Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
458/07.7TBTND.C1.S1
Nº Convencional: 1ª SECÇÃO
Relator: GABRIEL CATARINO
Descritores: FIDEICOMISSO
BEM IMÓVEL
PODERES DE ADMINISTRAÇÃO
CONTRATO DE ARRENDAMENTO
ARRENDAMENTO PARA FINS NÃO HABITACIONAIS
ESTABELECIMENTO COMERCIAL
OBRAS
BENFEITORIAS ÚTEIS
DIREITO À INDEMNIZAÇÃO
CLÁUSULA CONTRATUAL
Data do Acordão: 03/15/2012
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA PARCIALMENTE
Sumário :
I - Ao fiduciário está vedada a disponibilidade ou oneração dos bens fideicometidos, sendo-lhe tão só permitido dispor de bens para pagamento de dívidas da herança, ou seja, de liquidação do passivo da herança, bem como dá-los em cumprimento.
II - O fiduciário tem o poder de administrar os bens e, ao mesmo tempo, o dever de fazer com que os bens mantenham a mesma consistência económica, em ordem à sua eventual reversão a favor do fideicomissário.
III - Pode administrar a coisa de modo pleno, mas tem o dever de, sendo o exercício do seu direito limitado no tempo, não onerar os bens com encargos que, pela sua extensão e gravame, possam pôr em crise a reversão do bem para o substituto.
IV - A celebração de um contrato de arrendamento, para exploração de um estabelecimento de restauração numa parte de um imóvel fideicometido, não pode ser considerada como uma administração extravagante ou exorbitante dos poderes do fiduciário, dado que valoriza o bem fideicometido.
V - Convencionada, entre a fiduciária e a arrendatária, a permissão de realização de obras de adaptação do locado para que nele pudesse vir a funcionar um estabelecimento comercial do ramo de cafetaria e restauração, todas as obras realizadas, desde que contidas e confinadas nos limites do destino do contrato de arrendamento, deverão ser consideradas benfeitorias úteis, por, não sendo indispensáveis para a conservação da coisa, aumentarem o valor do imóvel.
VI - A cláusula que permite à locatária a realização de obras de adaptação do locado, conformando a estrutura do imóvel ao fim a que destinava o contrato de arrendamento, mostra-se plenamente legítima e lícita.
VII - Já cláusula, inserida no contrato de arrendamento, nos termos da qual “[no] caso de cessação do contrato a locatária terá direito a ser indemnizada do valor que resultar da avaliação das benfeitorias úteis e necessárias que possam ser levantadas”, se apreciada e mesurada à luz da realidade que restou da vida do contrato – sobrevivência para além da morte da fiduciária –, se afigura incompatível com o fim do fideicomisso e excessivamente onerosa para os fideicomissários, bem como desajustada e desproporcionada para os fins específicos do contrato.
VIII - Ao determinar a indemnização à locatária de todas as benfeitorias úteis e necessárias que pudessem ser levantadas, esta cláusula cria, se apreciada na perspectiva de uma gestão criteriosa, zelosa e prudente do fideicomisso, uma oneração incomportável e desproporcio-nada, porquanto transfere para os fideicomissários um encargo que vai para além do que seria exigível suportar e do que caberia nas regras próprias da indemnização ao benfeitor das benfeitorias úteis que houvesse realizado no locado.
IX - A inserção de uma cláusula com este alcance, se percutida na esfera dos fideicomissários, é contrária às regras gerais de indemnização por benfeitorias úteis e, como tal, passível de ser crismada de abusiva, por lesiva dos legítimos interesses e expectativas dos sucessores no fideicomisso, pelo que deverá ser reduzido o seu alcance aos limites impostos pelas regras contidas no art. 1272.º do CC.
X - As obras incorporadas no locado, destinando-se a materializar, finalisticamente, e dar sequência funcional ao contrato de arrendamento, devem ser qualificadas como benfeitorias úteis, mas tão só na parte em que elas aproveitam o prédio enquanto bem apto a qualquer destino, que não concretamente o que decorre de um fim especifico que lhe foi atribuído pelo contrato.
XI - Só as benfeitorias efectuadas no imóvel e que beneficiaram ou são aptas a beneficiar e aproveitar a estrutura matricial e fundante do imóvel é que poderão ser consideradas benfeitorias úteis e ser indemnizáveis, não aquelas que foram efectuadas para dar comodidade e funcionalidade ao estabelecimento de restauração que aí foi instalado pela locatária.
Decisão Texto Integral:

Recorrentes: AA e mulher, BB, CC e marido, DD, EE, FF e marido, GG, HH e II (AA./Reconvindos); e “JJ, Lda.” (Ré/Reconvinte).

Recorridos: “JJ, Lda.”; e AA e mulher, BB, CC e marido, DD, EE, FF e marido, GG, HH e II.

I. - RELATÓRIO.

Em dissensão com o julgado prolatado no acórdão da Relação de Coimbra, de 13 de Setembro de 2011, que, na improcedência das apelações interpostas por AA./Reconvindos e Ré/Reconvinte, “JJ, Lda.”, confirmou a decisão proferida na 1.ª instância, recorrem, os mesmos sujeitos processuais, havendo a considerar os sequentes,

I.1. - ANTECEDENTES PROCESSUAIS.

AA e mulher, BB, CC e marido, DD, EE, FF e marido, GG, HH e II (AA., Reconvindos e Apelantes), demandaram as sociedades JJ, Lda. (1ª R., Reconvinte e Apelante) e KK, Lda. (2ª R.) invocando a propriedade de um prédio, sito em Tondela, cujo R/C foi dado de arrendamento, em 01/03/1980, à 1ª R., por uma fiduciária (LL), a quem esse prédio havia sido deixado por testamento elaborado em 1963 e concretizado no seu conteúdo em 1967, pedindo que:

a) Declarar-se que os AA., após 14/07/2006, são co-titulares (co-herdeiros) da herança aberta por óbito de MM […] que ainda se encontra indivisa; e, consequentemente: 

b) - Condenarem-se as RR. a assim o reconhecerem; c) - Declarar-se que o prédio identificado no […] artigo 8º é um dos bens que constituem o acervo da mesma herança; d) - a assim o reconhecerem; e) - Declarar-se a cessação do contrato de arrendamento celebrado entre a fiduciária LL e a 1ª R. e seus efeitos, por caducidade ocorrida em 14/07/2006; f) - Condenarem-se os RR. a restituir à mesma herança a parte do dito prédio que ocupam, melhor identificada no […] artigo 13º, livre e devoluta de pessoas e bens; g) - Condenar-se a 1ª R. a pagar à herança, a título de indemnização pela privação da fruição integral do prédio identificado no artigo 8º, o quantitativo de €1.000,00 por mês desde 15/07/2006 à entrega efectiva; ou, quando assim se não entender, h) - Condenar-se a 1ª R. a pagar à herança €1.568,04 a título de indemnização correspondente ao valor das rendas desde 15/07/2006 até 15/01/2007, e de €522,67 por cada mês em mora na restituição após 15/01/2007 e até ao momento da restituição efectiva da parte do prédio à herança; ou outra que se julgue mais equitativa.”  

Para os pedidos que formulam, pontuaram os AA. o sequente quadro factológico:

A testadora, MM, falecida em 27-11-1967, instituiu, mediante testamento público, lavrado em 28-11-1963, sua herdeira a indicada fiduciária (LL), estabelecendo uma substituição fideicomissária [artigo 2286º do Código Civil (CC)] em favor dos sobrinhos dela (testadora), os ora AA. (fideicomissários). Entretanto, tendo falecido a fiduciária em 14/07/2006, operou-se a devolução dos bens integrantes da herança aos fideicomissários (aos AA.)[1], designadamente do sobredito prédio, sendo que o indicado arrendamento sobre o mesmo incidente – o qual foi abrangido, entretanto, por uma cessão de exploração efectuada à 2ª R. – caducou nos termos do artigo 1051º, alínea c) do CC.

Contestaram em conjunto as duas RR. (fls. 52/70), deduzindo, concomitantemente, reconvenção. Reconhecendo a caducidade do arrendamento, invocou a 1ª delas (R. JJ, Lda.) estar a exercer, com a recusa de entrega do locado aos herdeiros, o direito de retenção que invoca, enquanto garantia do pagamento da indemnização por benfeitorias por ela introduzidas no locado, tendo dessumido com a sequente impetração:

[D]evem os pedidos das alíneas f), g), h) e i) da petição ser julgados não provados e improcedentes;

Deve, porém, julgar-se provada e procedente a reconvenção da R. JJ, Lda. e os AA. Reconvindos condenados:

a) A reconhecer que a R. JJ, Lda. realizou licitamente e de boa fé no local reivindicado as benfeitorias discriminadas nos artigos 27º a 50º deste articulado; b) Que as mesmas benfeitorias eram necessárias à prossecução do fim do arrendamento sub judice; c) A pagar à R. o valor no montante de €107.995,00, ou outro [que] se vier a apurar, deduzindo-se no mesmo:

1. o valor das rendas no montante de 3.000$00 mensais (€14,96) desde 15 de Julho de 2006;

2. o valor do preço da cessão de exploração recebido e que venha a receber até à entrega do local.

d)] Deve também ser provada e procedente a reconvenção da [2ª] R. KK, Lda. e os AA. Reconvindos condenados a pagar a indemnização de €26.817,08.[[2]]

Na réplica (cfr. fls. 80/87), em vista do pedido reconvencional formulado pelas RR., invocaram os AA. a nulidade das cláusulas 4ª e 5ª do contrato de arrendamento celebrado pela fiduciária com a 1ª R.[3], atribuindo a estas disposições contratuais a virtualidade de implicarem uma oneração não autorizada do bem objecto do fideicomisso (artigos 2290º e 2291º e 294º do CC).

 A culminar a fase de julgamento foi proferida a sentença de fls. 343/362 por cujo pronunciamento decisório (já corrigido em função do despacho de fls. 446/447[4]) foi decidido:

Julgar parcialmente procedente a acção e, em consequência:

“1. Declarar os AA. co-titulares da herança aberta por óbito de MM, condenando as RR. a assim o reconhecerem.

2. Declarar que o prédio urbano, sito à Rua dos ......., n.º ...., e Largo Dr. ........., n.º ..., em Tondela, inscrito na matriz sob o artigo 2778, constituiu o acervo da referida herança, condenando as RR. a assim o reconhecerem.

3. Declarar cessado o contrato de arrendamento celebrado entre a fiduciária LL e a 1ª R. «JJ, Lda.», por caducidade ocorrida em 14/7/2006.

4. Condenar a R. «JJ, Lda.» a restituir à herança a parte do dito prédio que ocupa, livre e devoluta de pessoas e bens, conquanto esteja satisfeita a indemnização pelas benfeitorias ali realizadas.

5. Condenar a R. «KK, Lda.» a restituir à herança a parte do dito prédio que ocupa, livre e devoluta de pessoas e bens.

6. Absolver as RR. dos demais pedidos formulados.

Quanto ao pedido reconvencional, foi decidido:

Julgar parcialmente procedente a reconvenção deduzida pela R/Reconvinte «JJ, Lda.» e, em consequência:

1. Declarar que a R. «JJ, Lda.» realizou licitamente e de boa fé no local reivindicado benfeitorias, as quais eram necessárias à prossecução do fim do arrendamento, condenando os AA./Reconvindos a assim o reconhecerem.

2. Condenar os AA./Reconvindos a pagar à R./Reconvinte «JJ, Lda.» a quantia de €22.685,24, a título de indemnização pelas benfeitorias ali realizadas, deduzindo-se ainda quaisquer valores ou frutos que esta venha a receber até à efectiva entrega do local.”

Inconformados, interpuseram tanto os AA., como a 1ª R., recursos de apelação e que tendo o relator estimado deverem ser objecto do recurso as sequentes questões (sic):

- como primeira questão suscitada (a), a da legitimidade processual dos próprios AA. para serem reconvencionalmente demandados a respeito das benfeitorias introduzidas no locado (conclusões 1. a 3.).

