja, o vencimento base de € 2.259,57, acrescido de diuturnidades no montante de € 62,13;
B. Desde 1 de Outubro de 2000, o A. passou a desempenhar, por nomeação, as funções de Responsável Pela Via e Geotecnia da Empresa-B, directamente dependente do responsável da Empresa-B, Eng. BB, o qual por sua vez reportava ao Director Coordenador de Conservação Eng. CC, este directamente dependente do Conselho de Administração da R.;
C. Incumbia-lhe a efectivação de trabalhos de Programação e Planeamento das Obras de Via e Geotecnia, na já referida Empresa-B;
D. Em 16 de Janeiro de 2002 o Director da Empresa-B elaborou a informação dirigida ao Director Coordenador da Conservação junta de fls. 16 a 18 do processo disciplinar apenso, constituído por três volumes e 984 (novecentas e oitenta e quatro) folhas, cujo teor se tem por reproduzido;
E. Na sessão de 17 de Janeiro de 2002, analisada a informação, o Conselho de Administração da R. deliberou mandar instaurar inquérito para averiguação dos factos denunciados, conforme extracto junto a fls. 14 do referido processo disciplinar;
F. Na sessão de 28 de Fevereiro de 2002, analisadas as conclusões do inquérito o Conselho de Administração da R. determinou a instauração de processo disciplinar com intenção de despedimento ao A., conforme extracto junto a fls. 1 do referido processo disciplinar;
G. Em 13 de Março de 2002 foi elaborada a nota de culpa junta de fls. 4 a 13 do referido processo disciplinar;
H. O A. apresentou a contestação junta de fls. 90 a 114 do referido processo disciplinar;
I. Na sessão de 25 de Julho de 2002, analisado o processo disciplinar, o Conselho de Administração da R. deliberou o despedimento ao A., conforme extracto junto a fls. 973 do referido processo disciplinar, constando a decisão final de fls. 978 a 984, a qual foi notificada ao A. no dia 31 de Julho de 2002;
J. O A. apôs a sua rubrica no auto de medição nº 1, cuja cópia está junta a fls. 893 do processo disciplinar;
L. O A. rubricou as requisições de serviço anexas às facturas n.os 150/2001, 151/2001, 152/2001, 265/2001 e 266/2001;
M. O A. teve conhecimento do uso pela Empresa-C de pás, bitas, máquina tirefonadora e reboque de dresina, pertencentes à R., no período compreendido entre 20 de Outubro e 3 de Novembro de 2001, sem que disso tenha dado conhecimento ao seu superior hierárquico;
N. Tais instrumentos sofreram desgaste;
O. A R. ficou privada do uso de tais instrumentos;
P. Tal desgaste e privação de uso não tiveram qualquer contrapartida por parte da Empresa-C;
Q. Os trabalhos de remoção de terras a que dizem respeito as facturas n.os 150/2001, 151/2001, 152/2001, 265/2001 e 266/2001 e respectivas requisições de serviço não foram realizadas no período de tempo compreendido entre a data das requisições e as datas de emissão e recepção de tais facturas;
R. Tais facturas já continham a rubrica do A. em 30 de Outubro de 2001, data em que deram entrada no expediente do Apoio à Gestão da Empresa-B;
S. No verso das facturas relativas aos anos de 1998 e 1999, juntas de fls. 407 a fls. 521 do processo disciplinar, foi aposto e preenchido um carimbo;
T. Essas facturas foram objecto da rubrica de mais de um responsável;
U. O A. conhecia a factura Empresa-C n.º 100/2000, emitida com data de 14-6-2000, no valor de € 44.042,64, relativa a serviços de horas de máquina, prestadas à 12.ª Área de Conservação;
V. O A. rubricou o verso de tal factura, datando-a de 20-6-2000 e apôs pelo seu punho a frase «Confere. Boa para pagamento»;
W. Esta factura foi paga à DD através do cheque n.º 217645 sobre o BPI, sem necessitar de ser subscrita por qualquer outro responsável para além do A.;
X. O A. tinha obrigação de saber que os serviços cujo pagamento foi solicitado através das facturas n.os 150/2001, 151/2001, 152/2001, 265/2001 e 266/2001 já haviam sido realizados nos anos de 1998 e 1999, com o seu próprio assentimento;
Y. A norma EF-06/00 destina-se a todos os órgãos da R. e não apenas aos trabalhadores do órgão de Economia e Finanças;
Z. Ao rubricar as facturas da Empresa-C com os n.os 150/2001, 151/2001, 152/2001, 265/2001 e 266/2001 e respectivas requisições de serviço, aceitando-as o A. sujeitou a R. a uma situação susceptível de lhe causar um prejuízo no montante de 13.084.900$00;
AA. Em 29 de Outubro de 2001 deu entrada no expediente do Apoio à Gestão da Empresa-B a factura da SEF n.º 269/2001, de 26-10-2001, acompanhada do auto de medição n.º 1, cuja cópia está junta a fls. 893 do processo disciplinar;
BB. Dessa factura e do auto de medição n.º 1 constava a rubrica do A., aceitando a boa realização dos trabalhos nela constantes;
CC. O A., ao apor a sua rubrica, aceitou como efectuado o transporte, fornecimento e descarga de 100 m3 de gravilha, bem como o reaperto e substituição de 2.000 fixações defeituosas das travessas de betão;
