Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
448/18.4T8FAR.E1.S1
Nº Convencional: 1.ª SECÇÃO
Relator: MARIA CLARA SOTTOMAYOR
Descritores: COMPETÊNCIA INTERNACIONAL
PACTO PRIVATIVO DE JURISDIÇÃO
REGULAMENTO (UE) 1215/2012
HIERARQUIA DAS LEIS
INCOMPETÊNCIA ABSOLUTA
SANEADOR-SENTENÇA
CONHECIMENTO DO MÉRITO
FACTO CONTROVERTIDO
LIBERDADE CONTRATUAL
PROVA
Data do Acordão: 10/07/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA PARCIALMENTE A REVISTA
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I – Os tribunais portugueses estão vinculados a regulamentos europeus e outros instrumentos internacionais que, no seu campo específico de aplicação, gozam de prevalência aplicativa sobre as normais processuais portuguesas, nomeadamente sobre as normas reguladoras da competência internacional constantes do Código de Processo Civil.

II – Como densificação prática do comando impresso previsto no nº 4 do artigo 8º da Constituição da República Portuguesa, a jurisprudência do Supremo Tribunal tem expressado o entendimento que as disposições do Regulamento (UE) n.º 1215/2012, incluindo a constante do artigo 25º, têm prioridade aplicativa sobre as disposições do Código de Processo Civil.

III – O conhecimento imediato do pedido em sede de despacho saneador apenas deve ocorrer se a questão for unicamente de direito, se puder ser já decidida com a necessária segurança e, sendo de direito e de facto, se o processo contiver todos os elementos para uma decisão conscienciosa, segundo as várias hipóteses plausíveis aplicáveis ao caso concreto.

IV – O Direito Contratual moderno deixou de ter como paradigma um contrato isolado entre duas partes, que negoceiam as suas cláusulas em condições de liberdade e de igualdade. Cada vez surgem mais casos, na realidade económico-social, de interligação entre contratos e de contratos de facto baseados em relações de poder, que não podem escapar ao escrutínio dos tribunais.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça



I - Relatório

1. GEPROCEA I - SERVIÇOS DE ENGENHARIA, LDA, intentou ação declarativa contra DRISCOLL'S PORTUGAL - PRODUÇÃO E COMERCIALIZAÇÃO DE FRUTAS, UNIPESSOAL, LDA., e DRISCOLL'S OF EUROPE B.V., pedindo que:

a) Seja determinado, em valor que nunca poderá ser inferior aos custos de produção acrescidos da margem de comercialização da Autora, o preço (purchase price) do kg de framboesa referente à colheita 2016/2017 que deverá ser pago à Autora pelo fornecimento de frutos às Rés, devendo o mesmo fixar-se no valor de 8,95€/Kg;

b) Sejam as Rés condenadas solidariamente a pagar à Autora o valor correspondente ao preço ainda em falta, o qual se computa na quantia de € 777.912,90;

c) Subsidiariamente em relação a b), e caso se venha a entender que o preço deverá ser determinado de acordo com o estabelecido na cláusula 9, desconsiderando os custos de produção da Autora e a sua margem de comercialização, requer-se que seja declarada a nulidade desta cláusula devendo, em consequência, o Tribunal proceder à determinação do preço conforme peticionado em a), devendo as Rés ser condenadas no pagamento à autora da quantia de € 777.912,90, a título de preço ainda em falta;

d) Subsidiariamente em relação a c), e caso se venha a entender que o instituto da redução previsto no artigo 292º do Código Civil não opera em relação à nulidade declarada, devem as Rés ser solidariamente condenadas a pagar à Autora o montante de € 777.912,90, a título de ressarcimento pelos danos sofridos;

e) Cumulativamente, sejam as Rés solidariamente condenadas a pagar à Autora a quantia de € 20.109,00, a título de encargos financeiros que teve de suportar em virtude da falta de pagamento do preço devido por parte das Rés e serem as Rés solidariamente condenadas a pagar à Autora a quantia de € 15.960,44, a título de indemnização por perdas sofridas em virtude da conduta adotada por aquelas;

f) Sejam as Rés solidariamente condenadas a pagar à Autora os juros legais vencidos e vincendos, contados desde a data da citação até efetivo e integral pagamento.


2. Para tanto, em síntese, fundamenta a Autora a sua pretensão no facto de ter celebrado, em 25 de abril de 2013, um contrato de fornecimento de plantas e posterior compra de frutos vermelhos produzidos com a Ré Driscoll'S Of Europe B.V., que assenta no fornecimento pela referida Ré à Autora de plantas para cultivo de frutos vermelhos e na compra por esta à Autora dos frutos vermelhos por esta produzidos, entendendo que os preços pagos violam o acordado, designadamente por serem abaixo dos custos de produção e por não ser assegurada a compra de toda a produção que determinaram que deveria ser feita em cada ano de colheita.

Mais refere que, apesar de ser a Ré Driscoll'S Of Europe B.V. a detentora dos direitos de propriedade intelectual das plantas que são vendidas à Autora, todo o processo operacional e negocial respeitante ao território português é conduzido e coordenado por ambas as Rés, atuando a Ré Driscoll'S Portugal - Produção e Comercialização de Frutas, Unipessoal, Lda., enquanto verdadeira representante da 2ª Ré para o território nacional, passando indistintamente por ambas as Rés a generalidade dos contactos e acordos acerca da atividade de produção da Autora, sendo indiferente para esta negociar com qualquer uma, dado que o seu interlocutor único é, na verdade, a Driscoll'S - enquanto empresa multinacional -, sendo quer a 1ª Ré como a 2ª Ré entidades jurídicas instrumentais na implementação da estratégia global do grupo Driscoll'S [embora a Autora invoque que as relações comerciais são feitas indistintamente com as duas Rés, o contrato escrito em causa apenas foi celebrado com a 2ª Ré].


3. As Rés deduziram contestação na qual, para além do mais, invocam a incompetência absoluta do tribunal para conhecer da ação relativamente à Ré Driscoll'S Of Europe B.V., por violação das regras de competência internacional; a ineptidão da petição inicial relativamente à Ré Driscoll'S Portugal - Produção e Comercialização de Frutas, Unipessoal, Lda., dado que não celebrou o contrato dos autos que é a causa de pedir, sendo parte ilegítima; e impugnam a generalidade da factualidade invocada na petição inicial relativamente ao alegado incumprimento contratual. Alegam ainda que a Ré Driscoll'S Portugal - Produção e Comercialização de Frutas, Unipessoal, Lda., para além de ser completamente alheia ao contrato celebrado, sendo as duas Rés entidades jurídicas autónomas e diferenciadas, não existindo qualquer tipo de relação de participação social direta entre elas, sendo certo que a 1ª Ré estabelece e mantem contactos com potenciais e atuais parceiros produtores, mas não negoceia, nem tão-pouco celebra, em nome próprio ou por conta de outrem, qualquer contrato semelhante ou sucedâneo àquele que serve de causa de pedir nos presentes autos.

4. Quanto à matéria da exceção de incompetência, invocam as Rés a violação do pacto atributivo de jurisdição constante da Cláusula 21.4. do Contrato de 25 de abril de 2013, ou seja, a incompetência internacional dos Tribunais Portugueses, dado que a Ré Driscoll'S Of Europe B.V. tem sede na Holanda e as partes convencionaram no contrato em causa nos autos um pacto atributivo de jurisdição atinente à resolução de eventuais litígios emergentes da interpretação e execução do mesmo relativamente à jurisdição exclusiva aos tribunais holandeses competentes  …...

Dizem as Rés, que tal cláusula do contrato configura um pacto atributivo de jurisdição à luz do disposto no artigo 25° do Regulamento (UE) n.º 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de dezembro de 2012, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial, pelo que os tribunais holandeses terão competência exclusiva, exceto se o pacto, nos termos da lei holandesa, for substantivamente nulo, o que não se verifica.

E, acrescentam, que as normas comunitárias prevalecem sobre o direito interno, pelo que não pode ser invocado violação do regime das cláusulas contratuais gerais, estando cumpridos os requisitos exigidos pelo Regulamento comunitário que atribui competência exclusiva aos tribunais holandeses.

5. Notificada a Autora para se pronunciar acerca da exceção de incompetência internacional invocada, a mesma pugnou pela sua improcedência, na medida em que tal cláusula viola o regime das cláusulas contratuais gerais previsto pelo Decreto-Lei n.º 446/85, de 25 de Outubro, não tendo sido alegado na contestação que o pacto atributivo de jurisdição dos tribunais  ….. tenha decorrido na sequência de uma concreta e prévia negociação sobre essa matéria, devendo essa cláusula ser considerada não escrita.

6. Em sede de audiência prévia, foi proferida decisão quanto à exceção de incompetência invocada, tendo-se decidido:

«… julgo verificada a excepção dilatória da incompetência absoluta deste Tribunal para conhecer do pedido relativamente à referida Ré, por infracção as regras da competência internacional, e em consequência absolvo a Ré Driscoll’S Of Europe B.V. da instância.»

7. Determinou-se a notificação das partes para se pronunciarem, querendo, acerca da possibilidade de ser proferido Saneador Sentença relativamente à matéria ainda em discussão na presente ação.

Após, considerando-se que a decisão da causa depende apenas da aplicação e da interpretação de normas jurídicas (já debatidas pelas partes), sendo indiferente a prova dos factos que permanecem controvertidos, foi proferido saneador-sentença, no âmbito do qual se concluiu pela não verificação da exceção de ineptidão da petição inicial invocada e, conhecendo-se de mérito decidiu-se julgar improcedente a ação e absolver a Driscoll’S Portugal Produção e Comercialização de Frutas, Unipessoal, Lda., dos pedidos deduzidos pela Autora Geprocea I Serviços de Engenharia, Lda..

8. Inconformada, interpôs a Autora recurso da decisão que julgou verificada a exceção de incompetência absoluta do tribunal (1º recurso), e recorreu também do saneador-sentença absolutório da Ré Driscoll’S Portugal – Produção         e Comercialização de Frutas, Unipessoal, Lda. (2º recurso).

9. O Tribunal da Relação  ….., por acórdão datado de 08-10-2020, decidiu julgar improcedentes as apelações e, em consequência, confirmar as decisões recorridas.

 

10. Inconformada, a Autora, GEPROCEA I SERVIÇOS DE ENGENHARIA, LDA., veio interpor recurso de revista geral, nos termos e para os efeitos dos artigos 629.º, n.º 2, alínea a), 671.º, n.º 1 e n.º 3, 1.ª parte, 674.º, n.º 1, alíneas a) e b), n.º 2 e n.º 3, 675.º, n.º 1, 676.º a contrario, 682.º, n.º 3, 683.º, n.ºs 1 e 2, do CPC  e recurso de revista excecional, nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 671.º, n.º 1 e 3 (parte final) e 672.º, n.º 1, alínea c), n.º 2, alínea c) e n.º 3 do CPC.

11. A revista excecional foi admitida pela formação prevista no artigo 672.º, n.º 3, do CPC, por contradição entre o acórdão recorrido e o acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 07-11-2019, proferido no processo nº 447/18.6T8FAR.E1 (acórdão fundamento), por decisão de 15 de julho de 2021, da qual se destacam os seguintes excertos:

«O caso sub judice é atípico, na medida em que em cada um dos arestos em confronto a Relação considerou, num deles, que a matéria de facto já apurada se revelava suficiente para a apreciação do mérito relativamente à pretensão deduzida contra a 1ª R., ao passo que no acórdão fundamento, numa ação paralela a esta em que apenas varia o sujeito ativo e em que a realidade substancial é muito semelhante, se considerou que a existência de matéria controvertida revelava que era precoce a apreciação do mérito no despacho saneador, determinando-se o prosseguimento dos autos para discussão e apuramento dos factos controvertidos.

(…)

Ora, neste contexto em que as ações são similares e em que os fundamentos que foram invocados pela A. para sustentar as pretensões deduzidas também contra a 1ª R. são essencialmente idênticos aos que foram enunciados por outras AA., contra a mesma R., na ação que foi anteriormente objeto de apreciação no acórdão fundamento, o que na realidade está em causa é, em primeiro lugar, uma questão de direito ligada à admissibilidade de antecipação ou não do juízo de mérito para o despacho saneador, sem apuramento da matéria de facto controvertida.

(…)

Por conseguinte, em face da flagrante utilização de critérios normativos diversos para a apreciação de uma realidade substancialmente idêntica, verifica-se o referido fundamento excecional traduzido numa contradição flagrante entre o acórdão recorrido que considerou suficientes os factos já apurados para julgar improcedente a ação contra a 1ª R, e o acórdão fundamento que para o mesmo efeito considerou necessário o apuramento de matéria ainda controvertida.

Face ao exposto admite-se a revista excecional».

11.1. Na sua alegação de revista geral, reportada apenas à questão da incompetência internacional dos tribunais portugueses, a recorrente formulou as seguintes conclusões:  

«a. Em sede de audiência prévia (ata com a referência 113138266), o Tribunal Judicial da Comarca de …. julgou verificada a exceção dilatória de incompetência absoluta do Tribunal, por infração das regras de competência internacional, em relação à 2.ª Ré.

b. Interposto o competente recurso de apelação, o Tribunal da Relação  ….. confirmou a decisão proferida pelo tribunal de 1.ª instância.

c. Nos ternos do disposto no art. 671.º, n.ºs 1 e 3 (1.ªparte), 629.º, n.º 2, alínea a), reportando-se os presentes autos a uma decisão de 1.ª instância e a um acórdão do Tribunal da Relação  ….. referentes à violação de regras de competência internacional, reúnem-se os pressupostos de admissibilidade da revista ora interposta.

d. O Acórdão sob recurso sob recurso assentou a sua decisão em três pontos de facto, a saber:

1) A Ré Driscoll’s Portugal – Produção e Comercialização de Frutas, Unipessoal, Lda. é uma sociedade comercial de direito português, constituída no ano 2004, que tem como objecto social a produção e comercialização de frutas e tem a sua sede social em Beja, sendo o seu capital social da 1.ª Ré é detido a 100% pela sociedade comercial norte-americana Driscoll Internacional Inc.

