Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
8/20.0MALGS.E1.S1
Nº Convencional: 3.ª SECÇÃO
Relator: PEDRO BRANQUINHO DIAS
Descritores: HOMICÍDIO QUALIFICADO
PROFANAÇÃO DE CADÁVER
PECULATO
PODERES DA RELAÇÃO
MATÉRIA DE FACTO
VÍCIOS DO ART.º 410 DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL
CO-AUTORIA
REQUISITOS
IN DUBIO PRO REO
MEDIDA DA PENA
PENA ÚNICA
REJEIÇÃO
PROCEDÊNCIA PARCIAL
Data do Acordão: 07/03/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO EM PARTE
Sumário :
I. Como é conhecido, as relações conhecem de facto e de direito (art. 428.º, do C.P.P.). A doutrina e a jurisprudência do Supremo Tribunal têm-se pronunciado, com alguma frequência, sobre o conhecimento da matéria de facto pelos Tribunais da Relação, sendo possível fazer-se um breve apanhado, a este propósito, sobre algumas ideias base.

Assim, o reexame da matéria de facto pela segunda instância não corresponde a um novo julgamento, visando, antes, a correção de erros de julgamento.

Por sua vez, a sindicância dos erros de julgamento exige que o tribunal de recurso aprecie de forma completa os concretos fundamentos do recurso. Contudo, o recurso em matéria de facto não pressupõe uma reapreciação total do complexo da prova produzida que serviu de fundamento à decisão recorrida, mas tão só uma reapreciação autónoma sobre a razoabilidade da decisão proferida pelo tribunal a quo quanto aos pontos de facto que o recorrente considere incorretamente julgados.

Nesta conformidade, os Tribunais da Relação podem alterar a matéria de facto fixada na primeira instância, eliminando determinados pontos da matéria de facto provada e não provada, como também podem aditar ou alterar a redação de pontos dados como assentes.

II. A jurisprudência do Supremo Tribunal tem vindo a afirmar, praticamente una voce, que, relativamente aos recursos interpostos para o STJ de acórdãos de Tribunais da Relação, que decidiram já recursos anteriores, não podem os vícios previstos nas diferentes alíneas do citado art. 410.º n.º 2 servir de fundamento ao recurso, podendo, porém, serem, oficiosamente, conhecidos pelo Supremo, isto é, não a pedido dos recorrentes, mas tendo o STJ a possibilidade de, ex officio, conhecer dos mesmos desde que resultem do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugado com as regras da experiência comum.

Na situação concreta, analisada, em toda a sua extensão, a decisão recorrida, não detetamos do respetivo texto qualquer dos mencionados vícios, nomeadamente, a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e o erro notório na apreciação da prova invocados pela recorrente.

Pelo contrário, constata-se a clareza de todo o seu texto e do sentido da decisão, revelando-se um texto totalmente lógico, bem estruturado e devidamente fundamentado, cumprindo, na íntegra, os imperativos legais e constitucionais.

A alteração da matéria de facto que teve lugar, encontra-se bem justificada e suportada pelas provas especificadas nos recursos, provas cuja avaliação, em primeira instância, o Tribunal da Relação exaustivamente reanalisou e censurou, de uma forma sempre objetivada e precisa.

III. De acordo com a doutrina mais relevante, constituindo a coautoria, prevista no art. 26.º, do Cód. Penal, a execução em conjunto dos factos - havendo um “condomínio do facto” (Figueiredo Dias) - implica a existência de uma decisão conjunta e de uma execução conjunta em que cada coautor toma parte direta na execução, realizando cada um a sua tarefa decorrente de uma “divisão de trabalho” prévia.

Para se definir uma decisão conjunta basta a existência da consciência e vontade de colaboração de várias pessoas na realização de um tipo legal de crime (“juntamente com outro ou outros”). É evidente que na sua forma mais nítida, como refere Faria Costa, tem de existir um verdadeiro acordo prévio – podendo ser tácito – que tem igualmente de se traduzir numa contribuição objetiva conjunta para a realização típica.

Na coautoria é possível, no entanto, que cada coautor pratique um ato de execução distinto, que alguns coautores pratiquem atos de execução idênticos e, no limite, que todos os coautores pratiquem, por si, todos os mesmos atos de execução (Helena Morão).

Não é, este modo, indispensável que todos os agentes intervenham em todos os atos ou tarefas tendentes ao resultado final, bastando que a atuação de qualquer deles, embora parcial, se integre no todo e conduza à produção do resultado, sem embargo da liderança/proeminência de um deles.

Tal como o autor deve ter o domínio funcional do facto, também o coautor tem de deter o domínio funcional da atividade que realiza, integrante do conjunto da ação para a qual deu o seu acordo e que, na execução desse acordo, se dispôs a levar a cabo.

Na situação dos autos, é inegável que a arguida/recorrente, no caso do homicídio da vítima, praticou atos de execução em conjunto, ainda que diferenciados, a começar logo pela entrega, tendo em vista adormecer a vítima, que fez à coarguida das ampolas de Diazepam, no próprio dia - mas concretamente algumas poucas horas antes - em que ocorreu a morte do vítima, ou seja, para utilização praticamente imediata, de acordo com um plano previamente traçado entre as mesmas, tinha o domínio funcional do facto, não se limitando a prestar auxílio à falecida coarguida, indo bem mais além, sem prejuízo de se reconhecer que teve, em toda esta dinâmica, um papel não tão ativo como esta última, que terá de ter reflexo, naturalmente, ao nível da determinação da medida concreta da pena correspondente.

Acrescente-se ainda que a arguida/recorrente, com exceção das cerca de 4 horas que permaneceu no interior do veículo à porta da casa da vítima, até a sua companheira a vir chamar para entrar na dita residência, esteve sempre fisicamente ao lado da coarguida, apoiando-a, sem manifestação de qualquer gesto de reprovação, e disponível para intervir de uma forma mais enérgica, se necessário fosse, já para não falar da sua participação nos factos que tiveram imediatamente lugar após a morte da vítima, como a limpeza da do interior da habitação, a fim de serem eliminados quaisquer vestígios.

IV. Não corresponde à verdade que o Tribunal da Relação tenha violado o princípio in dubio pro reo, que, como se sabe, é um princípio ligado à prova e atinente, por conseguinte, à matéria de facto, pelo que é descabido e deslocado trazê-lo à colação, nesta sede, conhecidos que são os poderes de cognição do STJ.

Saliente-se também que o tribunal recorrido, conforme resulta inequivocamente da fundamentação da decisão, não ficou com dúvidas sobre a participação ativa da recorrente no homicídio da vítima, não fazendo, pois, qualquer sentido a invocação deste princípio.

V. Por fim, relativamente à medida da pena única, que a recorrente considera excessiva, convocando a doutrina e a jurisprudência mais significativas, diremos que a determinação da pena do concurso implica, fundamentalmente, duas operações: em primeiro lugar, o tribunal tem de determinar a pena que concretamente caberia a cada um dos crimes em concurso, seguindo o procedimento normal de determinação da pena; em seguida, construirá a moldura penal do concurso, que é uma verdadeira moldura penal, com o seu limite máximo e o seu limite mínimo, dependendo esta operação da espécie ou das espécies de penas parcelares que tenham sido concretamente determinadas.

Estabelecida a moldura penal do concurso, o tribunal determinará, então, dentro dos limites daquela, da medida da pena conjunta do concurso, que encontrará em função das exigências gerais da culpa e de prevenção. Mas, para além dos critérios gerais de medida da pena contidos no art. 71.º n.º 1, do Cód. Penal, a lei fornece ao tribunal um critério especial: «Na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente» (art. 77.º n.º 1, 2.ª parte).

Ora, na situação sub judice, tendo por base uma moldura abstrata que tem como limite mínimo 20 anos de prisão e limite máximo 25 anos de prisão consideramos, em consonância com os critérios legais assinalados e tendo, designadamente, em conta a enorme gravidade dos factos praticados – em particular, o homicídio qualificado e a profanação de cadáver – o elevado grau da ilicitude, a dimensão da culpa, a ausência de antecedentes criminais, no caso pouco relevante, dada a idade da arguida, a não interiorização do desvalor social da conduta levada a cabo, a sua postura ziguezagueante, confessando primeiro vários factos para depois os negar, e sem esquecermos as fortes exigências de prevenção geral, adequada e justa uma pena única de 23 anos de prisão, assistindo, deste modo, alguma razão, neste restrito âmbito, à recorrente.

VI. Nestes termos, acorda-se em rejeitar, por inadmissibilidade legal, o recurso da arguida, na parte que diz respeito à impugnação da matéria de facto, como aos invocados vícios do art. 410.º n.º 2, do C.P.P., e à violação do princípio in dubio pro reo (arts. 420.º n.º 1 b) e 434.º., do C.P.P.) e julgar parcialmente procedente o recurso da mesma, revogando-se o acórdão recorrido, no segmento relativo à determinação da medida concreta da pena única, em resultado do cúmulo jurídico, que se fixa agora em 23 (vinte e três) anos de prisão, em vez dos 25 (vinte e cinco) anos de prisão aplicados pelo tribunal recorrido, por ser mais justa, adequada e proporcional e mantendo-se, no mais, o acórdão do Tribunal da Relação.

Decisão Texto Integral:

Acordam, em Conferência, na 3.ª Secção Criminal, do Supremo Tribunal de Justiça

I. Relatório

1. Em 12/07/2023, foi proferido acórdão pelo Tribunal da Relação de Évora, com o seguinte dispositivo que passamos a transcrever, na parte que ora releva:

(…)

- Negar provimento ao recurso da decisão final deduzido pela arguida AA;

- Conceder provimento aos recursos da decisão final interpostos pelo MP e pelo assistente, ainda que este apenas parcialmente e, consequentemente, determinam-se as seguintes alterações da matéria de facto provada e não provada, constante da decisão recorrida:

A) Acrescenta-se ao ponto 1.7., o seguinte: “facto que a arguida BB deu a saber à arguida AA, por essa mesma altura”;

B) O ponto 1.8, passará a ter a seguinte redacção: “Entre os meses de Fevereiro e Março de 2020 e por forma a apoderarem-se do património monetário pertencente ao CC, as arguidas formaram o seu propósito de lhe tirar a vida e combinaram entre si um plano para irem ao encontro da vítima para a matar”;

C) No ponto 1.9, onde se diz “…em execução de um plano que previamente traçou…”, passará a constar “…na execução do plano previamente traçado…”;

D) No ponto 1.10, adita-se, logo no seu início: “E de comum acordo e na concretização desse plano, cerca da hora do almoço…”;

E) O ponto 1.11, passará a ter a seguinte redacção: “Levando consigo os seguintes instrumentos para serem utilizados pelas arguidas na execução do plano traçado:

- Três ampolas em vidro com conteúdo líquido de “Diazepam”, cerca de 10mg/2ml cada, de valor unitário não concretamente apurado;

- Algumas abraçadeiras em plástico;

- Uma faca de “ponta e mola” com cabo plástico rígido de cor preto, tendo comprimento total de cerca de 21 cm (cerca de 11 cm de cabo e lâmina de gume duplo com 9,5 cm);

- Vários sacos de plástico; - Fita adesiva; e

- Luvas descartáveis.”;

F) No ponto 1.13, acrescenta-se, no fim, “para serem utilizadas na execução do mencionado plano sendo que os demais objectos elencados em 1.11, pertenciam à arguida BB”;

G) No ponto 1.15, acrescenta-se no fim, “e que esta a chamasse para também poder entrar naquela residência”;

H) No ponto 1.16, acrescenta-se, no final, “com o propósito de o adormecer”;

I) No ponto 1.19, acrescenta-se, no final, “para lhe dar a saber o que havia feito ao CC na execução do plano traçado por ambas”;

J) O ponto 1.20, passará a ter a seguinte redacção: “Após uma breve troca de palavras, as arguidas dirigiram-se para o interior daquela residência e já na divisão da sala de estar aproximaram-se do CC, que permanecia acordado e amarrado à cadeira e que ao deparar com a presença da arguida BB acompanhada pela arguida AA, o CC levantou-se da cadeira mas sem se conseguir libertar desta”;

K) O ponto 1.26 passará a ter a seguinte redacção: “Seguidamente, a arguida AA, que se havia mantido junto da outra co-arguida e do CC enquanto decorria toda aquela actuação violenta contra este último, aproximou-se do corpo deste e verificou que ainda apresentava sinais vitais.”;

L) No ponto 1.30 elimina-se “…tendo a arguida AA saído da sala, enquanto…”;

M) O ponto 1.33 passará a ter a seguinte redacção. “Seguidamente, a arguida AA, que se mantinha junto da outra co-arguida e do CC enquanto decorria toda aquela actuação violenta contra este último, aproximou-se do corpo deste para verificar se já não apresentava sinais vitais, o que veio a confirmar.”;

N) No ponto 1.34, acrescenta-se no final, “o que fez na presença da arguida AA.”;

O) No ponto 1.35, acrescenta-se no final, “o que fez na presença da arguida AA.”;

P) No ponto 1.37, onde se lê “…que ficaram na sua posse para, mais tarde, lhe permitir…”, passará a constar “… que ficaram na posse das arguidas para, mais tarde, lhes permitirem…”;

Q) O ponto 1.40 passará a ter a seguinte redacção: “Aí, as arguidas, em conjugação de esforços, abriram a bagageira do veículo “Mercedes-Benz”, com a matrícula ..-..-NS, fazendo uso da respectiva chave que haviam encontrado no interior daquela habitação, e colocaram no seu interior o corpo do CC”;

R) No ponto 1.41, acrescenta-se a seguir a arguidas, “em conjugação de esforços”;

S) No ponto 1.42, onde se lê “… a arguida BB apoderou-se…”, passará a constar “…as arguidas apoderaram-se…”;

T) No ponto 1.43 acrescenta-se, no seu início, “Na posse de tais objectos, por volta…”;

U) No ponto 1.44., elimina-se “…na posse dos objectos referidos em 1.42…”

V) No ponto 1.46, onde se lê “… a arguida BB efectuou…” passará a constar “…efectuaram…”;

W) No ponto 1.47, acrescenta-se, logo no seu início, “Nessa ocasião, as arguidas, de comum acordo e em conjugação de esforços, junto dessa caixa de ATM introduziram o código de acesso, fazendo uso do cartão de débito e/ou crédito associado…”;

X) No ponto 1.50, onde se lê “…a arguida BB efectuou…”, passará a constar “…as arguidas, de comum acordo e em conjugação de esforços, efectuaram…”;

Y) No ponto 1.54, acrescenta-se a seguir a arguidas, “de comum acordo e em conjugação de esforços…”;

Z) No ponto 1.56, onde consta “…a arguida BB efectuou…”, passará a constar “…as arguidas, de comum acordo e em conjugação de esforços, efectuaram…”;

AA) No ponto 1.57, onde se lê “…a arguida BB decidiu…” passará a constar “… as arguidas acordaram entre si um plano para…”;

BB) No ponto 1.58, onde se lê “…a arguida BB subtraiu…” passará a constar “…subtraíram…”;

CC) Os pontos 1.67 e 1.68, passarão a ter a seguinte redacção conjunta: “No dia seguinte (22/03/2020), as arguidas, de comum acordo e em conjugação de esforços, dirigiram-se a uma caixa de ATM existente nas instalações do Hospital de..., localizado na cidade de ..., e efetuaram levantamentos duplos de 200,00€ (duzentos euros), atingindo o limite diário permitido por multibanco (400,00€), tendo, para tanto, a arguida AA introduzido o código de acesso, fazendo uso do cartão de débito e/ou crédito associado à conta titulada pelo CC na Caixa de Crédito Agrícola, S.A. à qual corresponde o IBAN PT....................97 e de que se haviam apropriaram no interior da residência desta vítima.”;

DD) No ponto 1.69, a expressão “…pela arguida BB…” é substituída por “…e em conjugação de esforços…”;

EE) No ponto 1.74, acrescenta-se seguir à palavra arguidas a expressão “…em conjugação de esforços…”;

FF) Os pontos 1.77 e 1.78, passarão a ter a seguinte redacção conjunta: “Por volta das 02h00m da madrugada de dia 25/03/2020, as arguidas, de comum acordo e em conjugação de esforços, dirigiram-se a uma caixa de ATM existente nas instalações da agência da Caixa Geral de Depósitos, S.A. localizada na Avenida ..., em ..., e efetuaram levantamentos duplos de 200,00€ (duzentos euros), atingindo o limite diário permitido por multibanco (400,00€), tendo, para tanto, a arguida BB introduzido o código de acesso, fazendo uso do cartão de débito e/ou crédito associado à conta titulada pelo CC na Caixa de Crédito Agrícola, S.A. à qual corresponde o IBAN PT....................97, de que se apropriaram no interior da residência desta vítima.”;

GG) O ponto 1.80 passará a ter a seguinte redacção: “A descrita conduta nos precedentes artigos 1.46, 1.50, 1.52, 1.53, 1.54, 1.56, 1.67/1.68 e 1.74/1.75, permitiu às arguidas aceder à conta bancária titulada pelo CC corresponde o IBAN PT....................97 e subtrair a quantia total de 2.326,90€ (dois mil, trezentos e vinte e seis euros e noventa cêntimos).”;

HH) No ponto 1.82, elimina-se “…na ocasião dos levantamentos na caixa Multibanco/ATM do Hospital de ...…”;

II) No ponto 1.83, onde consta “A arguida BB teve…”, passará a constar “As arguidas tiveram…”;

JJ) No ponto 1.84, acrescenta-se a seguir a BB “…de comum acordo e cm conjugação de esforços com a arguida AA…”;

KK) No ponto 1.85, onde consta “A arguida BB manteve…”, passará a constar “As arguidas mantiveram…”;

LL) No ponto 1.86, acrescenta-se a seguir a BB “…de comum acordo e cm conjugação de esforços com a arguida AA…”;

MM) Os pontos 1.87 e 1.88 passarão a ter a seguinte redacção conjunta: “Com a conduta descrita nos artigos 1.84 a 1.86 as arguidas acederam à aplicação “Messenger” da rede social “Facebook” associado à conta pessoal de CC, apesar de saberem que não se encontravam autorizadas pelo mesmo a agir como descrito, e que actuavam contra a sua vontade, agindo desta forma com o propósito alcançado de aceder à informação pessoal do ofendido armazenada naquela respectiva aplicação informática pessoal.”;

NN) Os pontos 1.89 e 1.90 passarão a ter a seguinte redacção conjunta: “Sabiam também as arguidas, nas situações descritas nos pontos 1.46, 1.47. 1.54. 1.55 e 1.56, que não lhes era permitido utilizar o cartão de débito associado à conta bancária do ofendido por não lhes pertencer e não ter autorização do seu legítimo possuidor, mas tal não as impediu de o usar.”;

OO) O ponto 1.92, onde consta “A arguida BB logrou…”, passará a constar “…as arguidas lograram…” , onde se lê “…ter verificado que não tinha sido detectada…”, passará a constar “…terem verificado que não tinham sido detectadas…” e onde está “…lesou…”, passará a estar “…lesaram…”;

PP) No ponto 1.93, onde consta “A arguida BB acedeu…apesar de saber que não se encontrava autorizada…e que actuava…”, passará a constar “As arguidas acederam…apesar de saberem que não se encontravam autorizadas… e que actuavam…”;

QQ) No ponto 1.94, onde se lê “Agiu…realizar…sabia…tinha…” deverá ler-se “Agiramrealizaremsabiamtinham…”;

RR) O ponto 1.98 ficará com a seguinte redacção: “Também sabiam as arguidas que todos os bens de que se apoderaram não lhes pertenciam, e mesmo assim quiseram fazê-los coisa sua, como aliás veio a conseguir, apesar de saberem que agiam contra a vontade e sem o consentimento do seu legítimo proprietário.”;

SS) No ponto 1.99, onde consta “…da arguida BB…”, passará a constar “…conjunta das arguidas em comunhão de vontades…”;

TT) O ponto 1.103 passará a ter a seguinte redacção: “Em toda a conduta supra descrita, as arguidas ao actuarem deste modo, quiseram agir como agiram, com o propósito concretizado, de causar a morte do ofendido CC, movidas apenas por razões menores e fúteis, relacionado com o facto de quererem se apropriar do património monetário pertencente a esta vítima bem como toda a sua actuação revelaram premeditação nos procedimentos que realizaram em conjunto com reflexão nos meios empregues para o efeito pretendido.”;

UU) O ponto 1.104 passará a ter a seguinte redacção: “Com a sua conduta, também as arguidas visavam ocultar o cadáver, tendo para o efeito procedido ao desmembramento dos membros superiores e inferiores, como ainda a decapitação da cabeça, transportando através de viatura automóvel essas diversas partes do corpo da vítima para locais ermos e distantes entre si.”;

VV) O ponto 1.105 passará a ter a seguinte redacção:” As arguidas agiram com o propósito concertado e concretizado e em conjugação de esforços, de se apropriarem do património monetário pertencente a CC, revelando a sua actuação reflexão nos meios empregues para o efeito pretendido e nos procedimentos que realizaram.”;

WW) O ponto 1.106 passará a ter a seguinte redacção: “Ao procederem de toda a forma descrita, as arguidas agiram sempre em conjugação de esforços e mediante plano previamente traçado, actuando sempre de forma livre e consciente bem sabendo que todas as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.;

XX) Eliminam-se os pontos 1.107, 1.113, 1.114 e 1.115 da matéria de facto provada

YY) Eliminam-se da matéria de facto não provada os pontos 2.1 a 2.4.

- Em consequência do supra decidido, condena-se a arguida AA em concurso real, pela prática de:

- Em co-autoria e na forma consumada, um crime de homicídio qualificado, p.p. pelos Artsº 131 e 132 nsº1 e 2 als. e) e j) do Código Penal, na pena de 20 (vinte) anos de prisão;

- Em co-autoria e na forma consumada, dois crimes de acesso ilegítimo, p.p. pelo Artº 6 nº1 da Lei nº 106/2009, de 15/09, na pena, por cada um, de 8 (oito) meses de prisão;

- Em co-autoria e na forma consumada, um crime de furto simples, p.p. pelo Artº 203 nº1 do Código Penal, na pena de 1 (um) ano e 10 (dez) meses de prisão;

Em cúmulo jurídico destas penas com as já aplicadas pela instância recorrida (referentes aos crimes de profanação de cadáver, burla informática e peculato), é a arguida AA condenada na pena única de 25 (vinte e cinco) anos de prisão.

(…)

2. Inconformada com esta decisão, interpôs a arguida AA, em 08/08/2023, recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, concluindo a sua Motivação nos seguintes termos, que passamos também a transcrever:

- Regras básicas do Julgamento, são a Constitucional presunção de inocência, de que gozam os Arguidos, a oralidade e imediação, que permite a livre apreciação da prova, que cabe, em exclusivo, à Primeira Instância, estando vedada, às Instâncias Superiores, a alteração da matéria de facto fixada em 1ª Instância, para o que cremos não ter fundamento a Veneranda Relação, que, incorrendo em erro, não o poderia fazer, cumprindo revogar o douto Acórdão ora em Recurso, merecendo provimento o presente Recurso, havendo que determinar o reenvio do Processo.