Como segunda questão (b), parecem suscitar os AA., através da imputação à decisão de diversos desvalores e no que respeita à questão das benfeitorias, a referenciação a eles (AA.), enquanto fideicomissários, das cláusulas 4ª e 5ª do contrato de arrendamento celebrado em 1980 pela fiduciária. Constrói-se este segundo fundamento em torno da imputação à decisão, como desvalores processuais da Sentença, de um alegado vício de ausência de fundamentação e de oposição entre os fundamentos e o decidido (nulidades do artigo 668º, nº 1, alíneas b) e c) do CPC) e, enquanto desvalor substantivo, da responsabilização dos AA. pela actuação de cláusulas de um contrato ao qual são estranhos (valeria a tal respeito o artigo 406º, nº 2 do CC) e que consideram (as ditas cláusulas), em função do efeito diacrónico que induziram, serem nulas, por traduzirem uma oneração, de elevado significado patrimonial, de um bem sujeito a fideicomisso (artigos 2290º, 2291º e 1446º do CC) – corresponde este fundamento, nas suas diversas vertentes, às conclusões 5. a 28.

Como terceira questão (c) suscitada no recurso dos AA. aparece-nos a crítica à decisão de incluir na indemnização pelas benfeitorias o valor do IVA, o que traduziria – dizem estes Apelantes – a nulidade da Sentença (por condenação além do pedido) prevista na alínea e) do nº 1 do artigo 668º do CPC (conclusões 29. a 31.).

Finalmente, como quarto fundamento deste recurso (d), criticam os AA. a repartição do encargo das custas (70% para eles) fixado na Sentença (conclusões 32. a 34.).

No que respeita à outra apelação aqui em causa, ao recurso da 1ª R.,JJ, Lda., assenta esta num único fundamento (e): na crítica ao desconto no valor da indemnização respeitante às benfeitorias dos valores atribuídos a esta R. (pela 2ª R.), durante o respectivo exercício do direito de retenção, como contrapartida da cessão de exploração do estabelecimento à 2ª R. – tratar-se-ia com esse desconto, di-lo esta Apelante, de uma responsabilização dela (da 1ª R.), contra a propugnada alocação aos AA. do ónus da prova respeitante a um pagamento que não se apurou que tenha sido efectuado (ocorreria, assim, a indemonstração do que constituía a tese da R., devendo suportar esta a consequência dessa indemonstração).

É desta decisão que vêm interpostos os presentes recursos de revista, interpostos, pelos mesmos recorrentes, devendo ser assumidos para a apreciação dos recursos, o quadro conclusivo que a seguir queda extractado. 

I.2. - QUADRO CONCLUSIVO.

Do recurso da demandada “JJ, Lda.”.
1.“As decisões das instancias inferiores ao fixarem a dedução de 18 575€ ao valor das benfeitorias a pagar à recorrente violaram o disposto no artigo 342.º n..º 1 do CC.;
2.Uma vez que aquele crédito aproveitava aos AA., a eles cabia fazer a prova do seu recebimento pela R.JJ, Lda., tendo meios para tal corno o depoimento de parte desta e da cessionária KK, Lda., e a apresentação dos recibos do pagamento do preço.
3.A dificuldade da prova não é critério legal para atribuir o ónus da mesma a uma ou outra parte.

4. – Dever-se-ia condenar os AA. a pagarem à recorrente somente a indemnização por benfeitorias nos autos, sem «dedução daquela quantia de € 18.575,00.

Para o recurso que interpuseram, dessumiram os AA./reconvindos o epítome conclusivo que a seguir queda extractado.  

1. - Ao reconhecer, em virtude de terem sido demandados em Reconvenção desacompanhados do co-herdeiro NN, mas considerar como "não operante" a questão da ilegitimidade passiva dos aqui recorrentes, a decisão recorrida violou o disposto nos artigos 2091.º, n.º 1 e 2097.º do CC e o disposto nos artigos 28.º, n.º 1 e 2; 288.º, n.º 1 d); 494.º e); e 495.º do CPC e ainda princípios constitucionais, designadamente o da igualdade e o da proporcionalidade.

2. - A ilegitimidade é uma excepção dilatória (alínea e) do artigo 494.º do CPC, de conhecimento oficioso, que obsta a que o Tribunal conheça do mérito da causa (artigo 289° do CPC).

3. - Os Recorrentes não tinham obrigação de invocar na réplica questão que o Tribunal conhece oficiosamente.

4. - Já a Recorrida tinha obrigação de suscitar a intervenção provocada do herdeiro NN beneficiado no testamento a par dos recorrentes, para assegurar a legitimidade passiva da Reconvenção que deduziu, nos termos do artigo 274.º°, n.º 4 do CPC.

5. - A legitimidade das partes é um pressuposto processual de conhecimento oficioso (artigos 288.º, n.º 1 d); 494.º e); e 495.º) que, não sendo sanado, determina sempre a absolvição da instância, salvo uma única excepção contida no n.º 3 do artigo 288.º do CPC, que não ocorreu, porque a decisão não foi integralmente favorável aos Recorrentes.

6. - A decisão recorrida ao condenar só seis de sete reconhecidos herdeiros a pagar indemnização por obras efectuadas em prédio da herança, onera aqueles em benefício deste, ao arrepio do litisconsórcio necessário (artigo 28.º do CPC),

7. - Uma vez que substantivamente a presença de todos os contitulares da herança em juízo é imposta pelo artigo 2091.º, n.º 1 do CC.

8. - Só a presença dos herdeiros em bloco como demandados na Reconvenção assegura o seu efeito útil normal, sob pena de o herdeiro não demandado e que a decisão não vincula a poder negar.

9. - Nos termos das cláusulas quarta e quinta do contrato de arrendamento referido no ponto 4 dos factos provados na decisão de primeira instância, a fiduciária permitiu que a locatária, aqui Recorrida, realizasse obras no prédio sujeito a fideicomisso, incluindo as que alterassem a estrutura interna e externa do mesmo, e conferiu, findo o contrato de arrendamento, direito a indemnização pelas benfeitorias úteis e necessárias que possam ser levantadas.

10. - A formulação pela positiva, ao contrário da formulação pela negativa da matéria regulada no artigo 1273.º do CC., só pode ter o sentido de que as partes pretenderam afastar a previsão legal (supletiva),

11. - O que até se entende, porquanto conhecendo as partes contratantes o testamento (ponto 5 dos factos provados), no seguimento de autorização para obras tão amplas, cumpria acautelar os direitos dos sucessores da propriedade temporária.

12. -Contratualmente à locatária, aqui Recorrida, só caberia indemnização por obras que pudessem ser levantadas, por ser essa a declaração que tem o mínimo de correspondência com o texto do documento (artigo 238.º do CC) e porque o citado artigo 1273.º tem natureza supletiva.

13. - Da matéria provada não consta outro sentido para o documento,

14. - Nem os elementos essenciais ao empobrecimento que justifica o instituto do enriquecimento sem causa.

15. - O objectivo da obrigação de indemnizar que fundou a decisão recorrida exige uma correlação ente o empobrecimento de uma parte e o enriquecimento de outra como deslocação patrimonial, de tal forma que só o valor do empobrecimento seja objecto de restituição.

16. - A avaliação a preços actuais das obras, que decorreu do pedido reconvencional alicerçado nas cláusulas contratuais, é desajustada a efectivo empobrecimento e viola as regras do enriquecimento sem causa estabelecidas nos artigos 473.º 479.º do CC.

17. - Além disso, tendo o fiduciário o dever de usar, fruir e administrar o bem sujeito a fideicomisso como o faria um bom pai de família, não podia permitir a realização, por terceiros, de obras que alterassem a estrutura interna e externa do bem, de forma a afectar os interesses dos fideicomissários.

18. - A decisão de primeira instância, amparada na decisão recorrida, tratou normativamente os poderes do fiduciário nesse sentido, aludindo mesmo à sujeição desses acto a condição resolutiva por morte do fiduciário, mas casuisticamente tomou rumo inverso, abrindo a possibilidade de esvaziar o conteúdo da substituição fideicomissária, em violação do disposto nos artigos 2290.º e 2291.º do CC.

19. - Caso não se entenda que as cláusulas quarta e quinta do contrato de arrendamento têm o sentido de afastar a regra do artigo 1273.º do CC, só contemplando indemnização para as benfeitorias que possam ser levantadas, a amplitude de obras de alteração das estruturas viola direito substantivo de jaez proibitiva (citados artigos 2290.º e 2291.º) e não pode ser oponível aos Recorrentes, por extravasar os poderes do fiduciário.

20. - Por outro lado, se na dinâmica da Reconvenção as obras se destinaram a possibilitar arrendar o espaço e "foram necessárias ao fim do contrato de arrendamento", então não estamos em presença de despesas feitas para conservar e melhorar a coisa, mas de investimentos para o exercício de comércio, ou indústria, da recorrida.

21. - As obras não se destinaram à coisa e não podem ser consideradas benfeitorias (artigo 216.º do CC), mas investimentos que foram sendo recuperados nas sucessivas concessões de exploração que resultaram provadas nos pontos 7 e 22 da decisão primeira instância.

22. - Assim, a decisão recorrida também violou o disposto nos artigos 238.º, 473.º, 479.º, 2290.º, 2291.º, 1446.º, 2290.º e 216.º do CC.

I.3. - QUESTÕES A APRECIAR.

Na assumpção das questões condensadas nas conclusões extractadas, temos como pertinentes para a cabal cognoscibilidade dos recursos:

- Da Ré/reconvinte: Distribuição/repartição do ónus da prova;

- Dos AA./reconvindos: a) – Ilegitimidade passiva (relativamente ao pedido reconvencional); b) – Fideicomisso – Poderes de administração; Excesso; Nulidade/Ilegalidade das cláusulas 4.ª e 5.ª inseridas no contrato de arrendamento celebrado entre a fiduciária e a 1.ª Ré; Benfeitorias; Indemnização – enriquecimento sem causa. 

II. - FUNDAMENTAÇÃO.

II.A. – DE FACTO.

1. MM, que também usava MM, faleceu no dia 27/11/1967, deixando testamento público, lavrado em 28/11/1963 no Cartório Notarial de Viseu, no qual declarou instituir sua herdeira LL, com a obrigação de, por seu falecimento, os bens que constituem a herança passarem aos seguintes sobrinhos da testadora, que entre si os repartirão, OO, AA, filhos da sua cunhada PP, e CC, NN EE, FF, HH, QQ e II, filhos de II (documentos de fls. 12 a 21, ora dados por integralmente reproduzidos), não se tendo ainda procedido à partilha da herança aberta pelo óbito de MM. – A)

2. A herança aberta pelo óbito de MM integra um prédio urbano sito à Rua dos ......., n.º...., e Largo Dr. ........., Tondela, composto de uma casa com três pisos, inscrito na respectiva matriz sob o artigo 2778, que foi habitado, melhorado e fruído por MM, durante mais de 30 anos, à vista de todos, sem oposição de ninguém e na convicção de utilizar coisa própria e de não prejudicar outrem, sendo que o valor patrimonial da cave desse prédio foi, em 2006, calculado pela Direcção-Geral dos Impostos em €78.400,00 (documento de fls. 8 a 10, dado por reproduzido na íntegra). – C)

3. Por escritura lavrada em 11 de Fevereiro de 1980 no Cartório Notarial de Santa Comba Dão, intitulada «Arrendamento», LL declarou dar de arrendamento à 1.ª R. «JJ, Lda.», cujos representantes declaram aceitar, todo o rés-do-chão do prédio referido em 2., cozinha, copa, lojas, garagem, pátio, jardim e quintal, pelo prazo de um ano, prorrogável por iguais períodos, com início em I de Março de 1980, pela renda anual de 36.000$00, paga em duodécimos de 3.000$00, no primeiro dia útil do mês anterior àquele a que disser respeito, em casa da senhoria, em Tondela ou na de quem legalmente a represente nessa localidade (documento de fls. 22 a 25, ora dado por reproduzido na íntegra), sendo que nesse espaço foi instalado o restaurante e snack-bar «O ..........». – D)

4. Do documento aludido em 3., consta que «O local arrendado destina-se ao comércio e indústria de hotelaria, designadamente café, restaurante e snackbar e a qualquer outra actividade que a locatário resolva explorar» e que «A locatária poderá realizar no local arrendado todas as obras e benfeitorias necessárias ao exercício de qualquer das suas actividades, podendo mesmo modificar a estrutura interna e externa do prédio», bem como que «No caso de cessação do contrato a locatária terá direito a ser indemnizada do valor que resultar da avaliação das benfeitorias úteis e necessárias que possam ser levantadas e a sua senhoria compensada pelo valor das deteriorações eventuais de culpa da locatária». – E)