2) A Ré Driscoll’s Of Europe B.V. é uma sociedade comercial de direito holandês, inscrita no RNPC sob o n.º980492408, com sede em Bijster 26,4817HX Breda, Holanda e que detém o direito de conceder sublicenças para plantar, colher e comercializar frutos vermelhos, com a marca Driscoll’s, marca essa que é detida por uma outra sociedade de direito holandês denominada Delight Global Holdings C.V., com domicílio nas Ilhas Cayman, em Intertrust Cayman Island, 190 Elgin Avenue, George Town, Grand Cayman KY1-9005.

3) A Autora Geprocea I – Serviços de Engenharia, Lda e a Ré Driscoll’S Of Europe B.V. celebraram em 25 de Abril de 2013 um acordo escrito denominado Grower Agreement 2013 (316-2013) relativo à produção e comercialização de frutos vermelhos, constando da Cláusula 21.4. do referido contrato que, “Na medida em que seja permitido por normas imperativas, este Contrato deve ser regido e interpretado de acordo com a lei holandesa e as Partes atribuem jurisdição exclusiva aos tribunais holandeses competentes de …... Sem prejuízo e em adição ao referido, as Partes acordam que a Doe terá o direito, a seu exclusivo critério, de solicitar aos tribunais do país do lugar do Imóvel a adopção das medidas e soluções que se afiguram adequadas ou necessárias para defender os seus direitos ao abrigo do presente e preparar acções judiciais, incluindo para pedir e obter o decretamento de providências cautelares, inspecções e averiguações, na medida em que se revele necessário para aferir da existência, extensão e âmbito de qualquer incumprimento contratual ou violação de direitos e segredos (incluindo, designadamente, com o fim de obter ou promover a apreensão física de bens ou materiais, aceder às Instalações e verificar as plantações do Produtor, os processos de crescimento, colheita, empacotamento, expedição e consumo, bem como a prestação de informações e documentação relevantes aos fornecedores, e a cadeias de venda, clientes ou distribuição), assim como providências cautelares ou medidas preventivas permitidas pelas leis do país do lugar do imóvel com vista a obter a imediata cessação da conduta lesiva”.

O Acórdão recorrido alicerçou a sua decisão essencialmente nos seguintes fundamentos de Direito:

a. Como densificação prática do comando impresso previsto no nº 4 do artigo 8º da Constituição da República Portuguesa, a jurisprudência dos Tribunais Superiores expressa o entendimento que as disposições do Regulamento (UE) n.º 1215, incluindo a do artigo 25º, têm prioridade sobre as disposições do Código de Processo Civil.

b. (…) não se vislumbra que haja insuficiência da matéria de facto para se aferir da incompetência material dos tribunais portugueses, nem que a alegada existência de um litisconsórcio necessário passivo afaste a competência da jurisdição convencionada entre a A. e apenas uma das RR.

c. (…) pelas mesmas razões, não se pode aferir da validade da dita cláusula contratual à luz das normas do regime das cláusulas contratuais gerais previstas no Decreto-Lei n.º 446/85, de 25 de Outubro (…).

f. Decidindo, a final, que:

Com tais fundamentos, aos quais aderimos, conclui-se pela validade substancial da cláusula atributiva de jurisdição em apreço e que as normas relativas ao litisconsórcio necessário, estabelecidas nos artigos 30º, n.º 3 e 33º, n.º 2 e 3 do Código de Processo Civil, não afastam a aplicação de uma cláusula atributiva de jurisdição que cumpra os requisitos formais e substancial estabelecidos no artigo 25° do Regulamento (EU) n.º 1215/2012, como é o caso.

g. O Acórdão ora recorrido merece, em nossa opinião, censura, na medida em que, tal qual a 1.ª instância, padece do vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, desrespeitou comandos legais sobre o valor de determinado meio probatório e não fez uma correta aplicação do Direito, pelo que deverá ser anulado e substituído por outro que remeta o processo para o Tribunal da Relação  ….. para que a decisão de facto seja ampliada, em ordem a constituir base suficiente para a decisão de direito, declare determinado facto como provado e o Tribunal  …. internacionalmente competente para o julgamento da presente lide, ordenando o prosseguimento dos autos contra ambas as Rés.

Primeiro:

h. Tal qual a decisão de 1.ª instância, a patologia que afeta o Acórdão sob escrutínio relaciona-se com a deficiência da matéria de facto que ficou dada como provada e que foi fonte da decisão que deu como verificada a incompetência dos tribunais portugueses para julgar o litígio quanto à DoE, a saber: os pontos 1 a 3 supra transcritos.

i. Salvo melhor opinião, ao extratar determinada matéria de facto do contexto global da lide tal como foi apresentada pela Autora, o Tribunal da Relação  ….. descaracterizou a relação jurídica que constitui a única causa de pedir da ação,

j. O que levou a que, quer o Tribunal  …., quer o Tribunal da Relação ….., declarassem verificada a incompetência internacional do Tribunal de 1.ª instância quanto à Ré DoE, tendo por fundamento uma relação contratual diferente daquela que serve de causa de pedir à presente lide.

k. Sucede que, salvo melhor opinião, em face da matéria que foi alegada pela Autora/Recorrente, a matéria dada como provada é insuficiente para se concluir no sentido que o Tribunal da Relação decidiu.

l. A Autora alegou na sua petição inicial factualidade que evidencia a existência de uma relação contratual complexa, que envolve, de um lado, a Autora e, do outro, as duas Rés.

m. Ou seja, a relação jurídica contratual que constitui a causa de pedir na presente lide é una e indivisível e comporta, do lado passivo, uma pluralidade de partes, enquanto, do lado ativo, surge como única parte a Autora.

n. Tal resulta, nomeadamente do alegado pela Autora em 15, 16, 17, 18, 19, 20, 34, 35, 86, 87, 89, 94, 95, 99, 104, 106, 138, 139, 140, 142, 147, 148, 149, 153, 154, 155, 157, 158, 207, 208, 209, 211, 216, 219, 232, 249, 250, 251 e 252 da sua Petição Inicial.

o. Do alegado na petição inicial (e ao longo de toda a exposição efetuada), a Autora não distinguiu as Rés, por entender que a relação jurídica que estabeleceu é com ambas e é dessa relação jurídica plural que emerge o direito que veio reclamar nestes autos.

p. Estes factos a Autora/Recorrente reiterou quando convidada para se pronunciar sobre as exceções deduzidas pelas Rés, por requerimento 31327043, de 24.01.2019 – artigos 11 a 20 deste requerimento.

q. Com efeito, a Autora, ao longo de todo o seu petitório, e demais peças processuais, não distinguiu as Rés entre si, pois é sua plena convicção que na relação contratual que vigorou eram suas contrapartes outras duas empresas – as duas Rés.

r. Isto posto, salvo melhor opinião, para que se pudesse aferir da competência internacional dos tribunais portugueses, o Tribunal da Relação deveria ter julgado (dar como provada ou não provada) a factualidade supra enumerada da Petição Inicial, mormente os respetivos artigos 15 a 20, pois dela resulta a relação jurídica substancial plural que serve de causa de pedir à ação e que é o critério base e essencial para aferição da competência.

s. Ora, os factos oportunamente alegados não foram, efetivamente, objeto de decisão pelo Tribunal da Relação  ….., motivo pelo qual, salvo melhor opinião, a matéria de facto elencada nos pontos 1 a 3 da decisão recorrida é insuficiente para a determinação da competência internacional e para sustentar o Acórdão ora recorrido.

t. Termos em que, ao abrigo do disposto no art. 682.º, n.º 3 do CPC devem os presentes autos ser remetidos para o Tribunal da Relação  ….. (ou, caso este assim o entenda, para o tribunal de 1.ª instância) para ampliação da matéria de facto em ordem a constituir base suficiente para a decisão de direito do Supremo Tribunal de Justiça.

Segundo:

u. Os factos jurídicos concretos, de natureza essencial e instrumental, designadamente alegados na petição inicial, de que resulta que os direitos de que a Autora/Recorrente é titular assentam numa relação contratual complexa, por existente entre a Autora, de um lado, e ambas as Rés, de outro lado, foram confessados pelas próprias Rés/Recorridas – artigos 436 a 438 da contestação das Rés.

v. Do exposto resulta que a confissão judicial e espontânea das Rés – com força probatória plena (arts. 466.º, n.º 3 do CPC e 358.º, n.º 1 do CC) – não foi tomada em consideração pelo Tribunal da Relação  ….., conforme, ademais, impõe o art. 413.º do CPC: O tribunal deve tomar em consideração todas as provas produzidas, tenham ou não emanado da parte que devia produzi-las (…).

w. Termos em que, ao abrigo do disposto no art. 674.º, n.º 3, 2.ª parte e 682.º, n.º 2 do CPC, deve ser dada como provada a existência de uma relação contratual complexa, que envolvia, de um lado, a Autora, e do outro, ambas as Rés, relação esta, em termos subjetivos e objetivos, apenas parcialmente reduzida a escrito aquando da celebração do acordo escrito entre a Autora e a DoE.

Terceiro:

x. A aplicação do direito ao caso concreto mostra-se prejudicada pela deficiente seleção dos factos feita pelo tribunal de 2.ª instância. Não obstante, é entendimento da Recorrente que o Supremo Tribunal de Justiça se encontra em condições para, desde já, tomar posição sobre o direito aplicável ao caso, posição, esta, que deverá ser acatada pelo Tribunal da Relação  ….. depois de julgar, com a extensão referida supra, a matéria de facto controvertida.

y. Sob o prisma de Direito, cumpre, de facto, registar a sua errónea aplicação e violação, quando compaginadas as normas invocadas para sustentar o Acórdão recorrido, com a concreta configuração da relação jurídica substantiva da lide.

z. É que, por a relação de que procedem os presentes autos se tratar de uma única e una relação contratual, com pluralidade de partes, estamos perante um litisconsórcio passivo. Foi assim que a Autora configurou a relação controvertida submetida a juízo.

aa. São, pois, estas (a Autora e as duas Rés) as partes legítimas para a presente lide, nos termos do art. 30.º, n.º 3 do CPC.

bb. O litisconsórcio pode ser voluntário ou necessário, conforme decorre dos arts. 32.º e 33.º do CPC. No caso vertente, estamos perante um litisconsórcio necessário passivo, por natureza, na medida em que o efeito jurídico pretendido pela Autora não pode ser produzido, a não ser que ambas as Rés estejam na mesma lide, dada a conexão substancial existente.

cc. Por esta via, a incompetência internacional deste Tribunal quanto a uma das Rés determinaria, de forma direta, consequencial e inexorável, a imediata ilegitimidade da outra Ré, porquanto inexiste qualquer fundamento para esta estar por si só na lide.

dd. Com efeito, muito embora as Rés sejam solidariamente responsáveis pelos prejuízos causados à Autora, permanece incerto e indeterminado o contributo individual de cada uma das Rés para os mesmos, o qual decorre unicamente do quadro da divisão interna de responsabilidades que as Rés terão estabelecido entre si. Não pode, por isso, a Autora/Recorrente, com todo o respeito, concordar com o entendimento do Tribunal da Relação  ….. de que o litisconsórcio necessário por natureza é incongruente com o pedido de condenação solidária das Rés.

ee. Ora, o negócio jurídico que serve de base à presente lide e que constitui a causa de pedir na mesma impõe a intervenção de ambas as Rés, como partes da mesma lide.

ff. É, pois, imperativa a sua presença na mesma lide, não podendo produzir-se o seu efeito útil, se uma Ré for julgada num tribunal e a outra Ré for julgada noutro.

gg. Reitera-se, pois, nesta sede, a posição já articulada pela Autora, em resposta à exceção arguida pelas Rés nesta matéria, a qual figura nos seus requerimentos n.º 31327043, de 24.01.2019, e 31640289, de 21.02.2019 – artigos 7 a 25 do último requerimento referido.

hh. O acordo escrito celebrado entre a Autora e a 2.ª Ré, que foi junto sob o Doc. n.º 13 da PI e que foi dado como assente na douta decisão recorrida sob o ponto 3, é apenas uma parte da relação jurídica complexa e unitária que se estabeleceu entre a Autora e as duas Rés, integrando a mesma. E é desse contrato que emerge uma cláusula (cl. 21.4.) que aponta no sentido da eleição pela DoE da jurisdição holandesa apenas e só para dirimir matérias emergentes exclusivamente dessa relação contratual entre a Autora e a DoE. a 1.ª Ré não é parte nesse contrato, mas é parte nesta lide e na relação contratual a que se refere a causa de pedir.

ii. A cláusula invocada não pode prevalecer em qualquer circunstância sobre normas imperativas, nomeadamente sobre o disposto nos arts. 30.º, n.º 3 e 33.º, n.ºs 2 e 3 do CPC, como aliás decorre do seu teor literal, nem sequer pode furtar-se à aplicação do regime das cláusulas contratuais gerais, conforme art. 25.º do Regulamento 1215/2012, Acórdão “Refcomp” do Tribunal de Justiça, de 07.02.2013, Acórdão “MSG” do Tribunal de Justiça, de 20.02.1997 e Acórdão do Tribunal de Justiça, de 07.07.2016, processo C-222/15.

jj. Tudo sopesado, para efeitos do disposto no art. 674.º, n.º 1, alíneas a) e b) e n.º 2 do CPC, é entendimento da Autora/Recorrente que o Tribunal da Relação  ….. violou o disposto nos arts. 30.º, n.º 3, 32.º e 33.º do CPC, bem como o art. 25.º do Regulamento n.º 1215/2012.

kk. Subsidiariamente, caso o Supremo Tribunal de Justiça considere que a falha no que concerne à matéria de facto é de tal modo grave que impossibilita a fixação do regime jurídico a aplicar, deverá ser ordenada a anulação do Acórdão sob recurso e a repetição do julgamento, cujo resultado será passível de revista nos termos gerais – art. 683.º, n.º 2 do CPC.

TERMOS EM QUE SE REQUER:

A. SEJAM OS PRESENTES AUTOS REMETIDOS PARA O TRIBUNAL DA RELAÇÃO  ….. (OU, CASO ESTE ASSIM O ENTENDA, PARA O TRIBUNAL  DE 1.ª INSTÂNCIA) PARA AMPLIAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO EM ORDEM A CONSTITUIR BASE SUFICIENTE PARA A DECISÃO DE DIREITO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA.