- O douto Acórdão proferido em Primeira Instância, não padece de qualquer vício, ou erro, muito menos notório, pelo que, fixada, de acordo com as Regras, a matéria de facto, não poderá, esta, ser alterada, com os doutos fundamentos de que ora se recorre, e que, com a devida vénia, temos por inverificados, vigorando a livre apreciação da prova por parte do Tribunal do Julgamento, pelo que se verifica existir erro, e Decisão contrária às normas, que só o reenvio poderá reparar, como é de Justiça.

- A Veneranda Relação de Évora não poderia “reparar” os vícios que temos por inverificados, por caber ao douto Colectivo do Julgamento apreciar livremente a prova produzida, e, não dispondo de matéria de facto suficiente, como cremos não ter, a considerá-lo, deveria a Veneranda Relação, ter determinado o reenvio do Processo para novo Julgamento, ou para esclarecimento da factualidade que tivesse por “duvidosamente” apreciada, o que este Supremo Tribunal de Justiça poderá decidir, impondo-se que assim o decida, por ser de elementar Justiça.

- É pacífico que, tal como a Veneranda Relação, também este Supremo Tribunal de Justiça, não aprecia as provas em si mesmas, não se sobrepondo à livre convicção das Instâncias, e, se se considerar insuficiente a matéria de facto fixada em Primeira Instância, ou se considerar existir erro notório na apreciação das provas, a solução, com exclusão de qualquer outra, sempre será o reenvio do Processo à Primeira Instância, o que, nesta fase, cabe ao Supremo Tribunal de Justiça, o que se espera em sede do presente Recurso, que temos por merecedor de provimento.

- Embora este Supremo Tribunal de Justiça não possa conhecer dos eventuais vícios da Decisão recorrida, não podendo supri-los, por contender com a matéria de facto, sempre pode, e deve, determinar o reenvio do Processo, como se impõe no caso presente, consequentemente se revogando o douto Acórdão ora em Recurso.

- Perante o doutamente decidido pela Veneranda Relação de Évora, em manifesto erro, e contra o Direito, não resta, senão, a devolução do Processo ao Tribunal onde foi realizada a produção de prova, para, em novo Julgamento, se possível, remover os alegados vícios ou erros, na apreciação da prova, sem o que não poderá, este Supremo Tribunal de Justiça, decidir justamente a Causa.

- Enfermando, a douta Decisão da Veneranda Relação de Évora, de erro no doutamente decidido, em violação da livre apreciação da prova, e do artigo 410º-2 do Código de Processo Penal, caso assim o considere este STJ, restará que seja determinado o reenvio do Processo, como se espera de Vªs Exªs.

- O douto Colectivo da Primeira Instância, onde foi produzida a prova, em imediação e oralidade, tendo apreciado, livremente, a prova, decidiu e fixou a matéria de facto, sem o menor reparo, e de acordo com o Constitucional Princípio “in dubio pro reo”, e só o Tribunal do Julgamento pode fixar a matéria provada e não provada, estando vedada, ao Tribunal de Recurso, alterar a matéria de facto fixada, sem erro, pelo que restará revogar o douto Acórdão ora em Recurso, determinando-se o reenvio do Processo.

- Se o douto Colectivo da Primeira Instância não considerou provada determinada matéria de facto, tal deveu-se à dúvida não ultrapassada, sendo que é na 1ª Instância que se fixa a matéria de facto provada e não provada, fazendo-o livremente.

10º - Com a devida vénia, não poderia, a Veneranda Relação de Évora, alterar factualidade provada, de “a Arguida BB”… para “ambas as Arguidas”, ou … “em comunhão de esforços” … ou “de comum acordo” … designadamente, porque o Julgamento não teve lugar em sede de Recurso, onde não cabe realizar Julgamentos, mas sim na 1ª Instância onde se realiza a produção de prova, sendo o douto Colectivo livre na apreciação da mesma, pelo que merece provimento o presente Recurso, determinando-se o reenvio do Processo.

11º - Se dúvidas restassem, não ao Colectivo do Julgamento, mas à Veneranda Relação, só o reenvio poderia ter lugar, como o pode ter em sede do presente Recurso, que temos por merecedor de provimento.

12º - Os factos alterados pela Veneranda Relação não resultam da produção de prova, que teve lugar em 1ª Instância, e não em sede de Recurso, onde a factualidade provada e não provada, está fixada, e inalterável, inverificando-se qualquer erro, muito menos notório.

13º - O douto Colectivo da Primeira Instância, perante a dúvida, ou ausência de prova segura, apreciando livremente a prova, decidiu, e bem, absolver, como o impõe o Constitucional Princípio “in dubio pro reo”, como se espera venha a ser decidido nesta sede, em que o presente Recurso é merecedor de provimento, cabendo, nesta sede, determinar o reenvio do Processo à primeira Instância.

14º - A Decisão de condenar, ou absolver, a jovem Arguida, bem integrada e sem quaisquer antecedentes, ora Recorrente, tem que se fundar numa sólida convicção, fora de qualquer dúvida, onde só poderá resultar provada a matéria acerca da qual não restem quaisquer dúvidas, inexistindo fundamento para alterar, como se verifica, o douto Acórdão da Primeira Instância.

15º - É no Julgamento que se produz a prova, sendo possível, a qualquer Arguido, que preste as declarações que bem entender, pois é perante factos provados que se decide, e não com base em declarações prestadas ao longo do Processo, nas diversas fases do mesmo, e que se não confundem com a de produção de prova.

16º - O valor das declarações prestadas em 1º Interrogatório, ou em sede de Instrução, “valem o que valem”, não substituindo o Julgamento, pois, de outra forma, para nada serviria julgar … ou até se poderia julgar em Processo Sumário … pelo que o Julgamento serviu para decidir, decidindo, o douto Colectivo da Primeira Instância de acordo com a prova produzida em Julgamento.

17º - Se as Arguidas alteraram os seus depoimentos, como o podem fazer, não será com os fundamentos da douta Decisão da Veneranda R. É. de que ora se recorre, que seria alterado o douto Acórdão da Primeira Instância, onde a prova foi livremente apreciada, e fixada a matéria de facto provada e não provada.

Com a devida vénia, em erro, e contra as regras de Direito, incorreu a Veneranda Relação, ao decidir alterar o douto Acórdão da Primeira Instância, pelo que resulta manifesta a procedência do presente Recurso, determinando-se o consequente reenvio.

18º - A Veneranda Relação de Évora, não dispondo de matéria para tanto, e tendo a prova sido produzida, e livremente apreciada na 1ª Instância, nada poderia acrescentar aos pontos 1.7, 1.10, 1.13, 1.15, 1.16, 1.34, 1.35, 1.41, 1.43. 1.47, 1.54, 1.47, 1.84, 1.86, pois não realizou o Julgamento, e não formou a convicção, livremente formada, só o reenvio podendo reparar o erro em que incorreu a Veneranda Relação.

19º - A Veneranda Relação de Évora, não dispondo de matéria para tanto, e tendo a prova sido produzida, e livremente apreciada na 1ª Instância, não poderia eliminar os pontos 1.30, 1.44, 1.82, 1.107, 1.113, 1.114, e 1.115 da matéria de facto provada, e os pontos 2.1 a 2.4 da matéria de facto não provada, pois não realizou o Julgamento, e não formou a convicção, livremente formada, só o reenvio podendo reparar o erro em que incorreu a Veneranda Relação.

20º - A Veneranda Relação de Évora, não dispondo de matéria para tanto, e tendo a prova sido produzida, e livremente apreciada na 1ª Instância, nada poderia aditar, ou alterar a redacção dos pontos 1.8, 1.9, 1.10, 1.11, 1.13, 1.15, 1.16, 1.19, 1.20, 1.26, 1.33, 1.34, 1.35, 1.37, 1.40, 1.41, 1.42, 1.43, 1.46, 1.47, 1.50, 1.54, 1.56, 1.57, 1.58, 1.67, 1.68, 1.69, 1.74, 1.77, 1.78, 1.80, 1.83, 1.84, 1.85, 1.86, 1.87, 1.88, 1.89, 1.90, 1.92, 1.93, 1.94, 1.98, 1.99, 1.103, 1.104, 1.105, 1.106, pois não realizou o Julgamento, e não formou a convicção, livremente formada, só o reenvio podendo reparar o erro em que incorreu a Veneranda Relação.

21º - Não é razoável que, a 1ª Instância, apreciando todas as provas, procedendo ao Julgamento, na qual ouviu as Testemunhas, verificou os jeitos e trajeitos das mesmas, apreciando designadamente a linguagem não verbal das mesmas, ouvindo presencialmente a Arguida AA, designadamente, tenha chegado à conclusão que chegou e que, os Senhores Desembargadores, ouvindo apenas as gravações, tenham chegado à conclusão diametralmente oposta… concluindo pela participação da Arguida AA, em todos os acontecimentos…. tudo sem que nenhum novo facto ou prova tenha sido renovado, concluindo, logo, pela aplicação da “pena máxima”.

22º - Alterou a Veneranda Relação de Évora, o douto Acórdão, oportunamente proferido pelo Tribunal de Primeira Instância, considerando a tese apresentada pelo Assistente, em sede de Recurso, e fazendo tábua rasa de toda a argumentação e fundamentação da 1ª Instância, o que contraria as regras de Direito e Princípios de Justiça.

23º - A versão apresentada pelo Assistente em sede de Recurso, para além de não ter efectuado a impugnação especificada da matéria de facto que pretendia ver alterada, não refere quais os concretos factos ou provas que levariam a uma conclusão diversa, daquela a que o Tribunal de 1ª Instância chegou… pelo que tal argumentação nunca poderá proceder

24º - A tese defendida pelo Assistente em sede de Recurso, resume-se a provas meramente circunstanciais, e sobejamente apreciadas pelo Tribunal de 1ª Instância, debatendo-se pela tese de que existia um plano, previamente agendado, com vista à morte do CC, o que manifestamente não resultou provado, inexistindo fundamento que o contrarie.

25º - Tentando imputar responsabilidade à Arguida AA, ou tentando comprometer a mesma, no homicídio, recorrendo a teorias não provadas, designadamente quanto aos “cortes limpos” aplicados no corpo do CC, que provocaram a amputação dos braços e pés pelas articulações, como se existisse uma outra forma de desmembrar essas partes do corpo (ou pelo menos, se essa não fosse a forma mais fácil) ou se exigisse quaisquer especiais conhecimentos, que a Arguida AA não tem, incorreu, a Venerada Relação, em erro, que só o reenvio poderá reparar, repondo-se a Justiça.

26º - A Arguida AA nunca negou a sua colaboração à Arguida BB, no desmembramento do corpo do CC, crime pelo qual veio a ser condenada em sede de 1ª Instância, resultando provado que a mesma não teve qualquer intervenção na morte do CC, por que, bem, veio a ser absolvida.

27º - Os actos praticados pela AA não foram essenciais ou imprescindíveis à prática do crime de ocultação de cadáver, e a pena aplicada em Primeira Instância já cumpre as suas finalidades, comprometendo-as qualquer punição, a aplicação de pena mais gravosa.

28º - É manifesta a dúvida razoável e insanável acerca da culpabilidade ou dos concretos contornos da actuação de Arguida AA, restando a aplicação do princípio constitucional do art.º 32º, n.º 1 da CRP, pelo que, em erro, se decidiu no douto Acórdão ora em Recurso.

29º - E não será bastante, como assim o entendeu a Veneranda Relação de Évora que, encontrando-se a AA presente em todos os actos materiais cometidos pela BB após o homicídio, e participando em alguns deles de forma directa, tal como na limpeza da casa da vítima, ajundando a carregar a vítima, etc… não é necessáriamente bastante para implicar a Arguida AA, no homicídio, cuja nenhuma intervenção se mostrou minimamente comprovada, havendo que manter a absolvição, em sede de reenvio, que se impõe, como é de Direito, e de Justiça.

30º - As regras da experiência comum, que tanto o Assistente e o Ministério Público invocam, não nos permitem concluir que uma jovem rapariga, apaixonada, submissa, sem antecedentes criminais, socialmente inserida, cuja namorada detinha sobre ela um ascendente emocional, para além da superioridade física, fizesse mais, do que a Arguida AA fez e confessou, ajudar a sua apaixonada a se “livrar” do corpo da vítima… incorrendo em erro quem decidir diversamente.

31º - Violou, a Veneranda Relação de Évora, o disposto no art.º 410, n.º 2, al. c) do CPP, vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, desde logo pela carência de factos que suportem uma decisão de direito dentro do quadro das soluções plausíveis da causa, assim violando o direito.

32º - Deverá, assim, o presente Recurso ser julgado procedente, determinando-se o reenvio do processo para novo julgamento, em 1ª Instância, designadamente ao abrigo do disposto do n.º 2 do art.º 426 do CPP.

33º - A Veneranda Relação, Ela sim, com a devida vénia, fez uma errada apreciação da prova, ao ter dado como provados, factos sem prova para tal, ao arrepio da livre apreciação efectuada pela 1ª Instância, que censurou, não tendo demonstrado que a opção da 1ª instância, baseada na oralidade e imediação, era de todo, de acordo com as regras da experiência comum, o que configura um vício insanável, havendo que revogar o douto Acórdão proferido, ora em Recurso.

34º - Conforme resulta do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 29-03-2011 “III – A ausência de imediação determina que o tribunal de 2ª instância, no recurso da matéria de facto, só possa alterar o decidido pela 1ª instância se as provas indicadas pelo recorrente impuserem decisão diversa da proferida e não apenas se a permitirem (al.b) do n.º 3 do citado art.º 412)”, pelo que o erro do douto Acórdão em Recurso impõe que se determine o reenvio do Processo.

35º - Manifestamente, nenhuma alteração existiu, e, a conclusão a que o Tribunal de 2ª Instância chegou, não é imperativa, desde logo considerando a motivação, fundamentação de facto e de direito da 1ª Instância!

36º - Impõe-se, assim, o reenvio do processo, para novo julgamento, em 1ª instância, nos termos do n.º 2 do art.º 426º do CPP, verificados que se mostram os vícios do n.º 2 do art.º 410 do CPP.

37º - O Tribunal de 2ª Instância ao decidir como decidiu, sem reenviar o processo para a 1ª Instância, alterando a matéria de facto, com fundamento em alegações meramente circunstanciais do Assistente e Ministério Público, denegou o direito de defesa da Arguida AA, amputando-a de exercer o direito ao contraditório e de fazer prova da sua presumível inocência, pelo que decidiu contra o Direito, e a Justiça.

38º - Tivessem as declarações prestadas em sede de 1º Interrogatório, o valor considerado pela Veneranda Relação de Évora, desnecessário seria a realização do Julgamento, com produção de prova, no qual, segundo o consagrado no CPP, é exercido o direito ao contraditório, sendo permitido aos Arguidos apresentar a sua defesa, o que manifestamente, em sede de 1º Interrogatório, lhes é vedado, considerando a fase embrionário em que o processo se encontra e os indícios existentes, à data… pelo que, só do Julgamento em 1ª Instância, pode resultar matéria provada e não provada.

39º - Ao alterar a matéria de facto, dada como provada, como fez a Veneranda Relação, desconsiderando a imediação e oralidade, necessárias, desejáveis e possíveis, desconsiderando as regras da experiência comum, o homem médio, o bom pater familias, decidiu, a 2ª Instância dar factos como provados, que em face das provas produzidas, não poderiam ter sido dados como provados, como efectivamente não o foram, em sede de 1ª Instância, sendo que esses factos não impunham a decisão proferida pela 2ª Instância, consequentemente verificando-se o vício da alínea a) do n.º 2 do art.º 410º do CPP, tendo a mesma como consequência o reenvio do processo, para novo julgamento, em 1ª Instância, nos termos do disposto no n.º 2 do art.º 426º do CPP, o que se impõe e o que, desde logo, se requer a V.ªs Ex.ªs se dignem determinar, por ser de elementar Justiça.

40º - Perante as dúvidas, não ultrapassadas, pela Veneranda Relação, o Direito, o Constitucional Princípio “in dubio pro reo”, e o disposto no artigo 32º-1 da Constituição da República Portuguesa, não poderia decidir-se como no douto Acórdão ora em Recurso, que, violando, designadamente, o disposto no artigo 410º-2-c) do C.P.P., impõe, nesta sede, o reenvio, conforme dispõe o artigo 426º-2 do C. P. P.

41º - A apreciação dos Recursos apresentados pelo Ministério Público e Assistente, por parte da Veneranda Relação de Évora, contra o Direito, e em erro, ultrapassa os respectivos poderes de cognição, estando-lhe vedada a elaboração de nova Sentença/Acórdão, uma vez que o Julgamento teve lugar na Primeira Instância, onde a prova produzida foi livremente apreciada, e, da análise do douto Acórdão ali proferido, não resultam erros, muito menos notórios, estando a fundamentação de acordo com o provado em sede própria, pelo que o doutamente decidido no douto Acórdão ora em Recurso não poderá ser confirmado, havendo que, consequentemente, determinar-se, assim o considerando o STJ, o reenvio do Processo, à Primeira Instância, para os efeitos tidos por convenientes.

42º - A Veneranda Relação de Évora, Ela sim, e em erro notório, ultrapassou os seus poderes de cognição, ignorando a livre apreciação da prova produzida em sede própria, proferindo nova Decisão, como se lhe coubesse apreciar a prova produzida em Primeira Instância, inclusivamente aditando matéria não provada, nem discutida em sede de produção de prova, como se não fosse importante a realização do Julgamento, perante um douto Colectivo, que apreciou livremente a prova produzida na sede própria.

43º - Acresce que, para além de ter ultrapassado os limites que lhe estão vedados, desconsiderou a factualidade provada e não provada, o grau de responsabilidades e culpa da Recorrente, bem como a sua juventude e demais condições pessoais, tudo justificando que o Cúmulo Jurídico se ficasse pela aplicação de pena única especialmente atenuada, e que não necessitaria ser efectiva, uma vez que a opção será entre ressocializar, ou comprometer a ressocialização.

44º - Conhecendo-se os nefastos efeitos do prolongado cumprimento de pena de prisão, atento tanto quanto deverá ser considerado, relativamente à ora Recorrente, a Veneranda Relação, condenando em excesso, desconsiderou as regras de aplicação de penas, e de ressocialização, que, naturalmente, sempre teriam que justificar acentuada redução.

45º - Devia, pois, a Veneranda Relação de Évora, ter negado provimento aos Recursos do Ministério Público e do Assistente, confirmando o douto Acórdão da Primeira Instância, e, caso restassem dúvidas, haveria de determinar o reenvio do Processo, para os esclarecimentos que fossem tidos por pertinentes, e não o tendo feito, alterando, eliminando e adicionando, factos, concluindo pela aplicação, logo, da pena única máxima, violou o Constitucional Princípio “in dubio pro reo”, o disposto nos artigos 127º, 410-2-a), b) e c) e 3, 426º-1 e 426º-A-1 do Código de Processo Penal, e, em face do excesso de punição, os artigos 40º-1 e 2, 70º, 71º e 72º do Código Penal, e violou o disposto no art.º 32º da CRP pelo que merece provimento o presente Recurso, havendo que, consequentemente, determinar-se o reenvio do Processo.

Nestes termos,

e nos demais de direito que Vªs Exªs doutamente suprirão,

deverá o douto Acórdão ora Recorrido ser revogado e substituído por outro que, revogando o douto Acórdão ora em Recurso, confirme o douto Acórdão da Primeira Instância, ou se determine o reenvio do Processo, à Primeira Instância, caso se não opte por, nesta sede, reduzir substancialmente a pena única aplicada à Recorrente, a qual e sempre com a devida vénia, temos por excessiva e desconforme com a responsabilidade, culpa, e demais condições pessoais da Recorrente, e regras de aplicação de penas, assim merecendo provimento o presente Recurso.

3. Em 10/09/2023, o assistente DD, representado pela sua acompanhante judicialmente nomeada, EE, respondeu ao recurso da arguida, defendendo, em síntese, que devia ser negado provimento ao mesmo e ser o acórdão confirmado, na íntegra.

4. Por despacho do Senhor Desembargador relator, de 19/10/2023, foi o recurso admitido, com efeito suspensivo.

5. O Ministério Público, junto do tribunal recorrido, respondeu, em 19/11/2023, ao recurso da arguida, apresentando as seguintes Conclusões (Transcrição):

1. O Acórdão ora recorrido tratou, a preceito, todas as questões suscitadas pela recorrente no presente recurso;

2. O Tribunal a quo evidenciou eloquência na percepção e análise crítica de todo o acervo probatório, produzido em audiência de julgamento em 1ª Instância, que conduziu, inevitavelmente, à condenação da recorrente pela prática, em co-autoria, do crime de homicídio qualificado, tal qual havia sido pronunciada;

3. O acórdão ora recorrido encontra-se devidamente fundamentado, demonstrando à saciedade o “erro de julgamento” da 1ª Instância;

4. E o Tribunal a quo modificou a matéria de facto, não só porque a mesma havia sido expressamente impugnada, como também, porque constavam do processo todos os elementos de prova necessários, nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 431º, do C.P.P.

5. No Acórdão ora recorrido não vislumbrámos que ressaltasse qualquer dúvida inultrapassável e, consequentemente, qualquer violação do princípio “in dubio pro reo”;

6. A pena aplicada à recorrente mostra-se adequada, necessária e justa.

Pelo exposto, entendemos que deve ser negado provimento ao recurso interposto, mantendo-se o Acórdão recorrido, assim se fazendo JUSTIÇA.

6. Por sua vez, o Senhor Procurador-Geral Adjunto, neste Supremo Tribunal, emitiu, em 20/12/2023, douto parecer, nos termos do qual sustenta, em resumo, que o recurso deve ser julgado improcedente e confirmar-se integralmente o acórdão recorrido.

Observado o contraditório, a arguida respondeu, em 27/12/2023, ao parecer do Ministério Público, manifestando a sua discordância em relação ao seu teor e reafirmando que se deverá determinar o reenvio dos autos, caso não se opte pela revogação do acórdão proferido pelo Tribunal da Relação.

7. Por decisão de 12/02/2024 do relator, foi julgado procedente, por provado, o incidente de habilitação de herdeiros e, em consequência, a requerente EE habilitada a ocupar a posição jurídica que ao falecido assistente DD cabia no processo.

8. Colhidos os vistos e realizada a Conferência, cumpre apreciar e decidir.

II. Objeto do recurso

Considerando o conteúdo das Conclusões apresentadas pelo recorrente, que delimitam, como é conhecido, o objeto do recurso, sem prejuízo, naturalmente, dos vícios de conhecimento oficioso, foram colocadas as seguintes questões:

- O Tribunal da Relação de Évora não podia ter alterado a matéria de facto fixada em primeira instância, onde vigoram, de forma mais destacada, a imediação e a oralidade, eliminando pontos da matéria de facto provada e não provada e também não podia ter aditado ou modificado a redação de outros pontos, devendo ter ordenado, antes, o reenvio do processo para novo julgamento, para efeitos de remoção dos vícios na apreciação da prova que alegadamente encontrou;

- Resulta do acórdão recorrido os vícios da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e do erro notório na apreciação da prova (arts. 410.º n.º 2 a) e c), do C.P.P.), pelo que deverá ser agora, nesta fase, ordenado o reenvio do processo, nos termos do art. 426.º n.º 2, do C.P.P.