DD. À data da emissão de tal factura não havia sido efectuado qualquer transporte, fornecimento e descarga de gravilha, ou qualquer reaperto e substituição das fixações defeituosas;
EE. Ao rubricar o auto de medição n.º 1 junto com a factura n.º 269/2001 da Empresa-C, aceitando-o o A. sujeitou a R. a uma situação susceptível de lhe causar um prejuízo no montante de 1.041.300$00;
FF. O A. promoveu o pagamento indevido de serviços que na altura não haviam sido prestados;
GG. Em 29 de Outubro de 2001 deu entrada no expediente do Apoio à Gestão da Empresa-B a factura da Empresa-C n.º 270/2001, de 26-10-2001, acompanhada do auto de medição n.º 1;
HH. Do auto de medição anexo à factura nº 270/2001 constava a rubrica do A., aceitando a boa realização dos trabalhos nela constantes, ou seja, a substituição de 1.500 travessas de madeira em estações e o reaperto e substituição de 3.829 fixações defeituosas das travessas de betão;
II. O A. organizou e presidiu ao concurso de adjudicação de tais trabalhos;
JJ. O A. tem competência para propor as alterações que, no exercício das suas funções, considere justificadas, contanto que, para o efeito, mereça a concordância do seu superior hierárquico, o Director da Empresa-B;
KK. Os trabalhos tiveram início em 20 de Outubro de 2001, com a colocação de 109 travessas, continuando em 26 de Outubro de 2001, com a colocação de mais 109 travessas;
LL. Em 26-10-2001 apenas haviam sido substituídas 219 travessas e não havia sido realizado qualquer trabalho de reaperto e substituição de fixações defeituosas;
MM. Ao rubricar o auto de medição n.º 1, aceitando-o o A. sujeitou a R. a uma situação susceptível de lhe causar um prejuízo;
NN. Ao rubricar o auto de medição n.º 1 junto com a factura n.º 270/2001, o A. promoveu o pagamento indevido de serviços que na altura não haviam sido prestados na sua quase totalidade;
OO. Todos os trabalhos de que o A. estava incumbido eram submetidos a apreciação e autorização prévias e a acompanhamento de execução por parte do responsável pela Empresa-B, sem autonomia e sem qualquer delegação de competências de poder decisório;
PP. O sistema de delegação de competências na R. nunca é inferior ao nível de direcção;
QQ. Também existe sub-delegação dos directores - 1.º nível de direcção - nos responsáveis das Zonas Operacionais de Conservação;
RR. As facturas n.os 150/2001, 151/2001, 152/2001, 265/2001 e 266/2001 deram entrada na Empresa-B em 30 de Outubro de 2001;
SS. O A. colocou a rubrica no auto de medição n.º 1, cuja cópia está junta a fls. 893 do processo disciplinar, para que ficasse a constar que se tratava de serviço efectivamente prestado;
TT. No período que medeia entre 22 de Janeiro de 2002 e meados de Abril de 2002, foi atribuída ao A. a verificação, rectificação e orçamentação do Projecto de Renovação da Via entre Casa Branca e Évora;
UU. O A. procedeu à elaboração do Orçamento do Projecto de Tratamento da Plataforma da Linha de Vendas Novas em Maio de 2002;
VV. Em Junho de 2002 preparou a Minuta de Contrato para as Soldaduras Aluminotérmicas/Porsol;
WW. Efectuou nas Linhas de Vendas Novas e do Alentejo recepções da Ataque Mecânico Pesado;
XX. Em Junho de 2002, o A. deslocou-se ao Porto a fim de representar a Via e Geotecnia da Conservação da Empresa-A, no âmbito da Programação do Ataque Pesado;
YY. No dia 26 de Julho de 2002, deslocou-se à Estação das Mercês na Linha de Sintra a fim de efectuar a recepção definitiva das vias dessa Estação, estando sempre inserido no Grupo de Trabalho de Ataque Mecânico Pesado;
ZZ. No decurso do inquérito disciplinar o A. foi objecto de avaliação profissional, com resultado acima da média;
AAA. Com efeitos a 1 de Maio de 2001 o A. passou ao nível N535, correspondente ao código de categoria 15LBLOCO TÉCNICO II, pela aplicação do mecanismo previsto no AE-Empresa-A no ponto 13º do Capítulo I do Anexo I;
BBB. O A. era responsável por gerir os meios que eram postos à sua disposição e por detectar as necessidades de conservação da via, fazendo parte de suas funções apresentar propostas;
CCC. Todos os trabalhos que envolvessem assumir responsabilidades com terceiros eram submetidos a apreciação e autorização prévias;
DDD. Uma vez autorizada a proposta do A. e desenrolado o procedimento de adjudicação da obra com terceiros, esses trabalhos voltavam à guarda do A. para acompanhamento e fiscalização, gerindo com autonomia os meios para esse fim posto à sua disposição pela R.;
EEE. O Conselho de Administração da R. apenas teve conhecimento dos factos em momento posterior à informação referida em D);
FFF. O Director da Empresa-B é desprovido de competência disciplinar.