5. Os sócios da 1.ª R. tinham conhecimento do teor do testamento aludido em 1. – 24º

6. Antes da data aludida em 3., o prédio referido em 2. era constituído por um corpo principal formado por um andar chamado de rés-do-chão, sobrelevado cerca de um metro acima do nível do terreno circundante, por outro andar acima deste e por loja inferior àquele primeiro andar, sendo que ao lado do corpo principal e à direita da sua fachada principal e recuado, havia um segundo corpo, formado por piso destinado a cozinha e uma loja inferior, e que o piso do rés-do-chão do corpo principal ligava ao piso da cozinha e as lojas de um e outro ao mesmo nível entre si, tendo as lojas como tecto barrotes e o sobrado que aí assentava do piso imediatamente superior. – F)

7. A 1.ª R. «JJ, Lda.» cedeu a exploração do estabelecimento referido em 3., em 1983, a Agostinho Dias de Barros e mulher, e, em 1996, declarou conceder a sua exploração, mediante a escritura pública outorgada em 22/7/1996 no Cartório Notarial de Tondela, cuja certidão está junta de fls. 26 a 32 (dada igualmente por integralmente reproduzida), intitulada «Concessão de exploração» à 2.ª R. «KK, Lda.», pelo preço total 24.206.230$00, com início em 1/6/1996 e fim em 1/6/2006. – H)

8. Do documento mencionado em 7., consta que «As obras necessárias são da responsabilidade: a) Da cedente: parte exterior do prédio, pintura de muros, pintura da casa, rebocar armazém e colocar portas novas, nivelar a esplanada, fazer tampas novas para as caixas dos esgotos exteriores assim como reparar o telheiro da churrasqueira. b) Da cessionária: obras de adaptação e decoração do interior do estabelecimento desde que não afectem a estrutura do prédio; na parte exterior, casas de banho para o pessoal, construção de fomos e montagem de uma câmara frigorífica», sendo que «As obras e benfeitorias referidas, excepto a câmara frigorífica ficam a fazer parte do estabelecimento sem direito a qualquer indemnização» e «As obras futuras que a cessionária achar necessárias dependerão sempre de autorização por escrito da cedente». – I)

9. Antes da data mencionada em 3., as lojas do prédio descrito em 2. tinham de pé direito cerca de 2,60 a 2,70 metros, tendo a 1ª ré desaterrado todo o espaço das lojas, cavando a terra à enxada e picareta e retirando a terra, afundando também o espaço adjacente à cozinha para alargamento do espaço destinado à nova cozinha e efectuando um desaterro na profundidade média de 0,70 metros para se conseguir um pé direito de 3 metros, altura necessária para a laboração da indústria de hotelaria. – 2º a 4º

10. Tendo a 1.ª ré rebaixado o tecto das lojas, fazendo um enrocamento de areia, brita e cimento para sobre ele instalar o pavimento do chão. –

11. As paredes, que se encontravam aterradas, foram todas aprumadas, conforme o seu nível superior, abrindo-se 4 portais e melhorando-se um outro pré-existente na ligação das paredes de granito, que levaram contrafortes de betão e ferro para sua segurança. –

12. Sendo que as paredes, até aí ligadas por barro, foram todas limpas deste material e depois de lavadas as suas juntas, foram preenchidas com juntas de cimento à vista e protegidas com verniz próprio. –

13. Do velho corpo da cozinha aproveitaram-se duas paredes e o seu espaço foi alargado para mais do dobro, tendo sido, por debaixo, construídas duas casas de banho e um espaço para lavar mãos. –

14. Tendo sido construída pela 1.ª R. uma escada de acesso do sítio da loja ao piso superior alargado da cozinha, que levou duas placas de betão, uma de piso e outra de tecto. –

15. Todo o pavimento do espaço mencionado em 3. foi revestido a mosaico, sendo que, na cozinha, a generalidade das paredes foi revestida a azulejo. – 10º

16. Os tectos da sala de jantar e do bar foram reforçados com vigotas de madeira e forrados com placas de cimento/estilha e posteriormente rebocados e pintados. – 11º

17. Sendo que todas as superfícies que não foram revestidas por material cerâmico foram pintadas pela 1.ª R., que fez por completo as instalações de luz, água, gás e esgotos. – 12º

18. Bem como todos os revestimentos e adereços de carpintaria – portas e janelas, corrimões, balaustrada e tecto falso de madeira – que se encontram no local descrito em 3., construindo também uma lareira para aquecimento na sala de jantar. – 13º

19. A 1.ª R. construiu, para acesso ao restaurante, duas escadarias de granito e implantou-lhe grades de segurança, instalando, por cima acesso, um telheiro com estrutura de madeira. – 14º

20. Custeando, para a esplanada, os tijolos de cimento, e, no pátio, entre a casa e o edifício do cinema, ampliou o rés-do-chão da garagem e construiu um piso superior, pavimentando, com argamassa de brita, areia e cimento, todo o pátio livre e não coberto. – 15º

21. As obras referidas de 9. a 20. têm os seguintes valores:

− valor em novo de €50.000,00 mais IVA; e

− valor no seu estado actual de €35.000,00 mais IVA. – 16º

22. Em 1 de Junho de 2006, a 1.ª e a 2.ª RR. acordaram em conceder à 2.ª R., até 1 de Junho de 2008, a exploração do restaurante mencionado em 3., pelo preço total de €28.200,00, assinando o documento cuja cópia está junta de fls. 71 a 73 (também dado por integralmente reproduzido). – 17º

23. LL faleceu em 14 de Julho de 2006, sendo que OO e QQ, mencionados em 1., faleceram numa data anterior. – B)

24. A 1.ª ré não entregou qualquer quantia à herança aberta pelo óbito de MM a partir da data referida em 23., não tendo as RR. também procedido à entrega do espaço mencionado em 3. aos AA.. – G)

25. AA enviou, «na qualidade de cabeça de casal da herança de MM», à 1.ª R. e à «Gerência do Restaurante..........», que as receberam, as cartas juntas a fls. 33 e 37 (também dadas por reproduzidas), ambas datadas de 31/10/2006, em que, na primeira, se refere «cessou por caducidade no passado dia 14/7/2006 [o contrato de arrendamento celebrado no dia 11/02/1980], data do óbito da mesma fiduciária» e «a restituição do locado é exigível no prazo de seis meses sobre a verificação no prazo de seis meses sobre a verificação do facto que determinou a caducidade (…) aguardamos a desocupação do locado e a sua entrega, nos termos e pela forma legalmente prevista, no dia 15 de Janeiro de 2007», e, na segunda «cumpre dar conhecimento a VV. Exas. da carta que endereçamos à sociedade «JJ, Limitada» e do dever de entrega do bem locado». – J)

26. O espaço referido em 3. poderia ser arrendado, em 2007, por uma renda mensal de € 1.000,00. –

II.B. – DE DIREITO.

II.B.1. – Recurso da recorrente “JJ, Lda.”

II.B.1.a). – Distribuição/repartição do ónus da prova.

Insurge-se a demandada “JJ, Lda.” contra o facto de o tribunal ter posto a seu cargo o ónus de provar o enunciado fáctico proposto sob o número 18.º da base instrutória, dado que “[uma] vez que aquele crédito aproveitava aos AA., a eles cabia fazer a prova do seu recebimento pela R.JJ, Lda., tendo meios para tal corno o depoimento de parte desta e da cessionária “KK, Lda.”, e a apresentação dos recibos do pagamento do preço. A dificuldade da prova não é critério legal para atribuir o ónus da mesma a uma ou outra parte.”

 Vem sendo reiterado ad nauseam em sucessivos arestos deste Supremo Tribunal que, no âmbito da competência material-funcional que a lei de organização judiciária lhe confere como tribunal de revista, apenas lhe está cometido conhecer, em via de recurso, questões que atinem com matéria de direito – cfr. n.º 3 do artigo 722.º e n.º 2 do artigo 729.º, ambos do Código Processo Civil.

As excepções a esta regra colhem guarida na 2.ª parte do n.º 3 do artigo 722.º do Código Processo Civil, e vêm expressas em dois momentos: a) - ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência de um facto; b) disposição expressa de lei que fixe a força de determinado meio de prova. Vale por dizer que a fiscalização/sindicância do Supremo se cinge ou confina às situações em que as instâncias se apartaram ou refractaram de vinculações ou normas imperativas que obrigam a que na comprovação de determinado enunciado fáctico se use um meio de prova cominado ou estabelecido pela normação, substantiva ou adjectiva. Escapa ao controlo deste Supremo Tribunal o exercício de indagação, pelas instâncias, da verdade histórico-processual que dependa da livre apreciação do julgador e para a qual não esteja estabelecida uma vinculação legal a um determinado meio de prova.

Para a revista fica arredada qualquer possibilidade de este Tribunal sindicar o modo ou a forma como as instâncias obtiveram o valor a descontar no montante relativo às benfeitorias realizadas no imóvel, podendo apenas, e tão só, sindicar a forma como o tribunal fez aplicação e ideou o principio de distribuição ou repartição da carga de prova e se o afeiçoou aos ditames das regras e critérios estatuídos por lei.

A problemática da repartição ou distribuição da carga ou ónus de prova [[5]] não atina, como parece ressaltar do “desabafo” do Senhor Relator “[não] cremos que se deva carregar o ónus da prova desse facto – que, aliás, foi invocado pela 1ª R. na sua contestação – aos AA., expressando tal facto uma realidade que lhes é (a eles AA.) exterior e de prova muito difícil muito difícil para eles”, [[6]] da maior ou menor dificuldade que as partes devam enfrentar ao tempo de demonstrar perante o tribunal a verosimilhança entre um facto alegado e a realidade similar ou veracidade histórica que esse facto tem que exibir perante o tribunal para que este ganhe convencimento da sua correspondência com a verdade histórico-processual ou de uma elevada probabilidade - “máxima probabilidade”, na opção semântica de RR, ou “beyond a reasonable doubt”, da common law [[7]] - de esse facto ter acontecido e adquirir validade positiva para o julgamento a realizar pelo tribunal na procura de uma solução jurídica conforme com o factualidade que em determinado momento histórico sucedeu.    

O facto alegado pelas rés na contestação/reconvenção destinava-se a comprovar uma situação de não recebimento das contrapartidas monetárias acordadas no contrato de concessão do estabelecimento comercial, prefigurando-se como um facto favorável às rés. Sendo um facto favorável ao direito invocado pelas rés o ónus da prova estava-lhe, infranqueavelmente, adstrito. Às rés incumbia demonstrar a verosimilhança desse facto de modo a poderem beneficiar da sua comprovação/demonstração perante o tribunal. Aplica-se em pleno o brocardo “actore non probante reus absolvitur”.

O tribunal fez uso adequado e correcto do princípio de distribuição do ónus ou carga de prova ao cominar a prova do enunciado fáctico elencado sob o n.º 18 da base instrutória às rés.

O eventual erro de julgamento operado pelo tribunal quando computa o quantitativo de dezanove mil seiscentos e sessenta e quatro euros e setenta e seis cêntimos (€ 19.644,76) não é sindicável por este Supremo Tribunal – cfr. n.º 3 do artigo 722.º do Código Processo Civil - sendo que o poderia ter sido pelo tribunal da Relação, que não retirou as devidas consequências do asserido no sequente troço do aresto revidendo: “[sendo] certo que não se provou o efectivo e exacto pagamento à 1ª R. da contrapartida da cedência do restaurante pela cessionária 2ª R., entre 15/01/2007 (início do direito de retenção) e 01/06/2008 (data do fim do contrato de cedência de exploração; v. a resposta negativa ao quesito 18º)(…)”.

Falece o fundamento de oposição em que se escorava o recurso da ré.

II.B.2. – Recurso dos AA.

II.B.2.a). - Ilegitimidade passiva (relativamente ao pedido reconvencional).

Os AA./recorrentes suscitaram, ex novo, no recurso para o tribunal da relação a questão da sua própria ilegitimidade (passiva) para a pretensão reconvencional deduzida pelas demandadas. Não o tinham feito, no momento adequado – resposta à contestação/reconvenção – tendo, por exemplo, nessa peça processual, suscitado a intervenção do herdeiro faltoso através do incidente de intervenção principal provocada, nem o aludiram ou suscitaram em momento posterior, v. g. até ao encerramento da discussão da causa, ou seja antes da prolação da sentença, nas alegações finais (ou pelo menos não dá o processo noticia de uma iniciativa deste jaez por banda dos autores), pelo que o tribunal de 1.ª instância não se pronunciou sobre este pressuposto processual, sendo que o poderia ter feito, ainda que oficiosamente. 