B. SEJAM INTRODUZIDAS AS MODIFICAÇÕES NA DECISÃO DA MATÉRIA DE FACTO ADVENIENTES DA OFENSA PELO TRIBUNAL DA RELAÇÃO ...….. DA FORÇA PROBATÓRIA DA CONFISSÃO DAS RÉS.

C. SEJA RESOLVIDA A MATÉRIA DE DIREITO NOS TERMOS ORA PROPUGNADOS CUMPRINDO AO TRIBUNAL DA RELAÇÃO  …. PRONUNCIAR-SE SOBRE OS FACTOS CUJA FALTA FOI DETETADA OU, CASO ASSIM NÃO SE ENTENDA, SEJA ORDENADA A ANULAÇÃO DO ACÓRDÃO SOB RECURSO E A REPETIÇÃO DO JULGAMENTO,

ASSIM FAZENDO V. EXAS COLENDOS JUÍZES CONSELHEIROS DESTE TRIBUNAL DE JUSTIÇA

JUSTIÇA».


11.2. Na sua alegação de revista excecional, a recorrente formulou as seguintes conclusões:

«a. Por sentença com a referência 113340213, o Tribunal Judicial da Comarca  .... julgou totalmente improcedente a ação intentada e absolveu a Ré DSC PT:

Em face do exposto, julga-se totalmente improcedente a presente ação e, em consequência, absolve-se a Driscolls Portugal Produção e Comercialização de Frutas, Unipessoal, Lda. dos pedidos deduzidos pela Autora Geprocea I Serviços de Engenharia, Lda.

b. Da sentença referida constava que:

Nos termos do disposto no artigo 595.º, n.º 1, al. b) do Código de Processo Civil, uma vez que a decisão da causa depende apenas da aplicação e da interpretação de normas jurídicas (já debatidas pelas partes), sendo indiferente a prova dos factos que permanecem controvertidos e, na medida em que, sem necessidade de mais provas, o estado do processo permite proferir decisão segura, ir-se-á de imediato conhecer do méritodos pedidos deduzidos, ficando o presente despacho ater, paratodos os efeitos, valordesentença, nos termos doartigo 595º, n.º 3do mesmo diploma legal.

c. Interposto o competente recurso de apelação, o Tribunal da Relação  ….. confirmou a decisão proferida pelo tribunal de 1.ª instância, declarando:

Face ao exposto, entendemos que o tribunal andou bem em decidir logo no saneador, pois nada justificava que os autos prosseguissem para julgamento. Ainda que se provassem os factos que permaneciam controvertidos, a decisão final a proferir sempre seria a de absolvição da R., como se decidiu no saneador-sentença.

d. Nos termos do disposto nos arts. 671.º, n.º 1 e n.º 3 e 672.º, n.º 1, alínea c), os requisitos de acesso ao recurso de revista excecional encontram-se in casu integralmente verificados.

a. Quer o Acórdão sob recurso de revista excecional, quer o acórdão-fundamento incidem sobre a mesma questão fundamental de direito – a saber: da conformidade legal do conhecimento do mérito da causa em sede de saneador-sentença;

b. A decisão constante do Acórdão sob recurso é absolutamente contrária ao acórdão-fundamento, já transitado em julgado – o Acórdão proferido nos presentes autos entende que o tribunal andou bem em decidir logo no saneador; o acórdão-fundamento entendeu que o Tribunal não poderia decidir de imediato com a segurança exigida por lei, devendo osautos prosseguir para a fase julgamento;

c. A oposição de decisões referida no ponto anterior é frontal;

d. Adivergência entre o Acórdão recorrido e o acórdão-fundamento verifica-se num quadro normativo exatamente igual – art. 595.º, n.º 1, alínea b) do Novo CPC;

e. Inexiste acórdão de uniformização sobre a questão jurídica em causa a que o Acórdão recorrido tenha aderido;

f.    Estão enunciados nas alegações os aspetos de identidade que estão na génese da interposição do recurso de revista excecional (a saber: processos com conteúdo fático e ao nível de prova idêntico terem obtido do Tribunal da Relação  ….. duas decisões frontalmente opostas quanto à conformidade legal do proferimento de saneador-sentença) e foi efetuada a junção da certidão do acórdão-fundamento, nos termos e para os efeitos do disposto nos arts. 637.º, n.º 2 e 641.º;

g. O acórdão-fundamento transitou em julgado a 11.12.2019; e h. O Acórdão recorrido data de 08.10.2020.


e. O Tribunal daRelação….., quanto à conformidade legal doconhecimentodo mérito da causa em sede de saneador-sentença, julgou improcedente o recurso interposto pela Autora/Recorrente, do que resultaria a manutenção da decisão de improcedência da ação e a consequente absolvição da DSC PT.

f. O Acórdão recorrido alicerça a sua decisão no seguinte:

a. Ora, no caso em apreço, concordamos com a decisão recorrida, porquanto entendemos que os factos assentes conduzem à improcedência da acção, não tendo os factos ainda controvertidos, em face da concreta causa de pedir formulada, a virtualidade de poderem fundamentar a condenação da R. nos pedidos contra ela também deduzidos.

b. Ora, como se diz na sentença, todas as pretensões formuladas pela A. têm por fundamento vicissitudes ou circunstâncias relativas ao contrato e/ou à sua execução, sendo a própria A. que alega que a Driscoll'S Portugal - Produção e Comercialização de Frutas, Unipessoal, Lda., actua em representação da Driscoll'S Of Europe B.V., estando em causa 2 empresas distintas e não sendo invocada qualquer situação de domínio duma empresa relativamente à outra, invocando que a Driscoll'S Portugal - Produção e Comercialização de Frutas, Unipessoal, Lda., estabelece e mantem contactos com potenciais e actuais parceiros produtores, mas nunca invoca que negoceia ou celebra, em nome próprio ou por conta de outrem, qualquer contrato, tendo toda a causa de pedir o incumprimento das cláusulas escritas do contrato celebrado com a Driscoll'S Of Europe B.V., e no qual a R., Driscoll’S Portugal Produtos e Comercialização de Frutas, Unipessoal, Lda., não interveio.

c. Acresce que não sendo alegado que a ora se vinculou a qualquer cumprimento, tanto mais que resulta provado que apenas a Driscoll'S Of Europe B.V. detém o direito de conceder sublicenças para plantar, colher e comercializar frutos vermelhos, com a marca Driscoll's, marca essa que é detida por uma outra sociedade de direito holandês denominada Delight Global Holdings C.V., não resta dúvida que a aqui apenas actua como representante dessa empesa, não agindo em nome próprio.

d. Deste modo, e tendo presente que as pretensões formuladas pela A. têm por base o contrato escrito referido em 3) dos factos provados, no qual a R. não interveio, não tendo assumido nele qualquer obrigação, e não sendo alegada qualquer relação contratual estabelecida entre a R. e a A., não se nos afigura viável que a R. possa ser responsabilizada por qualquer prejuízo dano sofrido pela A. na execução do dito contrato.

e. A hipótese que se poderia colocar era a de a A. actuar em representação da R., como se indicia na petição inicial, mas então, a responsabilidade pelos actos por esta praticados recairia sobre a A., nos termos do n.º 1 do artigo 800º do Código Civil [isto sem prejuízo de ter de se indagar se em face do clausulado no contrato em causa era aplicável a lei portuguesa ou a holandesa].

f. No mais, concordamos igualmente com a decisão recorrida no que se reporta à questão do pedido de condenação solidária das RR., pois, como ali se refere, na situação dos autos, não resulta da lei, nem foi alegado que houve acordo nesse sentido para que possa haver responsabilidade solidária entre a Driscoll'S Portugal - Produção e Comercialização de Frutas, Unipessoal, Lda., e a Driscoll'S Of Europe B.V., pelo que não se vislumbra a que título poderia, ainda que houvesse lugar a condenação da ora Ré, a mesma ser solidária.

g. O Acórdão ora recorrido merece, em nossa opinião, censura, na medida em que, em erro de Direito, considerou oportunamente proferido o saneador-sentença do Tribunal  ...., pelo que deverá ser considerado nulo, o saneador-sentença revogado e os autos regressarem à 1.ª Instância para regularização do processado e realização dos ulteriores termos do processo.

h. Dispõe o art. 595.º, n.º 1, alínea b) do CPC que O despacho saneador destina-se a (…) b) Conhecer imediatamente do mérito da causa, sempre que o estado do processo permitir, sem necessidade de mais provas, a apreciação total ou parcial, do ou dos pedidos deduzidos (…).

i. Para além de a resolução do processo em apreço, no estado em que se encontrava, não passar em exclusivo pela aplicação de matéria de direito, o tribunal não estava, de facto, munido de todos os elementos necessários para dar a competente resposta aos pedidos deduzidos, até os presentes autos transitarem para e concluírem a fase de instrução.

Primeiro:

j. No momento do proferimento da sentença sob recurso o próprio tribunal de 1.ª instância reconhece que existe matéria controvertida.

k. Podendo esta matéria referir-se a inúmeras questões, em virtude da complexidade que revestem os presentes autos e respetivas dimensão e densidade (em termos de alegação e documentação), dados os parcos factos dados como provados e a inexistência da indicação dos factos dados como não provados, a afirmação do próprio tribunal é altamente sintomática e reveladora da intempestividade, por adiantada, do saneador-sentença.

Segundo:

l. Com todo o respeito pelo Tribunal da Relação  ….., que é muito, a causa de pedir formulada pela Autora assenta numa relação contratual existente entre esta e outros dois sujeitos – as 1.ª e 2.ª Rés.

m. A Autora alegou, ademais, que a referida relação contratual foi reduzida a escrito apenas em termos parciais.

n. Sucede que, o tribunal de 1.ª instância, em manifesta violação do dever de pronúncia a que se encontra adstrito, não se pronunciou quanto a quem entende terem sido as contrapartes da Autora na relação apresentada para apreciação.

o. Para além do apuramento das efetivas partes da relação de que procedem os presentes autos, a mesma decisão de prosseguimento dos autos para a fase de instrução, impor-se-ia, de igual modo, tendo em vista i) a aferição dos pressupostos de responsabilidade civil – instituto invocado pela Autora em sede de causa de pedir e que conforma os pedidos deduzidos pela Autora; e ii) em caso de aplicação do regime da conjunção, o apuramento do preço em falta ou, subsidiariamente, do quantum indemnizatório devido por cada uma das Rés à Autora.

p. Os presentes autos reportam-se a articulados de elevada dimensão e complexidade e que, à data do saneador-sentença, contavam já com cerca de 45 documentos incidentes sobre matéria de facto alegada por ambas as partes.

q. A maioria destes documentos correspondem a documentos elaborados e comunicações subscritas pelas partes, que invariavelmente, em sede de audiência e julgamento, seriam objeto de análise e confronto para apuramento do correto conteúdo e, deste modo, detalhadamente descortinar a configuração e o conteúdo da relação trazida ao tribunal de 1.ª instância para apreciação.

r. De facto, tivessem os presentes autos prosseguido para a fase de instrução, que esta invariavelmente passaria, nomeadamente, pelos seguintes pontos:

1. O apuramento da natureza, da configuração e do conteúdo (isto é, direitos e obrigações assumidos por cada uma das partes) da relação que serve de causa de pedir aos presentes autos;

2. O apuramento de um eventual incumprimento contratual, do eventual valor em dívida para com a Autora ou, subsidiariamente, dos danos sofridos pela Autora e, por último, a aferição do nexo de causalidade entre o incumprimento contratual e estes valores; e

3. O apuramento do conteúdo da relação existente entre a 1.ª Ré e a 2.ª Ré.

Terceiro:

s. É precisamente a ausência da realização da audiência de discussão e julgamento e, subsidiariamente, a ausência de uma verdadeira análise da prova já constituída, que conduz o tribunal de 1.ª instância a fazer partir a sentença sob recurso de duas premissas erradas:

i.    Que a representação a que a Ré se refere no artigo 18 da sua petição inicial se reporta a uma representação em sentido jurídico; e

ii.     Que a 1.ª Ré não era parte da relação contratual em apreço, cingindo-se esta ao contrato escrito celebrado entre a Autora e a 2.ª Ré.

Quarto:

t. Salvo melhor entendimento, a prematuridade da sentença sob recurso também resulta das conclusões flagrantemente erradas que o Tribunal  .... faz constar do conteúdo da sua decisão.

u. Ao contrário do invocado pelo Tribunal da Relação  ….., é redondamente falso que a Recorrente não tenha alegado que a 1.ª Ré não interveio no contrato. São, de facto, múltiplos os factos alegados no sentido de ambas as Rés serem parte num contrato em conjunto com a Autora – vejam-se, por exemplo, os factos 15 a 20, 34, 35, 86, 87, 89, 94 a 98, 138 a 140, 142, 147 a 149, 153 a 155, 157, 158, 207 a 209, 211, 216, 219 e 232, 249 a 252 da petição inicial.

v. Atente-se, por fim, à seguinte motivação do acórdão-fundamento, que versa sobre processos de alegação fática e prova idêntica ao sob recurso, que acompanham em grande medida a argumentação das alegações ora apresentadas:

a. (…) verifica-se que existem questões problemáticas essenciais sobre o enunciado contratual – parte delas que se reportam ao âmbito de delimitação objectiva e subjectiva da responsabilidade – de carácter duvidoso e que não se encontram totalmente cristalizadas na fase de gestão inicial do processo.

b. (…) no plano jurídico a matéria em apreço não poderia ter sido decidida de imediato com a segurança exigida por lei. Na verdade, inexistem elementos factuais para promover uma decisão conscienciosa e completa relativamente a todas as questões suscitadas.

c. Existem matérias não decifradas factualmente a propósito do apuramento da natureza, da configuração e do conteúdo negocial que podem eventualmente alterar o sentido decisório tomado. Além do contexto negocial, sobejam ainda dúvidas sobre a existência (ou não) de um eventual incumprimento contratual e no aferimento desses valores, bem como no apuramento do conteúdo da relação existente entre as pessoas colectivas aqui presentes.

d. (…) toda a decisão se encontra estruturada em 5 (cinco) factos (…) mas estes factos não são suficientes para justificar a decisão tomada.

e. (…) as conclusões jurídicas tomadas não assentam em qualquer fundamento fáctico de suporte e a decisão jurídica corresponde apenas a um juízo abstracto-hipotético sobre matérias que se encontram controvertidas e que não viabilizam a construção de um silogismo judiciário com um grau de certeza adequado aos fins do processo civil.

f.     A decisão tomada não está escorada em factos que viabilizem a construção jurídica realizada, pois o referido juízo prudencial – em especial na fase de gestão inicial do processo – tem de ser obtido a partir dos factos assentes e tem de fornecer resposta positiva ao preenchimento dos requisitos necessários para tal atribuição.

g. As questões de facto que foram utilizadas na construção jurídica são controvertidas e não estão abrangidas pela força probatória de qualquer meio de prova. E, assim, como já se antecipou, o Tribunal não poderia decidir de imediato com a segurança exigida por lei, devendo os autos prosseguir para a fase de julgamento.