A Relação considerou não escrita a matéria contida nas alíneas Z., EE. e MM., a partir da expressão "sujeitou a R. ...", bem como a expressão "indevido" contida nas alíneas FF. e NN., expressões, supra assinaladas em itálico e sublinhado.

2. A questão central, objecto da revista, é a de saber se os comportamentos imputados ao Autor, no quadro factual apurado nas instâncias, constituem justa causa de despedimento.

A doutrina e a jurisprudência convergem no entendimento de que a existência de justa causa de despedimento, à luz da definição contida no artigo 9.º, n.º 1, do Regime Jurídico da Cessação do Contrato Individual de Trabalho e da Celebração e Caducidade do Contrato de Trabalho a Termo (LCCT) (1), pressupõe a verificação cumulativa de três requisitos: - um comportamento ilícito e culposo imputável ao trabalhador; a impossibilidade prática e imediata da subsistência da relação de trabalho; e o nexo de causalidade entre aquele comportamento e tal impossibilidade.

A ilicitude consiste na violação dos deveres a que o trabalhador está contratualmente vinculado, seja por acção, seja por omissão, relativamente a deveres contratuais principais ou secundários, ou ainda a deveres acessórios de conduta, derivados da boa fé no cumprimento do contrato (2).

A culpa - que deve ser apreciada, segundo o critério plasmado no artigo 487.º, n.º 2, do Código Civil, pela diligência de um bom pai de família, em face das circunstâncias de cada caso, o que, no quadro da relação jurídica laboral, significa um trabalhador normal, colocado perante o condicionalismo concreto em apreciação -, tem de assumir uma tal gravidade objectiva, em si e nos seus efeitos, que, minando irremediavelmente a confiança que deve existir entre as partes no cumprimento de um contrato com o carácter fiduciário, intenso e constante, do contrato de trabalho, torne inexigível ao empregador a manutenção da relação laboral.