Porque o tema não havia sido objecto de debate do decurso da lide processual, nem de pronúncia por banda do tribunal recorrido, tratava-se de questão nova [[8]] que atinando com uma excepção a que o tribunal tem de atender por iniciativa própria, isto sem o necessário impulso das partes, o tribunal de recurso tomou conhecimento da questão ainda que de forma inconcludente, tendo-a qualificado como “não operante”. [[9]]          

Revidam os demandantes a sua ilegitimidade para o pedido reconvencional, dado que nos termos do testamento outorgado pela decessa M...L....., falta um dos herdeiros, NN para que todos possam responder pelo pedido de benfeitorias deduzido no pedido reconvencional.

Ao suscitar a sua própria ilegitimidade para o pedido reconvencional, os autores estão ipso iure a refutar a sua legitimidade para o pedido da acção. Na verdade se os direitos relativos à herança só podem ser exercidos conjuntamente por todos os herdeiros ou contra todos os herdeiros, o exercício do direito de acção que os demandantes exercitaram contra os aqui demandados também só poderia ser accionado se todos os herdeiros estivessem presentes na acção.

Sabendo-se que a legitimidade se reconduz a um pressuposto processual e que a carência de algum dos sujeitos jurídicos que devam estar na lide processual, por virtude da sua posição na relação jurídica substantiva, conduz a uma situação de impossibilidade da decisão que vier a recair sobre o objecto do processo não se traduz num efeito útil que deve advir de decisão judicial, a questão que se coloca no caso concreto atina com a posição processual usada pelos demandantes ao longo de toda a lide processual.

Tendo arredado o herdeiro NN do direito da acção, considerando-o prescindível para obterem os efeitos que através dela pretendiam vir a conseguir para o herdeiros, reclamam a sua presença – depois de se terem visto condenados no pedido reconvencional que contra eles foi impulsionado – atribuindo-lhe o dever de estar na acção reversiva, presuntivamente porque a obrigação de indemnização em que foram condenados devia incluir o herdeiro desprezado e enjeitado na acção. Porém, a exigência e rigor processual só lhes acudiu no momento em que o tribunal se decidiu pela condenação em pagamento de quantia que deveria afectar o património da herança e não naquele em que os demandantes, autointitulados e representantes da herança, reivindicaram dos demandados/reconvintes a restituição do imóvel.

A posição processual assumida pelos demandantes configura, à evidência ou senz´altro, um abuso de direito, na justa medida em que a invocação de um direito (ainda que adjectivo e de conhecimento oficioso) é formulado ao arrepio de todo o comportamento processual assumido e só desponta ou eclode no momento em que vê insucedida a sua pretensão ou vê o tribunal atribuir uma indemnização aos oponentes. Não fora esta circunstância e os demandantes teriam deixado de fora o ora reclamado herdeiro. Má fé processual é como se deve crismar a actuação dos demandantes. []
A propósito da boa fé tivemos ocasião de escrever em recente acórdão [[10]] que: “Nas relações jurídicas estabelecidas entre os sujeitos jurídicos rege como principio invadeável aquele de que, tanto na formação como na execução dos contratos e das relações jurídicas relevantes para a ordem jurídica, se devem usar valores de boa fé e de correcção. No dizer da sentença do tribunal da cassação de 18 de setembro de 2009 “como critérios de reciprocidade, finalizados, substancialmente, em manter uma relação jurídica num binário do equilíbrio e da proporcionalidade”. “Na aplicação prática a cláusula geral de correcção e boa fé fornecem critérios de orientação teleológico de conduta nas relações de direito privado, consignando ao intérprete a ideia de obrigação e realizando nesta perspectiva, o que soe chamar-se “fecho”do sistema legislativo”. [[11]]
Ideia e critério fundante da teoria dos contratos, a cláusula geral de boa fé permanece ínsita em todas as áreas do direito em que os sujeitos jurídicos devam assumir obrigações e direitos de reciprocidade e de comutatividade. Os comportamentos assumidos nas relações que se estabelecem devem pautar-se por regras de ética e de empenho pessoal no cumprimento dos deveres assumidos de modo a que se torne previsível um são e salutar desenvolvimento do relacionamento contratual estabelecido.
A dessunção das regras de comportamento de correcção relacional só são passíveis de apreciação no que é designado “direito vivente”, no sentido de que é a neste que se verte e exprime a conduta dos agentes sociais e é deste que se induz o particular-concreto para aferição dos parâmetros gerais estabelecidos como regras orientadoras do direito. [[12]]
Daí que “o Juiz, ainda que, “não invente direito novo, mas descobre ou revela direitos e deveres através de um proceder que se pode exemplificar tendo em conta algumas premissas de método”. “Entre estas premissas, os princípios gerais (sobretudo se dotados de cobertura constitucional) desenvolvem uma função fundamental de “directiva” para o Juiz na sua actividade de correcta “concretização” da indeterminação própria do dever geral de boa fé”. [[13]]
Corolário da cláusula geral ou princípio de boa fé é o exercício dos respectivos direitos ao eito de escopos éticos e sociais “pelo qual o próprio direito vem reconhecido e concedido pelo ordenamento jurídico positivo, o uso anormal do direito pode conduzir o comportamento do particular (no caso concreto) fora da esfera do direito subjectivo, tornando-o, por conseguinte, ilícito, segundo as normas gerais do direito material” [[14]]
A esta nova luz, o abuso do direito é concebido - na teorização feita pela mais recente jurisprudência da Corte Suprema - como uma alteração juridicamente relevante do factor causal no exercício de um direito. O abuso do direito longe de pressupor uma violação no sentido formal delineia, pois, uma utilização alterada do esquema formal do direito, finalizada pelo conseguimento de objectivos ulteriores e diversos aos que estavam indicados pelo legislador”. [[15]]
Na estatuição do artigo 334.º do Código Civil “é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito”.
A ordem jurídica não protege de forma indelegável e absoluta um direito subjectivo e o interesse que lhe vai adstrito, no plano de um interesse positivo e funcionalmente tutelado. No desenvolvimento da equação ou tensão entre existência e alcance de interesse e reconhecimento e exercício do direito subjectivo “a ordem jurídica não aceita uma funcionalização geral do reconhecimento da titularidade (ou só do exercício) do direito subjectivo à existência de um interesse digno de protecção legal, objectivamente apreciado, e que tenha de justificar o exercício do direito nas circunstâncias em causa. Antes o direito subjectivo (distinto, pois, por esta nota, dos poderes-deveres ou poderes funcionais) comporta um poder não estritamente funcionalizado, ainda que não necessariamente arbitrário – o que é diverso da imposição de qualquer dever ou ónus de fundamentação teleológica, mesmo apenas em termos de “razoabilidade”. A regra, no direito privado (e correspondentemente com o sentido do modelo jurídico-privado de ordenação e afectação de recursos, terá, aliás, de ser sempre a de que, pelo menos no domínio do direito subjectivo, a definição e interpretação dos interesses para que se exerce o direito subjectivo apenas cabe ao seu titular, podendo, até, incluir, como via para sua satisfação, o próprio não exercício ou a destruição do respectivo objecto (salvo no caso de direitos indisponíveis). E em termos tais que o “substrato teleológico” do exercício da posição apenas relevará quando, além do prejuízo causado a terceiros, for radicalmente dissonante, ou contrário, em relação ao que pode justificar o reconhecimento do direito subjectivo e a colocação ao seu serviço do aparelho sancionatório estadual – em termos, portanto, de a movimentação deste aparelho se revelar inexigível in casu”. [[16]]
Na acepção de Orlando de Carvalho, versado pelo Autor citado, “O abuso de direito existe quando há um exercício do direito fora do âmbito do exercício do poder de autodeterminação que é próprio fundamento do reconhecimento de direitos subjectivos, propondo, como critério para o apurar a falta de interesse no exercício do direito a apreciar em abstracto ou concreto, e a transcendência do prejuízo em relação ao agente. Esta concepção implica, pois, uma distinção em relação à boa fé entendida enquanto norma de conduta: enquanto nesta está em causa uma regulamentação da conduta dos particulares, um problema de actuação contra legem, no abuso de direito o que é relevante não é a violação do direito objectivo, e sim a falta de interesse conjugada com a “transcendência do prejuízo”.” [[17]]
O abuso de direito enquanto forma desviada e jurídico-socialmente reprovável de um direito subjectivo constitui-se como paralisador do exercício do direito na medida em que o interesse (positivo) prosseguido pelo respectivo titular se coloca numa posição de defraudação da expectativa jurídica expressa na estabilização jurídico-material da normação adrede. Vale por dizer que a ordem jurídica ao estabelecer consagrar as regras de accionamento e exercício dos direitos conleva um feixe de interesses que na sua tensão e conflitualidade podem obnubilar o interesse positivo associado ao direito subjectivo desde que o prejuízo que desse exercício advenha sobreleve na sua extensão e alcance. [[18]]
Como consequência de uma eventual abuso do direito, o ordenamento põe uma regra geral, no sentido de recusar a tutela aos poderes, direitos e interesses exercitados em violação das correctas regras do exercício, posto serem mediante comportamentos contrários à boa fé. Nesta forma de “mancanza di tutela” está a finalidade de impedir que possam ser conseguidos ou conservadas vantagens – e direitos conexos – através de actos em si estruturalmente idóneos, mas exercitados de modo a alterar-lhe a função, “violando la normativa di correttezza”. [[19]]
Manuel de Andrade qualificava a figura de abuso de direito como o exercício incorrecto e desviado do sentido que a lei e o Direito pretenderam fixar o direito subjectivo que o respectivo titular pode exercitar sem ofensa às regras de boa fé, confiança jurídica e relacional que queda estabelecida entre os protagonistas de um contrato ou de uma relação jurídica tutelada pela ordem jurídica. [[20]] O acto de exercício ou pretensão de tutela do direito assume-se assim como contrário à consciência jurídica dominante ou prevalente numa determinada comunidade.
Para A. Varela, "para que haja lugar ao abuso do direito, é necessária a existência de uma contradição entre o modo ou fim com que o titular exerce o seu direito e o interesse a que o poder nele consubstanciado se encontra adstrito” [in “Das Obrigações em Geral”, vol. I, 6.ª ed., pág. 516].
Ocorre abuso do direito quando alguém, detentor de um determinado direito, consagrado e tutelado pela ordem jurídica, o exercita, todavia, no caso concreto, fora do seu objectivo natural e da razão justificativa da sua existência e ostensivamente contra o sentimento jurídico dominante. Há neste exercício um desvio flagrante e ostentatório entre a dimensão do direito tutelado e compressão de um outro estado ou situação jurídica, que não estando salvaguardado pela ordem jurídica, terá obtido pela permanência na esfera jurídica de um outro sujeito, um estádio de quase direito que a consciência jurídica, numa assumpção de pré-juridicidade ou juridicidade fáctica, deve tutelar, ou pelo menos, obstar que seja torpedeado pelo direito validamente constituído.   
Os autores soem assimilar ao instituto do abuso do direito o facto de alguém adoptar um comportamento que tipicamente se dirige em determinado sentido e que, extravagantemente, de forma inusitada e perversa, adquire novo rumo ao arrepio do que já estava sedimentado numa determinada relação jurídica, substantiva ou processual.
Na doutrina do acórdão deste supremo Tribunal de Justiça de 20-11-1995 “A locução venire contra factum proprium traduz o exercício de uma posição jurídica em contradição com o comportamento assumido anteriormente pelo exercente. Tal exercício é tido por parte da doutrina que o conhece como inadmissível. Como expressão da confiança, o venire contra factum proprium situa-se já numa linha de concretização da boa fé. É o que acontece com a recondução do "venire" à doutrina da confiança, que revela um estádio elevado nessa tarefa da concretização da boa fé. A confiança dá um critério para a proibição de venire contra factum proprium.
 Os princípios que, à face do Direito civil português, permitem detectar a presença de um facto gerador de confiança podem ser induzidos das regras referentes às declarações de vontade, com relevância para a normalidade - artº 236º, nº 1 - e o equilíbrio - artº 237º. Significa isto que o quantum relevante de credibilidade para integrar uma previsão de confiança, por parte do factum proprium, é, assim, função do necessário para convencer uma pessoa normal, colocada na posição do confiante e razoável, tendo em conta o esforço realizado pelo mesmo confiante na obtenção do factor a que se entrega. Assim se obtém o enquadramento objectivo da situação de confiança. Requere-se, porém ainda um elemento subjectivo: o de que o confiante adira realmente ao facto gerador de confiança.
É que bem pode acontecer que, não obstante a presença de elementos objectivos suficientes para justificar a protecção da confiança, o beneficiário em potência, por razões específicas, não tenha de facto confiado na situação que se lhe oferecia. Não cabe então oferecer-lhe a protecção jurídica. Ou que, tendo confiado, tenha desacatado (ou descurado) a observância de deveres de indagação que ao caso deviam caber. O que significaria que, apesar da verificação de tais elementos objectivos geradores da confiança, a mesma não "resistiria" aos cuidados de diligência resultantes do cumprimento do dever de indagação.”