Em face do ante exposto, deve o Acórdão ora recorrido ser anulado por, em erro de Direito – mais concretamente do art. 595.º, n.º 1, alínea b) do C.P.C. –, ter considerado oportunamente proferido o saneador-sentença do Tribunal de .... e, em consequência, ser o despacho saneador-sentença revogado e os autos regressarem à 1.ª instância para regularização do processado e realização dos ulteriores termos do processo.

TERMOS EM QUE SE REQUER SEJA ANULADO O ACÓRDÃO RECORRIDO E, EM CONSEQUÊNCIA,  SER O DESPACHO SANEADOR-SENTENÇA REVOGADO E OS AUTOS REGRESSAREM À 1.ª INSTÂNCIA PARA REGULARIZAÇÃO DO PROCESSADO E REALIZAÇÃO DOS ULTERIORES TERMOS DO PROCESSO.

ASSIM FAZENDO V. EXAS COLENDOS JUÍZES CONSELHEIROS DESTE TRIBUNAL DE JUSTIÇA

JUSTIÇA».

12. As recorridas, DRISCOLL’S PORTUGAL – PRODUÇÃO E COMERCIALIZAÇÃO DE FRUTAS UNIPESSOAL, LDA E DRISCOLL’S OF EUROPE B.V., respetivamente 1.ª e 2.ª Rés, notificadas do recurso de revista e do recurso de revista excecional, interpostos pela Autora, apresentaram contra-alegações, pugnando pela manutenção do decidido.

13. Sabido que é pelas conclusões que se delimita o objeto do recurso, as questões a decidir são as seguintes:

I – Da incompetência absoluta dos tribunais portugueses para conhecer do pedido em relação à ré Driscoll’S Of Europe, B. V.;

II – Da conformidade legal do conhecimento do mérito da causa em sede de saneador-sentença, ao abrigo do artigo 595.º, al. b), do Código de Processo Civil.

     Cumpre apreciar e decidir.

II – Fundamentação

A Da incompetência absoluta dos tribunais portugueses

1. As instâncias julgaram verificada a exceção dilatória da incompetência absoluta para conhecer do pedido relativamente à R. Driscoll’S Of Europe B.V., por infração das regras da competência internacional, e, em consequência, absolveram a 2.ª Ré da instância.

2. Na decisão recorrida consideram-se apurados os seguintes factos [atento o acordo das partes nos articulados e a não impugnação da certidão comercial da 1.ª Ré e o contrato celebrado entre a A. e a 2.ª Ré, junto aos autos)  

1)  A Ré Driscoll'S Portugal- Produção e Comercialização de Frutas, Unipessoal, Lda., é uma sociedade comercial de direito português, constituída no ano 2004, que tem como objecto social a produção e comercialização de frutas e tem a sua sede social em Beja, sendo o seu capital social da l.ª Ré é detido a 100% pela sociedade comercial norte-americana Driscoll Internacional Inc.

2)   A Ré Driscoll'S Of Europe B.V. é uma sociedade comercial de direito holandês, inscrita no RNPC sob o n.º 980492408, com sede em Bijster 26, 4817 HX Breda, Holanda e que detém o direito de conceder sublicenças para plantar, colher e comercializar frutos vermelhos, com a marca Driscoll's, marca essa que é detida por uma outra sociedade de direito holandês denominada Delight Global Holdings C.V., com domicílio nas Ilhas Cayman, em Intertrust Cayman Island, 190 Elgin Avenue, George Town, Grand Cayman

3)   A Autora Geprocea I - Serviços de Engenharia, Lda e a Ré Driscoll'S Of Europe B.V. celebraram em 25 de Abril de 2013 um acordo escrito denominado Grower Agreement 2013 (316-2013) relativo à produção e comercialização de frutos vermelhos, constando da Cláusula 21.4. do referido contrato que, “Na medida em que seja permitido por normas imperativas, este Contrato deve ser regido e interpretado de acordo com a lei holandesa e as Partes atribuem jurisdição exclusiva aos tribunais holandeses competentes …... Sem prejuízo e em adição ao referido, as Partes acordam que a Doe terá o direito, a seu exclusivo critério, de solicitar aos tribunais do país do lugar do Imóvel a adopção das medidas e soluções que se afiguram adequadas ou necessárias para defender os seus direitos ao abrigo do presente e preparar acções judiciais, incluindo para pedir e obter o decretamento de providências cautelares, inspecções e averiguações, na medida em que se revele necessário para aferir da existência, extensão e âmbito de qualquer incumprimento contratual ou violação de direitos e segredos (incluindo, designadamente, com o fim de obter ou promover a apreensão física de bens ou materiais, aceder às instalações e verificar as plantações do Produtor, os processos de crescimento, colheita, empacotamento, expedição e consumo, bem como a prestação de informações e documentação relevantes aos fornecedores, e a cadeias de venda, clientes ou distribuição), assim como providências cautelares ou medidas preventivas permitidas pelas leis do país do lugar do imóvel com vista a obter a imediata cessação da conduta».

 

3. O acórdão recorrido decidiu pela incompetência dos tribunais portugueses para conhecer do pedido em relação à 2.ª Ré, Driscoll’s of Europe B.V., sediada na Holanda, com base na existência de uma cláusula contratual atributiva de competência aos tribunais holandeses, nos seguintes termos, citando a decisão de 1.ª instância:

«A cláusula que atribui competência exclusiva aos Tribunais holandeses consta de contrato escrito celebrado entre a Autora e a Ré Driscolf ' S Of Europe B.V. e não resulta das normas de direito holandês juntas aos autos que tal pacto seja substantivamente nulo, pelo que se mostram cumpridos os requisitos exigidos pelo artigo 25° do Regulamento (UE) n.º 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de Dezembro de 2012, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial, não tendo que se aferir da validade da cláusula à luz do direito interno, ou seja, é irrelevante para decidir da questão da competência internacional saber se a cláusula eventualmente seria ou não nula ao abrigo do direito interno português, designadamente através do regime das cláusulas contratuais gerais previsto no DL 446/85, de 25 de outubro» [Neste sentido, V.g., Ac. STJ de 07-07-2016, proferido no processo n.º 1387115.6T8PRT-B.Ll.PI, Ac. RP de 27-03-2017, proferido no processo n.º 1627115.lT8PVZ-A.PI e Ac.   RL de 17-09-2009, proferido no processo n.º 48/08.7TNLSB.Ll-8, todos com texto integral disponível em www.dgsi.pt.].

De facto, “A jurisprudência do Tribunal de Justiça (TJ) é clara quanto ao entendimento de que a noção de pacto atributivo de jurisdição [art. 25.° do Regulamento (UE) 1215/2012 do Parlamento e do Conselho, de 12 de dezembro de 2012] é autónoma, relativamente ao direito interno de cada Estado-Membro – a validade do pacto de jurisdição deve ser, exclusivamente aferida (preenchida) à luz da própria disposição do Regulamento, ficando excluída a convocação, no caso e designadamente, do art. 94.º CPC e do Regime das Cláusulas Contratuais Gerais (DL 446/85, de 25 de Outubro)” [Ac. STJ de 13-11-2019, proferido no processo n.º 6919116.0T8PRT.Gl.SI, com texto integral disponível em www.dgsi.pt.].

Por outro lado, atento o disposto no artigo 97°, n.º 1 do Código de Processo Civil, a incompetência absoluta pode ser arguida pelas partes e deve ser suscitada oficiosamente pelo Tribunal enquanto não houver sentença com trânsito em julgado proferida sobre o fundo da causa.

Por fim, nos termos dos artigos 64°, 65°, 96°, al. a) a 99°, n.º 1, 278.°, n.º 1, al. a), 576°, n.º 1 e 2 e 577°, al. a), todos do Código de Processo Civil, a incompetência absoluta é uma excepção dilatória de conhecimento oficioso que impede que o Tribunal conheça do pedido e implica a absolvição do réu da instância.

A presente acção está na fase do termo dos articulados e a incompetência absoluta deste Tribunal relativamente à 2.ª Ré foi invocada na contestação, pelo que, em face do exposto, julgo verificada a excepção dilatória da incompetência absoluta deste Tribunal para conhecer do pedido relativamente à referida Ré, por infracção as regras da competência internacional, e, em consequência, absolvo a Ré Driscoll'S Of Europe B.V. da instância.»

4. Na sua argumentação o acórdão recorrido fundamenta a sua decisão para considerar procedente a exceção da incompetência absoluta dos tribunais portugueses para conhecerem da causa em relação à 2.ª Ré num argumento jurídico de segurança jurídica, na medida em que a questão da competência dos tribunais portugueses para o julgamento da causa, no que à 2ª R., DRISCOLL'S OF EUROPE B.V., se refere, já foi decidida em causas idênticas à aqui em apreciação contra as mesmas RR., por acórdãos do Tribunal da Relação de Évora, de 07/11/2019 (447/18.6T8FAR.E1), 19/12/2019 (161/18.2T8FAR.E1) e de 16/01/2020 (449/18.2T8FAR.E1).

O acórdão recorrido invoca também a orientação seguida pelo Supremo Tribunal de Justiça, no Acórdão de 14 de julho de 2020, que confirmou o acórdão da Relação de Évora, proferido no processo n.º 161/18.2T8FAR.E1 (disponível in https://jurisprudencia.csm.org.pt/ecli/ECLI:PT:STJ:2020:161.18.2T8FAR.E1.S1/).


5. Vejamos:

A 1.ª secção do Supremo Tribunal de Justiça tem adotado uma orientação geral semelhante, baseada na prevalência do Regulamento Comunitário n.º 1215/2012 sobre o direito processual interno.

Como se afirmou no Acórdão de 07-03-2019 (proc. n.º 1387/15.6T8PRT-B.L1.P1), «I - A aferição do pressuposto processual da competência, nomeadamente da competência internacional, deve ser equacionada em função dos contornos da pretensão deduzida tal como se encontre configurada na petição inicial. II - As normas dos regulamentos europeus prevalecem sobre as normas processuais portuguesas e têm aplicação directa na ordem interna. III - Uma situação jurídica plurilocalizada e transnacional pode ser objecto de pacto atributivo de competência nos termos do art. 25.º do Regulamento (UE) n.º 1215/2012».

Por outro lado, a jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia  tem sido clara quanto ao entendimento de que a noção de pacto atributivo de jurisdição, consagrada no artigo 25.º do Regulamento (UE) 1215/2012 do Parlamento e do Conselho, de 12 de dezembro de 2012, é autónoma relativamente ao direito interno de cada Estado-Membro, devendo, assim, a validade do pacto de jurisdição ser exclusivamente aferida à luz da disposição do Regulamento, ficando excluída a convocação do artigo 94.º do  CPC e do Regime das Cláusulas Contratuais Gerais (DL 446/85, de 25 de outubro), como nos informa o Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, de 13-11-2018 (proc. n.º 6919/16.0T8PRT.G1.S1) também desta 1.ª Secção.

 

6. Apesar de a jurisprudência aderir, unanimemente, a estes princípios, por vezes, as soluções são distintas, em virtude das especificidades de cada caso concreto, designadamente, da forma escrita ou verbal adotada nos contratos (Acórdão de 09-06-2014, Proc. n.º 165595/11.1YIPRT.G2.S1) ou da qualificação jurídica dos factos constantes da petição inicial, que compete oficiosamente aos tribunais, nos termos do artigo 5.º, n.º 3, do CPC, conforme se entendeu no acórdão de 17-12-2020 (Revista n.º 12223/16.6T8PRT.P1.S1), de que foi Ajunta a agora Relatora.

7. Entende a Autora, nas suas conclusões de recurso, que o acórdão recorrido, decidindo pela incompetência internacional dos tribunais portugueses em relação à 2.ª Ré, padece do vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada pois isolou o caso do contexto da lide e não teve em conta a relação jurídica contratual complexa e indivisível (do lado passivo), que serve de base à causa de pedir da ação, tal como resulta dos pontos 15, 16, 17, 18, 19, 20, 34, 35, 86, 87, 89, 94, 95, 99, 104, 106, 138, 139, 140, 142, 147, 148, 149, 153, 154, 155, 157, 158, 207, 208, 209, 211, 216, 219, 232, 249, 250, 251 e 252 da petição inicial acima transcritos. Pugna, pois, pela ampliação da matéria de facto, ao abrigo do artigo 682.º, n.º 3, do CPC. Em alternativa, entende que a existência da referida relação jurídica contratual complexa, entre a autora e ambas as rés, resulta de declaração confessória da 2.ª ré na contestação (n.ºs 436 a 438), a qual deve ser dada como provada ao abrigo dos artigos 674.º, n.º 3, 2.ª parte e 682.º, n.º 2, ambos do CPC. Assim, entende a recorrente que este Supremo Tribunal pode declarar, desde já, que estamos perante uma única e una relação contratual, com pluralidade de partes, situação jurídica que configura, na sua perspetiva, um litisconsórcio necessário passivo, por natureza, não podendo o efeito jurídico pretendido pela Autora ser produzido, a não ser que ambas as rés estejam na mesma lide.   