- Não ficou provado um plano, previamente combinado, em que tenha participado a arguida/recorrente com vista à morte do CC;

- Violação do princípio in dubio pro reo; e

- Em qualquer caso, a medida pena única aplicada seria sempre excessiva, impondo-se a sua atenuação e não efetividade.

III. Fundamentação

1. Na parte que interessa ao julgamento do recurso em questão, é do seguinte teor o acórdão recorrido:

(…)

B.2. Impugnação factual

Quer o assistente, quer o MP, quer ainda, a arguida AA, impugnam a factualidade assumida como provada pela instância recorrida, aqueles, em relação aos factos que integram os crimes pelos quais esta foi absolvida e outros relativos ao pedido de indemnização civil e esta, no que toca à factualidade em que se funda o crime de peculato pelo qual foi condenada.

Importa, nesta medida, atentar, desde já, na factualidade dada como provada e como não provada pela instância recorrida (transcrição):

1. Factos Provados1

Discutida a causa, dos relevantes para a decisão, resultaram provados os seguintes factos:

1.1 As arguidas BB e AA viviam maritalmente uma com a outra, pelo menos, desde Novembro de 2019, numa habitação localizada na Rua ..., no ..., concelho de ..., residência de família da arguida AA.

1.2 A arguida BB desempenhava a profissão de ....

1.3 Por sua vez, desde data não concretamente apurada entre Julho de 2018 e Março de 2020, a arguida AA era ... vinculada ao Hospital de ..., do Centro Hospitalar Universitário ..., EPE, afecta ao serviço de ... de ...,

1.4 No desempenho das suas funções no dito hospital público a arguida AA tinha acesso a todas as dependências do hospital incluindo àquela aonde estava guardado o material clínico.

1.5 O Hospital de ..., do Centro Hospitalar Universitário ..., EPE, é um dos hospitais públicos que integram a rede hospitalar do Serviço Nacional de Saúde, prestando cuidados de saúde programados e urgentes, tanto em ambulatório como com internamento.

1.6 Desde, pelo menos, o mês de Novembro de 2019 que a arguida BB conhecia o CC, e, nos meses que se seguiram com ele manteve contactos, sabendo que o mesmo se encontrava dela enamorado.

1.7 Ao longo desse período decorrido até ao mês de Fevereiro de 2020, por força da relação que mantinha com CC, a arguida BB teve conhecimento que aquele havia recebido o pagamento de quantia monetária ascendente a 70.000,00€ (setenta mil euros), a título de indemnização por responsabilidade civil em resultado do atropelamento e falecimento da sua progenitora ocorrido a .../.../2016, facto que a arguida BB deu a saber à arguida AA, por essa mesma altura.

1.8 Entre os meses de Fevereiro e Março de 2020 e por forma a apoderarem-se do património monetário pertencente ao CC, as arguidas formaram o seu propósito de lhe tirar a vida e combinaram entre si um plano para irem ao encontro da vítima para a matar.

1.9 Assim, na execução do plano previamente traçado, nos dias 18 ou 19 de Março de 2020 a arguida BB combinou encontrar-se, no dia 20 seguinte, com o CC, na residência deste situada no Sítio ..., na localidade de ....

1.10 E de comum acordo e na concretização desse plano, cerca da hora do almoço, no dia 20/03/2020, as arguidas deslocaram-se no veículo automóvel da marca "Mazda", matrícula ..-CD-.., pertencente à arguida BB, de casa desta arguida em ... até à residência do CC, situada na referida morada da localidade de ....

1.11 Levando consigo os seguintes instrumentos para serem utilizados pelas arguidas na execução do plano traçado:

- Três ampolas em vidro com conteúdo líquido de "Diazepam", cerca de 10 mg/2ml cada, de valor unitário não concretamente apurado;

- Algumas abraçadeiras em plástico;

- Uma faca de “ponta e mola” com cabo plástico rígido de cor preto, tendo comprimento total de cerca de 21 cm (cerca de 11 cm de cabo e lâmina de gume duplo com 9,5 cm);

- Vários sacos de plástico;

- Fita adesiva; e

- Luvas descartáveis;

1.12 As três ampolas em vidro com conteúdo líquido de "Diazepam" pertenciam ao Hospital de ... do Centro Hospitalar Universitário ..., EPE, e eram destinadas aos cuidados de saúde a prestar aos seus utentes.

1.13 Em momento não apurado, mas anterior à hora do almoço do citado dia 20 e aproveitando-se das suas funções de ... no dito hospital público, que lhe permitia o seu acesso, a arguida AA apropriou-se das aludidas ampolas em vidro com conteúdo líquido de "Diazepam” guardadas nas instalações deste hospital, em proveito próprio e da outra co-arguida, para serem utilizadas na execução do mencionado plano sendo que os demais objectos elencados em 1.11, pertenciam à arguida BB.

1.14 Chegadas ao local, depois das 13.00h, a arguida BB saiu da sua viatura automóvel e foi ao encontro do CC, que a esperava no interior da sua residência.

1.15 A arguida AA permaneceu no interior do veículo "Mazda", ..-CD-.., a aguardar pela arguida BB e que esta a chamasse para também poder entrar naquela residência.

1.16 No decorrer do encontro com o CC, com o propósito de o adormecer, a arguida BB misturou o conteúdo líquido existente nas três cápsulas de "Diazepam", num sumo de laranja que deu a beber àquele, de que ele ingeriu parte, com o propósito de o adormecer.

1.17 E fê-lo sem que o CC se apercebesse de tal facto.

1.18 Após, a arguida BB seduziu o CC, de modo a conseguir convencê-lo a sentar-se numa cadeira existente na habitação, como veio a suceder, e a que fechasse os olhos enquanto lhe prendia as mãos, uma a cada perna dessa cadeira, com o uso das abraçadeiras,

1.19 Já por volta das 17h00m, a arguida BB dirigiu-se ao exterior da habitação na direcção da viatura "Mazda", indo ao encontro da arguida AA para lhe dar a saber o que havia feito ao CC na execução do plano traçado por ambas.

1.20 Após uma breve troca de palavras, as arguidas dirigiram-se para o interior daquela residência e já na divisão da sala de estar aproximaram-se do CC, que permanecia acordado e amarrado à cadeira e que ao deparar com a presença da arguida BB acompanhada pela arguida AA, o CC levantou-se da cadeira mas sem se conseguir libertar desta.

1.21 Ao vê-lo levantado, a arguida BB colocou-se na retaguarda do CC, colocou um dos seus braços em volta do pescoço do CC, apertando esse braço com o seu outro braço, efectuando, assim, a manobra conhecida como "mata-leão".

1.22 Enquanto a arguida BB executava esse acto de agressão física, o CC acabou por conseguir libertar uma das mãos,

1.23 Mas, com o esforço físico que implementou para conseguir soltar-se, o CC acabou por cair sobre o pavimento da sala, ficando deitado no chão com a barriga para cima.

1.24 E aproveitando-se desse facto, a arguida BB colocou-se sobre o corpo do mesmo e apertou-lhe o pescoço com o uso da força das mãos.

1.25 Apenas deixou de lhe apertar o pescoço quando o CC aparentava estar inconsciente.

1.26 Seguidamente, a arguida AA, que se havia mantido junto da outra co-arguida e do CC enquanto decorria toda aquela actuação violenta contra este último, aproximou-se do corpo deste e verificou que ainda apresentava sinais vitais.

1.27 Por breves instantes, a arguida AA permaneceu junto do corpo do CC a realizar-lhe manobras de reanimação, recorrendo a compressões torácicas, até ele ficar consciente.

1.28 Já consciente, com o intuito de se defender, o CC desferiu uma pancada com uma das mãos na arguida AA para a afastar de si,

1.29 E, em simultâneo, executava vários movimentos com as pernas para se soltar da cadeira, à qual ainda permanecia amarrado com as ditas abraçadeiras de plástico.

1.30 Por isso, a arguida BB se colocou novamente sobre o corpo do CC, que permanecia deitado no chão com a barriga para cima.

1.31 Nessa posição, a arguida BB voltou a apertar-lhe o pescoço com a força das suas mãos.

1.32 E apenas deixou de lhe apertar o pescoço quando o CC voltou a ficar inconsciente,

1.33 Seguidamente, a arguida AA, que se mantinha junto da outra co-arguida e do CC enquanto decorria toda aquela actuação violenta contra este último, aproximou-se do corpo deste para verificar se já não apresentava sinais vitais, o que veio a confirmar.

1.34 Depois do decesso, com vista a ocultar o cadáver, a arguida BB colocou sacos de plástico do lixo pela cabeça do CC até à cintura, e pelos pés e pernas até à cintura, e amarrou os sacos com fita adesiva, sacos e fita adesiva que encontrou em casa do CC, o que fez na presença da arguida AA.

1.35 E foi buscar um par de luvas descartáveis e uma faca de "ponta e mola" com cabo plástico rígido de cor preto, de comprimento total de cerca de 21 cm (cerca de 11 cm de cabo e lâmina de gume duplo com 9,5 cm) objectos que lhe pertenciam e que tinha no seu veículo Mazda, o que fez na presença da arguida AA;

1.36 A seguir, a arguida BB calçou as luvas e com a dita faca de "ponta e mola" desferiu alguns golpes, até provocar o corte integral do dedo polegar e do dedo indicador da mão direita do CC, o que fez na presença da arguida AA,

1.37 tendo depois a mesma arguida BB colocado esses dois dedos do CC no interior de um envelope dos CTT, que ficaram na posse das arguidas para, mais tarde, lhes permitirem desbloquear os telemóveis da vítima.

1.38 Posteriormente, a arguida BB colocou o corpo do CC sentado sobre uma cadeira de secretária do quarto do mesmo, com rodas, enquanto a arguida AA segurava a cadeira, e nela transportaram o corpo ocultado pelos sacos de plástico do lixo amarrados com fita adesiva, para o veículo automóvel ligeiro de passageiros da marca "Mercedes-Benz", modelo 190 D, cor azul, com a matrícula ..-..-NS, veículo do CC,

1.39 veículo que, entretanto, fazendo uso da chave que havia encontrado no interior da habitação, a arguida BB parqueou junto à porta da residência, com a bagageira aberta,

1.40 Aí, as arguidas, em conjugação de esforços, abriram a bagageira do veículo “Mercedes-Benz”, com a matrícula ..-..-NS, fazendo uso da respectiva chave que haviam encontrado no interior daquela habitação, e colocaram no seu interior o corpo do CC;

1.41 Depois, as arguidas, em conjugação de esforços, procederam à limpeza do interior da habitação com o uso de vários utensílios de limpeza para eliminar vestígios que as ligassem àquele local.

1.42 Ainda nessa ocasião e no interior daquela habitação, as arguidas apoderaram-se dos seguintes objectos pertencentes ao CC:

a) Dois telemóveis associados aos cartões telefónicos com os números .......33 (serviço) e .......74 (pessoal); e

b) Cartão de débito e/ou crédito que se encontrava associado à conta titulada pelo CC na Caixa de Crédito Agrícola, S.A. à qual corresponde o IBAN PT....... .... .........97.

1.43 Na posse de tais objetos, por volta das 21h00m, as arguidas abandonaram o local com destino à residência de ambas situada no ... na morada indicada supra.

1.44 Seguindo a arguida BB aos comandos do veículo automóvel "Mercedes-Benz", ..-..-NS, transportando o corpo do CC.

1.45 Enquanto, a arguida AA saiu também desse local, mas a conduzir a viatura automóvel "Mazda", ..-CD-...

1.46 Ainda nessa noite de 20/03/2020, as arguidas chegaram à localidade do ..., concelho de ..., e dirigiram-se à caixa de Multibanco/ATM existente no edificio multifunções, onde efectuaram, pelas 23h27m50s e 23h38m39s, respectivamente, levantamentos duplos de 200,00€ (duzentos euros), atingindo o limite diário permitido por multibanco (400,00€).

1.47 Nessa ocasião, as arguidas, de comum acordo e em conjugação de esforços, junto dessa caixa de ATM introduziram o código de acesso, fazendo uso do cartão de débito e/ou crédito associado à conta titulada pelo CC na Caixa de Crédito Agrícola, S.A. à qual corresponde o IBAN PT....................97, de que se apropriou no interior da residência da vítima.

1.48 Após, a arguida BB parqueou a viatura do CC, "Mercedes-Benz", com a matrícula ..-..-NS, nas imediações do prédio onde ambas as arguidas residiam, mantendo o corpo na bagageira do veículo.

1.49 E foram ambas pernoitar nessa residência.

1.50 Pelas 10h51m25s e 10h52m03s, respectivamente, do dia 21/03/2020, as arguidas, de comum acordo e em conjugação de esforços, efectuaram duas transferências bancárias no valor individual de 350,00€ (trezentos e cinquenta euros) com origem na conta bancária pertença do CC, aberta na Caixa de Crédito Agrícola, S.A. à qual corresponde o IBAN PT....................97.

1.51 Para tanto, a arguida BB manuseando os dedos cortados na mão direita desta vítima junto ao ecrã do telemóvel associado ao cartão telefónico nº .......74, com segurança por impressão digital, pertença do próprio CC, sem autorização deste, acedeu ao seu conteúdo por forma a realizar as ditas transferências bancárias através da aplicação "MB WAY", instalada nesse equipamento móvel e associada a esse mesmo cartão telefónico.

1.52 Uma dessas transferências bancárias, no valor de 350,00€ (trezentos e cinquenta euros), teve como destino a conta bancária da Caixa Geral de Depósitos, S.A. com o IBAN PT.....................77, associada ao número de telemóvel .......72, pertencente à arguida AA.

1.53 A outra das transferências bancárias, no valor de 350,000 (trezentos e cinquenta euros), teve como destino a conta bancária do Banco Bilbao Vizcaya Argentaria, S.A., com o IBAN PT.....................12, associada ao número de telemóvel .......98, pertencente à arguida BB.

1.54 Por volta das 12h30m deste dia, 21/03/2020, as arguidas, de comum acordo e em conjugação de esforços, dirigiram-se a tuna caixa de Mutibanco/ A TM, existente nas instalações ... Retail Center localizado na cidade de ..., onde a arguida BB efectuou pelas 12h37m25s e 12h38m19s, levantamentos duplos de 200,00€ (duzentos euros), atingindo o limite diário permitido por multibanco (440,00€)

1.55 Tendo a arguida BB introduzido nessa caixa de Multibanco/ ATM, o código de acesso e o cartão de débito e/ou crédito associado à conta titulada pelo CC na Caixa de Crédito Agrícola, S.A. com o IBAN PT....................97, de que se apropriou no interior da residência da vítima.

1.56 Pelas 13h39m50s deste dia, 21/03/2020, as arguidas, de comum acordo e em conjugação de esforços, efectuaram o pagamento de uma compra realizada no estabelecimento "Well's" em ..., no valor de 26,90€ (vinte e seis euros e noventa cêntimos), fazendo uso do mesmo cartão de débito e/ou crédito associado à conta titulada pelo CC na Caixa de Crédito Agrícola, S.A., com o IBAN PT....................97, introduzindo o respectivo código de acesso.

1.57 Ao longo do tempo decorrido desde a noite anterior, as arguidas acordaram entre si um plano para ocultar o corpo do CC, o que passava pela decapitação do mesmo e esquartejamento das suas mãos e pés.

1.58 Para a execução desse plano, no mesmo dia 21/03/2020 as arguidas dirigiram-se ao estabelecimento comercial "Continente", na cidade de ..., de onde subtraíram um cutelo, de valor não apurado.

1.59 Assim, levando a cabo o propósito formulado, no final do dia de 21/03/2020, as arguidas regressaram ao local onde na noite anterior tinha ficado estacionado o veículo automóvel do CC, ..-..-NS, para que a arguida BB o conduzisse até ao interior da garagem pertencente ao prédio onde elas residiam, cujo portão automático abriram com o uso de um comando que a arguida AA tinha na sua posse.

1.60 Já no interior dessa garagem as arguidas abriram a bagageira do veículo ..-..- NS.

1.61 E ao longo dessa noite, incluindo a madrugada de 22/03/2020, a arguida BB procedeu, com o uso daquele cutelo, ao corte e desmembramento do cadáver de CC.

1.62 Amputando-lhe os membros superiores ao nível da articulação do cotovelo e os membros inferiores ao nível da articulação dos tornozelos, bem como a cabeça.

1.63 Nesse mesmo circunstancialismo de tempo e lugar permaneceu a arguida AA que, de forma continuada, accionava o interruptor do candeeiro aí existente para permitir que a outra co-arguida tivesse visibilidade na execução dos aludidos cortes do corpo de CC.

1.64 Após, a arguida BB colocou a cabeça do CC no interior de um saco do lixo preto enquanto as mãos, os antebraços e os pés do mesmo foram armazenados em diferentes sacos do lixo, verdes.

1.65 E acondicionou esses sacos de plástico na mala do veículo Mercedes-Benz, ..- ..-NS, que, seguidamente, estacionou no exterior do prédio.

1.66 Por fim, as arguidas regressaram a casa para descansarem ao longo da madrugada.

1.67 e 1.68 No dia seguinte (22/03/2020), as arguidas, de comum acordo e em conjugação de esforços, dirigiram-se a uma caixa de ATM existente nas instalações do Hospital de ..., localizado na cidade de ..., e efetuaram levantamentos duplos de 200,00€ (duzentos euros), atingindo o limite diário permitido por multibanco (400,00€), tendo, para tanto, a arguida AA introduzido o código de acesso, fazendo uso do cartão de débito e/ou crédito associado à conta titulada pelo CC na Caixa de Crédito Agrícola, S.A. à qual corresponde o IBAN PT....................97 e de que se haviam apropriaram no interior da residência desta vítima.

1.69 Na execução do propósito formulado e em conjugação de esforços, pelas 22h30m deste dia 22 de Março, as arguidas deslocaram-se ao ..., em ..., concelho de ..., para abandonarem nesse local a viatura Mercedes-Benz do CC e ocultarem parte do corpo da vítima.

1.70 Para esse efeito, aos comandos do veículo "Mercedes-Benz", ..-..-NS, a arguida BB transportou o corpo do CC, armazenado nos vários sacos de plástico, entre o ... e o ..., em ..., ....

1.71 Enquanto a arguida AA conduzia o veículo automóvel Volkswagen Golf, com a matrícula ..-ZC-.., em simultâneo, e fazendo o mesmo trajecto que a outra arguida. 1.72 Chegadas ao local, as arguidas retiraram do veículo Mercedes- Benz os sacos de plástico com a maior porção do corpo da vítima, o qual a arguida BB projectou junto à orla marítima no fundo de uma arriba, situada no ....

1.73 De seguida, as arguidas abandonaram ambas o local no veículo automóvel Volkswagen Golf, ..-ZC-.., com destino à sua residência, no ..., ..., levando consigo os demais sacos de plástico que continham a cabeça, os antebraços e as mãos e os pés cortados ao corpo da vítima.

1.74 No dia 24/03/2020, em hora não apurada, as arguidas, em conjugação de esforços, deslocaram-se por estradas secundárias, entre a sua residência no ... e a zona do ..., sito na ..., ..., concelho de ..., no veículo automóvel Volkswagen Golf, ..-ZC-.., para ocultar o resto do corpo da vítima.

1.75 Nesse local, seguida pela arguida AA, a arguida BB projectou para a vegetação existente no ..., os sacos de plástico contendo a cabeça, os antebraços, as mãos e os pés do CC.

1.76 Depois, as arguidas abandonaram o local na viatura ..-ZC-.. na direcção da localidade de ....

1.77 e 1.78 Por volta das 02h00m da madrugada de dia 25/03/2020, as arguidas, de comum acordo e em conjugação de esforços, dirigiram-se a uma caixa de ATM existente nas instalações da agência da Caixa Geral de Depósitos, S.A. localizada na Avenida ..., em ..., e efetuaram levantamentos duplos de 200,00€ (duzentos euros), atingindo o limite diário permitido por multibanco (400,00€), tendo, para tanto, a arguida BB introduzido o código de acesso, fazendo uso do cartão de débito e/ou crédito associado à conta titulada pelo CC na Caixa de Crédito Agrícola, S.A. à qual corresponde o IBAN PT....................97, de que se apropriaram no interior da residência desta vítima.

1.79 Ao longo do percurso que realizaram no regresso a casa, a arguida BB deitou para um caixote do lixo afixado na via pública, o cartão bancário de que fizeram uso e as chaves de casa e do automóvel "Mercedes" objectos pertencentes à vítima CC.

1.80 A descrita conduta nos precedentes artigos 1.46, 1.50, 1.52, 1.53, 1.54, 1.56, 1.67/1.68 e 1.74/1.75, permitiu às arguidas aceder à conta bancária titulada pelo CC corresponde o IBAN PT....................97 e subtrair a quantia total de 2.326,90€ (dois mil, trezentos e vinte e seis euros e noventa cêntimos).

1.81 A conduta descrita em 1.67 e 1.68, permitiu à arguida AA aceder à conta bancária titulada pelo CC com o IBAN PT....................97 dela subtraindo a quantia de 400,000 (quatrocentos euros), que entregou à arguida BB.

1.82 De modo não apurado, a arguida BB obteve da vítima o código/pin referente àquele cartão de débito e/ou crédito, que deu a saber à arguida AA.

1.83 As arguidas tiveram conhecimento da password de acesso à aplicação "MB W A Y" através de anotação aposta num dos equipamentos telefónicos pertencente ao ofendido, a que acedeu no interior da habitação deste último no próprio dia 20/03/2020.

1.84 Acresce que no tempo decorrido entre os dias 20 a 25 de Março de 2020, manuseando os dedos cortados da mão da vítima junto ao ecrã do telemóvel associado ao cartão telefónico .......74, com segurança por impressão digital, pertença do próprio CC, a arguida BB, de comum acordo e em conjugação de esforços com a arguida AA, acedeu, por diversas vezes, sem autorização deste, à aplicação "Messenger" da rede social "Facebook" associado à conta pessoal de CC, instalada nesse equipamento móvel e associada a esse mesmo cartão telefónico.

1.85 E, em algumas dessas ocasiões, as arguidas mantiveram contactos e conversas com terceiros a partir dessa aplicação "Messenger" da rede social "Facebook" associado à conta pessoal de CC.