A expressão "venire contra factum proprium", significa, portanto, uma proibição jurídico-factual da assumpção de um comportamento contraditório, postulando dois comportamentos da mesma pessoa, lícitos em si e diferidos no tempo. O primeiro – factum proprium – é, porém, contrariado pelo segundo.

O venire contra factum proprium encontra respaldo nas situações em que uma pessoa, por um certo período de tempo, se comporta de determinada maneira, gerando expectativas na outra de que o seu comportamento permanecerá inalterado.

Em vista desse comportamento, existe um investimento, a confiança de que a conduta será a adoptada anteriormente, mas depois de referido lapso temporal, é alterada por comportamento contrário ao inicial, quebrando dessa forma a boa-fé objectiva (confiança).

Na escalpelização ou escrutínio recenseador dos autores evidenciam-se quatro elementos para a caracterização do venire: comportamento, geração de expectativa, investimento na expectativa gerada e comportamento contraditório.

A tutela da confiança atribui ao venire um conteúdo substancial, no sentido de que deixa de se tratar de uma proibição à incoerência por si só, para se tornar um princípio de proibição à ruptura da confiança, por meio da incoerência. O fundamento da proibição do comportamento contraditório é, justamente, a tutela da confiança, que mantém relação íntima com a boa-fé objectiva.
Verifica-se que na sua estrutura, o “venire contra factum próprio” pressupõe a existência de duas condutas contrapostas da mesma pessoa, que arrancando da sua licitude intrínseca, se revelam, no arco do tempo, distintas e contraditórias. Assim a primeira (o “factum proprium”) revela-se antinómica e contraditória da segunda, a acção desencadeada para contraminar o statuo quo estabelecido, de forma a que essa relação oposicional justifica a emergência da figura proibitiva e vedante em que se constitui o princípio do abuso do direito.
O principio arranca do princípio da confiança enquanto valor e exigência de uma estabilidade posicional e jurídica das pessoas e que não estando sedimentadas como direito instituído devem merecer protecção da ordem jurídica em homenagem à manutenção e tutela de determinados comportamentos da comunidade jurídico-social que estando organizada na base de relacionamentos tendencialmente estáveis, exige que cada sujeito assume perante os demais um comportamento congruente e minimamente estável de modo a permitir um desenvolvimento harmonioso e previsível das respectivas condutas.

No caso concreto, porém, a questão que se poderia colocar atina com o facto de o direito suscitado pelos demandantes – a sua própria ilegitimidade (passiva) para a acção reconvencional – não ser o direito exercitado um subjectivo e individual mas sim um direito de ordem pública ou de cariz processual que, arrancando embora de um comando substantivo (artigo 2091.º, n.º 1 do Código Civil), tem repercussões na ordem jurídica adjectiva porquanto a sua carência importa e percute efeitos jurídicos processuais que reverberam obrigações substantivas nas relações entre os sujeitos da relação hereditária.

Ainda assim, somos de entender que a estabilização da relação processual teve a sua culminância na prolação da decisão. Os demandantes sedimentaram e consolidaram uma relação processual que o tribunal coonestou na prolação de uma decisão que teve como destinatários os sujeitos da relação jurídica processual que os demandantes mantiveram e quiseram manter inalterada e imutável até ao colmo da relação em 1.ª instância, pelo que a pretensão dos demandantes de alterar o veredicto do tribunal através de uma revulsão endoprocessual se nos afigura frustrante do principio da boa fé e da confiança que devem presidir ao desenvolvimento salutar e lhano de uma relação tendente a definir os direitos do sujeitos engolfados na acção.

A relação jurídica processual, enquanto relação de feição publicista e destinada a regular as relações dos sujeitos que pretendem fazer valer um direito na ordem judiciária, rege-se pelo mesmo paradigma e princípios das relações jurídico-privadas, pelo que a aplicação dos princípios do abuso de direito - mesmo, como é o caso, o direito invocado se destine a salvaguardar interesses de ordem pública - às invocações de um direito que ostensivamente viole regras de boa fé e de confiança devem ser sancionadas pela vedação ou proibição do exercício desse direito, na medida em frustre e desvirtue a estabilidade e a harmonia processual já conseguida e que os sujeitos processuais já tinham adquirido como certa ao longo da lide.

Na defluência do exposto taxa-se a conduta dos demandantes como abusiva da relação processual já estabilizada e fixada pela instância inicial e violadora do principio da boa fé e confiança processuais.

Do concluído dessume-se a legitimidade (passiva) dos demandantes para o pedido reconvencional e ipso facto a própria legitimidade (activa) para o pedido impulsionado por via da acção. 

II.B.2.b). – Fideicomisso – Poderes de Administração; Excesso. Nulidade/Ilegalidade das cláusulas 4.ª e 5.ª inseridas no contrato de arrendamento celebrado entre a fiduciária e a 1.ª Ré.

O núcleo da dissonância dos AA. para com o aresto em revisão centra-se na alegação: 1) - poderes de administração do fiduciário; 2) - sentido e alcance da proposição [direito a ser indemnizada do valor que resultar da avaliação das benfeitorias úteis e necessárias que possam ser levantadas (…)”; 3) – qualificação das obras realizadas como benfeitorias ou, ao invés, como investimento; 4) - medida da indemnização pelas benfeitorias realizadas – enriquecimento sem causa. [[21]]

II.B.2.b.1. – Poderes de administração do fiduciário.

Pondo em tela de apreciação a primeira das equacionadas questões, afigura-se-nos que a cláusula quarta ao estipular que a locatária poderia realizar no locado as obras e benfeitorias necessárias ao exercício das suas actividades, “[podendo] mesmo modificar a estrutura interna e externa do prédio”, cabe dentro dos poderes administração do fiduciário.

O fideicomisso constitui-se como uma forma de o testador substituir por outra pessoa o herdeiro instituído. Procurando desenhar uma distinção entre a substituição fideicomissária e substituição directa, Carlos Olavo, refere que enquanto a substituição directa consiste numa dupla disposição alternativa, que se resolverá necessariamente numa única atribuição de bens, a substituição fideicomissária consiste numa dupla disposição sucessiva que se traduz, normalmente, numa aquisição sucessiva de bens. Nela o substituto é chamado depois do substituído e a efectivação do fideicomisso tem por pressuposto a eficácia de dois chamamentos. Afins ao regime de substituição, directa e indirecta, soem os autores alinhar os caos de “[deixa] sob condição resolutiva cuja verificação haja de coincidir com a morte do nomeado, acompanhado por deixa cujos efeitos ficam suspensos até verificação dessa mesma condição.” [[22]]   

(Deixa-se de lado, por não interessar, manifestamente ao caso, a substituição pupilar e quase-pupilar.)

Mantendo-nos no âmbito performativo da qualificação do instituto e das posições que advêm para o sujeito instituído, a figura do fiduciário não coincide ou não se confunde com a do usufrutuário. Na verdade, o usufrutuário é sempre um legatário, mesmo que o seu direito incida sobre a totalidade do património, nos termos do artigo 2030.º, n.º 4, sendo que “[além] disso, de acordo com o artigo 2293.º, nº 2 , se o fideicomissário não puder ou não quiser aceitar a herança, a titularidade dos bens hereditários considera-se adquirida definitivamente pelo fiduciário desde a morte do testador. Quer isto dizer que fiduciário é titular dos bens hereditários, embora, não definitivamente.” [[23]]

A posição jurídica do fiduciário pode, pois, ser caracterizada “[como] sendo uma titularidade limitada.” Daí decorre que enquanto no caso do usufrutuário “[os] poderes de gozo e de administração derivam de um direito real de gozo sobre coisa alheia, ao qual se contrapõe o direito actual do proprietário de raiz, no fideicomisso esses poderes integram o direito de propriedade temporária de que é titular o fiduciário ao qual se contrapõe uma simples expectativa sucessória, da qual é titular o fideicomissário.” [[24]]  

Os autores convergem que ao fiduciário está vedada a disponibilidade ou oneração dos bens fideicometidos, sendo-lhe tão só permitido dispor de bens para pagamento de dividas da herança, ou seja de liquidação do passivo da herança, bem como dá-los em cumprimento. [[25]]

O fiduciário na administração dos bens fideicometidos está vinculado a uma gestão dos bens de maneira a não esvaziar a sua consistência económica, pois que a entrega dos bens ao fideicomissário desprovido de valor ou utilidade económica esvaziaria de conteúdo o fideicomisso. A obrigação de entregar os bens fideicometidos dotados de utilidade e consistência económica confere ao fiduciário o dever de zelar e administrar os referidos bens de acordo com o que soe designar-se a actuação de um bom pai de família. “[Sendo] a coisa própria, os poderes que sobre ela incidem hão-de normalmente ser mais latos, pelo que o respectivo gozo e administração se devem processar plenamente, sem tal restrição. Por isso, entende-se que o art. 1446.º, na medida em que limita a actuação do usufrutuário ao respeito pelo destino económico da coisa, não é aplicável ao fiduciário.” [[26]

O fiduciário tem poder de administrar os bens e ao mesmo tempo o dever de fazer com que os bens mantenham a mesma consistência económica em ordem à sua eventual reversão a favor do fideicomissário.

Os recorrentes colocam em crise a administração que a fiduciária destinou ao bem fideicometido, ou seja não questionando que na administração (temporária) do bem pudesse ter celebrado um contrato de arrendamento para exploração de um restaurante, já questionam que a autorização para alteração da estrutura interna e externa do prédio, descaracterizando-o, acrescentando-o e alterando-o fosse cabível nos poderes de uma administração condizente com os padrões de um bom pai de família - cfr. fls. 13 e 14 das alegações. [[27]]     

À luz do que ficou provado importará, pois, caracterizar os actos da fiduciária, o que vale por dizer recortar a sua actuação performativa relativamente ao bem fideicometido.

Não pondo em causa o poder de dar uma parte do prédio de arrendamento, v. g. neste caso, para instalação de um estabelecimento de restauração, questiona-se o subsequente “poder” de autorizar que no local onde o restaurante viesse a ser instalado fossem efectuadas obras que alterassem a substância do prédio, conferindo-lhe uma estrutura inovadora e projectando-lhe formas que não eram as originárias, tanto interna com externamente..

Como se consignou supra o fiduciário tem os mesmos poderes do proprietário, menos os de disposição da coisa fideicometida, naturalmente, ainda que temporariamente balizados. Vale por dizer que o fiduciário pode administrar a coisa de modo pleno, sem desguarnecer o dever de que o exercício do seu direito é limitado no tempo e que por isso toda a disposição do bem fideicometido deve salvaguardar os efeitos que essa temporalidade comporta e confina, ou dito de outra maneira, não deve onerar os bens com encargos que, pela sua extensão e gravame, possam pôr em crise a reversão do bem para o substituto.

O objecto do locado era, conforme resulta do enunciado fáctico constante do n.º 3 da decisão de facto, um rés-do-chão de um prédio urbano composto de cozinha, copa, lojas, quintal e anexos, pelo que “[permitindo] à locatária realizar obras que alterassem a estrutura interna e externa do prédio, constituiu uma obrigação futura a cargo dos fideicomissários e à sua revelia, que onera (direito de retenção/penhor) o bem sujeito a fideicomisso”.     