           

8. Vejamos então os números da petição inicial invocados pela autora em defesa da sua posição:  

«15. A 1.ª e 2.ª Rés mantêm relações comerciais com a Autora, as quais, resumidamente, assentam, por um lado, no fornecimento pelas Rés à Autora de plantas para cultivo de frutos vermelhos e, por outro, na compra pelas Rés à Autora dos frutos vermelhos por esta produzidos.

16. A 1.ª e 2.ª Rés, que atuam de forma concertada e integrada no mercado português, integram o grupo multinacional norte-americano Driscoll’s, o qual é proprietário da maior produtora mundial de frutos vermelhos – a RAC (Reiter Affiliated Companies) – sendo o líder mundial de produção e comercialização de frutos vermelhos – documentos n.os 11 e 12, queora se juntam e aqui se dão por integralmente reproduzidos.

17. A Autora e as Rés mantêm relações comerciais relacionadas com a atividade de produção e comercialização de frutos vermelhos.

18. Muito embora seja a 2.ª Ré a detentora dos direitos de propriedade intelectual das plantas que são vendidas à Autora, todo o processo operacional e negocial respeitante ao território português – onde se integra a Autora – é conduzido e coordenado por ambas as Rés, atuando a 1.ª Ré enquanto verdadeira representante da 2.ª Ré para o território nacional,

19. Passando indistintamente por ambas as Rés a generalidade dos contactos e acordos acerca da atividade de produção da Autora.

20. De tal modo que, para a Autora, negociar com a 1.ª ou com a 2.ª Ré, é indiferente, dado que o seu interlocutor único é, na verdade, a Driscoll’s – enquanto empresa multinacional –, sendo quer a 1.ª Ré como a 2.ª Ré entidades jurídicas instrumentais na implementação da estratégia global do grupo Driscoll’s.

(…)

34. Alcançado o acordo entre a Autora e as Rés, a estrutura profissionalizada da Driscoll’s remeteu à Autora, como remeteu aos demais agricultores que integram a Madre Fruta, contratos-tipo, redigidos em língua inglesa, idênticos para todos eles, aos quais os agricultores tinham de aderir para poderem ser produtores de frutos da marca Driscoll’s.

35. Os termos de tais contratos foram unilateralmente definidos pelas Rés, não foram explicados à Autora nem aos restantes agricultores, não foram objeto de qualquer negociação, limitando-se a Autora e demais agricultores a aderir aos mesmos.

 (…)

86. Não obstante o compromisso das Rés, na Campanha de Framboesas Inverno/Primavera

2016/2017 repetiu-se o desacerto das previsões das Rés.

87. Antes de iniciar a plantação, as Rés informaram a Autora das quantidades que devia

produzir – documento n.º 18, que ora se junta e aqui se dá por integralmente reproduzido.

17/335

 (…)

89. Seguindo os procedimentos habituais, as Rés informavam a Autora da previsão do preço

que pagariam por Kg de framboesas em três momentos:

i) Imediatamente antes do início de cada semana da colheita;

ii) Na semana da colheita; e

iii) Na semana da entrega da colheita ou após.

 (…)

94. Conforme já referido, a Autora e as Rés acordaram, antecipadamente e em conjunto,

quais as quantidades que a Autora iria produzir.

95. A Autora entregou às Rés as quantidades decididas nas datas acordadas, respeitando,

sempre, os padrões de qualidade definidos e controlados pela Rés – documentos n.os 19 e 20,

que ora se juntam e aqui se dão por integralmente reproduzidos.

No entanto,

96. Tal como estava previsto, entre as semanas 14 e 21 de 2017 ocorreram 71% das vendas

totais – documento n.º 21, que ora se junta e aqui se dá por integralmente reproduzido.

97.  E, a partir da semana 14 de 2017, o valor adiantado pelas Rés à Autora situou-se, em

média, abaixo das três previsões regularmente comunicadas pelas Rés (incluindo a remetida na

própria semana ou na semana seguinte em que a entrega da colheita ocorre):

Semana Previsão 1        Previsão 2    Previsão 3   Custo de produção   Custo com margem de 7,5%   Valor efetivo

14         8,27€                8,18€            7,96  8,28€                           8,95€                                            7,77€

15         7,95€                7,66€         7,57€  8,28€                           8,95€                                            5,85€

16 7,31€              7,09€          6,08€  8,28€                           8,95€                                            5,34€

17         7,22€               6,53€             5,68€   8,28€                           8,95€                                            5,02€

18          6,79€                6,26€             5,94€          8,28€                           8,95€                                            4,94€

19   6,53€   6,09€   5,76€  8,28€                 8,95€                                   5,60€

20          6,00€                 5,20€              3,32€          8,28€                           8,95€                                            3,23€

21          4,80€                 4,80€               3,66€         8,28€                           8,95€                                             3,56€

22          4,40€                 4,40€               3,78€         8,28€                           8,95€                                             3,68€

23          4,60€                  4,29€               4,00€         8,28€                           8,95€                                             3,89€

98. E, especialmente a partir da semana 15 de 2017, também abaixo do limiar mínimo estabelecido pelas Rés.

(…)

138. Terminada a colheita, as Rés fizeram chegar à Autora o Anexo F para ser assinado, propondo que o valor a pagar à Autora fosse de 82% sobre o valor de 5,98€/kg.

139. A Autora discordou do teor do mesmo, propondo, em sede negocial, uma alteração de redação destinada a formalizar a premissa de que o “Purchase price” não poderia ser, em qualquer circunstância, inferior ao custo de produção da Autora – cfr. documento n.º 10.

140. As Rés não aceitaram a contraproposta – cfr. documento n.º 10.

141. Por tal motivo, o Anexo F não chegou a ser assinado pelas partes – cfr. documento n.º 10.

142. Pelo que as partes não chegaram, até hoje, a obter acordo sobre o preço a pagar pelas Rés à Autora.

143. É, pois, necessário proceder à determinação desse preço, o que constitui o propósito central da presente ação.

Ora,

144. Dispõe o n.º 1 do art. 883.º do Código Civil: 1. Se o preço não estiver fixado por entidade pública, e as partes o não determinarem nem convencionarem o modo de ele ser determinado, vale como preço contratual o que o vendedor normalmente praticar à data da conclusão do contrato ou, na falta dele, o do mercado ou bolsa no momento do contrato e no lugar em que o comprador deva cumprir; na insuficiência destas regras, o preço é determinado pelo tribunal, segundo juízos de equidade.

145. Assim, o preço (Purchase Price) por Kg de framboesa produzida e entregue pela Autora às Rés na Campanha de Inverno/Primavera 2016/2017 deverá situar-se em média no valor de 8,95€/kg, preço que incorpora o valor de custo de produção da Autora, acrescido da sua margem comercial de 7,5%, valor esse que é compatível com o que era normalmente praticado pela Autora à data.

146. Considerando que a Autora teve uma produção de 183.999,00 kg, o valor que deveria ter sido pago pela Ré deveria ser o correspondente a Eur. 1.646.791,05€.

147. As Rés até agora apenas efetuaram ao adiantamento parcial de Eur. 1.164.315,30€, pelo que – uma vez determinado o preço – deverão, nos termos do disposto nos arts. 512 e ss. Do Código Civil e 100.º do Código Comercial, proceder ao pagamento adicional de Eur. 482.475,75€.

II.6 – Outros danos sofridos pela Autora, por via da conduta adotada pelas Rés

148. A Autora, em virtude do não pagamento atempado do preço, teve que suportar encargos

financeiros com que não contava e que ascendem, à data, a Eur. 19.745,00€ - documento n.º 28,

que ora se junta e aqui se dá por integralmente reproduzido.

149. Para além disso, a conduta gravemente negligente, ou até dolosa, das Rés levaram a que a Autora tenha decidido não avançar para uma nova colheita no ano de 2017/2018, por ter deixado de confiar nas Rés.

(…)

153. O que está a ter impacto direto nos seus resultados, quer no ano de 2017, quer no ano de

2018, e que, sem prejuízo de ulterior liquidação, quantifica para já na quantia de Eur.

10.044,42€,

154. Quantias em que as Rés deverão ser solidariamente condenadas.

Sem prescindir, e para a hipótese de se vir a entender que o preço deverá ser determinado de

acordo com a cláusula 9.1. e o Anexo F (apesar de não ter sido aceite pela Autora), com base

na interpretação que as Rés fazem de tal cláusula, desconsiderando os custos de produção e

margem de comercialização da Autora, conforme alegado em 79 desta petição inicial,

III.1. Da nulidade das cláusulas do Contrato, em especial da cláusula 9.1.

155. O Contrato foi celebrado entre a Autora e as Rés sem a realização prévia de uma qualquer fase negociatória individualizada;

 (…)

157. O teor dos contratos foi unilateralmente predisposto pelas Rés, para a adesão de destinatários indeterminados,

158. As Rés, nas relações com a Autora, utilizaram minutas-tipo elaboradas exclusivamente por elas,

(…)

 207. Conforme já descrito, no final de 2017, depois de concluída a colheita e comercialização

de 2016/2017, foi a Autora interpelada pelas Rés para a proceder à assinatura dos anexos

referentes à colheita em causa – cfr. documento n.º 10.

208. Em reação à referida interpelação, a Autora pretendeu – pela primeira vez no histórico

da relação entre as duas partes – discutir o teor do anexo F, sugerindo um aditamento ao mesmo

– cfr. documento n.º 10.

209. Em resposta à solicitação da Autora, as Rés, por e-mail datado de 24.09.2017, limitaram-se a responder, dizendo “O modelo do exhibit é o de sempre, tal como o grower agreement e não faz sentido a alteração que sugere. Pedia sff que se proceda a formalização, tal como nos outros anos – cfr. documento n.º 10.

 (…)

211. Tal qual o restante clausulado, também a cláusula 9 do Contrato foi unilateralmente elaborada pelas Rés.

 (…)

216. A relação de confiança criada entre a Madre Fruta e as Rés – resultado da sua parceria

comercial com um histórico de cerca de 13 anos – em momento algum poderia fazer prever à

Autora, enquanto membro daquela organização de produtores, que o preço pago pelas Rés

pudesse ser inferior ao limiar mínimo constante das suas previsões de produção e previsões

semanais de colheita,

(…)

219. Não obstante a Autora depender inteiramente das políticas comerciais das Rés e ter

confiado que, inclusivamente por respeito à parceria comercial existente, o mecanismo de

participação nas receitas geradas iria ser justo, transparente e equitativo, recompensando-a,

sucedeu precisamente o inverso, primeiro no ano de 2016 e, mais recentemente, no ano de

2017.

(…)

232. O exorbitante desequilíbrio entre as partes, criado pelas Rés, revela-se, também, no facto

de nos termos do contrato celebrado e na forma como o mesmo é interpretado pelas Rés:

a) serem as Rés quem determinam o preço de compra das plantas;

b) serem as Rés quem determinam o preço de venda; e

c) em qualquer circunstância, nunca as Rés ficarem a perder, dado que os seus custos de

acondicionamento e as royalties são – antes do pagamento à Autora – subtraídas diretamente

ao preço de venda – o qual é recebido diretamente pelas Rés e, depois dos descontos que esta

entende fazer, entregue à Autora.

 (…)

249. Devendo, em consequência, as rés serem condenadas a pagar à Autora a quantia de

482.475,75€, a título de preço adicional,

250. A que acresceriam os danos sofridos em virtude da sua conduta, tendo em conta o

alegado na secção II.6 da presente petição inicial no montante global de Eur. 29.789,42€,

IV.1. Da nulidade do Contrato na hipótese de não aplicabilidade do instituto da redução

previsto no art. 292.º do Código Civil

251. Sem prescindir, e ainda a título subsidiário relativamente a III.1., considerando-se o

cenário de tal nulidade da cláusula 9 poder ser fundamento de anulação do Contrato no seu

todo, caso se venha a concluir pela inaplicabilidade do instituto da redução previsto no art.

292.º do Código Civil, sempre teria de se concluir, nos termos do disposto nos arts. 12.º do

RGCCG, 289.º, n.º 1, 483.º, n.º 1 e 564.º, n.º 1 do Código Civil, que as Rés deveriam ser

condenadas a pagar à Autora o montante de Eur. 482.475,75€, por danos sofridos por esta,

252. A que acresceriam os danos sofridos em virtude da sua conduta, tendo em conta o

alegado na secção II.6 da presente petição inicial no montante global de Eur. 29.789,42€.»

           

           

9. Os tribunais portugueses só podem conhecer de litígio emergente de uma relação transnacional quando forem internacionalmente competentes.  

A competência do tribunal afere-se pela natureza da relação jurídica tal como ela é configurada pelo autor na petição inicial, ou seja, no confronto entre a pretensão deduzida (pedido) e os respetivos fundamentos (causa de pedir), independentemente da apreciação do seu acerto substancial.

Na situação sub judice, identificados os pedidos e a causa de pedir, face à natureza da relação contratual estabelecida e à localização das sedes das partes, pode observar-se que o litígio tem relação com várias ordens jurídicas: a portuguesa e a holandesa.

Tendo em atenção a natureza plurilocalizada e transnacional dos sujeitos da relação jurídica, o contrato junto aos autos estipula que, ao abrigo da cláusula 21.4, os litígios decorrentes do contrato têm de ser dirimidos pelos tribunais holandeses, que corresponde ao local onde está instalada a sede da segunda Ré.

 É o seguinte o teor da cláusula 21.4. do contrato celebrado entre a autora e a Segunda Ré, Driscoll Of Europe:

 «Na medida em que seja permitido por normas imperativas, este Contrato deve ser regido e interpretado de acordo com a lei holandesa e as Partes atribuem jurisdição exclusiva aos tribunais holandeses competentes …... Sem prejuízo e em adição ao referido, as Partes acordam que a Doe terá o direito, a seu exclusivo critério, de solicitar aos tribunais do país do lugar do Imóvel a adopção das medidas e soluções que se afiguram adequadas ou necessárias para defender os seus direitos ao abrigo do presente e preparar acções judiciais, incluindo para pedir e obter o decretamento de providências cautelares, inspecções e averiguações, na medida em que se revele necessário para aferir da existência, extensão e âmbito de qualquer incumprimento contratual ou violação de direitos e segredos (incluindo, designadamente, com o fim de obter ou promover a apreensão física de bens ou materiais, aceder às Instalações e verificar as plantações do Produtor, os processos de crescimento, colheita, empacotamento, expedição e consumo, bem como a prestação de informações e documentação relevantes aos fornecedores, e a cadeias de venda, clientes ou distribuição), assim como providências cautelares ou medidas preventivas permitidas pelas leis do país do lugar do imóvel com vista a obter a imediata cessação da conduta lesiva”.