1.86 Assim, pelo menos entre os dias 20 a 23 de Março de 2020, a partir da aplicação "Messenger" da rede social "Facebook" associado à conta pessoal de CC, sem autorização deste, a arguida BB, de comum acordo e em conjugação de esforços com a arguida AA, redigiu e remeteu a FF, entre outras, as seguintes mensagens escritas abaixo discriminadas:

1) «Consegues fazer os dois dias e depois logo te compensou? (dia 20/03/2020 às 18h24m); 2)«Obrigado» (dia 20/03/2020 às 23hOOm);

3)«Na boa» (dia 2010312020 às 23hOOm);

4) «Neste momento não me da jeito emprestar dinheiro. desculpa lá» (dia 21/0312020 às 1Oh48m);

5) «Sabes quando é que o hotel vai abrir? Enquanto ainda se pode sair de casa estou a pensar ir viver para outro sitio e sair do hotel» (dia 2110312020 às 16h38m);

6) «Epa não sei ainda estou a ver Casas» (dia 2 110312020);

7) «Depende de como o país fique, estou a pensar ir para fora» (dia 2 1/0312020);

8) «Não tenho nada que me prenda aqui, vou viajar e depois logo vejo p que faço» (dia 2110312020); 9) «Yaa» (dia 2 110312020 às 10h48m);

10) «Não me apetece receber chamadas, estou a planear a minha ida. Eu mesmo, estou a ver opções», «Já ando a pensar nisto a algum tempo agora estou decidido», «Yaa mas mudei de ideias. prefiro ir viajar e depois logo vejo», «Eu tenho mente própria e quero arriscar» (dia 2110312020);

11) «Já lhe respondi» (dia 22/0312020, às 23h42m);

12) «Estou a tratar das coisas para ir embora esta semana podes tu fazer amanhã e eu pago-te os dois dias?» (dia 2310312020);

13) «Não posso mesmo» (dia 23/03/2020).

1.87 e 1.88 Com a conduta descrita nos artigos 1.84 a 1.86 as arguidas acederam à aplicação “Messenger” da rede social “Facebook” associado à conta pessoal de CC, apesar de saberem que não se encontravam autorizadas pelo mesmo a agir como descrito, e que actuavam contra a sua vontade, agindo desta forma com o propósito alcançado de aceder à informação pessoal do ofendido armazenada naquela respectiva aplicação informática pessoal.

1.89 e 1.90 Sabiam também as arguidas, nas situações descritas nos pontos 1.46, 1.47. 1.54. 1.55 e 1.56, que não lhes era permitido utilizar o cartão de débito associado à conta bancária do ofendido por não lhes pertencer e não ter autorização do seu legítimo possuidor, mas tal não as impediu de o usar.

1.91 Ao utilizarem, respectivamente, o cartão de débito e/ou credito associado à conta à ordem correspondente ao IBAN PT....................97, titulada pelo CC e cujo cartão estava em seu nome, sem que tivessem autorização deste, as arguidas acederam à rede do sistema bancário e procederam a operações que permitiram à arguida BB obter um enriquecimento ilegítimo e causar um prejuízo patrimonial ao legítimo titular de tal cartão no valor total de 1.626,90€ (mil, seiscentos e vinte e seis euros e noventa cêntimos).

1.92 Na conduta descrita nos precedentes artigos 1.46, 1.47, 1.54, 1.55 e 1.56, as arguidas lograram a utilização daquele cartão de débito e/ou crédito por diversas vezes em diferentes caixas de ATM, com êxito, actuando de forma homogénea (uso do mesmo cartão bancário e mesmo código/pin) e dentro de uma linha psicológica continuada, por terem verificado que não tinham sido detectadas a praticar os factos aí referidos e lesaram sempre o mesmo bem jurídico.

1.93 Com a conduta descrita em 1.50 a 1.53 as arguidas acederam à aplicação “MB WAY”, instalada no equipamento móvel e associada ao cartão telefónico n.º .......74, pertença de CC, apesar de saberem que não se encontravam autorizadas pelo mesmo a agir como descrito, e que actuavam contra a sua vontade.

1.94 Agiram por essa forma, com o propósito alcançado de aceder à informação pessoal do ofendido armazenada naquela respectiva aplicação informática pessoal e realizar duas operações de transferências bancárias, que totalizaram o valor de 700,00 (setecentos euros), para se apropriar desses momentos pecuniários, aos quais sabiam que não tinham direito.

1.95 A condução realizada pela arguida BB, descrita nos precedentes pontos, da viatura da marca “Mercedes-Benz”, com a matrícula ..-..-NS, foi efectuada sem o consentimento do proprietário, CC.

1.96 A utilização não autorizada do automóvel por esta arguida durou entre o dia 20/03/2020 e o dia 24/03/2020, ocasião em que o parqueou junto ao ..., em ..., concelho de ... e aí o deixou abandonado.

1.97 Agiu com o propósito, concretizado, de circular com o veículo automóvel da marca “Mercedes-Benz”, com a matrícula ..-..-NS, não obstante soubesse que o mesmo não lhe pertencia e que actuava sem autorização e contra a vontade do seu proprietário.

1.98 Também sabiam as arguidas que todos os bens de que se apoderaram não lhes pertenciam, e mesmo assim quiseram fazê-los coisa sua, como aliás veio a conseguir, apesar de saberem que agiam contra a vontade e sem o consentimento do seu legítimo proprietário.

1.99 Em consequência directa e necessária da actuação conjunta das arguidas em comunhão de vontades, o ofendido CC sofreu as seguintes lesões:

- na zona da cabeça (ossos da cabeça base): equimose a nível dos pavimentos orbitários bilateralmente; (encéfalo) tecido encefálico de cor vinosa e consistência amolecida por acção de fenómenos de putrefacção cadavérica;

- ao nível do pescoço: soluções de continuidade em todo o perímetro, de bordos retas, com algumas indentações, com infiltração sanguínea muito ténue ao nível da pele do terço inferior do pescoço (região do pescoço que interligava a cabeça que se encontra ausente); soluções de continuidade em todo o perímetro, de bordos retas, com algumas indentações, com infiltração sanguínea muito ténue ao nível do tecido celular subcutâneo do terço inferior do pescoço (região do pescoço que interligava a cabeça que se encontra ausente; soluções de continuidade de bordos retas, com algumas indentações com infiltração sanguínea muito ténue, que atravessam todos os planos musculares ao nível do terço inferior do pescoço (região do pescoço que interligava a cabeça que se encontra ausente); solução de continuidade de bordos retas com infiltração sanguínea muito ténue ao nível da traqueia subjacente às lesões descritas do terço inferior do pescoço; solução de continuidade de bordos retas com infiltração sanguínea muito ténue ao nível do esófago subjacente às lesões descritas do pescoço; solução de continuidade de bordos lisos ao nível do disco intervertebral entre a vertebras C5 e C6, com secção das meninges e medula espinal; osso hioide e estruturas cartilagíneas ausentes; laringe e traqueia solução de continuidade de bordos retas com infiltração sanguínea muito ténue ao nível da traqueia subjacente às lesões descritas do terço inferior do pescoço, mucosa escurecida devido aos fenómenos de putrefação cadavérica; faringe e esófago solução de continuidade de bordos retas com infiltração sanguínea muito ténue ao nível do esófago subjacente às lesões descritas do pescoço, mucosa escurecida devido aos fenómenos de putrefação cadavérica;

- ao nível do tórax: paredes infiltração sanguínea ao nível do tecido celular subcutâneo e tecidos musculares subjacentes da metade superior da região torácica; com infiltração sanguínea dos tecidos moles subjacente às fraturas das costelas descritas; clavícula, cartilagens e costelas direitas fratura de topos ósseos infiltrados de sangue da 6. a a J 1. a costelas direitas, pelo arco médio, fratura de topos ósseos infiltrados de sangue das 1. a à 4. a e das 6. a à 8. a costelas direitas, pelo arco posterior; clavícula, cartilagens e costelas esquerdas fratura de topos ósseos infiltrados de sangue da 2. a costela esquerda, pelo arco anterior; fratura de topos ósseos infiltrados de sangue das 5. a à 8. a costelas esquerda pelo arco posterior;

- ao nível do membro superior direito: solução de continuidade de bordos lisos sem infiltração sanguínea associada na face superior do ombro com 2 cm de comprimento; ausência do antebraço, punho e mão C0111 desarticulação ao nível do cotovelo observando-se a epífise umeral; coto de amputação com soluções de continuidade de bordos retas e sem infiltração sanguínea associada ao nivel de todo o perímetro do tecido celular subcutâneo e o tecido muscular; a epífise umeral encontra-se integra à excepção de duas pequenas soluções de continuidade tangenciais à epíjise de bordos lisos com ausência de cartilagem sem sinais de infiltração sanguínea;

- ao nível do membro superior esquerdo: ausência do antebraço, punho e mão, com desarticulação ao nivel do cotovelo observando-se a epíjise umeral; coto de amputação com soluções de continuidade de bordos retas e sem infiltração sanguínea associada ao nivel de todo o perímetro do tecido ce/ular subcutâneo e o tecido muscular;

- ao nível do membro inferior direito: alteração da mobilidade da coxa direita; ausência do tornozelo e pé, com desarticulação ao nível do tornozelo observando-se o osso astrágalo; coto de amputação com soluções de continuidade de bordos retas e sem infiltração sanguínea associada ao nível do tecido celular subcutâneo e o tecido muscular; o astrágalo encontra-se integro, à excepção de quatro pequenas soluções de continuidade, tangenciais à cartilagem do astrágalo de bordos lisos, com ausência de tecido, sem sinais de infiltração sanguínea:

- ao nível do membro inferior esquerdo: múltiplas soluções de continuidade de bordos retas sem sinais de infiltração sanguínea com algumas indentações na face póstero-lateral do joelho com perda de derme com visualização do côndiio lateral do fémur e tecidos moles adjacentes; observa-se ainda fratura da rótula e do terço superior do perónio sem sinais de infiltração sanguínea; ausência do tornozelo e pé com desarticulação ao nível do tornozelo observando-se o osso astrágalo; coto de amputação com soluções de continuidade de bordos retas e sem infiltração sanguínea associada ao nível do tecido celular subcutâneo e o tecido muscular; o astrágalo encontra-se integro à excepção de duas pequenas soluções de continuidade de bordos lidos que apenas atingem a cartilagem do astrágalo sem sinais de infiltração sanguínea.

1.100 A separação da cabeça e as lesões descritas ao nível dos membros superiores e dos membros inferiores, tendo em conta as suas características, resultaram de traumatismo de natureza cortante e/ou corto-perfurante e ocorreram em período post mortem.

1.101 A morte de CC foi resultado de uma asfixia por compressão externa do pescoço.

1.102 A análise toxicológica feita ao sangue revelou a presença de benzodiazepinas (diazepam) no momento da morte de CC.

1.103 Em toda a conduta supra descrita, as arguidas ao actuarem deste modo, quiseram agir como agiram, com o propósito concretizado, de causar a morte do ofendido CC, movidas apenas por razões menores e fúteis, relacionado com o facto de quererem se apropriar do património monetário pertencente a esta vítima bem como toda a sua actuação revelaram premeditação nos procedimentos que realizaram em conjunto com reflexão nos meios empregues para o efeito pretendido.

1.104 Com a sua conduta, também as arguidas visavam ocultar o cadáver, tendo para o efeito procedido ao desmembramento dos membros superiores e inferiores, como ainda a decapitação da cabeça, transportando através de viatura automóvel essas diversas partes do corpo da vítima para locais ermos e distantes entre si.

1.105 As arguidas agiram com o propósito concertado e concretizado e em conjugação de esforços, de se apropriarem do património monetário pertencente a CC, revelando a sua actuação reflexão nos meios empregues para o efeito pretendido e nos procedimentos que realizaram.

1.106 Ao procederem de toda a forma descrita, as arguidas agiram sempre em conjugação de esforços e mediante plano previamente traçado, actuando sempre de forma livre e consciente bem sabendo que todas as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.

1.107 Eliminado.

1.108 A arguida BB detinha a faca de "ponta e mola", descrita em 1.35, sem que estivesse autorizada para tal.

1.109 Esta arguida conhecia as características da referida faca de "ponta e mola.

1.110 Quis esta arguida deter a dita faca de "ponta e mola", sabendo que se trata de objecto de agressão, sem para tal se encontrar autorizada, o que logrou conseguir.

1.111 Ao actuar da forma descrita em 1.13 e 1.12,, a arguida AA conhecia a qualidade de funcionário público em que estava investida e sabia que as três ampolas em vidro com conteúdo líquido de "Diazepam" não lhe pertenciam.

1.112 E que apenas lhe estavam funcionalmente acessíveis em razão das suas atribuições profissionais, integrando esses medicamentos no seu património sem para tanto estar autorizada.

1.113 Eliminado.

1.114 Eliminado.

1.115 Eliminado.

(…)

2. Factos Não Provados

2.1 Eliminado.

2.2 Eliminado.

2.3 Eliminado.

2.4 Eliminado.

2.5 Na circunstância a que se alude em 1.63 dos factos provados supra a arguida AA permaneceu à frente da arguida BB, enquanto esta procedia aos aludidos cortes do corpo de CC.

2.6 O internamento do demandante na Unidade de Longa Duração de ..., implica um custo num total mensal de € 938,68 (novecentos e trinta e oito euros e sessenta e oito cêntimos) comparticipado pela Segurança Social, no mesmo valor do suportado pelo demandante.

2.7 O valor actual da pensão de Invalidez Absoluta do demandante é de €624,60. 2.8 O Assistente por vezes pede para ir para casa.

2.9 Para comprar a viatura de marca Mercedes Benz, Modelo C220 Bluetec, matrícula ..-VH-.., do ano de 2015, o CC entregou uma viatura da marca Renault Megane em segunda mão, e, efectuou um crédito, para a compra desta viatura, sendo sua intenção proceder ao pagamento logo que recebesse a referida indemnização

2.10 O demandante necessita, mensalmente, para as suas despesas gerais e com saúde, para além da sua pensão, da quantia de, pelo menos, €100,00 (cem euros), para as quais o falecido CC contribuia, o que se traduz numa perda para o Demandante da quantia de € 36.000,00 (€ 100,00 x I2x30).

2.11 As despesas do funeral da vítima CC, importaram na quantia de €1.780,00 (mil setecentos e oitenta euros).

Como atrás se referenciou, o assistente impugna factos relacionados com a arguida AA (reportados, na sua essência, à imputação criminal relativa aos crimes de homicídio qualificado, furto simples e acesso ilegítimo, pelos quais foi absolvida), bem como, a alguma factualidade alusiva ao pedido de indemnização civil por si deduzido.

Em concreto, o assistente pugna que se assumam como provados os pontos 4, 8, 9, 12, 14, 17, 21/29, 33, 38/41, 43, 47/48, 51/52, 55/58, 71, 79/80, 82/83, 86/94, 98 e 103, todos do despacho de pronúncia, bem como, os pontos 117, 127, 138, 143/144, 151, 157/158, 166/173, 180, 184, 197, 192/206, 212/215 e 226/230, todos do seu pedido de indemnização civil.

Parte de tal reclamação – a relativa à matéria alusiva à absolvição da arguida AA do crime de homicídio qualificado – é secundada pelo MP no seu recurso.

Por sua vez, esta arguida entende que o tribunal recorrido errou ao dar como provados os factos que permitiram a sua condenação pelo crime de peculato (nsº 1.4, 1.12, 1.13, 1.59, 1.60, 1.63), razão pela qual considera que os mesmos se devem considerar como não provados.

Atente-se assim, na motivação factual do acórdão recorrido (transcrição):

3. Motivação da decisão de facto

(…)

Exame crítico:

Tomemos como ponto de partida para a prova dos factos sob decisão, os factos objectivos e irrefutáveis de observação directa, ou cuja existência objectiva e irrefutável é revelada por prova directa - por perícias, exames, vestígios tecnológicos, autos de apreensão, etc.- a que se seguirão na ponderação os depoimentos das testemunhas e as declarações das arguidas.

Assim,

Partindo-se do dia 26/3/2020,

da existência dos achados, em ..., de um corpo hwnano amputado dos membros superiores e dos pés, e decapitado, parcialmente envolto em sacos de lixo, e no ..., em ..., de uma cabeça humana,

entre um e outro locais medeando cerca de 150 km, que são factos de observação directa e se encontram documentados, nos autos de apreensão respectivos,

Da autópsia

resulta comprovado que o corpo desmembrado e decapitado é o de CC - vd. relatório pericial de identificação genética individual do INML a fls. 1940 e autópsia a fls. 1947 VO - que a sua morte ocorreu por asfixia, devido a compressão externa do pescoço, que é uma causa de morte violenta - vd. fls. 1948 - que a decapitação e as amputações foram posteriores à morte, por acção de objecto de natureza cortante e/ou corto-perfurante, tal como o que pode ser devido a arma branca - vd. fls. 1947 v" - e, ainda que, no momento da sua morte, CC tinha no sangue, ainda que em concentração subterapêutica, 16 ng/ml de Diazepam - vd. fls, 1947 vº- factos e causa da morte sobre os quais nenhuma dúvida se suscitou ao Colectivo, perante o valor científico dos exames periciais de identificação genética, autópsia, e respectivas conclusões, realizados pelo Instituto Nacional de Medicina Legal, INML, que, em si, constituírem prova pericial directa cujo valor se presume subtraído à livre apreciação do julgador nos termos do art. 163°/1 do CPP, sendo que da demais prova existente nos autos e da produzida em audiência, nada resultou ou sobreveio que permitisse ou levasse a divergir do juízo científico formulado pelos respectivos peritos de medicina legal, designadamente da Sr' Dr' GG, que realizou a autópsia e subscreveu as respectivas conclusões e, que, em audiência de julgamento respondeu cabalmente a todos os esclarecimentos que lhe foram solicitados. Conclui-se, assim, sem qualquer dúvida, sobre a morte violenta, ou seja, pelo homicídio de CC, e pela subsequente profanação e ocultação de cadáver, posto que se encontram reunidos os elementos objectivos dos referidos crimes, previstos, respectivamente, no art. 131° do CP, tipo-base do crime de homicídio, e no art. 254° do CP.

Passemos agora ao que sabemos do dia 20/03,

de ciência certa, por factos comprovados por vestígios tecnológicos através da localização celular dos telemóveis pessoal e profissional do CC - vd. informação do servidor de fls. 1436, 1441 - e das imagens do CCTV do Continente ..., -vd. imagens de CCTV do Continente no ..., a fls. 100

- Nessa manhã- o CC encontrava-se na área da sua residência (da União das freguesias de ..., nas células de ..., Assumadas, ... e ...) de onde entre as 1 Oh e as 13h54 enviou do seu telemóvel ... ... .33, para a arguida BB, telemóvel ... ....98, oito mensagens (mocSMS) e,

ao fim dessa manhã, entre as 13h e as 131120, esteve sozinho nos supermercados Aldi, e Continente do .... Na tarde desse mesmo dia, entre as 15h16m e as 18h44, O CC ainda se mantinha na sua residência, onde no seu telemóvel pessoal, .......74, recebeu 4 mensagens (mtcSMS), local da residência de CC, onde, nessa mesma tarde, pelas 19h14m, a arguida AA também se encontrava, dada a localização celular do seu telemóvel, ......72, a 2 km a SE do ... na EN ... - vd. fls. 350 e 13 da perícia 50/2020.

Sabemos, por fim,

Dos registos informáticos dos movimentos bancários que, nessa noite, já pelas 23h27com o cartão do CC da Caixa de Crédito Agrícola do CC foram efectuados uma consulta de movimentos, e dois levantamentos de €200,00, cada, na caixa MB/ ATM do Edificio Multifunções na EN ..., localização que coincide com a morada da residência do casal arguida BB e arguida AA, no .../..., ..., na casa de morada da família de AA, e de onde e por quem, nos dias seguintes, os telefones e o cartão de debito/credito do CC passaram a ser localizados e utilizados.

Assim,

no dia 21/3/2020

logo pelas 10h51 e 10h52 foram efectuadas duas transferências bancárias, via MBW, MBway, no montante de 350,00€, cada, da conta bancária do CC na Caixa de Crédito Agrícola associada ao seu telemóvel .......74 para as contas bancárias associadas, respectivamente, aos números de telemóvel da arguida AA, ......72, e da arguida BB, .......98 - vd. 647,

e, no mesmo dia, 21/3/2020,

como se vê nas imagens de CCTV do Retail Center de ..., a fls. 344, entre as 12h34 m e as 12h38 as arguidas dirigiram-se ao Multibanco/ATM do Retail Center, em ..., seguindo a arguida BB adiante, e a arguida AA, de braços cruzados, atrás da BB, onde a BB com o mesmo cartão usou a máquina MB/ ATM - vd. fotogramas de fls. 347 a 351, e fez dois levantamentos de €200,00, cada - vd. fls. 647

E,

como também se vê nas imagens de CCTV da loja da Well's no Continente em ... (vd. fls. 352 a 356), onde pelas 12h58 as arguidas se encontravam ambas, e pelas 13h00, a arguida BB efectuou um pagamento e marcou o código - vd. fls, 315e 316 –

pagamento feito com o mesmo cartão de débito/crédito do CC, no montante de €26,90.

E, bem assim, como se vê, dos dias seguintes,

- 22/3/2020 -

Pela localização celular, entre as 07h24 e as 23h01, o telemóvel ... ... .33 do CC, estava em ..., ..., e nele foram recebidas 6 mensagens (mtcSMS),

Pelos movimentos bancários, pelas 02h36m o cartão da conta do CC na Caixa Agrícola foi de novo utilizado, em dois levantamentos, de €200,00 cada, em caixa MB/ ATM do Hospital Distrital de ..., local de trabalho da arguida AA.

- 23/3/2020 -

pela localização celular, entre as 15h18m e as 16h31m, o telemóvel ... ....33 do CC, estava em ..., ..., e, nele foram recebidas 10 mensagens (mtcSMS) e dele foram enviadas 5 mensagens (mocSMS)

- 25/03/2020

Pelos movimentos bancários, pelas 02h01, o cartão da conta do CC na Caixa Agrícola foi de novo utilizado em caixa MB/ATM da ..., em ..., Informação estritamente tecnológica – vd. informação da Caixa de Crédito Agrícola a fls. 1386 a 1391 - totalizando €1.600,00 em levantamentos em caixas Multibanco/ATM, €700,00 em transferências MBway, e €26,90 num pagamento em loja.