"Concluir-se-á pela inexigibilidade da manutenção da relação de trabalho, sempre que esta manutenção, face ao comportamento do trabalhador e às circunstâncias do caso, fira de modo violento a sensibilidade e liberdade psicológica de uma pessoa normal, quando colocada na posição real do empregador, no circunstancialismo apurado" (3), o que pressupõe a necessidade de um prognóstico sobre a viabilidade da relação de trabalho, ou seja, um juízo, referido ao futuro, sobre a impossibilidade das relações contratuais (4) , do que decorre que, assentando a relação laboral na cooperação e recíproca confiança entre o trabalhador e o empregador e num clima de boa fé, a mesma só não poderá manter-se se o trabalhador destruir ou abalar, de forma irreparável, a confiança na idoneidade futura da sua conduta.

"A gravidade do comportamento do trabalhador e a inexigibilidade da subsistência do vínculo não podem ser apreciadas em função do critério subjectivo do empregador, mas sim na perspectiva de um bom pai de família, ou seja de um empregador normal, norteado por critérios de objectividade e razoabilidade, devendo o tribunal atender, ainda, por força do disposto no n.º 5 do artigo 12.º da LCCT, no quadro da gestão da empresa, ao grau de lesão dos interesses da entidade empregadora, ao carácter das relações entre as partes ou entre os trabalhadores e os seus companheiros e às demais circunstâncias que no caso se mostrem relevantes" (5) .

Há-de, outrossim, ter-se presente que o despedimento, na acepção que ao caso interessa, se apresenta, nos termos do artigo 27.º, n.º 1, alínea e), do Regime Jurídico do Contrato Individual de Trabalho (LCT), aprovado pelo Decreto-Lei n.º 49 408, de 24 de Novembro de 1969 (6) , como a sanção disciplinar mais grave, que só deve ser aplicada quando outras medidas ou sanções de menor gravidade forem de todo inadequadas para a punição, para a prevenção das situações similares e para os interesses fundamentais da empresa, pois que, tendo a relação de trabalho vocação de perenidade, apenas se justificará, no respeito pelo principio da proporcionalidade, o recurso à sanção expulsiva ou rescisória do contrato de trabalho, que o despedimento representa, quando se revelarem inadequadas para o caso medidas conservatórias ou correctivas (7).

3. No caso que nos ocupa, considerou-se, na sentença da primeira instância, que o Autor violou, culposamente, os deveres de lealdade, de zelo e diligência e de obediência previstos no artigo 20.º, n.º 1, alíneas a), b) e c) da LCT, quebrando definitivamente qualquer confiança que a Ré nele pudesse depositar, ao rubricar:
- as facturas da "Empresa-C." com os n.os 150/2001, 151/2001, 152/2001, 265/2001 e 266/2001 e respectivas requisições de serviço, aceitando-as, sabendo que os trabalhos a que se referiam haviam sido realizados, não no período de tempo compreendido entre as datas das requisições dos serviços e as datas da emissão e recepção das facturas, mas durante os anos de 1998 e 1999, assim sujeitando a Ré a uma situação susceptível de lhe causar um prejuízo no montante de Esc.: 13.084.900$00; e,
- os autos de medição anexos às facturas n.os 269/2001 e 270/2001, datadas de 26 de Outubro de 2001, apresentadas pela "Empresa-C.", certificando, com a sua rubrica, como efectuados trabalhos que não tinham sido realizados, e, desse modo, sujeitando a Ré a uma situação susceptível de lhe causar prejuízos.
4. No douto acórdão em revista, entendeu-se que os referidos comportamentos do Autor, apesar de configurarem violação, pelo menos negligente e grave, de deveres que se lhe impunham, no âmbito das responsabilidades que havia assumido na estrutura orgânica da Ré, não assumem gravidade tal que, na ponderação de todas as circunstâncias da concreta relação laboral, justifique a aplicação da sanção disciplinar mais grave ao dispor da Ré para censurar aqueles comportamentos, tendo-se concluído não serem estes de molde a quebrar a confiança que a Ré, até então, tinha colocado no Autor e no exercício das funções de que o incumbira, e a tornar inexigível para ela a manutenção do vínculo laboral entre ambos existente.