 Por força artigo 8.°, n.° 4, da Constituição da República Portuguesa (CRP), «as disposições dos tratados que regem a União Europeia e as normas emanadas das suas instituições, no exercício das suas competências, são aplicáveis na ordem interna, nos termos definidos pelo direito da União, com respeito pelos princípios fundamentais do Estado de direito democrático». Está em causa o Regulamento (UE) n.º 1215/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de dezembro de 2012, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial, cujas normas têm aplicação direta na ordem jurídica interna.

           

O artigo 25.º do Regulamento n.º 1215/2012, sob a epígrafe “Extensão de competência”, dispõe o seguinte:

 «1. Se as partes, independentemente do seu domicílio, tiverem convencionado que um tribunal ou os tribunais de um Estado-Membro têm competência para decidir quaisquer litígios que tenham surgido ou que possam surgir de uma determinada relação jurídica, esse tribunal ou esses tribunais terão competência, a menos que o pacto seja, nos termos da lei desse Estado-Membro, substantivamente nulo. Essa competência é exclusiva, salvo acordo das partes em contrário.

O pacto atributivo de jurisdição deve ser celebrado:

a) Por escrito ou verbalmente com confirmação escrita;

b) De acordo com os usos que as partes tenham estabelecido entre si; ou

c) No comércio internacional, de acordo com os usos que as partes conheçam ou devam conhecer e que, em tal comércio, sejam amplamente conhecidos e regularmente observados pelas partes em contratos do mesmo tipo, no ramo comercial concreto em questão.

2- Qualquer comunicação por via eletrónica que permita um registo duradouro do pacto equivale à «forma escrita».

3- O tribunal ou os tribunais de um Estado-Membro a que o ato constitutivo de um trust atribuir competência têm competência exclusiva para conhecer da ação contra um fundador, um trustee ou um beneficiário do trust, se se tratar de relações entre essas pessoas ou dos seus direitos ou obrigações no âmbito do trust.

4- Os pactos atributivos de jurisdição bem como as estipulações similares de atos constitutivos de trusts não produzem efeitos se forem contrários ao disposto nos artigos 15.º, 19.º ou 23.º, ou se os tribunais cuja competência pretendam afastar tiverem competência exclusiva por força do artigo 24°.

5. - Os pactos atributivos de jurisdição que façam parte de um contrato são tratados como acordo independente dos outros termos do contrato. A validade dos pactos atributivos de jurisdição não pode ser contestada apenas com o fundamento de que o contrato não é válido».

10. Como densificação prática do comando impresso previsto no nº 4 do artigo 8º da Constituição da República Portuguesa, a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça tem expresso o entendimento segundo o qual as disposições do Regulamento (UE) n.º 1215/2012, incluindo a do artigo 25º, têm prioridade sobre as disposições do Código de Processo Civil.

 As disposições comunitárias dotadas de aplicabilidade direta constituem uma nova fonte normativa da ordem jurídico-constitucional portuguesa, em posição separada relativamente aos atos legislativos internos, podendo afastar estes com base nos princípios da especialidade e da competência prevalente. Ou seja, trata-se de uma prioridade aplicativa do direito comunitário, que deixa imperturbada a validade da norma interna, falando-se, a este propósito, de um princípio da aplicação preferente, que exige a não aplicação da norma jurídica nacional e a aplicação da norma comunitária com ela colidente (cfr. Manuel Gorjão-Henriques, Direito da União, 9.ª edição, Almedina, Coimbra, 2019, p. 359).

 Os tribunais portugueses estão, assim, vinculados a regulamentos europeus e outros instrumentos internacionais que, no seu campo específico de aplicação, prevalecem sobre as normais processuais portuguesas, nomeadamente, no que aqui releva, sobre as normas reguladoras da competência internacional constantes do Código de Processo Civil.  

 Nos termos do Considerando (20) do Regulamento «A questão de saber se o pacto atributivo de jurisdição a favor de um tribunal ou dos tribunais de um Estado-Membro é nulo quanto à sua validade substantiva deverá ser decidida segundo a lei do Estado-Membro do tribunal designado no pacto, incluindo as regras de conflitos de leis desse Estado-Membro».

 Neste quadro normativo-constitucional, a validade substancial da cláusula contratual que atribui competência ao tribunal de um Estado-Membro da UE não pode ser aferida pelo direito processual nacional, mas pelo direito comunitário e pelo direito holandês, não tendo sido invocadas pela Autora quaisquer normas direito holandês que pudessem invalidar esta cláusula, que respeitou os requisitos formais e substanciais estabelecidos no artigo 25.º do Regulamento n.º 1215/2012.

 Assim, se entendeu no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 14-07-2020, em que, para um caso idêntico, se afirmou o seguinte:

« Assim e começando por enfrentar a questão da interpretação desta norma jurídica, importa referir que, segundo a jurisprudência consolidada do Tribunal de Justiça da União Europeia[7], na interpretação das normas sobre competência internacional, como, aliás, da generalidade das normas jurídicas de fonte supra-estadual, vale o princípio da interpretação autónoma relativamente aos ordenamentos jurídicos dos Estados-Membros, tendo em conta o contexto da disposição e o objetivo prosseguido pela regulamentação em causa, e da interpretação uniforme em toda a União Europeia, como forma de assegurar a aplicação uniforme do direito da União em todos os Estados-Membros e o princípio da igualdade entre todos os cidadãos da União.

E ainda de acordo com esta mesma jurisprudência, cuja orientação vale para as normas da Convenção de Bruxelas de 1968, como para o Regulamentos nº 44/2001 e nº 1215/2012, conforme previsto no considerando 34 deste último Regulamento [8], no que concerne à validade de um pacto atributivo de jurisdição, o supra citado art.25º estabelece, essencialmente, dois requisitos de forma e um requisito substancial.

Entre os requisitos formais, conta-se, por um lado, a exigência de celebração por escrito ou por forma equivalente à «forma escrita» [nº 1 als. a), b) e c) e nº 2], que no dizer do acórdão  Hőszig Kft. Contra Alstom Power Thermal Services, de 7 de Julho de 2016 (processo C 222/15, EU:C:2016:525), justifica-se pela «preocupação de proteger a parte contratante mais fraca, evitando que cláusulas atributivas de jurisdição, introduzidas num contrato por uma única das partes, passem despercebidas».

 E, por outro lado, a existência de acordo de vontades entre as partes, pois é, precisamente, este este acordo que justifica o primado concedido, em nome do princípio da autonomia da vontade[9], à escolha de uma jurisdição diferente daquela que teria sido eventualmente competente por força do regulamento, salientando ainda o referido acórdão Hőszig ser dever do juiz chamado a pronunciar-se «analisar, in limine litis, se a cláusula atributiva de jurisdição foi efetivamente objeto de consenso entre as partes, que deve manifestar-se de forma clara e precisa », podendo a prova deste segundo requisito ser extraída do facto do primeiro requisito enunciado ter sido cumprido.

No que diz respeito ao requisito substancial, reportado ao objeto ou conteúdo da cláusula atributiva de jurisdição, exige-se que a mesma incida, com suficiente precisão, sobre uma relação jurídica específica[10]».

Ora, tendo em conta as precedentes considerações bem como o teor cláusula 21.4. constante do contrato escrito denominado Grower Agreement 2015 (376-2015) celebrado entre a autora Campina Produção Agrícola, Lda, e a ré Driscoll’S Of Europe B.V. e, por via da qual ficou estabelecido que «(…) as Partes atribuem jurisdição exclusiva aos tribunais holandeses competentes … . (…)», impõe-se concluir que esta cláusula atributiva de jurisdição cumpre todos os requisitos estabelecidos no art. 25º, nº 1 e 2 do Regulamento nº 1215/2012.

E porque a mesma reporta-se a um contrato relativo a matérias não abrangidas pela Secção 3 [11], 4 [12] e 5 [13] do Regulamento nº 1215/2012,  dúvidas não se suscitam  quanto  à sua validade substancial, que, aliás, nem sequer foi questionada pelas partes, tendo, inclusivamente, as rés demonstrado nos autos que não existe qualquer norma de direito holandês que comine o pacto atributivo de jurisdição como substancialmente nulo». 

11. Diferentemente do que parece decorrer do acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, de 14-07-2020, que admitiu tratar-se de uma situação de litisconsórcio necessário passivo, entendemos que a situação dos autos, conforme decorre do teor da petição inicial, configura um caso de responsabilidade solidária das duas rés, tal como concluiu o acórdão da Relação de Évora, de 07-11-2019, no processo nº 447/18.6T8FAR.E1 (acórdão fundamento).  Fica, assim, afastado o argumento alegado pela autora de que o pacto atributivo de competência aos tribunais holandeses, para conhecer do pedido em relação à 2.ª ré, constituiria uma denegação de justiça, por poder implicar, como consequência, que cada uma das rés, demandadas em tribunais distintos, acabasse a ser absolvida da instância por ilegitimidade. Apesar de este argumento nos levar, em tese, a repensar a orientação jurisprudencial refletida no acórdão de 14-07-2021, pelas consequências drásticas que poderia provocar para os interesses dos litigantes, entendemos que, na verdade, o que decorre dos termos da petição inicial não é um litisconsórcio necessário passivo, mas uma responsabilidade solidária das duas rés, por serem membros do mesmo grupo societário e adotarem práticas comerciais concertadas. A identidade da prestação, a pluralidade de vínculos e a comunhão de fim, presentes no caso vertente, são critérios que costumam ser apresentados como os traços característicos da obrigação solidária, sobretudo no âmbito da solidariedade passiva, a qual pode ter fonte legal (artigo 100.º do Código Comercial) ou convencional (artigo 513.º do Código Civil), podendo neste caso a convenção de solidariedade ser feita tacitamente (artigo 217.º, n.º 1, 2.ª parte, do Código Civil). Nos termos do artigo 519º do Código Civil, o credor tem o direito de exigir de qualquer dos devedores toda a prestação e a lei provisiona ainda a solução para o caso de insolvência ou impossibilidade de cumprimento de um dos devedores no artigo 526º do mesmo diploma. Por outro lado, a solidariedade passiva não permite ao devedor, nem opor o benefício da divisão, nem escusar-se a cumprir por inteiro, quando o credor lhe exija que cumpra (artigos 512º e 518º do Código Civil). De acordo com o regime da solidariedade, o credor tem o direito de exigir a prestação por inteiro a qualquer dos devedores, não se tornando necessário acionar todos os sujeitos da relação obrigacional. Nada impede, pois, que no caso de ser responsabilizada a 1.ª ré nos tribunais portugueses, esta responda pela totalidade dos danos, exercendo depois direito de regresso sobre a 2.º ré, se satisfez o direito do credor além da parte que lhe competia (artigo 524.º do Código Civil).

Subscrevemos, pois, a tese do Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 07-11-2019, proferido no processo 447/18.6T8FAR.E1, que qualifica juridicamente o alegado na petição inicial – que termina com pedidos de condenação solidária das rés – como uma situação de solidariedade obrigacional, concluindo que, no regime das obrigações solidárias, por via do critério da responsabilidade substantiva, está sempre acautelado o efeito útil normal da decisão, afastando, por isso, a tese do litisconsórcio passivo necessário. Como se afirma no citado acórdão, «Aqui não estamos perante um quadro de interesse indivisível e incindível de vários contitulares do interesse subjectivo passivo e a discussão em causas separadas poderá não conduzir a decisões divergentes acerca do objecto. E mesmo que uma das partes fosse condenada e a outra absolvida os interesses substantivos dos Autores não resultariam atingidos de forma insustentável. Existe uma diferença entre a composição definitiva do objecto da causa e a identificação do leque de eventuais responsáveis pelo pagamento da indemnização contratual reclamada. Se é certo que a presença da sociedade mãe e da sua representante em território nacional pode aumentar as possibilidades de sucesso da acção e, concomitantemente, favorecer as operações de cobrança, a mesma não se situa na esfera de protecção do mecanismo da legitimidade processual plural. Assim, em suma, como conclusão final, nas obrigações solidárias não é necessária a intervenção em juízo de todos os devedores devido à circunstância do regime substantivo consagrar direitos do credor e mecanismos de satisfação dos interesses deste que não são impeditivos da decisão de produzir o seu efeito útil normal». Acresce que para assegurar o efeito das decisões judiciais em matéria civil e comercial com incidência transfronteiriça, o Regulamento prevê medidas de cooperação judiciária entre os tribunais dos Estados-Membros, de forma a tornar os processos menos morosos e dispendiosos, a evitar contradições e a facilitar o reconhecimento e execução das decisões judiciais proferidas pelos tribunais de um Estado-Membro no território de outro Estado-Membro com ela conexionado.   

12. Por último, deve ainda dizer-se que a decisão quanto ao pressuposto processual da competência internacional dos tribunais portugueses não depende de o processo baixar ao Tribunal da Relação, como defende a recorrente, para apuramento de factos relativos à relação jurídica entre as partes do processo e aos direitos e obrigações assumidos por cada uma delas. Para o efeito, bastam os factos alegados, independentemente de virem a ser ou não provados, pelo que não se torna necessário qualquer ampliação da matéria de facto ao abrigo do artigo 682.º, n.º 3, do CPC. O que releva, para o efeito de determinação do tribunal competente, é a configuração da situação jurídica dos autos na petição inicial, independentemente do que se venha a provar. A questão do tribunal competente tem de ficar decidida, por razões de certeza e de segurança jurídica, numa fase inicial do processo, devendo ser deduzida da causa de pedir e do pedido, sem ficar dependente da fase da instrução. Trata-se, pois, de uma questão prévia, destacada do objeto do processo, funcionando logicamente como uma questão preliminar relativamente à admissibilidade da discussão das partes da relação material controvertida. No mesmo sentido, se afirma no considerando (15) do Regulamento n.º 1215/2012 que «As regras de competência devem apresentar um elevado grau de certeza jurídica». Faz parte dessa noção de segurança que a autonomia das partes quanto à escolha do tribunal competente seja respeitada, conforme se conclui do Considerando (19), segundo o qual, «A autonomia das partes num contrato que não seja de seguro, de consumo ou de trabalho quanto à escolha do tribunal competente, no caso de apenas ser permitida uma autonomia limitada de escolha do tribunal, deverá ser respeitada sem prejuízo das competências exclusivas definidas pelo presente regulamento».