Vejamos agora sobre o desaparecimento/ausência do CC, a partir do dia 20/03/2020, o que nos dizem as testemunhas

testemunha HH

que no dia 20/03, ele e a mulher, respectivamente, padrasto e mãe do II, amigo do CC, e donos da casa onde residia o CC ainda estiveram com ele nessa manhã, até cerca das llh30m, antes de irem definitivamente para ..., e que o HH sabia que o CC se encontrava empolgado por ir receber em casa nesse dia a arguida BB, para almoçar,

testemunha FF,

que nesse dia, 20/3, e nos dias seguintes, 22, 23 e 24, teve necessidade de falar com o CC sobre a organização do trabalho de ambos no ... por esses dias, questões que careciam de respostas do CC, e que foram objecto de mensagens remetidas e recebidas por telefone, reciprocamente, nesses dias, sendo que, como sabemos, como resulta da localização celular dos telefones do CC, só as que lhe foram enviadas até às 18h44 do dia 20/03 foram recebidas na área da sua residência, da União das freguesias de ..., célula de ..., todas as posteriores, até ao dia 24, tendo já sido recebidas e enviadas quando os seus telefones já se encontravam localizados no concelho de ..., células de ..., área da residência das arguidas no ..., e que, ao FF, que conhecia a vida do CC, o teor das mensagens que recebeu do telefone dele não lhe mereceu credibilidade, suscitando-lhe desconfianças, que imediatamente o levaram a questionar quem ou o quê o tinha feito mudar de ideias - largar o trabalho e ir para o estrangeiro e abandonar o sonho que acalentava de comprar uma casa-

E que, na sequência de ausência de respostas a posteriores tentativas de contactos nos dias seguintes,

O levaram a deslocar-se a casa do CC para se inteirar do que se passava com ele, casa onde só conseguiu entrar com a ajuda do II e do HH, dono da casa, posto que o CC lá não se encontrava, e onde o FF deu logo pela falta dos computadores dele, pessoal e do trabalho, do baixo, e dos carros, que nenhum deles ali se encontrava,

testemunha JJ

que por questões de organização do trabalho do CC, nos dias seguintes ao dia 20/03, ligou para ele sem conseguir obter respostas, pelo que teve de pedir ajuda ao FF, e que, posteriormente) recebeu mensagens do telefone do CC a tratá-lo por sr. JJ, o que lhe suscitou desconfiança por não ser esse o modo de tratamento que mantinham um com o outro, sendo que, como sabemos da localização celular, todas as mensagens enviadas do telefone do CC após o dia 20/03, mensagens mocSMS, foram todas localizadas na área de ...,...,

da testemunha II,

de quem sabemos que a mulher_KK, conforme o próprio referiu em audiência, publicou no Facebook a 24/3/2020, as fotos de CC e do veículo Mercedes, dando conta do desaparecimento e pedindo informações para um número de telefone (fls. 553).

E que, entre o mais - da perícia 50/2020 - nos dias 22/3 e 23/3 enviou mensagens à arguida BB a perguntar-lhe pelo CC, porque do seu local de trabalho (...) lhe ligavam a perguntar por ele, e que no dia 24 disse à mesma BB que iam comunicar às autoridades o desaparecimento do CC,

da testemunha LL

que, como sabemos, no dia 24/3 participou na GNR de ... o desaparecimento do CC e do seu veículo Mercedes- Benz ..-..-NS (fls.72).

Finalmente,

Que nos dizem sobre o CC as declarações das arguidas BB e AA, no confronto entre si, e com a restante prova?

A arguida AA,

Que prestou declarações por três vezes, em sede de 1º interrogatório judicial, Instrução, requerida por si, e em audiência de julgamento, apresentou três relatos diferentes, mas nos quais, no essencial, manteve sempre, que não conhecia o CC, que reanimou o CC, quando ele se encontrava inconsciente às mãos da arguida BB, que ajudou a arguida BB a limpar a casa depois da morte do CC, que ajudou a segurar a cadeira onde a arguida BB transportou o CC de sua casa para o Mercedes Benz, e que fez dois levantamentos sucessivos de 200 euros cada no Hospital Distrital de ..., a pedido da arguida BB, que acompanhou a arguida BB ao ..., a ... e ao ... para a arguida BB se livrar do tronco do CC e do carro do CC, e que transportou a arguida BB e os membros e a cabeça do CC, nas viagens de regresso do ... e de ida e volta para o ... e que tudo fez por amor à BB.

No mais que foi declarando, foi apresentando versões diferentes quanto ao conhecimento que tinha da motivação da arguida BB para ir a casa do CC naquele dia, quanto a ter acompanhado a arguida BB enquanto ela esquartejou o cadáver, quanto a ter dado Diazepam à arguida BB, versões cujos conteúdos foram evoluindo, desde a manifestação do incondicional apoio afectivo à co-arguida, na primeira, para a delimitação cada vez mais redutora do apoio e da sua intervenção pessoal nos factos, à medida que do discurso foi sobressaindo um distanciamento progressivo, que culminou com a confirmação da separação do casal, já no Estabelecimento prisional.

Quanto à arguida BB,

que em sede de Instrução requerida pela arguida AA, não prestou declarações, apresentou versões diametralmente opostas em sede de 1º Interrogatório Judicial e em audiência de julgamento.

Assim,

Enquanto nas primeiras declarações a arguida BB assumiu a prática de todos os factos tal como se encontram descritos e imputados na acusação e na pronúncia, quer os praticados em co-autoria quer os praticados individualmente, à excepção da motivação, negando tê-lo feito para se apropriar do dinheiro de CC e justificando a sua actuação com a vontade de o humilhar e de vingar uma tentativa de violação que teria ocorrido meses antes, e, relativamente à intervenção da co-arguida AA, excluindo-a de todos os crimes, excepto quanto a alguma participação na ocultação e esquartejamento do cadáver, e, maxime, quanto ao crime de homicídio assinalando que a arguida AA reanimou o CC quando a morte já se encontrava iminente depois deste já ter sido asfixiado por ela, BB, e de lhe ter sido aplicado já antes um golpe de mata-leão, quando se envolveram os dois em luta, e, afirmando querer proteger a companheira das consequências nefastas que da morte do CC naquelas circunstâncias, sem culpa nenhuma dessa co-arguida, podiam decorrer para a vida pessoal e profissional dela, e que antevia, apresentou-se depois em audiência de julgamento, a alterar radicalmente a versão inicial, a declarar em sentido totalmente contrário, tudo quanto antes disse, agora apontando a arguida AA como a verdadeira autora e executante de todos os factos de que foi vítima o CC, movida por ciúmes da sua relação com ele, e pela ganância de se apropriar do seu dinheiro, sem embargo de confirmar que, ainda assim, a companheira chegou a reanimar o CC uma primeira vez, mas que só o fez porque ela, BB, o implorou, e desmentindo que alguma vez o CC a tivesse tentado violar ou por qualquer forma faltado ao respeito, afirmando-o exactamente com todas as qualidades de carácter que lhe assinalaram os amigos, família e colegas ouvidos em audiência, tendo sido vítima da arguida AA, e, sendo ela própria, BB, vítima, também, mas do seu amor pela AA, que ao longo da relação sempre a dominou de forma obsessiva.

Que credibilidade apresenta agora esta nova versão da arguida BB apresentada em audiência de julgamento em contra-corrente a tudo o que foi dito antes por ambas e por cada uma das arguidas, que suporte encontra esta nova construção dos factos e do papel de cada uma das arguidas, no contexto factual da restante prova produzida, e na normalidade das relações entre as pessoas, face aos concretos conhecimentos e relacionamentos existentes sobre os actores reais desta tragédia verdadeira que nos ocupa e envolve - as arguidas BB, AA e a vítima CC?

Das declarações que prestou para explicar em 1ª versão como tomou as decisões que conferiram ao modus operandi e ao iter criminis os contornos que tomaram, ficámos a conhecer o gosto da arguida BB pelas séries de crime da TV, culto que em audiência de julgamento continuou a reivindicar para si, negando essa - chamemos-lhe entre aspas -"superioridade intelectual" à arguida AA, não obstante lhe imputar a ela a maquinação de toda a trama.

Essa capacidade, esse talento - se assim quisermos chamar-lhe - da arguida BB, para comunicar a realidade, manifestada de forma persistente no seu discurso e na sua postura, maxime, em audiência de julgamento no tom, agora sofrido e pungente, com que se apresentou quando decidiu prestar declarações, remetem-nos, também para os esclarecimentos que deu, quando tentámos saber dela como poderia a arguida AA planear e executar as acçoes necessárias para praticar os crimes de que foi vitima o CC, sem o conhecer pessoalmente, nem aos seus gostos, nem as suas fragilidades, nem o seu círculo de amigos e conhecidos, e conseguir esconder durante aqueles dias o que se tinha passado, explicando que foi ela BB quem forneceu à AA o conhecimento e o savoir faire necessários à boa execução dos crimes posteriores ao homicídio, designadamente para responder às mensagens, e simular - não se sabe muito bem o quê, se uma viagem ao estrangeiro, ensaiada nas mensagens, se um assalto, encenado nos levantamentos, se o suicídio, sugerido no veículo abandonado em ... - estando nós em crer que a arguida BB nunca pensou que o corpo e os membros da vítima fossem algum dia encontrados e identificados pelas circunstâncias da desfiguração em que os deixou e os locais onde se livrou deles…

Na verdade,

No confronto das versões apresentadas pelas arguidas, entre si, e das personalidades nelas projectadas, e no confronto dessas versões com a restante prova, sendo ponto assente que a arguida AA nem sequer conhecia o CC, e que é pessoa de postura passiva, que aparece, nas circunstâncias em que nos autos está retratada, em regra, de braços cruzados, atrás da arguida BB que toma a dianteira das situações, como se alcança das imagens de CCTV, por exemplo, tudo converge para a arguida BB, primeiro na esperança dos amigos, depois nas suspeitas, e, agora, nas certezas.

Com efeito, a sofisticação dos detalhes, revelada por exemplo, no corte dos dedos para manter as redes sociais do CC, só à arguida BB pode ser atribuída, como a própria, aliás, revelou, explicando- se na sua exclusiva capacidade criativa, inspirada nas estórias das novelas criminais, e auto-imagem de afirmação pessoal, frequentes vezes revelada no seu discurso "eu resolvo ", "não te preocupes, confia em mim ", " talentos e capacidades que levou a sério e aplicou ao real conhecimento que tinha das voltas da vida do CC, do amor que sabia que ele sentia por ela e da proximidade afectiva dele, de que, por isso, beneficiava, e dos sentimentos negativos que por ele nutria, querendo apropriar-se do seu dinheiro, sem respeito nem pela amizade, nem pelo amor dele, nem pela sua personalidade, nem, sequer, como acabou por ser manifesto, pela sua vida. Na verdade, das duas arguidas, é a arguida BB a única em quem se reúnem os conhecimentos da vida do CC, a imaginação, a sede de afirmação, a proactividade, que constituíram os ingredientes necessários para planear e executar todos as acções que foram efectivamente praticadas, sem necessitar, de resto, de nenhuma participação da arguida AA, como não necessitou, apesar de dela ter beneficiado pontualmente.

Apesar disso, do acervo probatório reunido nos autos não resultam provas que permitam concluir que o homicídio do CC foi o plano inicial da arguida BB, com premeditação, como é a imputação da acusação/pronúncia para lhe ficar com o dinheiro da indemnização da morte da mãe dele.

Com efeito,

Sendo certo que se desconhece quais eram, no dia 20/03, os planos de actuação e o modo de execução da arguida BB para extorquir ao CC o seu dinheiro, não se apresenta verosímil que a ideia fosse matar o CC para lhe deitar a mão ao cartão Multibanco e locupletar-se com 70.000 euros da indemnização, à média de 400 euros por dia nas caixas Multibanco, e 700,00 euros por dia em transferências MBway, ainda que a partir do estrangeiro, se fosse essa uma hipótese, não sendo plausível admitir que a arguida corresse o risco de se expôr por tanto tempo a esses movimentos bancários sem despertar suspeitas. Seria demasiada ingenuidade, ou demasiada desconsideração da inteligência dos outros.

Por outro lado,

conforme consta da nota encontrada na perícia informática ao telemóvel da arguida BB, que é rica de pormenores, (não merecendo credibilidade a sua justificação em audiência de que essa nota no seu telemóvel - como se fosse coisa de pouca importância para a discussão que tratamos- era coisa da autoria da arguida AA - AA, que, aliás, o negou e até disse desconhecê-la)

Não se sabendo, como dizíamos, qual terá sido o plano concreto no dia 20/03/2020

Sabemos, todavia,

que já desde os dias 2 e 4 de Dezembro de 2019, a arguida BB congeminara um plano para se apoderar do dinheiro todo do CC de uma só vez, plano que não terá sido totalmente posto de parte, tanto que a nota não foi apagada, e que passava por convencer o CC a fazer uma só transferência bancária para a sua conta, de dinheiro em montante avultado, o bastante para que parecesse suficiente para comprar um carro, dinheiro cujo destinatário último seria o II, sob ameaça de quem ela actuava ao fazer-lhe o pedido, II para quem, ela, BB, conseguiria abortar a transferência desse dinheiro no último momento, com a ajuda da funcionária do banco,

- como se vê, uma estória desenhada sem qualquer pejo de cobrir de lama o amigo do CC aos seus olhos, e, reservando para ela na estória a aparência do papel da heroína, que fruto das suas superiores capacidades de inteligência e anojo, conseguiria reverter a situação salvando do golpe o CC, que, por isso, devia confiar nela e transferir de uma só vez para a sua conta o tal dinheiro, e que, sendo bem sucedido lhe daria a vantagem de não levantar sobre ela de imediato quaisquer suspeitas, e lhe daria o conforto de ficar bem vista perante o CC (se o CC fosse néscio, atrevemo-nos nós a acrescentar)-

- mas que, pese embora o ridículo da trama se de estória de TV se tratasse - sempre se apresentaria mais eficiente para ela do ponto de vista da execução da apropriação, na totalidade e de uma só vez.

Este plano, no dia 4 de Dezembro de 2019,

ou outro semelhante no dia 20 de Março de 2020, que passaria também pela administração de um sedativo, não se sabe muito bem com que extensão, mas que de certeza havia de se destinar a toldar o discernimento do CC,

foi de facto um plano que a arguida preparou, com premeditação, de vários meses, antes mesmo do CC receber a indemnização, e que fracassou na primeira vez que foi executado, em ... na casa de família da arguida BB, conforme alusão feita por ela a esse encontro anterior, no dia 18 ou 19, alusão e fracasso também referidos pela arguida AA nas primeiras declarações que prestou em sede de 1º interrogatório judicial, e sobre ele se concedendo o benefício da dúvida de que não fosse do integral conhecimento da arguida AA, aliás, à maneira da arguida BB, de fazer sozinha as coisas achando-se merecedora da confiança dos outros nas suas capacidades.

Dito isto, é nossa convicção que no dia 20/03 o plano da arguida BB para enganar e espoliar o CC seria algo semelhante a este mas não envolveria a morte do CC, Razão que também tem por última consequência que conhecesse ou não a arguida AA a totalidade do plano, e tivesse ela ou não qualquer envolvimento na execução, o plano era para se apoderar do dinheiro do CC, não para o matar, pelo que, nunca a arguida AA poderia ser considerada por essa adesão - se a tivesse dado, que admitimos que não - co-autora do crime de homicídio, nem a arguida BB autora de homicídio com premeditação. Que temos então que tenha levado ao homicídio?

Parece evidente que foi a recusa do CC de transferir para a conta da arguida de qualquer quantia, que terá precipitado ambos para o confronto físico, aí levando a melhor a arguida BB, (aliás de maior estatura, que ele, com 1,74m e com treino de ...) sobre o CC, que estava preso à cadeira, algo sedado, e, certamente fragilizado pela decepção, mesmo assim resistindo enquanto pôde, até finalmente, falecer.

E qual o papel da arguida AA neste homicídio, descartada a existência de um plano previamente acordado entre ambas com essa finalidade?

Também aqui propendemos para a 1 a versão das arguidas.

Está, em nosso entender fora de dúvida, que a arguida AA, quando se deparou com o ofendido CC, no chão, em dificuldades respiratórias o reanimou e o salvou da morte, o que afasta quanto a ela, em definitivo, mesmo face aos restantes desenvolvimentos, qualquer intenção de matar o CC, sendo certo que se admite como plausível que, soubesse ela ou não de alguma trama da arguida BB contra o CC, conforme referiu nas suas primeiras declarações em 1º interrogatório judicial, a ela parecia não estar reservada qualquer intervenção.

Nem sequer, quanto à sua contribuição com sedativos para entorpecer a mente e a vontade do CC, se pode chegar a essa conclusão.

Na verdade,

A versão apresentada por ambas as arguidas nas suas primeiras declarações a respeito das ampolas de Diazepam, foi a de que era efectivamente a arguida AA que as trazia do Hospital para as dar à arguida BB, mas com a finalidade de lhe facilitar o sono, quando dormia de dia, foi isso que disse inicialmente a arguida BB sobre a proveniência e destino das ditas ampolas, e foi isso que também disse, na mesma oportunidade, a arguida AA. É certo que nas declarações posteriores a arguida AA passou a negar que o fizesse. Porém, entende-se, por um lado, que tal tenha correspondido a uma estratégia da sua própria defesa, oportuna, quer em face da utilização indevida pela arguida BB das ditas ampolas, à revelia dos fins - tratamento da insónia - para que lhas trouxera, quer em face agora também do distanciamento/separação do casal, a não justificar qualquer sacrifício da sua própria responsabilidade profissional por um amor já acabado, quer por outra via, face ao valor diminuto da concentração da substância - 16 ng/ml - em dose sub-terapêutica como foi a explicação científica da Sr' perita de medicina forense em aparente dissonância com a quantidade que era suposto ter sido ingerida, de 30 mg, correspondente ao conteúdo de três ampolas, quantidade que podemos concluir com toda a certeza que o CC não ingeriu, conquanto se desconheça porquê (apesar de não ser de excluir como possível, nessa altura já existir alguma desconfiança do CC, por exemplo).

Todavia, não chega essa discrepância, dessa dose ínfima de Diazepam que o CC apresentava no sangue no momento da morte - posto que como foi explicado pela Sr" perita médica, a partir do momento da morte, o corpo deixa de processar as substâncias ingeridas -para se concluir que a arguida AA não se tivesse apropriado algumas vezes, pelo menos três, daquele medicamento em proveito próprio e da arguida BB, ainda que não destinado a nada mais do que a tratar insónias.

Com efeito,

Ainda que não seja pela apropriação dessa ampola que a arguida AA vem pronunciada não temos dúvida, que a ampola que lhe foi apreendida na sua bolsa no dia da sua detenção, comprova que a arguida AA se apropriava dessas ampolas no Hospital, o que, se face ao valor diminuto constitui um delito menor, e não a compromete com qualquer intenção pretérita de comparticipação criminosa, nem por isso deixará de produzir neste processo e, porventura, na sua vida profissional, um efeito de grande relevância.

Por último,

Ainda quanto à arguida AA,

não se suscitam outras dúvidas quanto aos actos que confessou repetidas vezes, de ter efectuado dois levantamentos bancários da conta do CC, com o seu cartão, no Hospital de ..., totalizando 400 euros, ainda que o tenha feito por indicações da arguida BB e em beneficio dela, o que se apresenta plausível, como não se suscitam duvidas quanto aos actos que praticou para a execução do crime de ocultação de cadáver, actos de ajuda ao transporte do cadáver na cadeira da habitação do CC, de transporte dos restos mortais do CC e da arguida BB no regresso do ... e na viagem ao ..., actos de iluminação com os telemóveis desses locais onde deixaram os restos do cadáver, e também, a espaços, de accionamento do sensor da iluminação na garagem do prédio da sua habitação, conquanto isso não a envolva, com as suas mãos, directamente, no esquartejamento nem na decapitação, nem sequer sejam esses actos da arguida BB essenciais ou imprescindíveis à prática desse crime, mas, nem por isso, podendo deixar de relevar na conjugação de esforços e comparticipação relevantes para a co-autoria do mesmo.

Provas em face das quais,

se procedeu à destrinça da actuação individual e comum de cada uma das arguidas, segundo as diferenças por cada uma delas trazidas ao processo nas suas primeiras declarações em 1º interrogatório judicial, e no confronto com a prova documental existente nos autos conhecida de todos os sujeitos processuais,

declarações espontâneas por cada uma delas individualmente prestadas, perante Juiz e com observância de todas as formalidades legais, o que desde já se assinala também para valer para os efeitos previstos no art. 358º nº2 do CPP,

E, em conformidade com as quais foram julgados respectivamente provados e não provados os factos da pronúncia.

Quanto aos factos do PIC

Relativamente aos provados o tribunal atendeu aos documentos juntos aos autos que constituem fls. 281 e 2246 a 2299, e aos depoimentos das testemunhas prestados em audiência, nos termos expostos supra, e os não provados da ausência de prova.

Quanto á situação pessoal, social e económica das arguidas

A convicção resultou dos respectivos relatórios sociais e CRC´s.

É sabido que constitui princípio geral que as Relações conhecem de facto e de direito, nos termos do estatuído no Artº 428 do CPP, sendo que, no tocante à matéria de facto, é também sabido que o Tribunal da Relação deve conhecer da questão de facto pela seguinte ordem: primeiro, da impugnação alargada se tiver sido suscitada, incumbindo a quem recorre o ónus de impugnação especificada, previsto no Artº 412 nsº3 e 4 do citado diploma, condição para que a mesma seja apreciada e, depois e se for o caso, dos vícios a que alude o Artº 410 nº2, do mesmo diploma legal.

O erro de julgamento, ínsito no Artº 412 nº3 do CPP, ocorre quando o tribunal considere provado um determinado facto, sem que dele tivesse sido feita prova, pelo que deveria ter sido considerado não provado, ou quando se dá como não provado um facto que, face à prova que foi produzida, deveria ter sido considerado provado.

Nesta situação, de erro de julgamento, o recurso quer reapreciar a prova gravada em 1ª instância, havendo que a ouvir em 2ª instância.

Neste caso, a apreciação não se restringe ao texto da decisão recorrida, antes se alargando à análise do que contém e se pode extrair da prova produzida em audiência de julgamento, mas sempre dentro dos limites fornecidos pelo recorrente, no estrito cumprimento do ónus de especificação imposto pelos nsº3 e 4 do Artº 412 do CPP.

É que nestes casos de impugnação ampla, o recurso da matéria de facto não visa a realização de um segundo julgamento sobre aquela matéria, com base na audição das gravações, antes constituindo um mero remédio para obviar a eventuais erros ou incorrecções da decisão recorrida na forma como apreciou a prova, na perspectiva dos concretos pontos de facto identificados pelo recorrente.

E é exactamente porque o recurso em que se impugne amplamente a decisão sobre a matéria de facto não constitui um novo julgamento do objecto do processo, mas antes um remédio jurídico que se destina a despistar e corrigir, cirurgicamente, erros in judicando (violação de normas de direito substantivo) ou in procedendo (violação de normas de direito processual), que sobre o recorrente incumbe o ónus da tríplice especificação, previsto no nº3 do dito Artº 412.

No fundo, o que está em causa e se exige na impugnação mais ampla da matéria de facto, é que o recorrente indique a sua decisão de facto em alternativa à decisão de facto que consta da decisão revidenda, justificando em relação a cada facto alternativo que propõe, porque deveria o Tribunal ter decidido de forma diferente.

Descendo ao concreto do processo e tendo em conta o facto de a instância criminal, em relação à arguida BB, ter sido declarada extinta face ao seu óbito, ocorrido em 29/12/21, já após a prolacção do acórdão condenatório e quando a mesma se encontrava detida em situação de prisão preventiva, é evidente que a discussão factual dos autos se restringe à participação da outra arguida, AA, nos factos que lhe eram imputados.