Para sustentar este juízo, consideraram-se relevantes as seguintes circunstâncias:

- As condutas em causa ocorreram num curto período de tempo - entre 20 de Outubro e 3 de Novembro de 2001 -, bastante limitado quando comparado com todo o percurso profissional do Apelante ao serviço, quer da CP, quer da sua sucessora Empresa-A, ora Ré;
- A Ré não logrou quantificar quaisquer prejuízos decorrentes dos referidos comportamentos;
- Todos os trabalhos de que o Autor estava incumbido eram submetidos a acompanhamento de execução por parte do responsável pela Empresa-B;
- As referidas facturas n.os 150/2001, 151/2001, 152/2001, 265/2001 e 266/2001 foram, também, rubricadas por outros responsáveis, sem que a Ré tivesse alegado e demonstrado ter exercido qualquer censura sobre esses outros responsáveis pela prática de tais factos; e,
- Não obstante a Ré ter tomado conhecimento e ter imputado ao Autor aqueles comportamentos, tal não foi suficiente para deixar de continuar a atribui-lhe o desempenho de tarefas de grande responsabilidade e de lhe atribuir um resultado acima da média em termos de avaliação profissional, conforme se verificou entre Janeiro e Julho de 2002.
5. Insurge-se a recorrente contra a decisão da Relação de considerar como não escrita a matéria contida nas supra referidas alíneas Z., EE. e MM., a partir da expressão "sujeitou a R. ...".

Diz-se, a propósito, no acórdão impugnado, que os trechos considerados não escritos se referem a matéria que "não assume relevância para a decisão da causa - pelo menos desacompanhada de circunstâncias de facto que, de algum modo, pudessem esclarecer por que razão se não verificaram em concreto - saber-se se a rubrica aposta pelo Autor nas facturas ou nos autos de medição e a que nelas também se alude, "sujeitou a Ré a uma situação susceptível de lhe causar um prejuízo" de determinado montante", acrescentando-se que "pouco interessa para a decisão da causa o apuramento de meras conjecturas ou possibilidades em termos de matéria de facto", e que "o que apenas poderia relevar seria o apuramento de factos concretos que pudessem levar o Tribunal a concluir que a rubrica aposta pelo Autor nas aludidas facturas e autos de medição, havia, efectivamente, causado prejuízo à Ré e qual o respectivo montante".

Nos termos do artigo 646.º, n.º 4, do Código de Processo Civil, têm-se por não escritas as respostas do tribunal sobre questões de direito e, bem assim, as dadas sobre factos que só possam provados ser por documentos ou que estejam plenamente provados, quer por documentos, quer por acordo ou confissão das partes.

Afirmar-se que cada uma das condutas do Autor referidas nas ditas alíneas sujeitou a Ré a uma situação susceptível de lhe causar um prejuízo de determinado montante traduz a constatação de um facto - não traduz qualquer valoração da questão de direito, que implique interpretação ou aplicação da lei pertinente, ou qualquer raciocínio jurídico, nem consubstancia juízo, indução ou conclusão jurídica correspondente ao direito em equação -, pelo que se afigura não caber tal afirmação na previsão referido preceito do Código de Processo Civil, que não autoriza a que se tenham por não escritas referências a factos com fundamento num juízo de irrelevância para a decisão da causa.

Assiste, pois, razão à Ré, quando defende que devem manter-se escritas as referidas expressões, pelo que, ao abrigo das disposições combinadas dos artigos 722.º, n.º 1, e 754.º, n.º 3, e 734.º, n.º 1, alínea a), todos do Código de Processo Civil, se revoga, nessa parte, o acórdão impugnado, do que decorre que, na apreciação da questão de direito, se terá em consideração o texto integral das mencionadas alíneas Z., EE. e MM., na redacção fixada pelo tribunal de primeira instância.