 13. Na situação concreta destes autos, o documento escrito, de teor constitutivo ou confirmativo, que consagra o acordo de vontades na celebração de um pacto atributivo de jurisdição, nos precisos termos constantes da al. a) do nº 1 do artigo 25º do Regulamento n.º 1215/2012, não padece de qualquer invalidade formal ou substancial. 

Conclui-se, pois, que, tendo sido cumprida a formalidade ad substantiam prevista no regulamento e não existindo um quadro de litisconsórcio necessário que implique a derrogação do ajustado entre as partes para o estabelecimento de foro judicial, nem subsistindo qualquer razão de ordem pública ou de interesse nacional, a cláusula atributiva da competência dos tribunais holandeses em relação à Driscoll’s Of Europe prevalece sobre o direito processual interno, designadamente sobre o artigo 94.º do CPC.

Assim sendo, os tribunais portugueses são absolutamente incompetentes para apreciação da causa em relação à segunda ré, Driscoll’s Of Europe.

 

           

B – Da compatibilidade com a lei da decisão de mérito no saneador-sentença

1. O tribunal de 1.ª instância, após audição das partes para se pronunciarem, proferiu saneador-sentença, no âmbito do qual se conheceu do mérito e se decidiu julgar improcedente a ação e absolver a Ré Driscoll’S Portugal – Produção e Comercialização de Frutas, Unipessoal, Lda., dos pedidos deduzidos pela Autora Geprocea I – Serviços de Engenharia, Lda.

2. O Tribunal da Relação ….. questionado sobre a legalidade deste procedimento, entendeu que a decisão do tribunal de 1.ª instância foi proferida em conformidade com a lei processual, com o seguinte fundamento:

«6.2. A alínea b) do nº 1 do artigo 595º do Código de Processo Civil habilita o Tribunal a conhecer em sede de saneador do mérito da causa, sempre que o estado do processo permitir, sem necessidade de mais provas, a apreciação, total ou parcial, do ou dos pedidos deduzidos ou de alguma excepção peremptória.

(…)

6.3. Ora, no caso em apreço, concordamos com a decisão recorrida, porquanto entendemos que os factos já assentes conduzem à improcedência da acção, não tendo os factos ainda controvertidos, em face da concreta causa de pedir formulada, a virtualidade de poderem fundamentar a condenação da 1ª R. nos pedidos contra ela também deduzidos.

A causa de pedir que a recorrente alega, no recurso, ter apresentado não é propriamente aquela que invocou na petição inicial.

No recurso repisa a tese de que estamos perante uma relação complexa proveniente de um contrato verbal (que supera ou que foi parcialmente transcrito no contrato escrito; este «não esgota, de facto, toda a relação jurídica vigente entre as partes»). Insiste que o tribunal «deveria ter dado como provada a existência de uma relação contratual complexa, que envolvia, de um lado, a Autora, e do outro, ambas as Rés, relação esta, em termos subjetivos e objetivos, apenas parcialmente reduzida a escrito aquando da celebração do acordo escrito entre a Autora e a 2.ª Ré, razão pela qual a 1.ª Ré é responsável nos termos peticionados pela Autora ou, subsidiariamente, ao abrigo do regime da conjunção.

Porém, não lhe assiste razão.

Senão vejamos:

Como é sabido, na petição inicial o autor deve expor os factos essenciais que constituem a causa de pedir, as razões de facto e de direito que servem de fundamento à acção e, bem assim, formular o seu pedido (cf. artigo 5.º, n.º 1, 552.º, n.º 1, alíneas d) e e), todos do Código de Processo Civil).

Entende-se por causa de pedir o acto ou facto jurídico concreto em que o autor se alicerça para formular o seu pedido, ou, por outras palavras, o facto jurídico concreto de que emerge o direito a que o autor se arroga titular.

No caso em apreço, verifica-se que, com relevo para a delimitação da causa de pedir na presente demanda, a recorrente autonomizou, na sua petição inicial, um capítulo específico - “II- Dos Factos” -, no qual começa por elaborar um enquadramento factual preliminar,  descrevendo os antecedentes negociais estabelecidos entre as partes e, bem assim, as obrigações principais que viriam a integrar o conteúdo essencial do negócio jurídico celebrado entre a Recorrente e a 2.ª R., passando de seguida a descrever, de forma detalhada e pormenorizada, o clausulado emergente do Contrato de 25 de Abril de 2013, seguida da alegação dos factos relacionados com a execução do contrato. E, na parte III e IV, invoca a nulidade das cláusulas do contrato, em especial da cláusula 9.1.

Ora, como se diz na sentença, todas as pretensões formuladas pela A. têm por fundamento vicissitudes ou circunstâncias relativas ao contrato e/ou à sua execução, sendo a própria A. que alega que a Ré Driscoll'S Portugal - Produção e Comercialização de Frutas, Unipessoal, Lda., actua em representação da Driscoll'S Of Europe B.V., estando em causa 2 empresas distintas e não sendo invocada qualquer situação de domínio duma empresa relativamente à outra, invocando que a Ré Driscoll'S Portugal - Produção e Comercialização de Frutas, Unipessoal, Lda., estabelece e mantem contactos com potenciais e actuais parceiros produtores, mas nunca invoca que negoceia ou celebra, em nome próprio ou por conta de outrem, qualquer contrato, tendo toda a causa de pedir o incumprimento das cláusulas escritas do contrato celebrado com a Driscoll'S Of Europe B.V., e no qual a 1ª R., Driscoll’S Portugal – Produtos e Comercialização de Frutas, Unipessoal, Lda., não interveio.

Acresce que não sendo alegado que a ora Ré se vinculou a qualquer cumprimento, tanto mais que resulta provado que apenas a Driscoll'S Of Europe B.V. detém o direito de conceder sublicenças para plantar, colher e comercializar frutos vermelhos, com a marca Driscoll's, marca essa que é detida por uma outra sociedade de direito holandês denominada Delight Global Holdings C.V., não resta dúvida que a aqui 1ª Ré apenas actua como representante dessa empesa, não agindo em nome próprio.

De facto, não obstante a A. alegar que mantém relações comerciais com ambas as RR., referir que passa indistintamente por ambas as RR. a generalidade dos contactos e acordos acerca da actividade de produção da A., afirma com toda a clareza no artigo 18 da petição inicial que, embora seja a 2ª R. a detentora dos direitos de propriedade intelectual das plantas que são vendidas à A., “todo o processo operacional e negocial respeitante ao território português – onde se integra a Autora – é conduzido e coordenado por ambas as Rés, actuando a 1.ª Ré enquanto verdadeira representante da 2.ª Ré para o território nacional”. (sublinhado nosso)

Deste modo, e tendo presente que as pretensões formuladas pela A. têm por base o contrato escrito referido em 3) dos factos provados, no qual a 1ª R. não interveio, não tendo assumido nele qualquer obrigação, e não sendo alegada qualquer relação contratual estabelecida entre a 1ª R. e a A., não se nos afigura viável que a 1ª R. possa ser responsabilizada por qualquer prejuízo dano sofrido pela A. na execução do dito contrato.

A hipótese que se poderia colocar era a de a A. actuar em representação da 2ª R., como se indicia na petição inicial, mas então, a responsabilidade pelos actos por esta praticados recairia sobre a A., nos termos do n.º 1 do artigo 800º do Código Civil [isto sem prejuízo de ter de se indagar se em face do clausulado no contrato em causa era aplicável a lei portuguesa ou a holandesa].

No mais, concordamos igualmente com a decisão recorrida no que se reporta à questão do pedido de condenação solidária das RR., pois, como ali se refere, na situação dos autos, não resulta da lei, nem foi alegado que houve acordo nesse sentido para que possa haver responsabilidade solidária entre a Ré Driscoll'S Portugal -Produção e Comercialização de Frutas, Unipessoal, Lda., e a Driscoll'S Of Europe B.V., pelo que não se vislumbra a que título poderia, ainda que houvesse lugar a condenação da ora Ré, a mesma ser solidária.

6.4. Invoca ainda a recorrente, em prol da sua pretensão, a prova documental junta aos autos, designadamente os documentos que identifica nas alegações.

Porém, os documentos são meios de prova, destinam-se a provar factos alegados e não servem para suprir a falta de alegação.

6.5. Face ao exposto, entendemos que o tribunal a quo andou bem em decidir logo no saneador, pois nada justificava que os autos prosseguissem para julgamento.

Ainda que se provassem os factos que permaneciam controvertidos, a decisão final a proferir sempre seria a de absolvição da R., como se decidiu no saneador-sentença».


3. Na apreciação de mérito as instâncias deram como assente a seguinte factualidade:

1) A Autora Geprocea I - Serviços de Engenharia, Lda., é uma sociedade comercial por quotas, cujo objecto social consiste na gestão de projectos de produção agrícola, na produção hortofrutícola e na prestação de serviços relacionados com a actividade agrícola, a investigação e desenvolvimento de produtos, sistemas e serviços ligados à produção agrícola e a prestação de serviços de logística incluindo a gestão de frota, aluguer de máquinas, aluguer de equipamentos e gestão de stocks.

2) A Autora Geprocea I - Serviços de Engenharia, Lda é associada da organização de produtores Madre Fruta - Centro de Venda de Hortofrutícolas, Lda, sociedade comercial por quotas, reconhecida como organização de produtores do Sector de “Frutas e Produtos Hortícolas”, à qual foi atribuído o n.º 55, conforme o título de reconhecimento, emitido com data de 28 de Março de 2016, pelo Director Regional de Agricultura, Florestas e Desenvolvimento Rural, em conformidade com o disposto na Portaria n.º 169/2015, de 4 de Junho.

3) A Ré Driscoll'S Portugal - Produção e Comercialização de Frutas, Unipessoal, Lda é uma sociedade comercial de direito português, constituída no ano 2004, que tem como objeto social a produção e comercialização de frutas e tem a sua sede social em Beja, sendo o seu capital social detido a 100% pela sociedade comercial norte-americana Driscoll Internacional Inc.

4) A Driscoll'S Of Europe B.V. é uma sociedade comercial de direito holandês, inscrita no RNPC sob o n.º 980492408, com sede em Bijster 26, 4817 HX Breda, Holanda e que detém o direito de conceder sublicenças para plantar, colher e comercializar frutos vermelhos, com a marca Driscoll's, marca essa que é detida por uma outra sociedade de direito holandês denominada Delight Global Holdings C.V., com domicílio nas Ilhas Cayman, em Intertrust Cayman Island, 190 Elgin Avenue, George Town, Grand Cayman KYl-9005.

5) A Autora Geprocea I - Serviços de Engenharia, Lda e a Driscoll'S Of Europe B.V. celebraram, em 25 de Abril de 2013, um acordo escrito denominado Grower Agreement 2013 (316-2013) relativo à produção e comercialização de frutos vermelhos, tal como resulta de fls. 180 a 305, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

4. O tribunal recorrido entendeu que o alegado pela recorrente no recurso não coincidia com os factos invocados na petição inicial, em que apenas foi alegado como causa de pedir o incumprimento das cláusulas escritas do contrato celebrado entre a autora e a Driscoll’s Of Europe, no qual a 1.ª ré não interveio. Entende que esta atuou como representante da Driscoll’s Of Europe, e, em consequência, não agiu em nome próprio, não assumindo, pois, qualquer responsabilidade nos incumprimentos imputados à 2.ª Ré, pelo que a absolveu do pedido no despacho saneador por considerar que dispunha de todos os elementos necessários para tal e que, mesmo que o processo prosseguisse e se provassem os factos alegados na petição inicial, a solução não podia ser outra.

5. Nos termos do artigo 595.º, n.º 1, al. b), do CPC, o despacho saneador destina-se a «Conhecer imediatamente do mérito da causa, sempre que o estado do processo permitir, sem necessidade de mais provas, a apreciação, total ou parcial, do ou dos pedidos deduzidos ou de alguma exceção perentória». Tem entendido a doutrina que a faculdade de conhecimento antecipado do mérito da causa, antes da instrução e do julgamento, é uma faculdade que só se aplica quando não houver matéria controvertida suscetível de justificar a elaboração de temas de prova e a realização de audiência final, e que exige um prudente juízo do julgador, que implica ponderar os riscos de essa decisão vir a ser anulada por um tribunal superior (cfr. Abrantes Geraldes/Paulo Pimenta/Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, 2.ª edição, 2020, pp. 721-722). A jurisprudência deste Supremo Tribunal (Acórdão de 09-02-2010, proc. n.º 1176/03.0TCSNT.L1.S1) tem considerado que o juízo de insuficiência factual para conhecimento do mérito no despacho saneador constitui uma questão de direito por implicar “(…) a utilização de critérios jurídicos tendentes a averiguar se os factos, ou determinados factos, integram a previsão de certas normas jurídicas, à luz da relação entre a causa de pedir e o pedido” (…), considerando que «O critério a utilizar em ordem a ajuizar sobre a possibilidade de conhecimento imediato do mérito da causa, sem necessidade de mais provas, como previsto no referido art. 510º-b), há-de traduzir-se na qualificação jurídica do pedido e dos factos articulados, mormente dos que integram a causa de pedir, ficcionando como provada toda essa factualidade e fazendo repercutir as possíveis qualificações jurídicas por ela comportadas nas pretensões formuladas, na respectiva relação de causa e efeito». No mesmo sentido, se tem orientado a jurisprudência das Relações, como é visível no já citado acórdão da Relação de Évora, de 07-11-2019 (Proc. n.º 447/18), onde se sumariou que: « O conhecimento imediato do pedido em sede de despacho saneador apenas deve ocorrer se a questão for unicamente de direito, se puder ser já decidida com a necessária segurança e, sendo de direito e de facto, se o processo contiver todos os elementos para uma decisão conscienciosa, segundo as várias hipóteses plausíveis aplicáveis ao caso concreto».