Recordando-se que a mesma vinha pronunciada pela prática, em co-autoria com a arguida BB, por um crime de homicídio qualificado, um crime de profanação de cadáver, dois crimes de acesso ilegítimo, um crime de burla informática e um crime de furto simples, e em autoria material, por um crime de peculato, veio a ser condenada, tão-somente, por um crime de profanação de cadáver, um crime de burla informática e um crime de peculato. Como atrás se referiu, em sede de impugnação factual, recorreram a arguida AA, o assistente e o MP, aquela, por não concordar com os factos que permitiram a sua condenação pelo crime de peculato, e os demais, por entenderam que a prova produzida deve levar à alteração da factualidade, no que toca à sua participação nos demais crimes de que foi absolvida.

Começando esta análise pelo recurso da arguida AA, impugna a mesma os factos nsº 1.4, 1.12, 1.13, 1.59, 1.60, 1.63 da matéria provada, principalmente por entender que a circunstância de ser ... não prova o seu acesso ao medicamento em causa (Diazepam), sendo certo que não se provou que a quantidade desta substância encontrada no corpo da vítima tenha sido por si fornecida, defendendo por isso a recorrente que o tribunal, ao ter decidido em sentido contrário, violou o princípio in dubio pro reo e cometeu um erro notório na apreciação da prova, verificando-se também a insuficiência para a matéria de facto para a decisão.

Não tem, contudo, razão, na medida em que os factos que agora são impugnados pela recorrente foram por si confessados em sede de primeiro interrogatório judicial, em declarações que foram ouvidas em Audiência de Julgamento e que, por isso podem, e devem ser objecto de valoração probatória, sujeitas ao princípio da sua livre apreciação, nos termos combinados dos Artsº 141 nº4 al. b) e 127, ambos do CPP.

É certo que as arguidas prestaram várias declarações ao longo do processo, nalguns casos, profundamente conflituantes e contraditórias entre si.

A arguida BB, em sede de 1º interrogatório judicial, confessou genericamente os factos, apenas não confirmando o móbil do crime de homicídio, nem a participação neste da co-arguida AA e em Audiência de Julgamento, já após a produção de toda a prova, negou tudo o que até ali tinha afirmado, apontando então a arguida AA como a autora e executante de todos os crimes de que foi vítima o CC.

A arguida AA, por seu lado, prestou declarações por três vezes nos autos - primeiro interrogatório judicial, em instrução requerida por si e no inicio da Audiência de Julgamento - e por três vezes apresentou relatos diferentes, sendo evidente, pela mera audição de tais depoimentos (o que foi efectuado por esta instância recursiva, que procedeu à audição de todos os depoimentos e alegações prestadas e proferidas no processo), a forma como foi evoluindo nas suas declarações, desde um primeiro momento em que assumiu uma vasto conjunto de factos que são incriminatórios e prejudiciais à sua defesa, até às ultimas declarações, em que, na prática, recusou o seu envolvimento em quase toda a factualidade que a envolve, ousando dizer que se limitou sempre a acompanhar a arguida BB, sem vontade própria, fazendo o que esta lhe dizia para fazer, mas sem que se apercebesse, na verdade, do carácter criminoso das suas condutas.

Não é difícil perceber que a esta estratégia de defesa está subjacente, por um lado, a compreensão de que, para alguma da matéria em causa, designadamente, a mais relevante – homicídio e profanação de cadáver – a prova assentava, fundamentalmente, nas declarações das arguidas, atento o facto de inexistirem testemunhas presenciais desses actos e por outro lado, a circunstância de as arguidas se terem desentendido no Estabelecimento Prisional, o que provocou a ruptura do seu relacionamento e passando, desde então, a ocupar celas diferentes.

Ora, podendo as declarações prestadas pelas arguidas ser objecto de valoração, nos termos do princípio da livre apreciação da prova, ínsito no Artº 127 do CPP, é inegável que mereçam bem mais crédito as que foram prestadas a quente, pouco dias após o homicídio, quando foram detidas para primeiro interrogatório e as ditas estratégias de defesa não estariam, ainda, alinhavadas na perfeição. Essas declarações são, de facto, as mais autênticas e genuínas, representam, em relação a parte muito significativa da factualidade que lhes era imputada, uma assunção dos factos, num momento em que ainda não tinham tido tempo para reflectir, e para concertar versões, como é evidente nas alterações apresentadas posteriormente.

Como decorre do respectivo auto e da audição em causa, as arguidas foram ouvidas em separado, em declarações extensas e pormenorizadas, tendo podido falar espontaneamente, sem qualquer coacção ou sugestão do Mmº Juiz de Instrução Criminal que, a esse nível, dirigiu os interrogatórios de modo exemplar.

Por outro lado, sabemos do depoimento da testemunha MM, Inspector da PJ, que as arguidas – demonstrando sempre, desde que foram detidas, um grande amor e carinho uma pela outra – estiveram quase sempre sozinhas até à altura em que foram apresentadas em 1º interrogatório judicial.

Ora, nessas declarações, por ambas as arguidas, mas, de modo indiscutível, pela própria arguida AA, foi afirmado que trazia do Hospital de ..., de modo frequente, ampolas de Diazepam para a arguida BB, para a ajudar a adormecer, já que esta sofria de insónias por trabalhar por turnos na sua actividade de ....

A arguida AA chegou até a particularizar que antes de fornecer esta substância à sua companheira, lhe levava um outro produto, que não teve qualquer sucesso na resolução dos problemas de sono da arguida BB, pelo que foi substituído pelo Diazepam.

Ainda pela arguida AA foi assegurado que o dito Diazepam, pelo menos, em forma de ampolas, só é obtido em contexto hospitalar, não estando disponível em farmácias e que a mesma, trabalhando no Hospital de ..., a ele tinha acesso através das dependências onde estava guardado o material clínico, sendo esta a sua prática, recordando-se que no momento em que foi detida pela PJ, no Hospital de ..., tinha uma ampola daquela substância na sua mala pessoal.

Não há assim nenhuma dúvida que as três ampolas em vidro com conteúdo líquido de Diazepam, com cerca, cada uma, de 10 mg/2ml e que foram, pela arguida BB administradas no sumo de laranja que deu a beber a CC, foram trazidas do Hospital de ... pela arguida AA, que a entregou àquela para tal efeito, o que era do seu perfeito conhecimento, como por si foi assumido em sede de primeiro interrogatório judicial.

Que a quantidade daquele medicamento encontrada no corpo da vítima possa não corresponder, com exactidão, àquela que foi dada a ingerir pela arguida BB, através do aludido sumo de laranja, é matéria irrelevante para o crime de peculato cometido pela arguida AA – que se funda na circunstância de ter subtraído, do Hospital onde exercia funções como funcionária, material clínico que não lhe pertencia e sem que, para tanto, estivesse autorizada – e que se explica pelo facto de a autópsia ao corpo de CC ter sido realizada quase um mês depois da sua morte, o que pode originar tais discrepâncias, como explicou, em Audiência de Julgamento, a Srª Perita Médica que procedeu à mesma, a Drª GG.

No que respeita a factos também agora impugnados pela arguida AA (nsº 1.59, 1.60 e 1.63), relativos ao momento, lugar e modo como pelas arguidas foi esquartejado o corpo de CC, trata-se de matéria que, com todo o pormenor – e, aduzimos nós, impressionante frieza, como se alcança pela audição dos respectivos testemunhos – foi explanada pelas arguidas em sede de primeiro interrogatório judicial, tendo sido por ambas relatado que na noite seguinte ao homicídio de CC, o mesmo é dizer, no dia 21/03/20, a arguida BB conduziu o veículo automóvel daquele e onde o seu corpo estava depositado na respectiva bagageira, das traseiras do imóvel onde ambas residiam e onde se encontrava estacionado, para a garagem deste prédio, cujo portão automático abriram, com o uso de um comando que a arguida AA tinha na sua posse.

Mais foi por ambas explicado que aí, no interior da dita garagem, aberta a bagageira do veículo em causa – Mercedes, de matrícula ..-..-NS – e ao longo da madrugada, num processo que demorou várias horas, a arguida BB, usando um cutelo que tinham furtado de um estabelecimento comercial nesse mesmo dia, procedeu, materialmente, ao corte e desmembramento do cadáver de CC, cortando-lhe a respectiva cabeça e amputando-lhe os membros superiores ao nível da articulação do cotovelo e os membros inferiores ao nível da articulação dos tornozelos.

Igualmente por ambas foi narrado, que enquanto a arguida BB assim procedia, na bagageira do veiculo e tendo, por debaixo do cadáver de CC, uma manta para que de tal operação não ficassem vestígios hemáticos, a arguida AA, de forma contínua, permaneceu junto do interruptor da luz da dita garagem, accionando-o sempre que o candeeiro aí existente se apagava, assim permitindo que a arguida BB tivesse visibilidade para proceder ao desmembramento e aos cortes no corpo de CC. Trata-se de matéria que, em sede de primeiro interrogatório judicial, não suscitou qualquer dúvida às arguidas, que relataram os factos de modo idêntico e consistente, pelo que não oferece qualquer credibilidade o desvio que, posteriormente, levaram a cabo nos seus depoimentos, afirmando, cada uma delas, que não tinha tido qualquer intervenção na profanação do cadáver de CC, desconhecendo até onde é que tal tinha acontecido, já que o mesmo havia sido levado a cabo pela outra arguida…

Será ainda de notar que a autópsia à cabeça da vítima revelou que os cortes aí efectuados se apresentavam rectos, com solução de continuidade e com ténue infiltração sanguínea, ou seja, foram cortes cirúrgicos, feitos por pessoa a quem foram fornecidos, necessariamente, conhecimentos de anatomia, não se podendo olvidar que a arguida AA tem a qualidade de ...…

Apenas uma nota final para dizer, ainda sobre esta matéria, que, ao assim ter decidido, inexiste, por bando do tribunal recorrido, qualquer violação do princípio in dubio pro reo, que só ocorre quando, em sede de prova, perante uma dúvida objectiva e intransponível, o tribunal decide desfavoravelmente ao arguido.

Sendo uma emanação do princípio constitucional da presunção de inocência, surge o mesmo como resposta ao problema da incerteza em processo penal, impondo a absolvição do acusado quando a produção de prova não permita resolver a dúvida inicial que está na base do processo.

Se, a final, persistir uma dúvida razoável e insanável acerca da culpabilidade ou dos concretos contornos da actuação do acusado, esse non liquet na questão da prova terá de ser resolvido a seu favor, por imposição do estatuído no Artº 32 nº1 da Constituição da República Portuguesa.

Ora, resulta com clareza da fundamentação da sentença recorrida, que nestas referenciadas matérias, inexistiu qualquer dúvida no espírito do julgador, na construção do esqueleto factual dos autos, após a apreciação, livre, responsável e motivada da prova produzida em Audiência de Julgamento, corroborada com a já existente nos autos.

Em suma, a censura que a recorrente AA imputa ao acórdão recorrido em sede de impugnação factual, não pode deixar de improceder, já que, nos específicos domínios a que se reporta, o decidido pelo tribunal a quo mostra-se inteiramente conforme com a prova produzida e com as regras da experiência, não merecendo, por isso, qualquer censura.


*


Já o mesmo não sucede, com o devido respeito, com a impugnação factual suscitada pelos recursos do assistente e do MP.

Na verdade, em relação à participação da arguida AA no crime de homicídio do CC – já que a aferição de tal participação no que respeita à arguida BB está prejudicada pela extinção da sua responsabilidade criminal em consequência do seu óbito – acredita-se que, com o devido respeito, o tribunal recorrido incorreu em manifesto erro de julgamento, não tendo valorado, correctamente, as declarações das arguidas em sede de primeiro interrogatório e no seu confronto com as regras da experiência, a normalidade da vida, e o sentido das coisas.

Cotejando, no que toca à questão em litígio, ou seja, o conhecimento/participação da arguida AA no crime de que foi vítima CC, importa reter, das declarações ali prestadas, o seguinte:

A arguida BB afirmou:

- Em Janeiro/Fevereiro de 2020, o CC disse-lhe que tinha recebido a indemnização de € 70,000,00 proveniente do acidente que tinha vitimado a sua mãe;

- Partilhou esta informação com a AA, com quem vivia, como companheiras, na casa dos pais desta, desde Outubro de 2019;

- As ampolas de Diazepam, foram-lhe entregues pela AA, como era habitual e destinavam-se a adormecer o CC;

- Só queria assustar o CC, seduzi-lo, amarrá-lo a uma cadeira e dizer-lhe o mal que este lhe tinha feito por uma alegada tentativa de violação de que tinha sido vitima por parte do CC há seis meses atrás;

- Quando chegaram a casa do CC, a AA ficou no carro e só ela é que entrou em casa;

- Misturou o Diazepam no sumo de laranja e deu-o a beber ao CC;

- Sentou o CC na cadeira e amarrou-o aos braços desta com as abraçadeiras que tinha levado de casa;

- Como a AA estava sempre a ligar-lhe para o telemóvel, saiu de casa, foi até ao carro onde aquela se encontrava e disse-lhe que estava tudo bem, para ela esperar só mais um bocadinho, e voltou para a casa do CC;

- A AA veio atrás dela, apesar de ela lhe dizer para não vir e entrou em casa do CC à sua frente;

- Neste momento, o CC estava de pé, com a cadeira atrás das costas e viu a AA, o que a irritou (a ela, BB) e a levou a fazer-lhe o “mata-leão”;

- Nessa sequência, e tendo o CC se debatido contra tal golpe, soltando um dos braços que estava preso à cadeira, veio o mesmo a cair ao chão, de barriga para cima, tendo ela (BB), se colocado em cima dele e começado a asfixiá-lo;

- Enquanto tal acontecia, a AA estava atrás de si e não fez qualquer movimento para a impedir de sufocar o CC;

-Tendo o CC ficado inconsciente, parou de o sufocar e pediu à AA que visse se ele estava a respirar, ao que ela disse que estava em paragem, tendo ela (BB), lhe feito manobras de reanimação;

- Como estava a fazer, de forma incorrecta, tais manobras, a AA substitui-a nessa actividade, efectuando cinco ou seis compressões torácicas;

- Em consequência das mesmas, o CC retomou a consciência e fez movimentos para se libertar, tendo agarrado no braço da AA com muita força o que a levou (a ela BB), a colocar-se de novo em cima dele, voltando a sufocá-lo até este perder a consciência;

- Enquanto tal acontecia, a AA estava atrás de si e não fez qualquer movimento para a impedir de sufocar o CC;

A arguida AA relatou:

- A BB, em finais de Fevereiro ou inícios de Março de 2020, disse-lhe que tinha um plano para roubar dinheiro a uma pessoa que era conhecida dela mas não de si (AA), e que o iria prender e fazer-lhe ameaças;

- Não lhe disse, na altura, a identidade dessa pessoa, mas cerca de uma ou duas semanas mais tarde, descreveu-lhe a família da pessoa em causa, sendo que dois dias antes do crime, identificou-lhe que a vítima seria o CC, de quem ela (AA) sabia que estava apaixonado por ela (BB) e que iria tentar, através de ameaças, extorquir-lhe o pin bancário.

- Disse-lhe que não concordava nada com isso, que era um crime e fez-lhe ultimatos, no sentido de que se ela (BB), continuasse com tais propósitos, a relação entre ambas estaria terminada;

- Percebeu, no dia 20/03/20, que tal plano iria ser executado nesse dia e pediu-lhe para não o fazer, tendo a BB lhe respondido que ela (AA) podia ficar na casa da mãe daquela, onde se deslocaram antes de se dirigirem à casa do CC, ainda que se lhe acontecesse alguma coisa não ia ter ninguém para a ajudar;

- Acabou por ir com a BB, por causa dos sentimentos que sentia por esta, por estar apaixonada por ela;

- Quando chegaram a casa do CC, a BB entrou e ela (AA), ficou no carro à espera, isto pelas 12.30/13.00;

- Já passava das 17.00 e porque a BB nada lhe dizia, começou a telefonar-lhe e a enviar mensagens, sempre sem resposta daquela, até que a BB lhe envia um sms a dizer que estava tudo bem e que se precisassem dela lhe dizia;

- Pouco depois, a BB apareceu à porta da casa do CC a fazer-lhe sinal para a seguir, o que ela fez até á porta do CC, que a BB fechou, tendo ela (AA), ficado do lado de fora;

- A BB abriu depois a porta e quando tal sucedeu, viu que o CC se tinha levantado, procurando talvez soltar-se da cadeira que tinha atrás das costas;

- A BB fechou a porta e ela (AA), permanecendo no exterior, ouviu sons de luta, até que os mesmos terminaram, após o que, abriu, ela mesmo, a porta da habitação, que estava apenas no trinco, entrando em casa do CC, tendo-o visto no chão e a BB por cima dele a fazer-lhe um “mata-leão”;

- Entretanto, assim que entrou em casa, a BB disse-lhe que já havia conseguido o pin bancário do CC;

- O CC tinha perdido os sentidos e como a BB estava a fazer-lhe reanimação de forma incorrecta, ela própria fez-lhe algumas, não foram precisas muitas, compressões torácicas, tendo o CC recuperado a consciência;

- Após o que, tentou atacá-las às duas, com os braços, tendo a BB lhe dito para ir para o quarto do CC que se situa uns metros à frente da sala onde os descritos acontecimentos se desenrolavam;

- Foi para o quarto do CC e a BB voltou-lhe a fazer-lhe um golpe com as duas mãos, asfixiando-o;

- Quando o CC deixou de fazer sons e a BB deixou de o apertar, voltou do quarto e tentou fazer-lhe manobras de reanimação, mas o CC não recuperou a consciência;

- O plano não era que o CC morresse;

- Não acha que tenha tido alguma coisa a ver com a morte do CC, (“ela é que o matou, não eu”), ainda que reconheça que, no local, nada disse ou fez para impedir a BB de fazer o que fez ao CC;

- Não ligaram ao 112 pois ele já estava morto e não queria prejudicar a BB pois esta é que o tinha morto;

Estas foram, no essencial e no que toca à dinâmica relativa ao crime de homicídio, as declarações prestadas pelas arguidas em sede de primeiro interrogatório judicial e que, apreciadas livremente pelo tribunal recorrido, conjugadas com os demais elementos probatórios constantes dos autos, deveriam ter levado a outras conclusões em sede probatória, até porque as mesmas se mostram muito mais consentâneas com as regras da experiência e o sentido das coisas, do que a versão que, posteriormente, foi sendo apresentada, quer pela arguida AA – na instrução por si requerida e no julgamento – quer pela arguida BB, em Audiência, que, numa viragem total do seu depoimento, imputou à sua co-arguida toda a responsabilidade pelo homicídio e mesmo, pela profanação de cadáver.

Ora, retomando a análise das declarações que supra se referenciam, torna-se claro, desde logo, que a intenção que presidiu à actividade criminosa das arguidas – o denominado móbil do crime – foi, indiscutivelmente, a apropriação do dinheiro da vítima.

É certo que a arguida BB alegou que apenas se queria vingar de uma tentativa de violação por parte do CC ocorrida meses antes, mas esta versão é frontalmente desmentida por vários elementos.

Em primeiro lugar, pelas declarações da arguida AA, que assegurou que a arguida BB, em finais de Fevereiro ou inícios de Março de 2020 lhe tinha dito que tinha um plano para obter dinheiro, tendo, duas semanas depois, especificado, que tal passava por prender e ameaçar o CC.

Por outro lado, para além de inexistirem quaisquer elementos que corroborem essa tese da suposta tentativa de violação de que teria sido vítima por parte do CC, a verdade é que a mesma casa mal com o facto de a arguida, apesar de se sentir – nas suas declarações – humilhada pelo CC, ter continuado, como por si foi reconhecido, a conviver com ele, almoçando e jantando com o mesmo e permitindo que este, por exemplo, a acompanhasse a ... para que ela removesse uma tatuagem, como também relatou em sede de primeiro interrogatório.

Por fim, é a própria arguida BB, que, em Audiência, desmente, em absoluto, essa versão, afirmando que a mesma era uma mentira por si inventada, e que o CC sempre se tinha comportado para consigo de uma maneira exemplar, até porque era uma pessoa espectacular, com todas as qualidades que foram descritas pelos seus amigos durante o Julgamento.

Assim sendo, se é evidente que a tese da vingança por causa de uma suposta violação cai, evidentemente, por terra, atenta a sua total ausência de suporte probatório, existem outros fortes elementos para considerar que à actuação criminosa exercida sobre o CC presidiu uma intenção de apropriação do seu património.

Desde logo, as já referidas declarações da arguida AA, que, sem nenhuma dúvida, desenham a existência de um plano que, na sua versão, foi desenhado pela sua co-arguida para tal apropriação.

Por outro lado, da perícia efectuada ao telemóvel da arguida BB, consta uma nota datada de 02/12/219 - um mês antes de o CC receber a indemnização proveniente da morte da Mãe - onde se descreve um resumo de um esquema para conseguir ficar com a quantia que o CC ia receber. Confrontada com o teor desta nota em Audiência de Julgamento, a arguida BB não negou, nem a sua existência, nem o seu conteúdo, limitando-se a dizer que a mesma tinha sido elaborada pela co-arguida AA.

Da mesma resulta, com meridiana clareza, que ao contrário do que por si foi afirmado, a arguida BB teve conhecimento de que o CC iria receber uma avultada indemnização - € 70.000,00 - não em Janeiro ou Fevereiro de 2020, mas, pelo menos, em finais de Novembro, princípios de Dezembro de 2019 e ainda antes de aquele receber o respectivo cheque, sendo evidente que tal conhecimento lhe adveio de o próprio CC, atenta a paixão que sentia por si, lhe ter, confidenciado tal facto.

É assim evidente que, com alguns meses de antecedência, foi elaborado um plano para apropriação do dinheiro que o CC ia receber da dita indemnização, o que também era do conhecimento da arguida AA, como foi assumido pela arguida BB e também por aquela, ainda que tenha situado esse conhecimento em momento posterior.

Depois, o facto, nada despiciendo, de a arguida AA ter também relatado que assim que entrou na casa do CC, a BB lhe disse já consegui o Pin, o que atesta, de forma clara, a formulação de um móbil atinente ao enriquecimento das arguidas através do património da vítima.

E dizemos arguidas, no plural, na medida em que a normalidade das coisas, por um lado e o comportamento posterior daquelas, por um outro, impõe essa conclusão.

Na verdade, apesar de ter ficado claro, pela audição do primeiro interrogatório judicial, que houve uma evidente preocupação, por parte da arguida BB, de desresponsabilizar a arguida AA, procurando arcar com todas as responsabilidades sobre os acontecimentos daquele fatídico dia, inventando até uma razão para estes – a dita tentativa de violação – que apenas lhe diria respeito a si, não deixa de ser menos verdade que essa tentativa é votada ao fracasso, seja pelas declarações da própria arguida AA, seja pelo comportamento posterior ao homicídio.

Estamos a falar de um casal, duas raparigas jovens, que viviam uma relação apaixonada, com manifestações públicas de carinho, como foi testemunhado pelo Inspector da PJ, MM, que deteve uma delas e as observou enquanto estiveram detidas (vi sempre muito amor, muito carinho entre ambas) e também notado pelo Mmº Juiz de Instrução Criminal que realizou os primeiros interrogatórios, e que presenciou que as mesmas se apresentaram de mãos dadas, tendo sido nessa situação que ouviram a decisão sobre as medidas de coação que lhes foram aplicadas.