6. A questão da necessidade da ampliação da matéria de facto, suscitada no douto parecer do Ministério Público, pressupõe que, havendo factos alegados nos articulados, potencialmente relevantes para a decisão de direito, as instâncias não se tenham pronunciado sobre eles e que, sem tal pronúncia, não seja possível, correctamente, decidir a causa.

É o que resulta da 1.ª parte do n.º 3 do artigo 729.º do Código de Processo Civil, ao preceituar que "[o] processo só volta ao tribunal recorrido quando o Supremo entenda que a decisão de facto pode e deve ser ampliada, em ordem a constituir base suficiente para a decisão de direito (...)".

O juízo sobre a necessidade da ampliação implica a valoração jurídica, prévia, dos factos disponíveis, fixados pelas instâncias, sendo que, só após a apreciação global, à luz do regime jurídico aplicável, de todo o material de facto disponível se poderá afirmar a indispensabilidade da ampliação.

A questão suscitada pela Exma. Magistrada do Ministério Público reporta-se aos factos constantes dos artigos 83.º e 84.º da petição inicial, em que o Autor alega, referindo-se às facturas n.os 150/2001, 151/2001, 152/2001, 265/2001 e 266/2001, que a sua rubrica só se encontra nelas aposta, porque tal lhe foi expressamente ordenado pelo seu superior hierárquico, Eng.º BB, na sequência de entendimento com o Director-Geral da Sociedade de Empreitadas Ferroviárias, Sr. EE, e com o Eng.º FF, da mesma sociedade, pois que, tendo sido os trabalhos a que se referem efectuados em 1998 e 1999, foi por acordo, entre o Eng.º BB e os responsáveis daquela sociedade, que as verdadeiras requisições foram substituídas por outras com datas e designações, mantendo exclusivamente as quantidades, e, assim, foram emitidas as ditas facturas.

Tais factos, impugnados nos artigos 132.º e 133.º da contestação, não foram levados à base instrutória (fls. 541 a 546), não tendo, pois, sido objecto de apuramento em audiência.

A sua relevância para a decisão prende-se com a motivação de alguns dos comportamentos irregulares imputados ao Autor, com reflexo no grau de culpa.

Todavia, a averiguação desses factos será dispensável se o sentido da decisão, segundo as várias soluções plausíveis, à luz do direito aplicável, assentar em considerações estranhas ao grau de culpa referido àqueles comportamentos, como sucedeu, quer na sentença da primeira instância, quer no acórdão impugnado.

Com efeito, se se entender que os demais comportamentos imputados ao autor − relacionados com os autos de medição anexos às facturas n.os 269/2001 e 270/2001 −, constituem fundamento bastante para se concluir pela justa da causa do despedimento, a prova de que o Autor, no que às facturas n.os 150/2001, 151/2001, 152/2001, 265/2001 e 266/2001, diz respeito, cumpriu ordens superiores, em nada contribui para a solução do litígio; e, a prevalecer o entendimento, que foi o do acórdão impugnado, de que outras circunstâncias, como a atitude da Ré, posteriormente ao conhecimento dos factos, na relação com o autor, demonstram que a culpa e a gravidade das condutas deste, globalmente apreciadas, foram por ela, Ré, tidas por irrelevantes, no que respeita à quebra de confiança, é indiferente, para decisão, a prova da alegada actuação em cumprimento de ordens superiores.

Como se verá, os factos disponíveis constituem base suficiente para a decisão de direito.

7. Os comportamentos do Autor, no que se refere aos autos de medição anexos às facturas n.os 269/2001 e 270/2001, certificando, para efeito de pagamento, a boa realização de trabalhos não efectuados, e, assim, criando uma situação apta a causar prejuízos à Ré - factos descritos em J., AA., BB., CC., DD, EE., FF., HH., KK., LL., MM., NN. e SS., da matéria de facto provada -, traduzem, além de incumprimento, negligente e grave do dever de realizar o trabalho com zelo e diligência, a que se refere a parte final da alínea b) do n.º 1 do artigo 20.º da LCT, violação grosseira do dever de lealdade, valor fundamental em que assenta a confiança indispensável ao normal desenvolvimento da relação laboral.