Destinando-se o locado à instalação de um estabelecimento de restauração o consensuado na cláusula quarta do contrato de arrendamento inseria-se na economia e no fim para que o contrato tendia. Partindo do pressuposto que a parte do imóvel arrendada não estava preparada para funcionar como um estabelecimento de restauração e sendo o fim do contrato a instalação de um estabelecimento desse género, o contrato não poderia deixar de prever e dar permissão ao locatário de proceder às adaptações internas e externas necessárias á prefigurada instalação. A adaptação da estrutura interna do locado, decorrentes, em primeira linha, de regras e regulamentos vigentes para o funcionamento de um estabelecimento desta natureza, bem como a necessidade de configurar o aspecto interno de modo a adequar o espaço disponível ao ajaezamento de meios que permitissem uma ajustada utilização e uma performance arquitectónica donde pudesse ser extraído um melhor efeito de conforto e comodidade para os usuários, constituía-se como um fim inerente à economia do contrato de locação celebrado.

Na verdade, pensamos, não pode ser considerada como uma administração extravagante e/ou exorbitante dos poderes do fiduciário a celebração de um contrato de arrendamento para exploração de um estabelecimento de restauração numa parte de um imóvel fideicometido. Com o arrendamento dessa parte do imóvel, o fiduciário valorizava o imóvel, dado que, a instalação de um restaurante constitui uma mais valia para o imóvel onde fique instalado, pela rentabilização que pode representar no mercado de arrendamento e pela rendimento acrescido que, normalmente, representem e constituem as rendas advenientes do arrendamento de um estabelecimento comercial desta natureza. Seria legitimo que o fiduciário pretendesse rentabilizar o imóvel, tanto mais que só uma parte do prédio, o rés-do-chão, ficava afecta ao estabelecimento, deixando todos os demais pisos libertos para o uso pessoal ou outro.

No concernente à oneração do bem fideicometido, por virtude de eventuais indemnizações a que os fideicomissários tivessem que vir a ser obrigados a ressarcir, quando cessasse o fideicomisso, já a situação se pode configurar de forma diversa.

No caso que nos ocupa, o convencionado entre a fiduciária e a arrendatária consubstanciava-se, numa perspectiva funcional e pragmática, na permissão de realização de obras de adaptação do locado para que nele pudesse vir a funcionar um estabelecimento comercial do ramo de cafetaria e restauração, o que se concatenava ou conciliava com o fim ou destino para que o contrato tendia.

Todas as obras que foram realizadas, desde que contidas e confinadas nos limites do destino do contrato de arrendamento, deverão ser consideradas benfeitorias úteis, por, não sendo indispensáveis para a conservação da coisa, aumentam o valor do imóvel ou daquela parte do imóvel. Na verdade, as obras que os arrendatários tiveram que realizar no locado, para adaptação e adequação do locado ao fim do arrendamento, não deixaram de lhe acrescentar uma especifica valorização, dada a rentabilidade que os espaços destinados ao arrendamento comercial adquirem e possuem no mercado do arrendamento.

O problema em tela de juízo, e que constitui o cerne da dissensão com o acórdão recorrido, prende-se com o facto de a fiduciária ter inerido uma cláusula em que “[no] caso de cessação do contrato a locatária terá direito a ser indemnizada do valor que resultar da avaliação das benfeitorias úteis e necessárias que possam ser levantadas (...)” e com os efeitos futuros que essa cláusula poderia acarretar/onerar o fideicomisso e correlatamente os direitos dos fideicomissários.  

Ocorre dizer que um contrato vigora durante e pelo tempo que tiver sido estipulado nas cláusulas contratuais, podendo, no entanto, cessar por vontade própria dos contraentes – mediante denúncia do contrato, nos casos em que seja legalmente possível – ou por ocorrência de circunstâncias supervenientes, concorrentes de alterações subjectivas ou objectivas ou por acção de força maior, que possam dar lugar à resolução ou à impossibilidade de incumprimento. Não será, pois, correcta e perfeitamente apodíctica, a alegação dos recorrentes de que a cláusula introduzida o foi porque os contraentes sabiam da temporalidade do contrato. Se é verdade que o fideicomisso se traduz, na sua essencialidade, por uma vigência temporalmente limitada no direito de gozo da coisa fideicometida, a vigência de um contrato não teria que ter a mesma vigência do fideicomisso, vale dizer, até ao momento da extinção deste e da substituição do fiduciário, pela morte dele, pelos fideicomissários. Nada impediria a que durante o período de vigência do fideicomisso a fiduciária ou os arrendatários não pudessem ter evertido a relação contratual, tendo por motivo ou fundamento ou a denúncia do contrato ou a sua resolução.

Os autores/recorrentes partem de um pressuposto que não se prevalece de total consistência ou antes se prefigura como falacioso. Na verdade, para colocarem em causa a boa fé e as infectas intenções dos contraentes, os autores partem do pressuposto que a fiduciária, no momento em que contratou, bem como os arrendatários, sabiam que estavam a onerar excessivamente os vindouros, neste caso os fideicomissários. Isto é, em lhanas palavras, sabendo que o contrato caducaria com a morte da fiduciária, ao contratualizarem as cláusulas quarta e quinta, estavam a transferir para os fideicomissários um ónus excessivo e manifestamente contrário a uma ajustada administração da coisa fideicometida.

Em nosso aviso, o pressuposto de que arranca a argumentação dos recorrentes peca por excessiva, por radicar, como vem sendo dito, numa premissa que poderia não ser verificável. Na verdade, como já afloramos supra, a ideia de que o contrato valeria por toda a vida da fiduciária não poderia ser previsível no momento da sua celebração, na justa medida, em que na vida da relação contratual, poderiam ter sobrevindo circunstâncias que pudessem ter conduzido à destruição do vinculo contratual. Na verdade, uma relação contratual desta natureza não é eterna ou não se mantém com uma duração indeterminada, sendo que, por razões e causas inerentes às posições especificas de cada um dos contraentes, sempre a relação poderia ter sido desmembrada durante a vida da fiduciária. Neste caso, seria a própria fiduciária a suportar os encargos da cláusula e não os fideicomissários.

A fiduciária enquanto titular de um direito de gozo pleno do bem fideicometido, ainda que temporariamente balizado, tinha o poder de administrar a coisa de acordo com as regras e critérios típicos de um bom pai de família e ao celebrar um contrato de arrendamento para fins comerciais fê-lo, certamente, com o objectivo de valorizar o imóvel e poder, no futuro, conferir uma maior rentabilidade ao referido espaço. Tratando-se de um contrato de arrendamento a sua vigência não pode ser, temporalmente, indeterminada – cfr. artigo 1022.º do Código Civil - pelo que sempre poderia qualquer das partes pôr termo à vigência do contrato, desde que ocorresse fundamento legal. Daí que não colha o fundamento esgrimido pelos recorrentes de que os efeitos das cláusulas quarta e quinta teriam uma repercussão, necessária e inderrogável, na sua esfera jurídica, enquanto beneficiários do fideicomisso. Para que tal, de forma irrefragável, sucedesse teria que ter sido aposta uma cláusula determinativa do fim do contrato coincidente com o decesso da fiduciária. Não tendo sido aposta uma cláusula deste teor, nada obstaria a que ao contrato fosse posto fim antes do término necessário e inevitável do fideicomisso, ou seja com a morte da fiduciária. 

Se assim, em tese, importa, tendo em tela de juízo o caso concreto, confrontar a realidade com o que se encontra clausulado. E aqui teremos que convir que se a cláusula quarta se configura plenamente legitima e licita, ao permitir que a locatária realizassem as obras de adaptação no locado, conformando a estrutura do imóvel ao fim a que destinava o contrato de arrendamento, já a cláusula quinta, se apreciada e mesurada á luz da realidade que restou da vida do contrato – sobrevivência para além da morte da fiduciária – se nos afigura incompatível com o fim do fideicomisso e excessivamente onerosa para os fideicomissários, bem como desajustada e desproporcionada para os fins específicos do contrato. Na verdade a cláusula quinta ao determinar uma indemnização à locatária de todas as benfeitorias úteis e necessárias que pudessem ser levantadas cria, se apreciada na perspectiva de uma gestão criteriosa, zelosa e prudente do fideicomisso uma oneração incomportável e desproporcionada, porquanto transfere para os fideicomissários um encargo que vai para além do que seria exigível suportar e do que caberia nas regras próprias da indemnização ao benfeitor das benfeitorias úteis que houvesse realizado no locado.

 Cláusula quinta configura-se, em nosso juízo, excessiva e abusiva, se apreciada à luz do que é usual clausular nos contratos de arrendamentos e contrária a regras de gestão prudente e zelosa de um bom pai de família que não deverá deixar ónus excessivos a que lhe venha a suceder, por prodigalidade ou excesso de pendor perdulário e munificente. A inserção de uma cláusula com este alcance, se percutida na esfera dos fideicomissários, é contrária ás regras gerais de indemnização por benfeitorias úteis e como tal passível de ser crismada de abusiva, por lesiva dos legítimos interesses e expectativas dos sucessores no fideicomisso.

Haverá, pois, que qualificar a cláusula quinta de abusiva e reduzir o seu alcance aos limites impostos pelas regras contidas no artigo 1272.º do Código Civil, o que se fará no apartado sequente.  

II.B.2.b.2. – Benfeitorias. Qualificação das obras realizadas no imóvel fideicometido como benfeitorias ou, ao invés, como investimento. Sentido e alcance da proposição “[direito] a ser indemnizada do valor que resultar da avaliação das benfeitorias úteis e necessárias que possam ser levantadas (…).

Para os recorrentes as obras de adaptação e acomodação realizadas no locado não devem ser qualificadas como benfeitorias, mas antes como um investimento realizado pela locatária, dado que “não se destinam à coisa mas ao contrato”; “não se destinaram a conservar ou melhorar o prédio, mas tão só a permitir um arrendamento com destino a restaurante (como se concluiu na decisão da primeira instância)” não podendo “[as] obras em causa considerar-se benfeitorias, úteis ou necessárias, sob pena de violação do disposto no artigo 216.º do CC.” – fls. 16 das alegações. 

Socorrendo, data vénia, do doutrinado no Ac. do STJ de 08-02-2011, relatado pelo Conselheiro Sebastião Povoas: “[…] benfeitoria consiste num melhoramento, ou aperfeiçoamento, feito por quem tem um vinculo à coisa (relação de facto ou de direito), sendo, mais frequentemente, o caso do locatário, do comodatário, do usufrutuário ou, até, do mero detentor ou do possuidor de má fé – cfr. a propósito, o Prof. Vaz Serra, RLJ 106.º-109.º