Referiu a arguida AA – contrariando assim, de modo frontal, a versão aduzida pela sua companheira – que logo em finais de Fevereiro, inícios de Março, o plano de apropriação do dinheiro do CC foi formulado, não sendo crível que a arguida AA ao mesmo não tenha aderido, mesmo admitindo que não tenha sido por si elaborado em conjunto com a arguida BB.

E a ausência de credibilidade para este facto advêm, desde logo, pela circunstância de a própria arguida AA ter admitido que forneceu à sua co-arguida as ampolas de Diazepam com o fito de esta tentar adormecer a vítima, o que quer dizer que a arguida AA tinha pleno conhecimento de um plano de índole criminosa por parte da arguida BB e nele participou por inteiro, fornecendo a substância que seria imprescindível, pelo menos, no seu desenho inicial, para o sucesso do mesmo.

Tal convicção, a do conhecimento/participação por parte da arguida AA no plano criminoso a praticar sobre o CC, é corroborada, quer pela normalidade da vida, quer pela forma como vai associando-se aos acontecimentos, participando no desmembramento do cadáver, na forma como o corpo e as partes do corpo do CC foram sendo espalhadas por vários sítios do ..., efectuando, materialmente, um levantamento bancário, beneficiando, na sua conta bancária, de uma transferência da conta do CC e estando sempre presente ao longo dos outros levantamentos bancários que foram efectuados e das compras que as arguidas, utilizando o cartão do CC, levaram a cabo, sendo que, pelo menos uma delas, na Well´s de ..., se destinou a um produto de higiene que era para si (AA), e tendo sido também ela, como por si foi admitido em sede de primeiro interrogatório, que se desfez, atirando para o lixo depois de o limpar com álcool, o cutelo com que a arguida BB efectuou os cortes no corpo do CC.

Ou seja, todos os levantamentos em dinheiro, as transferências bancárias que foram efectuadas, as compras realizadas, tudo com o cartão bancário do CC – cujo Pin a arguida AA havia obtido daquele, na casa deste – ou com o código de acesso ao MBWAY, demonstram, inelutavelmente, a motivação financeira que sustenta a prática dos factos delitivos.

É certo que parece difícil conceber como é que as arguidas pretenderiam, desse modo, locupletarem-se com a quantia de € 70.000,00 que CC havia recebido de indemnização, mas a verdade é que enquanto dispuseram do cartão, foram efectuando levantamentos no limite máximo diário, para além de compras e ainda, transferências bancárias que realizaram para as suas próprias contas bancárias, sendo curioso notar, pela análise do extracto dos movimentos do cartão de CC, associado à sua conta na CCAM de ..., que de cada vez que foi cometido um levantamento, era também executada uma consulta de saldos, o que reflecte, por parte das arguidas, a necessidade de controlar os movimentos da conta e o saldo nela existente.

É até esta específica circunstância – a da existência de transferência de dinheiro da conta do CC para as contas, individuais daquelas – que faz com que não se possa aceitar a tese das arguidas segundo a qual aqueles levantamentos visavam criar a ideia de que o CC teria ido para o estrangeiro ou que um terceiro teria praticado o crime.

O simples facto de existirem as ditas transferências é um elemento suficientemente comprovativo da intenção apropriativa, por parte das arguidas, do dinheiro do falecido CC.

Em relação à participação da arguida AA no homicídio do CC, com o devido respeito, entende-se que o tribunal recorrido decidiu mal, desconsiderando o que acima se transcreveu e não atendendo ao que faz e não faz sentido, de acordo com as regras da experiência comum que, mais do que nunca, em situações em que a prova existente radica, fundamentalmente, nas declarações das arguidas, devem ser tidas em conta.

Esta participação começa, desde logo, pelo facto de a arguida AA nunca se ter distanciado do plano que, na sua tese, a sua co-arguida lhe revelou ter para obter dinheiro do CC.

É certo que a arguida AA refere que nunca concordou com tal plano, que tinha consciência de que o mesmo consubstanciava a prática de um crime e que chegou a fazer ultimatos à arguida BB no sentido de não o levar avante sob pena de a relação amorosa entre ambas terminar.

Mas estas palavras – assumidas, evidentemente, numa perspectiva de afastar a sua responsabilidade criminal – não têm qualquer correspondência com o seu próprio comportamento, razão pela qual não merecem credibilidade.

Não se olvide que, em sede de Julgamento, a arguida AA veio apresentar uma outra versão, afirmando desconhecer a existência de qualquer plano para ficar com o dinheiro do CC e que apenas ali se dirigiu, no dia do crime, porque a arguida BB lhe disse que lá tinha de ir para ver se as colunas de rádio para o seu carro já estavam prontas para ser montadas, versão totalmente inverosímil, não só porque não fazia sentido viajar cerca de 30 km, se era possível, com um simples telefonema, confirmar se as ditas colunas já estavam prontas para serem instaladas na viatura e depois, por a mesma ter sido frontalmente desmentida pelo depoimento da testemunha II, principal amigo do CC e que declarou que, a pedido deste, foi quem instalou, no carro da arguida BB, o sistema de som, o qual estava a funcionar correctamente, pelo que não estava prevista a instalação de quaisquer colunas e, quando tal fosse necessário, ele saberia, na medida em que seria a testemunha a instalar as novas colunas, pois seria a si que o seu amigo CC pediria para o fazer. Importa notar – (o que é evidente pela mera audição das declarações prestadas em primeiro interrogatório judicial) – que o depoimento da arguida AA é sempre prestado de um modo calmo, sereno, assertivo, de onde não resulta a existência de qualquer pressão, medo, ou coacção, que tivesse da sua companheira, ou que ao cometimento dos actos (como tentou justificar nas suas declarações posteriores), estivesse subjacente o domínio, naquela relação amorosa, da arguida BB, limitando-se a ora recorrente a obedecer ao que esta lhe dizia para fazer, sem juízo crítico e sem sequer se aperceber da censura que tais actos eram merecedores.

O seu depoimento, com um sentido lógico e uma construção encadeada, demonstra o oposto desse suposto atabalhoado ou confuso comportamento posterior, determinado por uma relação amorosa da qual estava dependente e que a fazia actuar sem pensar, como um autómato, que se limita a acompanhar a companheira para onde quer que esta fosse e no que esta fizesse.

Inexiste, nele, qualquer sinal de tais dependências ou condicionalismos, qualquer nota de que apenas pretendesse acompanhar a sua co-arguida, quando descreve a forma como ajudou, durante horas, ao corte do corpo do CC levado a cabo na garagem do prédio onde residia com a BB e os seus pais na casa destes, numa operação que levou, nas suas palavras, pelo menos, três horas, pela madrugada dentro, encarregando-se a depoente de ir fazendo accionar, permanentemente, o sensor da luz para que a co-arguida BB tivesse visibilidade suficiente para efectuar aquele desmembramento do cadáver do CC.

Apesar de não se vislumbrarem quaisquer indícios de a arguida AA exercer um domínio sobre a co-arguida BB (como por esta foi alegado, num volte face decorrente das suas declarações prestadas no fim da Audiência de Julgamento, que soou tão surpreendente como desesperado), o mesmo se pode afirmar em relação à hipótese inversa, a qual, aliás, seria até, em princípio, ainda menos razoável de admitir, tendo em conta a formação superior da arguida AA, o seu maior estatuto económico e o modo tranquilo, pausado e detalhado, quando depôs em primeiro interrogatório judicial, com um raciocínio estruturado, que não se coaduna com uma personalidade influenciável e dominável ao ponto de ter cometido os factos que lhe são imputados por um sentimento de obsessão e mera obediência a uma pessoa por quem estava apaixonada.

É certo que nas declarações posteriores (na instrução e no julgamento), a arguida AA tentou transmitir outra ideia, mas as mesmas, pelo que se expôs, carecem de credibilidade, não se podendo esquecer que foram prestadas vários meses depois da detenção, o que fez com que a arguida tivesse todo o tempo para reflectir e ponderar o que deveria dizer no futuro para melhor se poder desresponsabilizar criminalmente.

E fê-lo de um modo ostensivo, como bem notou o Mmº Juiz no seu despacho de pronúncia, negando aquilo que antes, espontaneamente, tinha confessado, como, por exemplo, a sua intervenção na madrugada em que procederam ao desmembramento do corpo do CC e o facto de ter retirado as ampolas de Diazepam do seu local de trabalho (Hospital de ...) e as tenha entregado à arguida BB para que esta as utilizasse com o propósito de fazer adormecer a vítima, bem como, o seu desconhecimento em relação ao plano daquela de se apropriar do dinheiro do CC, desmentindo-se assim, sobre matérias, que, sem rebuço, tinha antes admitido.

Ora, o que resulta das suas primeiras declarações (bem como do depoimento aí prestado pela arguida BB), é a existência de uma relação amorosa sólida, com união entre as arguidas, como aliás se alcança pelas fotografias/imagens juntas aos autos, retiradas das câmaras de vigilância de algumas lojas onde efectuaram compras com o cartão do CC, ou das máquinas ATM onde procederam a levantamentos com o mesmo cartão, e em que as arguidas aparecem permanentemente juntas, vendo-se até que, num dos casos, e após utilizarem o cartão da vítima, saem da loja em causa abraçadas uma à outra.

Curiosamente, em resposta a uma questão relacionada com tal matéria, a arguida AA respondeu que esta era uma característica de ambas, estavam sempre assim, uma com a outra…

A este propósito, compreende-se mal que o tribunal colectivo, do simples facto de a arguida AA aparecer nessas imagens, em regra, atrás da arguida BB e de braços cruzados, tenha retirado a conclusão de que a mesma é uma pessoa de postura passiva e personalidade dominável, não só porque, com o devido respeito, tais elementos são manifestamente insuficientes para retirar essas conclusões, como ainda, pela circunstância de que um mero conhecimento, ainda que deficiente, da mente humana, nos permitir saber que, não bastas vezes, uma personalidade forte e determinada pode-se esconder sob as vestes de alguém aparentemente submisso e resignado.

A verdade é que nunca, em nenhum momento do seu primeiro depoimento e apesar de tal lhe ter sido explicitamente questionado, a arguida AA afirmou que tinha sido obrigada, pela sua co-arguida, a praticar o que quer que fosse, tendo sempre respondido, de forma clara, em sentido negativo.

Daí que, repita-se, se entenda que as declarações a merecerem crédito são as que foram prestadas em sede de primeiro interrogatório judicial e não as restantes, quando as arguidas foram alinhavando estratégias de defesa, para culminar com as do julgamento em que – reflectindo, por certo, o fim da relação amorosa – cada uma procurou incriminar exclusivamente a outra pelos fatais eventos, quer os que culminaram com a morte do CC, quer com os factos hediondos que a seguir tiveram lugar, como a desagregação do seu cadáver. Nessa medida e fazendo a cronologia do dia do homicídio, há que ter em conta que a arguida AA, apesar de ter trabalhado toda a noite anterior no Hospital de ... e de estar, por isso mesmo, particularmente cansada, viajou com a arguida BB até à casa do CC, em ..., a cerca de 30/40 kms de distância do local onde ambas residiam.

Sabia também a arguida AA, que a arguida BB tinha consigo uma faca e levava consigo, sacos de plástico, fita adesiva, luvas descartáveis, uma corda e abraçadeiras, sendo que estas se destinavam a prender o CC que iria ser adormecido com as ampolas de Diazepam que por si haviam sido fornecidas. Esperou várias horas no carro, nos termos do plano traçado, no exterior da residência daquele, (que tem um portão e um pátio exterior, pelo qual se acede à dita residência), talvez numa posição de vigia para que pudesse avisar a sua co-arguida no caso de alguém aparecer, subitamente, para visitar o CC, sendo evidente que nunca poderia acompanhar a BB assim que esta entrasse em casa daquele, não só porque este não a conhecia e logo desconfiaria de alguma coisa se a visse, como teria sempre de aguardar o pretendido efeito que o Diazepam teria no CC.

No momento em que entra em casa do CC, este ainda estava vivo, como por si é admitido.

Aqui, importa ter em conta o que disse a arguida BB e que supra se transcreveu e que se terá de admitir como verdadeiro, porquanto, tendo tido durante o seu interrogatório a preocupação evidente de proteger e isentar a arguida AA de culpa na morte do CC, é evidente que os factos que atribui àquela e o lugar onde a coloca na dinâmica dos mesmos tem de se ter como certos e objectivos.

Desse discurso, sem dúvida, podemos reconstituir o que se passou:

Assim que a arguida BB veio ao exterior da casa do CC ter com arguida AA e após breve troca de palavras, avançaram as duas para a casa e assim que a arguida AA nela entrou (ao que parece, imediatamente antes da arguida BB), o CC viu-a o que fez com que se tentasse libertar da cadeira onde estava amarrado, até porque terá percebido, em definitivo, o logro em que havia redundado o almoço que tinha imaginado com a pessoa por que estava apaixonado (Note-se que a testemunha HH, padrasto do CC e com que falou telefonicamente pelas 15.30, relatou que o achou, na altura, com uma voz diferente, longe da euforia com que estava nessa manhã e que sentiu que ele procurou despachar o telefonema).

A arguida BB reagiu, colocando-se na rectaguarda do CC e fez-lhe um “mata-leão”, com o qual este se debateu, caindo no chão de barriga para cima, tendo aquela arguida se colocado sobre o corpo do mesmo apertando-lhe o pescoço com as duas mãos, apenas tendo parado quando aquele aparentou estar inconsciente.

Enquanto este comportamento da arguida BB se deu, a arguida AA permaneceu sempre atrás de si, nada tendo dito, nem tendo feito qualquer movimento para a impedir de sufocar o CC.

Verificando que este estava inconsciente, a arguida BB começou a efectuar manobras de reanimação ao CC, mas como as fazia de forma incorrecta, as mesmas vieram a ser feitas pela arguida AA, em número de cinco ou seis, o que fez com que o CC recuperasse a consciência.

Assim que retomou a consciência e com o intuito, evidente, de se defender, o CC desferiu uma pancada com o braço para afastar de si a arguida AA, que era quem estava mais próxima atenta a circunstância de lhe ter efectuado as ditas manobras de reanimação.

Veio então a arguida BB a colocar-se de novo, sobre o corpo do CC, sufocando-o até este perder a consciência, após o que, a arguida AA, que se manteve sempre atrás da arguida BB enquanto esta o asfixiava, verificou que este já não apresentava sinais vitais.

Lendo-se, neste segmento, a decisão recorrida, julga-se que a mesma entendeu não ser possível atribuir à arguida AA uma participação no homicídio de CC, fundamentalmente, porque a mesma não estava no local dos factos (quer no primeiro, quer no segundo momento de asfixia levado a cabo pela arguida BB), e depois, porque a circunstância de ter realizado manobras de reanimação à vítima impede que se desenhe, em relação a si, o dolo de homicídio.

Com o devido respeito, são razões erradas, desconcertantes, que não se configuram com a prova produzida, o mesmo é dizer, com as declarações das próprias arguidas, e cuja dificuldade de aceitação talvez tenha justificado que a Mmª Juiz Presidente, na leitura do acórdão, e dirigindo-se directamente à arguida AA, lhe tenha confessado que o Colectivo tinha tido alguma dificuldade em absolvê-la do crime de homicídio (asserção que não pudemos confirmar na medida em que essa sessão de julgamento não está disponível para audição no sistema Citius).

Na verdade, por ambas as arguidas é reconhecido que a arguida AA assiste ao primeiro “mata-leão” que é efectuado pela arguida BB ao CC –circunstância que a decisão recorrida, pela descrição dos factos que acolhe, parece nem admitir – e no que toca ao segundo momento de asfixia, torna-se evidente que a arguida AA esteve ali presente, assistiu a tal acto, até porquanto, pela logística do local, bem visível nas fotografias que suportam os autos de reconstituição dos factos efectuados por ambas as arguidas (os quais, apesar de neles terem sido acompanhadas pelos respectivos defensores, não valem como tal, por não terem sido precedidos nem efectuados com observância das formalidades legais), é possível verificar a enorme dificuldade, leia-se, na verdade, a quase impossibilidade física, de a arguida AA ultrapassar o corpo do Digo, caído no chão, tendo sobre si, a arguida BB que o asfixiava, para se dirigir ao quarto daquele, ainda que este distasse a apenas, 2/3 metros.

Não faz nenhum sentido que tal tivesse acontecido e a sua mera hipótese desafia o sentido das coisas e a normalidade da vida.

Dando por adquirido a existência de um plano por parte de ambas as arguidas no sentido de obter dinheiro, ilicitamente, do CC, plano este, no qual a arguida AA desempenhou um papel fundamental, desde logo, ao fornecer as ampolas de Diazepam que se destinavam a adormecer a vítima, e tendo ainda a arguida AA assistido ao primeiro “mata-leão” efectuado pela arguida BB no corpo da vítima, não é credível que após este ter reagido, assim que recuperou a consciência e feito com que esta arguida de novo se lançasse sobre si para o sufocar, a arguida AA, por qualquer razão que não se vislumbra, se tenha conseguido afastar, num exercício de ginástica assaz difícil, passando por cima ou ladeando a sua companheira enquanto esta asfixiava uma pessoa, para se ir refugiar no quarto da vítima e fechado a porta do mesmo.

Na sua tentativa de se isentar de responsabilidades e procurando inculcar a ideia de que só acompanhou a arguida BB, por estar apaixonada por ela e ter medo que alguma coisa lhe sucedesse, não é coerente, com tal discurso, que a arguida AA se tenha afastado de uma situação que, momentos antes, já tinha observado (o “mata-leão”), sem que tivesse feito o que quer que fosse para impedir esse acto.

Por outro lado, mesmo que se admita essa tese, apesar de frontalmente contrariada pelo depoimento da arguida BB – ou seja, que, no momento do segundo estrangulamento – a arguida AA pudesse estar no quarto do CC, a verdade é que tal em nada a isenta de responsabilidade no que estava a acontecer, tendo em conta que, como é visível nas fotos constantes dos autos sobre o local do crime, estamos a falar de uma distância mínima, de 2/3 metros, em que era possível, à arguida AA, ver perfeitamente o que estava a acontecer e actuar em conformidade se assim o entendesse.

Isso mesmo, aliás, decorre das suas declarações prestadas em primeiro interrogatório judicial, em que afirma que nesse momento, em que foi para o quarto do CC, a sua co-arguida fez, de novo um “mata-leão”, tendo ela voltado quando aquele deixou de fazer sons e a arguida BB deixou de o apertar, declarações que, lidas com rigor, mais não são do que a admissão implícita de que tinha total conhecimento de que a arguida BB estava, pela segunda vez, a asfixiar o CC, a pouquíssima distância do local onde se encontrava, e nada fez ou disse para a impedir de prosseguir nessa conduta assassina.

Nessa medida, e como constava do despacho de pronúncia, viola todas as regras da experiência comum não colocar a arguida AA no exacto local dos factos, tendo assistido, sem nenhuma dúvida, ao acto material de asfixia do CC, levado a cabo pela arguida BB – no sentido em que foram as mãos desta que o sufocaram – mas sem que nada tivesse feito, ou dito, para a impedir, aderindo, desde logo, por omissão, a tal comportamento, tendo o pleno domínio do facto para lhe pôr termo, optando, contudo, por nada fazer.

Por outro lado, e com o devido respeito por opinião contrária, não se acredita que da circunstância de a arguida AA ter realizado manobras de reanimação no CC, afaste, quanto a si, o dolo de homicídio, já que tais manobras, pelo menos, em relação ao primeiro momento de asfixia, foram também realizadas pela arguida BB e isso não a impediu de voltar a sufocar o CC quando este voltou a si.

Daí que se entenda que essa reanimação (frustrada no caso da arguida BB e com sucesso quando praticada pela arguida AA, o que não é de espantar atenta a sua qualidade de ...) não é de molde a colocar em dúvida o dolo de homicídio, atenta a conduta subsequente da arguida BB, à qual a arguida AA deu todo o seu apoio, estando colocada atrás desta e nada fazendo, ou dizendo, para travar tal acto criminoso.

Foram muitos os momentos (horas, para ser mais preciso, atento o seu próprio depoimento), em que a arguida AA se poderia ter afastado da casa do CC, poderia ter tentado impedir a arguida BB de fazer, materialmente, o que fez.

Mas não.

Assistiu, calma, livre, voluntária e conscientemente, aos momentos finais do CC, apoiando a arguida BB em cada momento daquela actividade homicida.

Como bem sintetizou o Mmº Juiz de Instrução no despacho em que aplicou às arguidas a medida de coação de prisão preventiva:

“Note-se que não estamos perante um qualquer crime de ocasião ou que tenha ocorrido do nada. Ambas as arguidas se deslocaram cerca de 40 km com o único propósito de praticar actos ilícitos. Foi inclusive a arguida AA quem forneceu à co-arguida as ampolas de Diazepam que serviriam para adormecer a vítima. Sabia que a arguida BB tinha uma faca e levava uma corda e abraçadeiras. Chegada à habitação, em momento algum recusa o plano, adere ao mesmo e está ao pé da co arguida quando esta asfixia. Foram muitos os momentos em que AA poderia ter saído dali, poderia ter parado, poderia ter impedido. Mas tal não ocorreu, sabendo ela ao que ia, pois, reitera-se, não só a co-arguida já lhe tinha dito que tinha um plano para obter dinheiro, como sabia que naquela concreta ocasião tal plano iria ser executado. Forneceu o medicamento que seria utilizado, acompanhou, viu o material a utilizar, foi para dentro de casa e esteve com a co-arguida no momento da morte de CC, dando-lhe apoio e estando ao seu lado. Tal mais não é do que a execução de um plano pré elaborado praticado por ambas as arguidas.”

A prova não pode ser analisada de forma compartimentada, segmentada, atomizada, mas, ao invés, dever ser valorada na sua globalidade, estabelecendo conexões, conjugando os seus diferentes meios de prova e não desprezando as presunções simples, naturais ou hominis, que são meios lógicos de apreciação das provas e de formação da convicção.

Importa ainda dizer, que as provas não têm forçosamente que criar no espírito do julgador uma absoluta certeza dos factos a provar, certeza, essa, que, muitas vezes, seria impossível, ou quase impossível de alcançar.

O que é necessário, é que as mesmas provoquem um grau de probabilidade tão elevado, que se baste, como certeza possível, para as necessidades de vida, de forma a se poder concluir, sem dúvida razoável, que um indivíduo praticou determinados factos.

Ora, apreciando todos os elementos constantes dos autos, valorando-os de uma forma crítica e de acordo com a experiência comum, sem dúvida razoável, é possível afirmar a participação da arguida AA no homicídio do CC nos exactos termos plasmados no despacho de pronúncia.