Tais comportamentos preenchem, sem dúvida, o primeiro dos requisitos da justa causa de despedimento, acima enunciados, pois que, apreciados, no quadro das funções que lhe estavam atribuídas, em função da diligência exigível a um trabalhador normal, investido naquelas funções, não pode deixar de considerar-se que poderia e deveria agir de outro modo, ou seja, abster-se de apor a sua rubrica nos autos de medição, enquanto os trabalhos não fossem efectuados e a sua boa realização, por ele, verificada.

O Autor era o "Responsável pela Via e Geotecnia da Zona Operacional de Conservação Sul", ocupando a terceira posição hierárquica, na organização da empresa, no sector da "Conservação", e a segunda posição, na referida Zona Operacional, competindo-lhe "a efectivação de trabalhos de Programação e Planeamento das Obras", e propor alterações de trabalhos que considerasse justificadas (B., C. e JJ., dos factos provados), "gerir os meios postos à sua disposição e detectar as necessidades da conservação da via, fazendo parte das suas funções apresentar propostas", sendo que, "[t]odos os trabalhos que envolvessem assumir responsabilidades com terceiros eram submetidos a apreciação e autorização prévias", e "[u]ma vez autorizada a proposta do Autor e desenrolado o procedimento de adjudicação da obra com terceiros, esses trabalhos voltavam à guarda do Autor para acompanhamento e fiscalização, gerindo com autonomia os meios para esse fim postos à disposição da Ré" (BBB. a DDD. dos factos provados).

Tratando-se de funções de elevada responsabilidade, a exigência de lisura nos procedimentos, que envolvam, ainda que potencialmente, a lesão de interesses patrimoniais da empresa, assume um grau particularmente acentuado, por nela se alicerçar o mínimo de confiança, ínsito no princípio da mútua colaboração, consignado no artigo 18.º, n.º 1, da LCT.

E, tratando-se de um trabalhador, em que o grau de confiança depositado era acrescido, em função de um percurso profissional anterior ascendente, ao longo de mais de 19 anos, ao serviço da Ré e da sua antecessora, obrigado, por isso, a melhor adequar o seu desempenho profissional aos valores de lealdade e fidelidade, menos compreensível e aceitável se torna aquele modo de agir.

No caso dos referidos autos de medição, ainda que da conduta do Autor não tenha resultado qualquer prejuízo patrimonial, tem de considerar-se, que, segundo critérios de objectividade e razoabilidade, aquele mínimo de confiança, atenta a posição do Autor na organização empresarial, ficou intensamente afectado.

Dir-se-á que o elo de confiança não se quebrou irremediavelmente, sendo disso sinal o comportamento da Ré, entre o momento em que o seu Conselho de Administração tomou conhecimento da primeira informação sobre os factos e ordenou a instauração do respectivo inquérito (17 de Janeiro de 2002) e o momento em que, concluído o processo disciplinar, foi proferida a decisão do despedimento (25 de Julho de 2002): foi atribuída ao Autor a verificação, rectificação e orçamentação do projecto de renovação da Via entre Casa Branca e Évora (entre 22 de Janeiro e meados de Abril de 2002); o Autor procedeu à elaboração do orçamento do projecto de tratamento da Linha de Vendas Novas (Maio de 2002); preparou a minuta de Contrato para as Soldaduras Aluminotérmicas/Porsol (Junho de 2002); efectuou, nas linhas de Vendas Novas e do Alentejo, recepções do Ataque Mecânico Pesado; representou, no Porto, a Via e Geotecnia da Conservação, no âmbito da Programação do Ataque Pesado (Junho de 2002); efectuou, na Estação das Mercês da Linha de Sintra, a recepção definitiva das vias dessa Estação (26 de Julho de 2002); e foi objecto, no decurso do inquérito disciplinar, de avaliação profissional, com resultado acima da média - TT. a ZZ., dos factos provados.

Destes factos não pode, com todo o respeito por diferente opinião, inferir-se que a Ré desvalorizou a gravidade das condutas do Autor em apreciação, ao ponto de considerar atenuadas as suas consequências, no que à subsistência do mínimo de confiança diz respeito.