Pretende-se proteger mesmo o possuidor de má fé, contra um locupletamento injusto do que investiu para suportar o custo das benfeitorias úteis, autorizando-o a proceder ao seu levantamento desde que tal possa ser feito sem prejudicar a coisa onde foram implantadas.
Isto é, o n.º 1, “in fine” do artigo 1273.º do Código Civil reporta-se não ao detrimento da benfeitoria (cujo levantamento implica, em regra, senão a sua destruição mas, pelo menos, o serem-lhe causados danos) mas à danificação significativa da coisa onde as mesmas foram implantadas – cfr. Prof. Manuel de Andrade, in “Teoria Geral da Relação Jurídica”, 1964, I, 274 – e porque assim é, é que o artigo 1273.º do Código Civil utiliza as expressões “(…) levantar as benfeitorias úteis realizadas na coisa (…)” [n.º 1] ou “(…) para evitar o detrimento da coisa, não haja lugar ao levantamento das benfeitorias (…)” [n.º 2]).
Isto porque as benfeitorias úteis implicaram despesas que não sendo importantes para evitar o prejuízo da coisa “têm por resultado o aumento do seu valor objectivo”. Mais que o fim conseguido importa agora o resultado – Prof. Pedro Pais de Vasconcelos, ob. cit., 236 – a concluir que se delas não resultar uma valorização efectiva da coisa, as despesas não poderão ser tidos como benfeitorias úteis.”
As benfeitorias estão, enfim, ligadas ao poder jurídico de transformação que está ínsito no direito de gozar a coisa beneficiando-a para melhor a fruir. (cfr. o Prof. Oliveira Ascensão, apud “Direito Civil – Reais”, 5.ª ed., 109).
Mas são sempre realizadas pelo fruidor (possuidor ou detentor) da coisa, não tendo essa natureza os melhoramentos feitos pelo proprietário.
Se forem realizadas por um terceiro sem qualquer relação com a coisa não terá este o direito a ser indemnizado ao abrigo do disposto no artigo 1273.º do Código Civil mas, eventual e tão-somente, pelo enriquecimento sem causa, se perfilados os respectivos pressupostos.”
Repristinando a situação juridíco-factual que enforma o caso, temos que o locatário, por destinação clausulada em contrato de arrendamento, realizou obras no espaço objecto de locação, com a finalidade de aí instalar e pôr a funcionar um restaurante. As obras realizadas destinavam-se, assim, a dar utilidade a um espaço que por vontade do locador se destinava a um fim que até ao momento do contrato não era o fim do imóvel.     
A ré/reconvinte alegou – cfr. artigo 48.º e 55.º da contestação/reconvenção - que as obras foram realizadas na coisa reivindicada e destinaram-se a assegurar e prosseguir o fim do arrendamento. Implícita terá subsistido a ideia de que as obras realizadas se constituíam igualmente como melhoramento do imóvel, na perspectiva do contrato que havia celebrado com a fiduciária.
A qualificação das obras como benfeitorias, por incorporação das mesmas na estrutura do locado, ou, ao contrário, como investimento, dado se destinarem a dar prossecução ao fim estatuído no contrato, terá de arrancar não desta dicotomia mas da substancialidade e projecção utilitária que, pela incorporação, veio a ser adquirida pelo imóvel fideicometido.
Em nosso juízo as obras incorporadas na parte do imóvel urbano objecto de locação, destinando-se materializar, finalisticamente, e dar sequência funcional ao contrato de arrendamento, não podem deixar de ser qualificadas como benfeitorias úteis, mas tão só na parte em que elas aproveitam o prédio enquanto bem apto a qualquer destino que não especifica e concretamente o que decorre de um fim especifico que lhe foi atribuído pelo contrato. Na verdade a utilidade a retirar ou adveniente da realização de benfeitorias num imóvel não deve ser aferida em função do fim que lhe dado para um fim especifico a que temporariamente lhe foi destinado, mas sim pela utilidade que das mesmas pode advir para o prédio enquanto imóvel urbano que pode ser destinado a qualquer outro fim. Assim, e de forma mais precisa só as benfeitorias efectuadas no imóvel e que beneficiaram ou são aptas a beneficiar e aproveitar a estrutura matricial e fundante do imóvel é que poderão ser consideradas benfeitorias úteis para o imóvel e não aquelas que foram efectuadas para dar comodidade e funcionalidade ao estabelecimento de restauração que aí foi instalado pela demandada. Útil, para os fins normativizados no artigo 1273.º do Código Civil, são os benefícios intrínsecos e essenciais para o fim geral e duradouro da coisa e não aqueles que foram realizados tendo em fim a acomodação e a funcionalidade de um destino especifico e temporário dado ao imóvel. [[28]]
No acórdão citado infra (Ac. do STJ de 12-07-2011) escreveu-se a propósito de um caso similar que: ““Os melhoramentos foram determinados por razões de conveniência Ré, para um melhor aproveitamento das potencialidades do prédio para o fim que esta pretendeu continuar a dar-lhe, acompanhando a evolução das condições de prática do futebol, interesse que a lei não tutela para efeito de qualificação das benfeitorias e indemnização do possuidor seu autor.
Não se exclui que a situação pudesse, eventualmente, ser diferentemente perspectivada, se, em vez de se dar e tomar de arrendamento um prédio rústico, de lavradio e mato, o objecto da locação fosse já um “campo de futebol”, vale dizer, um terreno predestinado ou utilizado como campo de futebol, para nele ser continuada essa destinação económica, ou se se perfilasse em termos de, perante a cessação da vigência do contrato de arrendamento, o Autor se propor manter-lhe o mesmo destino, mantendo o terreno a ele definitivamente afectado.
Então, porque se estaria já perante um terreno não apto ou não destinado a fins agrícolas ou florestais, poderia ser de ponderar a existência de despesas de conservação indispensáveis à preservação da função e destinação económica da coisa arrendada susceptíveis de integração no conceito de benfeitorias necessárias.
Assim sendo – e não estando agora em causa a apreciação de outra classificação (benfeitorias voluptuárias) –, só perante benfeitorias úteis se poderá estar.”
A ré apenas alegou que as obras realizadas no locado o foram para materializar o fim projectado para o contrato, qual fosse o de instalar no espaço um estabelecimento de restaurante, café e snack-bar. Da matéria de facto provada resulta que foram efectuadas obras que beneficiaram a estrutura do imóvel e que como tal são inseparáveis do mesmo. Foram efectuadas obras que introduziram um factor melhorativo na estrutura do imóvel, pelo que estas deverão, por terem uma projecção duradoura e de carácter estruturante ser indemnizáveis, por deverem ser qualificadas como úteis. Já não aquelas, como se deixou dito infra, que se destinaram tão só a permitir o funcionamento do estabelecimento de restauração. Estas foram úteis para o fim especifico que atinava com o funcionamento do estabelecimento e não úteis para e necessárias para a estrutura do imóvel.
A cláusula quinta ao referir-se a benfeitorias úteis e necessárias que possam ser levantadas não pode deixar de ser interpretada com o sentido e alcance que ora se lhe atribui, sob pena de assim não sendo se revelar de uma insuportável oneração para os fideicomissários, na medida em que os obrigava a receber um imóvel predestinado a um fim especifico, neste caso a restauração. A interpretação a que instâncias chegaram – notadamente de não destrinçar as benfeitorias úteis para o imóvel e as que foram tão só úteis para a instalação e funcionamento do restaurante – tornaria a cláusula quinta intolerável, no plano do direito e da justiça material, o que nos compele a conferir uma interpretação mais consentânea com uma concepção de justa composição dos interesses em jogo.

Decorre do que fica dito que a indemnização a atribuir á demandada “JJ” deverá ser computada tendo como horizonte e paradigma valoração a interpretação que ora se confere às benfeitorias úteis a que se alude na cláusula quinta. Daí que para concreta e cabal avaliação deva ser efectuada uma avaliação técnica das obras que possam constituir incorporações na estrutura matricial e fundante do imóvel - arredando aquelas outras que se destinaram a instalação e funcionamento do estabelecimento de restauração - o que só poderá ser efectuado em liquidação de execução de sentença.

   

III. – DECISÃO.

Na defluência do exposto, acordam, neste Supremo Tribunal, os juízes que constituem este colectivo, na 1.ª secção, em:

A) - Julgar os demandantes partes legítimas para a acção reconvencional.

B) - Negar a revista impulsionada pela ré;

C) - Conceder parcial provimento à revista impulsada pelos AA. e consequentemente:

C.1. - alterar o acórdão recorrido, e:

C.1.a) – Confirmar os pontos 1. a 3. da decisão da primeira instância;

C.1.b) – Alterar o ponto quanto da decisão de primeira instância e, em consequência, “Condenar a R. «JJ, Lda.» a restituir à herança a parte do dito prédio que ocupa, livre e devoluta de pessoas e bens, após pagamento de uma indemnização pelas benfeitorias realizadas, nos termos sobreditos, e a liquidar em execução de sentença.

C.1.c) - Manter os pontos 5 e 6 da decisão da primeira instância;

C.2. - Quanto ao pedido reconvencional:

- Alterar os pontos 1. e 2. da decisão da primeira instância e, em consequência: “1. Declarar que a R. «JJ, Lda.» realizou licitamente e de boa fé no local reivindicado benfeitorias úteis e necessárias, condenando os AA./Reconvindos a assim o reconhecerem.

2. Condenar os AA./Reconvindos a pagar à R./Reconvinte «JJ, Lda.» uma quantia que se vier a liquidar em execução de sentença, a título de indemnização pelas benfeitorias ali realizadas, deduzindo-se ainda quaisquer valores ou frutos que esta venha a receber até à efectiva entrega do locado.”

- Condenar a recorrente “JJ, Lda.” nas custas do recurso improcedido;

- Condenar os demandantes/recorrentes na custas do recurso na proporção que vier a ser apurado em primeira instância após a liquidação da execução do ora decidido.

   Lisboa, 15 de Março de 2012

                              

Gabriel Catarino (Relator)

António Piçarra                             

Sebastião Póvoas

________________________________


[1] Vale a tal respeito o nº 1 do artigo 2293º do CC: “[a] herança devolve-se ao fideicomissário no momento da morte do fiduciário”.
[2] Este pedido reconvencional ficou sem efeito (v. o despacho de fls. 325, cfr. trecho final do nº 6 do artigo 39º do Código de Processo Civil).
[3] O teor destas cláusulas, que constam do contrato de fls. 22/25, é relevante para a definição da indemnização respeitante às benfeitorias. Aqui damos nota do respectivo conteúdo:

Cláusula quarta
A locatária poderá realizar no local arrendado todas as obras e benfeitorias necessárias ao exercício de qualquer das suas actividades, podendo mesmo modificar a estrutura interna e externa do prédio.
Cláusula quinta
No caso de cessação do contrato a locatária terá direito a ser indemnizada do valor que resultar da avaliação das benfeitorias úteis e necessárias que possam ser levantadas e a senhoria compensada pelo valor das deteriorações eventuais de culpa da locatária.
[4] Ficou assim, depois da correcção introduzida no despacho que apreciou as nulidades da Sentença e mandou subir o processo a esta Relação, resolvida (suprida) a concreta nulidade apontada pelos AA./Apelantes à Sentença na conclusão 4 do respectivo recurso (está esta transcrita no item 1.3.1. infra). Note-se que, embora consideremos correcta essa alteração, decorria do contexto da condenação que a 2ª R. também estava abrangida pelo caso julgado formado pela decisão de restituição do locado aos AA.
[5] Para um cabal conhecimento cfr. Castro Mendes, João, in “Direito Processual Civil”, Vol. III, Associação Académica, Lisboa, 1980, pags. 192 e segs.; e Anselmo de Castro, Artur, “Direito Processual Civil”, Vol. III, Almedina, Coimbra, 1982, págs, 156-182.
[6] O enunciado fáctico proposto sob o número 18º transportou para a base instrutória o alegado no artigo 67.º da contestação/reconvenção, pretendendo através dessa alegação limitar o valor da dedução a cargo dos AA., incrementando o montante do direito a receber as benfeitorias efectuadas ou seja sem quaisquer deduções.
[7] Cfr. Aliste Santos, Tomás-Javier, in “Motivación de las Resoluciones Judiciales”, Marcial Pons, Madrid, 2011, págs. 294 a 319.
[8] É que como decorre do artigo 676.º. n.º 1 do Código Processo Civil os recursos constituem-se como meios de, ou para, reparação dos erros in judicando ou in procedendo das questões que foram objecto de pronunciamento pela instância recorrida. Os recursos são, objectivamente, delimitados e devem manter-se dentro dos estritos limites da sua cognoscibilidade intraprocessual. Neste sentido o Ac. deste Supremo Tribunal de Justiça de 14-09-2010, in www.stj.pt, relatado pelo Conselheiro Sebastião Póvoas, e onde se doutrinou “2. São de desconsiderar no recurso as questões suscitadas pela primeira vez na alegação e que não tenham sido submetidas ao juízo “a quo” por o Tribunal “ad quem” ter de se limitar a reapreciar e escrutinar o já julgado. 3. Na fundamentação da sua convicção quanto aos factos, sujeita à regra da livre apreciação, o julgador deve limitar-se a indicar os elementos que permitam convencer da bondade da sua razão de ciência, não tendo de exaurir, e deixar expostos, todos os eventos processuais não anómalos, nem tecer considerações sobre a “impressão” que lhe causou o depoimento de uma testemunha contraditada.” Cfr. ainda no mesmo sentido os acórdãos deste Supremo Tribunal de 19-01-2004; 03-02-2005; 07-04-2005, todos em www.stj.pt.