6. Ora, analisada a petição inicial, dela se deduz que os factos invocados não se reportam apenas ao incumprimento do contrato celebrado entre a ré Driscoll Of Europe e a autora, mas também à relação entre todos os sujeitos processuais (a relação entre a autora e cada uma das rés; a relação das rés entre si) e à contextualização destas relações no mercado de produção e de comercialização da fruta gerido por uma multinacional. Com efeito, afirma-se nos números 15 a 20 da petição inicial que a 1.ª e 2.ª Rés mantêm relações comerciais com a Autora, as quais, resumidamente, assentam, por um lado, no fornecimento pelas Rés à Autora de plantas para cultivo de frutos vermelhos e, por outro, na compra pelas Rés à Autora dos frutos vermelhos por esta produzidos (n.º 15). Ademais, como resulta do n.º 16,  a 1.ª e 2.ª Rés, que atuam de forma concertada e integrada no mercado português, integram o grupo multinacional norte-americano Driscoll’s, o qual é proprietário da maior produtora mundial de frutos vermelhos – a RAC (Reiter Affiliated Companies) – sendo o líder mundial de produção e comercialização de frutos vermelhos – documentos n.ºs 11 e 12. Nos termos do artigo 17., a Autora e as Rés mantêm relações comerciais relacionadas com a atividade de produção e comercialização de frutos vermelhos. E, muito embora seja a 2.ª Ré a detentora dos direitos de propriedade intelectual das plantas que são vendidas à Autora, todo o processo operacional e negocial respeitante ao território português – onde se integra a Autora – é conduzido e coordenado por ambas as Rés, atuando a 1.ª Ré enquanto verdadeira representante da 2.ª Ré para o território nacional (n.º 18). Passando indistintamente por ambas as Rés a generalidade dos contactos e acordos acerca da atividade de produção da Autora (n.º 19); De tal modo que, para a Autora, negociar com a 1.ª ou com a 2.ª Ré, é indiferente, dado que o seu interlocutor único é, na verdade, a Driscoll’s – enquanto empresa multinacional –, sendo quer a 1.ª Ré como a 2.ª Ré entidades jurídicas instrumentais na implementação da estratégia global do grupo Driscoll’s (n.º 20) – sublinhados nossos. Veja-se, ainda, sobre a relação entre a 1.ª ré e a autora o alegado nos n.ºs 34, 35, 86, 87, 89, 94 a 98, 138 a 140, 142, 147 a 149, 153 a 155, 157, 158, 207 a 209, 211, 216, 219 e 232, 249 a 252 da petição inicial.

7. Estes factos, invocados na petição inicial, e que se referem à caraterização da relação jurídica e económica entre todos os intervenientes têm de ser submetidos a prova, pois a sua demonstração pode implicar uma solução diferente da decidida pelo acórdão recorrido no despacho saneador. A este propósito, tem de se concluir que a forma como as instâncias qualificaram juridicamente estas relações contratuais, suportada apenas no contrato junto aos autos, é insuficiente e não permite a antecipação da decisão do mérito no despacho saneador, porque deixa por investigar factos controvertidos essenciais para o apuramento da verdade. Deve, pois, ter lugar a produção de outros meios de prova, que se podem vir a revelar decisivos para a questão de facto e para a questão de direito. Não colhe assim, por falta de suporte factual, o argumento de que a 1.ª ré é alheia à relação contratual entre a autora e a ré Driscoll Of Europe, por não ser parte, formalmente, do contrato celebrado em 25 de abril de 2013 entre a autora e a 2.ª ré, mas apenas representante desta. A circunstância de a Autora na petição inicial atribuir à 1.ª ré o estatuto de representante, e que condicionou a fundamentação do acórdão recorrido, também não é decisiva, pois os tribunais não estão vinculados à qualificação jurídica feita pelas partes nos articulados, antes têm, pelo contrário, competências oficiosas para escolher a norma aplicável e decidir de direito, nos termos do artigo 5.º, n.º 3, do CPC.

Sendo assim, não pode excluir-se que a qualificação jurídica da relação contratual dos autos, seja, conforme alegado pela autora, uma relação complexa e tripartida, moldada por outros contratos verbais ou escritos, em que a 1.ª ré assumiu obrigações para com a autora semelhantes às expressamente assumidas pela 2.ª ré no contrato escrito, tendo de ser investigados e ponderados os factos alegados de acordo com os quais ambas as rés pertencem ao mesmo grupo liderado por uma multinacional norte-americana, a Driscoll’s. O Direito Contratual moderno deixou de ter como paradigma um contrato isolado entre duas partes, que negoceiam as suas cláusulas em condições de liberdade e de igualdade. Cada vez surgem mais casos na realidade económico-social de interligação entre contratos e de contratos de facto baseados em relações de poder, que não podem escapar ao escrutínio dos tribunais.

8. Toda a fundamentação do acórdão recorrido baseia-se apenas em cinco factos – referentes à situação registal comercial das empresas envolvidas e ao contrato escrito sobre a produção e comercialização de frutos vermelhos - manifestamente insuficientes para abarcar a complexidade das situações e relações jurídicas contratuais efetivamente existentes, conforme consta das alegações. As conclusões jurídicas feitas pelas instâncias resultam de uma simplificação da realidade, com base no contrato escrito junto aos autos (Doc. n.º 13), e de um raciocínio abstrato e lógico-dedutivo, assim retirando ao pedaço de vida apresentado em tribunal o seu pulsar próprio e transformando o direito num encadeamento de conceitos que descarateriza e obscurece a realidade jurídica que a autora apresenta para análise e solução. Está em causa um método jurídico decisório que apresenta riscos, pelo que não pode este Supremo Tribunal, nas circunstâncias específicas do caso dos autos, subscrevê-lo. É certo que não se sabe se os factos alegados são verdadeiros ou se vão reunir prova, mas a parte deve ser admitida a discuti-los, a tentar prová-los e a defender em julgamento o que considera serem os seus direitos e as suas razões.

No acórdão-fundamento (Acórdão da Relação de Évora, Proc. n.º 447/18.6), reportado a uma situação idêntica à destes autos, concluiu-se também no sentido de que não existem no processo elementos factuais para promover uma decisão conscienciosa e completa relativamente a todas as questões suscitadas, uma vez que as questões de facto que foram utilizadas na construção jurídica são controvertidas e não estão abrangidas pela força probatória de qualquer meio de prova.   

Torna-se, pois, necessário indagar os factos através da análise pormenorizada de todos os documentos e comunicações entre as partes juntas aos autos, bem como produzir prova em audiência de julgamento, para aferir com segurança qual a relação jurídica efetiva entre todas as pessoas coletivas destes autos, bem como a natureza, a configuração e o conteúdo negocial, elementos suscetíveis de alterar o sentido decisório tomado.

É determinante interpretar as declarações negociais dentro do seu contexto económico-social e indagar quais as relações jurídicas entre ambas as rés, se existiu ou não um acordo, não reduzido a escrito entre a autora e a 1.ª ré, qual a participação da 1.ª ré na formação e execução do contrato escrito, bem como o eventual incumprimento desse acordo por parte da 1.ª Ré. Por todos estes motivos, torna-se necessário, para a apreciação do mérito, a instrução da causa e a audiência final de discussão e julgamento.

 9. Julgamos também que, diferentemente do que entendeu o acórdão recorrido, não se verificou qualquer incumprimento do ónus de alegação a cargo da autora. A alegação constante da petição inicial sobre a relações entre as duas rés e a autora é suficiente para equacionar uma relação jurídica de domínio de uma sociedade em relação a outras, bastando, para o efeito, que as «(…) alegações, (…) embora reproduzindo termos que integram certa vertente jurídica, sejam de uso corrente e permitam compreender facilmente o seu alcance, tanto mais que sempre existirá a possibilidade de serem desdobradas na sentença de modo a que seja conseguida uma melhor concretização da realidade subjacente ao litígio. Ponto é que a alegação se apresente de molde a que seja substancialmente acautelado o exercício do contraditório e, através dela, possa ficar circunscrita a realidade que será objeto de apreciação jurisdicional, para efeitos de delimitação objetiva do caso julgado material» (cfr. Abrantes Geraldes/Paulo Pimenta/Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Coimbra, Almedina, 2020, p. 28).   Expressões, como a de “representante”, utilizadas na petição inicial para caraterizar a relação jurídica entre a 1.ª e a 2.ª Ré, são polissémicas, tanto podem ter um pendor mais técnico, como um sentido amplo mais ligado à vida corrente, o que impõe que sejam interpretadas à luz do que vier a resultar dos factos provados e não provados, e do contexto negocial. Nesta matéria,  prevalece o novo paradigma do Código de Processo Civil de 2013 que atribui ao juiz poderes oficiosos para proceder à qualificação jurídica dos factos e à determinação da norma aplicável, nos termos do artigo 5.º, n.º 3, do CPC, não estando pois o tribunal vinculado pela qualificação jurídica feita pelas partes (cfr. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 14-12-2020, proferido no processo n.º 12223/16.6T8PRT.P1.S1).

No sentido de competir ao juiz corrigir a qualificação jurídica invocada pelas partes e de suprir eventuais imperfeições dos articulados, veja-se o acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, de 04-05-2010, proc. n.º 2417/07.0TBCBR.C1.S1, onde se sumariou o seguinte:

«I - Se, do conteúdo do articulado da autora, se extrai que esta radica a indemnização peticionada numa desmatação efectuada pelo réu e se, apesar de não ter alegado factos susceptíveis de caracterizar, concretamente, o tipo de contrato celebrado com o réu, parece não sofrer dúvidas que o mesmo se enquadra no domínio de um negócio jurídico susceptível de enquadramento no contrato de prestação de serviço – arts. 405.º e 1154.º do CC –, consequentemente, a indemnização por aquela peticionada, relativa às consequências que resultaram da não retirada pelo réu dos produtos lenhosos objecto da desmatação, transporte esse que, segundo a autora, fazia parte do contrato, mas não foi por aquele efectuado, apenas pode obter acolhimento no âmbito do preceituado nos arts. 798.º e 799.º do CC.

II - Embora o articulado da autora não prime pela clareza e perfeição, ainda que mínima, quanto à exposição dos factos em que alicerça o pedido indemnizatório que vem formular, competindo exclusivamente ao julgador a qualificação jurídica dos factos alegados e provados – art. 664.º, 1.ª parte, do CPC –, os autos deverão prosseguir os seus normais termos, com a consequente selecção da matéria de facto, no sentido do apuramento da responsabilidade do réu quanto ao ressarcimento dos quantitativos peticionados, que a autora alega ter satisfeito – art. 729.º, n.º 3, do CPC».


10. Assim, baixe o processo ao tribunal de 1.ª instância, para que sejam enunciados os temas de prova, conforme estipulado no artigo 596.º do CPC, e prossiga o julgamento, fixando-se a matéria de facto provada e não provada acerca da relação jurídica existente entre a autora e a 1.ª ré, e desta com a Driscoll Of Europe, bem como o papel da empresa Driscoll’S multinacional norte-americana na gestão destas relações jurídicas. Do mesmo modo se proceda em relação ao eventual incumprimento, pela 1.ª ré Driscoll Portugal, de obrigações contratualmente assumidas perante a autora, fixando-se também os factos provados e não provados que sejam suscetíveis de integrar os pressupostos da responsabilidade civil contratual desta empresa e o apuramento do preço em falta ou, subsidiariamente, do quantum indemnizatório devido.

11. Em consequência, revoga-se o acórdão recorrido nesta parte e ordena-se o prosseguimento dos autos para discussão e apuramento dos factos controvertidos.


12. Anexa-se sumário elaborado de acordo com o artigo 663.º, n.º 7, do CPC:

I – Os tribunais portugueses estão vinculados a regulamentos europeus e outros instrumentos internacionais que, no seu campo específico de aplicação, gozam de prevalência aplicativa sobre as normais processuais portuguesas, nomeadamente sobre as normas reguladoras da competência internacional constantes do Código de Processo Civil.

II – Como densificação prática do comando impresso previsto no nº 4 do artigo 8º da Constituição da República Portuguesa, a jurisprudência do Supremo Tribunal tem expressado o entendimento que as disposições do Regulamento (UE) n.º 1215/2012, incluindo a constante do artigo 25º, têm prioridade aplicativa sobre as disposições do Código de Processo Civil.

III – O conhecimento imediato do pedido em sede de despacho saneador apenas deve ocorrer se a questão for unicamente de direito, se puder ser já decidida com a necessária segurança e, sendo de direito e de facto, se o processo contiver todos os elementos para uma decisão conscienciosa, segundo as várias hipóteses plausíveis aplicáveis ao caso concreto.

IV – O Direito Contratual moderno deixou de ter como paradigma um contrato isolado entre duas partes, que negoceiam as suas cláusulas em condições de liberdade e de igualdade. Cada vez surgem mais casos, na realidade económico-social, de interligação entre contratos e de contratos de facto baseados em relações de poder, que não podem escapar ao escrutínio dos tribunais.


III – Decisão

Pelo exposto, decide-se conceder parcialmente a revista, revogando-se parcialmente o acórdão recorrido e o despacho-saneador na parte em que conheceu do mérito, e, em consequência:

a) Confirma-se a absolvição da instância da Ré Driscoll’S Of Europe B.V., por incompetência absoluta dos tribunais portugueses para conhecer do pedido;

b) Reenvia-se o processo ao tribunal de 1.ª instância para elaboração dos temas de prova e prosseguimento do julgamento em relação à Ré Driscoll’S Portugal.

Custas a cargo da Autora e da 1.ª Ré, Driscoll’S Portugal, em partes iguais.


Lisboa, 7 de outubro de 2021


Maria Clara Sottomayor (Relatora)

Pedro de Lima Gonçalves (1.º Adjunto)

Maria Fátima Gomes (2.ª Adjunta)