Com efeito, não consta que as tarefas de que, naquele período, o Autor foi encarregado se integrassem na fase final de um processo de pagamentos de facturas.

É certo que à Ré assistia a faculdade de, com a notificação da nota de culpa, suspender o Autor, faculdade essa fundada num juízo, que só a ela competia formular, sobre a inconveniência - para o desenrolar do processo disciplinar e/ou para a manutenção da estabilidade na esfera empresarial -, da presença daquele em funções (8) , designadamente no exercício de tarefas de carácter eminentemente técnico, quer dizer, não relacionadas com pagamentos de facturas.

Não tendo a Ré optado pela suspensão, estava obrigada a ocupar o Autor em funções compatíveis com a sua categoria e posição hierárquica na estrutura da empresa, não lhe sendo lícito agir de outra forma (9).

Decorre do exposto não poder concluir-se - invocando o carácter das relações entre a Ré e o Autor, enquanto decorreram as averiguações - que uma sanção disciplinar conservatória teria aptidão para prevenir situações similares de infidelidade e restaurar aquele mínimo de confiança inerente à salvaguarda dos interesses da empresa.

Assim, perante a gravidade da violação, culposa, de deveres essenciais, a que o Autor se encontrava vinculado, o prognóstico sobre a viabilidade da subsistência da relação laboral, num clima de boa fé e leal cooperação, é fortemente negativo, pois a atitude daquele, no que concerne aos autos de medição anexos às facturas n.os 269/2001 e 270/2001, por si só, abalou, de forma irreparável, a confiança na idoneidade futura da sua conduta.

Tanto bastando para se darem por verificados todos os requisitos da justa causa de despedimento, irrelevante se torna a apreciação das condutas imputadas ao Autor com relação às facturas n.os 150/2001, 151/2001, 152/2001, 265/2001 e 266/2001 e respectivas requisições de serviço, e, por isso, dispensável a ampliação da matéria de facto propugnada pela Exma. Procuradora-Geral-Adjunta, bem como a produção de quaisquer considerações sobre a incoerência da prática disciplinar da Ré, questão que, recorde-se, foi suscitada, apenas, a propósito da ausência de procedimento disciplinar contra outros responsáveis que, com o Autor, rubricaram as mesmas facturas.

III

Em face do exposto, decide-se concedendo a revista, revogar o acórdão impugnado e repristinar a decisão da primeira instância.

Custas da acção e dos recursos a cargo do Autor.

Lisboa, 3 de Maio de 2006
Vasques Dinis
Maria Laura Leonardo
Sousa Peixoto
-----------------------------------------
(1) Aprovado pelo Decreto-Lei n.º 64-A/89, de 27 de Fevereiro, em vigor à data em que ocorreu o despedimento do Autor.
(2) Acórdão de 8 de Março de 2006, subscrito pelos Exmos. Conselheiros Maria Laura Leonardo (Relatora), Sousa Peixoto e Sousa Grandão - Processo n.º 3222/05-4.
(3) Ibidem.
(4) Bernardo Lobo Xavier, Curso de Direito do Trabalho, 2.ª Edição, Verbo, Lisboa, 1996, p. 493.
(5) Acórdão de 8 de Março de 2006, de que foi Relator o Exmo. Conselheiro Sousa Peixoto, também subscrito pelo ora relator - Processo n.º 3277/05-4.
(6) Em vigor à data dos factos em apreciação.
(7) Acórdãos deste Supremo Tribunal de 30 de Março de 1990, sumariado em www.dgsi.pt, Documento n.º SJ199003300023444 (Relator o Exmo. Conselheiro Mário Afonso), e de 6 de Março de 2002, subscrito pelos Exmos. Conselheiros Alípio Calheiros (Relator), Mário Torres e Manuel Pereira, disponível, em texto integral, www.dgsi.pt, Documento n.º SJ200203060018124.
(8) Artigos 31.º, n.º 2, da LCT e 11.º, n.º 1, da LCCT.
(9) Artigos 21.º, n.º 1, alínea d) e 22.º, n.º 1, da LCT.