[9] Queda transcrito o troço do aresto adrede. “Ora, tendo presente esta especificidade (legitimidade face ao pedido reconvencional), importará ter presente que valeria, quanto a eventuais herdeiros fideicomissários que não propuseram a acção, a regra do nº 4 do artigo 274º do CPC: “[s]e o pedido reconvencional envolver outros sujeitos que, de acordo com os critérios gerais aplicáveis à pluralidade de partes, possam associar-se ao reconvinte ou ao reconvindo, pode o réu suscitar a respectiva intervenção principal provocada, nos termos do disposto no artigo 326º”. Não tendo as RR. usado esta faculdade e não tendo os AA. suscitado a questão da legitimidade – e poderiam tê-lo feito na réplica –, estamos perante uma questão ultrapassada na dinâmica processual ulteriormente gerada, não tendo sentido prático algum fazer o processo, agora depois de estar decidido, voltar à “estaca zero” em função de uma incidência conhecida desde o início e que as partes optaram por desconsiderar. Considerá-la agora, por iniciativa dos AA., que a induziram e fizeram perdurar, porque aos mesmos AA. desagradou o resultado da acção, configurar-se-ia como um verdadeiro abuso de direito,  sem reflexo substancial sério na materialidade subjacente, sendo certo que a posição do herdeiro NN tem que ver neste momento, exclusivamente, com a extensão subjectiva (a esse herdeiro) do caso julgado aqui formado.

Entende-se assim como não operante a questão da legitimidade dos AA. face ao pedido reconvencional, não esquecendo, aliás, serem eles que reivindicam o bem e ser em função dessa incidência (que só estes AA. em concreto optaram por exercer) que o direito a benfeitorias e o direito de retenção funcionam.”
[10] Cfr. Ac. de 20-09-2011, in www.stj.pt
[11] Extraída de “La Buona Fede e L’ Abuso del Diritto. Principii, fattispecie e cauistica”, de Gianluca Falco, Giuffrè Editore, Milano, 2010, pág. 4 e 6.
[12] Cfr. Gianluca Falco, op. loc. cit. pág. 20 (Cassação de 13 de abril de 1999, in Foro It., 1999, 12,I,358.
[13] Vetorri, in “Il diritto dei contratti fra Constituzione, códice civile e códice di settore”, in Riv. Trim. Dir, proc. civ., 2008,3, 751, citado em Gianluca Falco, op. loc. cit. pág. 21 e 22. “Questa operazione vaIutativa compiuta daI giudice di merito nell’ applicare clausole generali non sfugge ad una verifica in sede di giudizio di legittimità, Sotto iI profilo della correttezza dei metodo seguito nell’ applicazione della clausola generale, proprio perché l’ operatività, in concreto di norme di tale tipo deve rispettare criteri e principii desumibili dall’ordinamento general (a cominciare dai principi costituzionali) e dalla disciplina particolare in cui la concreta fattispecie si colloca.
Lo stesso giudice di legittimità, (cui spetta, quindi, iI giudizio sulle opzioni di valori dei giudice dii merito), e, d’altra parte, anche giudice della logjcità delle decisioni” dello stesso (art. 360 n. 5 c.p.c.), in quanto anche ancorata a standards che possono definirsi sociali: per esser la stessa società iI punto di riferimento paramétrico dei processo lógico; ne consegue che iI controllo esercitato dalla Suprema corte, ai sensi dell’art. 360, n. 3, c.p.c., comprenderà non solo l’erronea interpretazione, e dunque iI fraintendimento, del significato del concetto indeterminato o elástico, ma anche l’ errónea applicazione dello stesso com riferimento ai caso di specie e, dunque, l’erronea. sussunzione della fatlispecie materiale concreta nella fattlspecie legale astratta delineata dal legislatore com l’utilizzazione di quel concetto.”
[14] Gianluca Falco, in op. loc. cit. pág. 23. “Qggi, l’abuso deI diritto viene, dunque, individuate nel comportamento di un soggetto che esercita i diritti che gli derivano dana legge o dal contratto per realizzare uno scopo diverso da qüello cui questi diritti sono preordinati: la figura concerne, cioè, le ipotesi nelle quali un comportamento, che formalente integra gli estremi dell’ esercizio del diritto soggettivo, deve ritenersi illecito sulla base di alcuni criteri di valutazione.”
[15] Cianluca Falco, in op. loc. cit. pág. 381. Na sentença (cassação) de 18 de setembro de 2009, definiram-se os elementos constitutivos do abuso de direito pela forma seguinte:”1) a titularidade de um direito atribuída a um sujeito;2) a possibilidade que o concreto exercício do referido direito possa ser efectuado segundo uma pluralidade de modalidade não rigidamente predeterminada; 3) a circunstância que tal exercício concreto, ainda que se formalmente respeitador da moldura atributiva do referido direito, seja desenvolvido segundo uma modalidade censurável com respeito a um critério de valoração jurídico ou extra jurídico; 4) a circunstância que, devido a uma tal modalidade de exercício, se verifique uma desproporção injustificada entre o beneficio do titular do direito e o sacrifício daquele que è constrito à contraparte”. 
[16] Mota Pinto, Paulo, in “Interesse Contratual Negativo e Interesse Contratual Positivo”, Vol., Coimbra Editora, 2008, pag. 485.
[17] Op. loc. cit. pag. 485 que cita Orlando de Carvalho in “Teoria Geral do Direito Civil”, 1981, págs. 45.
[18] Cfr. A este propósito o acórdão deste supremo Tribunal de 16-12-2010, relatado pelo Conselheiro Alves Velho onde se escreveu a propósito do instituto do abuso de direito: “O instituto do abuso de direito, como princípio geral moderador dominante na globalidade do sistema jurídico, apresenta-se como verdadeira «válvula de segurança» vocacionada para impedir ou paralisar situações de grave injustiça que o próprio legislador preveniria se as tivesse previsto, de tal forma que se reveste, ele mesmo, de uma forma de antijuridicidade cujas consequências devem ser as mesmas de qualquer acto ilícito.

Quando tal sucede, isto é, quando o direito que se exerce não passa de uma aparência de direito, desligado da satisfação dos interesses de que é instrumento, e se traduz «na negação de interesses sensíveis de outrem» (COUTINHO DE ABREU, “Do Abuso de Direito”, pp. 43), então haverá que afastar as normas que formalmente concedem ou legitimam o poder exercido.

No caso, a norma a afastar será, como do anteriormente expendido resulta, a do citado n.º 2 do art. 1137º C. Civil, que defere aos Réus a faculdade de, a todo o tempo, denunciarem a relação de comodato.

Importa, pois, determinar se os limites impostos pela boa fé e pelos bons costumes saem ofendidos, designadamente de forma clamorosa, face às concepções ético-jurídicas dominantes, pois que é no âmbito da conduta tida por contrária à boa fé que há-de emergir o “venire”.

A boa fé, como princípio normativo de actuação – que é o conceito em que aqui releva (art. 762º-2 CCiv.) -, encerra o entendimento de que as pessoas devem ter um comportamento honesto, leal, diligente, zeloso, tudo em termos de não frustrar o fim prosseguido pelo contrato e defraudar os legítimos interesses ou expectativa da outra parte.

Circunscrevendo mais o problema, dir-se-á que se trata de saber se a conduta passada dos Réus, servindo de referência à conduta actual e sob valoração negativa, deslegitima esta última, ofendendo de tal modo aqueles valores que o direito de denúncia deve ter-se como perdido ou precludido.
Como pressupostos da imputação da consequência jurídica do
venire contra factum proprium, o Prof. Baptista Machado (“Obra Dispersa, I, 416) enuncia: - (i) uma situação objectiva de confiança (uma conduta que possa ser entendida como uma tomada de posição vinculante em relação ao desenvolvimento futuro de certa situação); - (ii) investimento na confiança e irreversibilidade desse investimento (que o facto gerador da confiança se apresente como o determinante, em termos de causalidade, a influenciar as decisões da contraparte); - (iii) boa fé da contraparte que confiou (a confiança da contraparte só merecerá protecção jurídica quando esta esteja de boa fé e tenha agido com cuidado e precauções usuais no tráfico jurídico)

No caso, não estando, em boa verdade, em apreciação uma declaração dos Réus no sentido de actuarem de determinada forma ou uma manifestação de intenção de não praticar certo acto agindo depois em termos contrários ao declarado ou manifestado, só em sentido amplo se estará perante a figura do “venire” (cfr. MENEZES CORDEIRO, “A Boa Fé no Direito Civil”, II, 742 e ss).

Aqui estar-se-á, crê-se, mais próximo da subespécie denominada “supressio”, quando admitida, pois que a invocada conduta contraditória assenta apenas no longo período em que os RR. não reclamaram a retirada da urna e franquearam a entrada no jazigo aos AA., que dispunham da respectiva chave.
Assim, não tendo os RR. posto termo à situação iniciada com o empréstimo do gavetão durante 25 anos, o exercício do seu direito de lhe pôr termo decorrido tão longo lapso de tempo contrariaria as regras da boa fé, pelo que não poderia mais sê-lo, ficando precludido.
Mas, também, a propósito desta figura, quando autonomizada em relação ao “venire”, se exigem requisitos ou condições para além do decurso do tempo, bem próximas das acima enunciadas. Assim: - (i) o titular deve comportar-se como se não tivesse o direito ou não mais quisesse exercê-lo; - (ii) deve haver previsão ou investimento na confiança (a contraparte deve confiar em que o direito não mais será feito valer); - (iii) Deve ocorrer uma desvantagem injusta (o exercício do direito acarretaria, para a contraparte, uma desvantagem iníqua) – ac. STJ, de 19/10/2000, CJ VIII-III-82).
[19] Gianluca Falco, op. loc. cit. pág. 387.
[20] Cfr. Manuel de Andrade, in “Teoria Geral das Obrigações”, pág. 63-63 “Há abuso do direito quando o direito, legitimo (razoável) em princípio, é exercido, em determinado caso, de maneira a constituir clamorosa ofensa do sentimento jurídico dominante; e a consequência é a de o titular do direito ser tratado como se não tivesse tal direito ou a de contra ele se admitir um direito de indemnização baseado em facto ilícito extracontratual.” No mesmo sentido Vaz Serra, in “Abuso do Direito”, BMJ, n.º 85, pág, 253.    
[21] Queda transcrito o ponto 4 da matéria de facto provada.” Do documento aludido em 3., consta que «O local arrendado destina-se ao comércio e indústria de hotelaria, designadamente café, restaurante e snackbar e a qualquer outra actividade que a locatário resolva explorar» e que «A locatária poderá realizar no local arrendado todas as obras e benfeitorias necessárias ao exercício de qualquer das suas actividades, podendo mesmo modificar a estrutura interna e externa do prédio», bem como que «No caso de cessação do contrato a locatária terá direito a ser indemnizada do valor que resultar da avaliação das benfeitorias úteis e necessárias que possam ser levantadas e a sua senhoria compensada pelo valor das deteriorações eventuais de culpa da locatária»
[22] Cfr. Olavo, Carlos, in “Substituição Fideicomissária”, em “Estudos em Homenagem ao Prof. Inocêncio Galvão Telles”, I Vol., Direito Privado e Vária, Almedina, Coimbra, págs. 391-521.
[23] Cfr. Olavo, Carlos, in op. loc. cit. pág. 415.
[24] Cfr. Olavo, Carlos, in op. loc. cit. pág. 472-473
[25] Cfr. Olavo, Carlos, in op. loc. cit. pág. 475 a 479-480.
[26] Cfr. Olavo, Carlos, in op. loc. cit. pág. 485
[27] Transcrição do troço interessante das alegações. “[Como] se alegou
[28] Quanto à qualificação de benfeitorias, com úteis e necessárias, feitas no locado e para os fins para que o arrendamento foi efectuado veja-se o acórdão deste Supremo Tribunal de 12-07-2011, relatado pelo Conselheiro Alves Velho, em que se doutrinou: ““I. - A existência de prejuízo para o prédio (detrimento da coisa) repousa num juízo de facto, conclusão ou ilação a retirar de factos que o demonstrem, pois que se trata de averiguar se, em determinado caso concreto, a coisa fica prejudicada na sua substância ou desvalorizada por dela serem separados melhoramentos que lhe foram ligados ou associados. II – São de qualificar como benfeitorias úteis, e não como necessárias, as obras, efectuadas ao longo de anos, e destinadas a dotar um prédio constituído por terreno de lavradio e mato, tomado de arrendamento para campo de futebol, de condições adequadas à prática de futebol, com a construção dos equipamentos próprios de apoio a essa prática desportiva. III – Não tendo sido demonstrado que o locatário não pudesse proceder ao levantamento das benfeitorias, que este não pudesse ter lugar sem detrimento do terreno, seu destino e aptidão, ou que o locador tivesse deduzido oposição ao levantamento, invocando esse detrimento, não concorrem os pressupostos de atribuição de indemnização.