E o mesmo se diga em relação à demais factualidade constante do dito despacho, que é imputada a ambas as arguidas, em comunhão de esforços e vontades e que o tribunal a quo, algo estranhamente, atribui, tão-somente, à arguida BB. Falamos em relação à apropriação dos telemóveis e do cartão de débito/crédito que pertenciam a CC e que o acórdão recorrido imputa apenas à arguida BB, sem que se perceba a razão de tal procedimento, tendo em conta que os ditos cartões foram utilizados para os levantamentos efectuados, materialmente, é certo, pela arguida BB, mas com evidente benefício das duas arguidas, como decorre do facto do dinheiro daí resultante ter sido apreendido no quarto de ambas e de, por exemplo, uma das compras efectuadas com tal cartão de débito se destinar a um produto para uso da arguida AA, como por esta explicitamente foi confessado.

Com o devido respeito, crê-se que o tribunal recorrido falhou na análise global dos factos, os quais, vistos nesta perspectiva, são particularmente reveladores em relação à postura da arguida AA, e referimo-nos agora apenas em relação a esta arguida, porquanto, quanto à sua co-arguida BB, a responsabilidade criminal está, como se sabe, extinta.

Depois de verificar que o CC estava morto, a arguida AA, juntamente com a sua co-arguida, limpou a casa, eliminando os vestígios que as pudessem incriminar ou revelar as suas presenças no local, ajudou a arguida BB a proceder ao corte dos dedos polegar e indicador do CC, segurando na mão deste (como exemplificou nas fotos que reproduzem a reconstituição de factos por si efectuada) enquanto aquela os cortava, que foram guardados num envelope para posterior desbloqueio do telemóveis do CC, e ajudou a transportar o corpo desta para a bagageira da sua viatura, factos, todos eles, por si assumidos aquando do primeiro interrogatório judicial.

A este nível, é evidente a conjugação de esforços na execução fria de um plano (utilização posterior dos dedos da vítima para desbloquearem o seu telemóvel e acederem à sua conta bancária), através de uma técnica que, como foi reconhecida pela arguida BB, foi aprendida numa série televisiva.

Também por si admitido é a circunstância de ter conduzido o carro da arguida BB, no regresso do ... (casa do CC) ao ... (residência das arguidas), enquanto esta conduzia a viatura do CC, levando o corpo deste na bagageira, momento em que também estava sozinha e podia, uma vez mais, ter saído dali e procurado ajuda, ou denunciado a arguida BB.

Estacionaram o carro do CC, com o corpo deste na respectiva bagageira, nas traseiras do prédio onde residiam, no ... e foram dormir, não sem antes terem feito dois levantamentos da conta bancária daquele, utilizando o seu cartão.

No dia seguinte, 21/03/20, no estabelecimento Wells em ..., as arguidas compraram um creme para a arguida AA e efectuaram novos levantamentos no Multibanco, utilizando sempre o cartão de débito do CC, sendo perfeitamente visível nas imagens recolhidas que em momento algum, a arguida AA está ali contra a sua vontade, nela não se notando qualquer desconforto, saindo do estabelecimento abraçada à arguida BB.

Nessa mesma noite, por volta da 00.00, transportam a viatura do CC para a garagem do edifício onde viviam, para procederam ao já mencionado desmembramento e corte no corpo do CC, materialmente executado pela arguida BB (utilizando, para tanto, um cutelo que havia subtraído, nesse mesmo dia, no estabelecimento comercial do Continente, na cidade de ..., estando no acto acompanhada pela arguida AA, que, como se vê pelas fotografias relativas a esse acto, se encontra imediatamente atrás da arguida BB enquanto esta retira o dito cutelo do expositor, nada tendo feito para a impedir, apesar de saber para é que o mesmo se destinava, sendo ainda a arguida AA, recorde-se, como por si confessado, quem, mais tarde, após a operação de desmembramento do cadáver do CC, se irá desfazer do aludido cutelo, colocando-o no lixo depois de o ter limpo com álcool), mas no qual a arguida AA desempenhou um papel essencial, assegurando, durante as três longas horas que durou essa actividade, que a sua co-arguida teria sempre luz suficiente para o concluir.

Ainda nesse dia, efectuaram duas transferências bancárias no valor de € 350,00 cada, da conta do CC junto da CCAM, através da aplicação “MB WAY”, associada ao telemóvel e cartão telefónico do CC, para o que utilizaram os dedos da mão direita do CC, que haviam cortado, sendo que uma dessas transferências teve como destino a conta da arguida AA na CGD e a outra, a conta da arguida BB no BBVA.

Participou na dissipação do corpo do CC, efectuado em dias distintos e em locais bem distantes do ... e ...), o tronco para um lado e a cabeça, braços e pés para outro, tendo, para tanto, conduzindo o seu veículo Volkswagen enquanto a arguida BB conduzia o Mercedes da vítima com o seu corpo esquartejado na bagageira, o que fizeram sempre de noite, para evitarem serem descobertas, em simultâneo e no mesmo trajecto, com o objectivo comum de abandonar o carro do CC, espalhar as partes do seu corpo por diversos sítios para, deste modo dificultar/impedir, quer a descoberta dos mesmos, quer a própria identificação do cadáver, como por ambas foi assumido em interrogatório judicial.

Nesta actividade, a arguida AA teve um papel nada desprezível, na medida em que, como foi por si esclarecido, tinha por função iluminar, com as lanternas do seu telemóvel e do telemóvel da sua companheira, o caminho que esta ia percorrendo enquanto levava consigo, num dia, o tronco, e noutro, a cabeça decepada e os restantes membros cortados do corpo de CC. Recorde-se que as arguidas fizeram, numa dessas deslocações mais de 150 kms, confiando, por certo, que o corpo do CC, pelas mesmas mutilado, nunca fosse encontrado, ou que, ainda que assim sucedesse, nunca o mesmo seria identificado, tendo em conta que lhe haviam decepado a cabeça e os membros superiores e inferiores, os quais, até hoje, ainda não apareceram.

Procederam a mais levantamentos da conta bancária do CC, utilizando sempre o cartão de multibanco deste e ainda que fosse a arguida BB a proceder materialmente a este acto, leia-se, a introduzir o dito cartão na máquina multibanco e carregar nos números que correspondiam ao mesmo, a arguida AA esteve sempre presente, acompanhou-a nesses levantamentos e deles beneficiou, tendo em conta que, como já se disse, o dinheiro de que deste modo ilegitimamente se apropriaram foi apreendido no quarto das arguida na residência onde viviam.

Aliás, dois dos levantamentos, no valor de €200,00 cada um, atingindo o limite máximo diário de €400,00, efectuados dois dias depois do homicídio, numa caixa Multibanco/ATM existente nas instalações do Hospital de ..., foram realizados pela própria arguida AA, como por si foi admitido e se mostra comprovado por imagens constantes dos autos.

Ou seja:

A arguida AA esteve sempre presente em todos os actos materiais cometidos pela arguida BB após o homicídio, e, nalguns deles, participou de forma directa: limpou a casa da vítima em conjunto com aquela; ajudou a transportar o corpo do CC para o carro; participou no desmembramento do corpo nos termos já referidos; dissipou o cutelo utilizado em tal desmembramento que havia sido comprado em conjunto; levantou directamente dinheiro e foi directamente beneficiária de uma transferência, para a qual foram utilizados os dedos do CC, que haviam sido cortados pela arguida BB com a sua ajuda; acompanhou sempre a arguida BB nos restantes levantamentos, tendo o dinheiro em causa sido apreendido no seu quarto; acompanhou a arguida BB nas compras que efectuaram com o cartão de débito do CC, sendo que uma delas foi para aquisição de um produto que se destinava a si própria e assistiu às mensagens que a arguida BB enviava aos amigos e colegas de trabalho do CC, no sentido de dar a ideia de que este tinha viajado para o estrangeiro, usando para tanto, a arguida BB, os dedos polegar e indicador daquele, que tinham sido retirados do seu corpo e guardados num envelope que ficou sempre na posse das arguidas.

É curioso aliás notar que, em sede de primeiro interrogatório, a arguida AA assumiu que tais mensagens foram por vezes enviadas quando as arguidas estavam no seu quarto, com os seus pais (sendo o progenitor militar da GNR) em outras divisões da casa e tendo-lhe sido perguntado se não achava tal comportamento hediondo, a arguida respondeu que assim não considerava, já que, como ..., está habituada a ver partes do corpo humano e que tal conduta – tentar convencer os amigos do CC que este estava vivo mas tinha viajado para fora do país – lhe pareceu fazer sentido, atenta a lógica subjacente de procurar evitar que se soubesse que aquele havia sido assassinado.

Não é assim possível, sob pena de se violar, grosseiramente, o bom senso e o equilíbrio na apreciação da prova, bem como, as regras da experiência que devem presidir a qualquer aferição probatória, distinguir responsabilidades das arguidas, no sentido em que ambas estavam, de igual modo, intrínseca e profundamente envolvidas no plano traçado para se apropriarem do dinheiro pertencente a CC.

Daí que se perceba mal como é possível considerar que o acto de apropriação dos telemóveis e do cartão de débito/crédito deva ser apenas imputado à arguida BB, quando, esse momento material, de obtenção de tais objectos, foi praticado na casa de CC, na presença da arguida AA, que, ao mesmo, não denotou qualquer oposição, e a utilização efectuada de tais objectos foi em benefício, directo e indirecto de ambas, no âmbito do plano previamente estabelecido.

Parece evidente que faz todo o sentido o plasmado na pronúncia, no sentido de tal apropriação dever ser imputada às duas arguidas, que agiram sempre em comunhão de esforços, numa vontade comum de se apropriarem de património de terceiro e de se comportarem de modo a que a sua conduta ficasse impune, razão pela qual, por exemplo, era importante/essencial, convencer os amigos e colegas de trabalho do CC que este, voluntariamente, tinha saído de Portugal.

É certo que a execução material de alguns destes actos - o manuseamento dos dedos do CC no seu telemóvel para o envio das mensagens aos seus amigos fazendo-se passar por aquele, a introdução do cartão bancário do CC na ranhura das máquinas de Multibanco ou nos terminais de pagamento e o digitar os respectivos números do cartão - foram feitos pela arguida BB, mas que daí se conclua que só esta deva ser responsabilizada pelos crimes que os mesmos constituem é, com o devido respeito, absolutamente incompreensível.

Desde logo, porque se trata de condutas que apenas podiam ser materialmente exercidas por uma pessoa, pois seria objectivamente impraticável que ambas pegassem no cartão ao mesmo tempo e o introduzissem na ATM e, as duas, ao mesmo tempo, digitassem o respectivo código.

De igual modo, apenas uma pessoa poderia simular as mensagens em nome do CC, já que estamos a falar na escrita de um ecrã de telemóvel.

Depois, porque não sendo necessária essa prática conjunta dos actos materiais para a configuração da co-autoria, está provado, sem qualquer dúvida, que ambas estiveram presentes nesses levantamentos e nessas compras e, fundamentalmente, que todos esses actos visavam a execução de um plano conjunto, ao qual ambas aderiram, de se apoderarem do dinheiro da vítima.

Nesta medida, e este é um elemento determinante, como se viu pelas razões expostas, tais actos foram praticados sempre na presença da arguida AA, com o seu inteiro conhecimento e acordo (recorde-se o que atrás se escreveu sobre a lógica, para arguida AA, de se dar a entender ao amigos do CC que este tinha viajado, o sentido que esta conduta adquiria no objectivo de esconder, até onde fosse possível, o crime que havia sido cometido) e sem que a mesma, em algum momento dos mesmos, tivesse demonstrado alguma oposição.

Excluindo as matérias relacionadas exclusivamente com uma das arguidas – o peculato, quanto à arguida AA, e os ilícitos de furto de uso de veículo e detenção de arma proibida no que concerne à arguida BB – tudo o mais foi cometido em comunhão de esforços e vontades, num cenário de co-autoria (juridicamente descrito no segmento seguinte), pelo que se entende que houve, nesta parte, uma errada apreciação e valoração das provas (sendo de referir que os recorrentes, nesta parte, deram cumprimento à exigência decorrente do nº3 do Artº 412 do CPP, indicando quais os factos que deveriam ser considerados provados e quais as provas que obrigavam a tal modificação), o que se reconduz a um erro de julgamento da matéria de facto, verificável pela ponderação concertada das provas produzidas e respectivo exame crítico, de onde não resulta a formulação do juízo negativo efectuado pela instância sindicada em relação à participação da arguida AA, quer na matéria relativa ao crime de homicídio que lhe era imputado, quer quanto aos restantes crimes de furto, acesso ilegítimo e mesmo de burla informática, na medida em que, também aqui, o tribunal a quo individualizou as responsabilidades de cada arguida de acordo com a sua actividade material, afastando, por isso, a co-autoria, o que, pelas razões expostas, se entende como injustificável.

A decisão, nesta matéria, do tribunal recorrido, foi proferida com base numa interpretação e valoração que desprezou meios de prova seguros e credíveis, com força bastante para, repousando nas regras de experiência ou no sentido das coisas, se desenhar um raciocínio condenatório que se impõe, pela consistência necessária daquele acervo probatório, razão pela qual, merecendo essa censura, deve ser alterada.

Não pode assim este Tribunal ad quem deixar de julgar procedente a impugnação alargada da matéria de facto efectuada pelos recorrentes (assistente e MP) e, em consequência, alterar a factualidade provada, fazendo-a coincidir com a que se mostrava plasmada no despacho de pronúncia no que toca à participação da arguida AA ali descrita e retirar daí, no segmento seguinte, as óbvias consequências jurídicas.

Por fim, no que respeita aos factos constantes do pedido de indemnização civil que o assistente procura ver incluídos na matéria de facto provada, entende-se inexistir razão válida para tanto, seja porque muitos deles já naquela se mostram vertidos, sejam por constituírem meras conclusões ou considerações de direito, seja ainda, pelo singelo motivo de não se terem provado, como acontece, por exemplo, com a alegação de que CC contribuía com o valor mensal de € 100,00 para o assistente, matéria que, ao contrário do afirmado por este no seu recurso, não foi, em Julgamento, assegurado pela testemunha EE, tia daquele.

Da mesma forma, inexiste qualquer prova nos autos relativa ao valor do funeral de CC, nem esta matéria foi, sequer, aflorada em Audiência.

Em conclusão e em sede de impugnação factual, improcede o recurso da arguida AA e procedem, nos termos acima referidos, os recursos do MP e do assistente, o mesmo é dizer, determinar-se-á a alteração da factualidade provada no sentido de dar por assente a participação da arguida AA nos actos criminosos descritos na pronúncia, em situação de co-autoria, consignando-se que no seu recurso, o assistente reclama, por vezes, pela inclusão de determinados factos na matéria provada que já dela constam, pelo que, nessas partes, o recurso não poderá ter aceitação.

Concretizando, a matéria de facto será alvo das seguintes alterações2:

(…)

B.3. Enquadramento jurídico em relação à arguida AA

Com as alterações factuais que decorrem do que atrás se expôs, dando-se por assente a factualidade constante da pronúncia, torna-se evidente que o enquadramento jurídico no que concerne à arguida AA terá de ser alterado, porquanto, para além dos crimes pelas quais foi condenada – profanação de cadáver, burla informática e peculato – terão agora de se somar os ilícitos de homicídio qualificado, acesso ilegítimo e furto simples, sendo certo que o crime de burla informática foi por si cometido em co-autoria e não, em autoria simples, como entendeu o tribunal recorrido.

Importa assim, para além do que já se plasmou no segmento anterior, tecer mais algumas considerações sobre a noção de co-autoria e a sua aplicação à situação dos autos, ainda que a mesma seja amplamente conhecida, pelo seu exaustivo tratamento, quer na Doutrina, quer na Jurisprudência, razão pela qual nos limitaremos a transcrever o que, a esse propósito, se escreveu no despacho de pronúncia e que merece o nosso inteiro acordo:

“Tal como descrito no Acórdão do Venerando Tribunal da Relação de Évora datado de 11/3/2014, processo n.º 205/12.1GGSTB.E1, disponível para consulta em www.dgsi.pt Dispõe o art. 26º do C.Penal. “É punível como autor quem executar o facto, por si mesmo ou por intermédio de outrem, ou tomar parte directa na sua execução, por acordo ou juntamente com outro ou outros, e ainda quem dolosamente, determinar outra pessoa à prática do facto, desde que haja execução ou começo de execução”.

Os elementos da comparticipação criminosa sob a forma de co-autoria são os seguintes: a) o objectivo, que consiste na intervenção directa na fase de execução do crime (execução conjunta do facto); b) o subjectivo, isto é, o acordo para a realização conjunta do facto; acordo que não pressupõe a participação de todos na elaboração do plano comum de execução do facto; que não tem de ser expresso, podendo manifestar-se através de qualquer comportamento concludente; e que não tem de ser prévio ao início da prestação do contributo do respectivo co-autor; c) O domínio funcional do facto, no sentido de “de ter e exercer o domínio positivo do facto típico” ou seja, o domínio da sua função, do seu contributo, na realização do tipo, de tal forma que, numa perspectiva ex ante, a omissão do seu contributo impediria a realização do facto típico na forma planeada.

Como se refere no Ac. STJ de 27-9-1995, CJ STJ, III, tomo 3, 197: “São requisitos essenciais para que ocorra comparticipação criminosa sob a forma de co-autoria a existência de decisão e de execução conjunta. O acordo pode ser tácito, bastando-se com a consciência/vontade de colaboração dos vários agentes na realização de determinando crime: No que respeita à execução, não é indispensável que cada um dos agentes intervenha em todos os actos ou tarefas tendentes a atingir o resultado final; o que importa é que a actuação de cada um, embora parcial, se integre no todo e conduza à produção do objectivo em vista.

A essência da co-autoria consiste em que cada comparticipante quer causar o resultado como próprio, mas com base numa decisão conjunta e com forças conjugadas.

Por seu turno, nos termos do art. 27º do C.Penal “é punido como cúmplice quem, dolosamente, e por qualquer forma, prestar auxílio material ou moral à prática por outrem de um facto doloso”, pressupõe um apoio doloso a outra pessoa no facto antijurídico doloso cometido por esta, não havendo na cumplicidade domínio material do facto, pois o cúmplice limita-se a favorecer a prática do facto.

A cumplicidade diferencia-se da co-autoria pela ausência do domínio do facto; o cúmplice limita-se a facilitar o facto principal, através do auxílio físico (material) ou psíquico (moral), situando-se esta prestação de auxílio em toda a contribuição que tenha possibilitado o facto principal ou fortalecido a lesão do bem jurídico cometida pelo autor.

Como refere Germano Marques da Silva em Direito Penal Português, Tomo II, pág. 291, a cumplicidade “é pois, uma forma de participação secundária na comparticipação criminosa, secundário num duplo sentido: de dependência da execução do crime e de menor gravidade objectiva, na medida em que não é determinante da prática do crime (o crime seria sempre realizado, embora eventualmente em modo, tempo, lugar ou circunstâncias diversas)”.

Daqui resulta que a cumplicidade se traduz num mero auxílio, não sendo determinante da vontade dos autores nem participa na execução do crime, mas é sempre auxílio à prática do crime e nessa medida contribui para a prática do crime, é uma concausa da prática do crime. Assim, enquanto o co-autor tem um papel de primeiro plano, dominando a acção, já que esta é concebida e executada, com o seu acordo, inicial subsequente, expresso ou tácito, o cúmplice é um interveniente secundário ou acidental, isto é, só intervém se o crime for executado ou tiver início de execução e, além disso, mesmo que não interviesse, aquele sempre teria lugar, porventura em circunstâncias algo distintas. A sua intervenção embora seja concausa do crime praticado não é causal da existência da acção.”

No caso, crê-se que do muito que acima se escreveu, em sede de matéria de facto, resulta, à saciedade, um cenário de co-autoria das arguidas, nos factos que, como tal lhes eram imputados, incluindo aquele que mais é impugnado pelo assistente e pelo MP, ou seja, a atribuição do homicídio de CC também à arguida AA.

Resumindo, esta, desde sempre, aderiu ao plano traçado com a arguida BB, no sentido de se apropriarem do dinheiro do CC, tendo procedido à sua execução, acompanhando-a à casa deste, a cerca de 40 kms de distância, num dia em que se encontrava particularmente cansada por ter trabalho na noite da véspera e forneceu-lhe as ampolas de Diazepam, medicamento que, com as suas qualidades soporíferas, se destinava a ser ingerido pela vítima para, assim, adormecer.

Levaram as arguidas também, consigo, sacos plásticos, fita adesiva, luvas descartáveis, faca e abraçadeiras, com as quais a arguida BB iria (como fez), prender CC a uma cadeira.

A arguida BB desempenhou o seu papel como combinado, aguardando no exterior da casa da vítima – que não a conhecia e que, confiantemente, esperava ter um almoço sozinho, na sua casa, com a arguida BB, por quem estava apaixonado – até que esta a veio chamar, dando-lhe conta do que tinha sucedido e informando-a que já tinha obtido o Pin bancário de CC.

Quando a arguida BB entrou na habitação, CC ainda estava vivo e tentava libertar-se da cadeira com que a arguida BB o tinha prendido às costas, tendo presenciado o acto de asfixia efectuado pela arguida BB sobre aquele quando este se encontrava deitado no chão com a barriga para cima, assistindo e aderindo ao mesmo e nada tendo dito ou feito para o impedir.

O mesmo sucedeu no segundo momento de asfixia, quando colocada atrás da arguida BB, assistiu de novo ao acto de esta o sufocar até à morte, sendo que, de novo, nada fez ou disse, que pudesse conter esse acto criminoso.

É assim de notar que, em momento algum, a arguida BB desistiu ou fez abortar o plano criminoso ou praticado qualquer acto que fosse contrário ao mesmo, sendo que nada fez ou disse para impedir/obstaculizar que CC fosse asfixiado pela sua co-arguida.

Sendo sabido que, no que respeita à execução de um crime, para haver co-autoria, não é indispensável que cada um dos agentes intervenha em todos os actos ou tarefas tendentes a atingir o resultado final, importando, tão-somente, que a actuação de cada um, embora parcial, se integre no todo e conduza à produção do objectivo em vista, é indiscutível o enquadramento da conduta da arguida AA no momento de homicídio de CC, já que tendo o domínio do facto, no sentido de travar a dinâmica criminosa ou impedir que esta se concretizasse, optou por nada fazer, assistindo e aderindo aos actos materiais de assassínio cometidos pela arguida BB.

Nesta medida, é possível concluir, como bem se referiu no despacho de pronúncia, que “…homicídio só ocorre por intervenção de ambas as arguidas, cada uma desempenhando o seu papel e executando as suas tarefas em prol de um resultado e proveito comuns. Mais se afigura que o crime não teria sido cometido sem a intervenção conjunta de ambas as arguidas.”

Esteve sempre ao lado dela, assistindo-a e ajudando-a, como é bem visível, quer no acto de homicídio, quer no seu comportamento posterior, em que segurou na mão da vítima enquanto a arguida BB lhe cortava os dedos, limpou a casa para eliminar vestígios, ajudou no transporte do corpo, participou no desmembramento deste, esteve sempre com a co-arguida BB quando esta, munida de um polegar e de um indicador cortados à vitima, desbloqueava o telemóvel deste para dar a ideia de que ainda estava vivo, fez parte dos actos de dissipação do cadáver, estando com aquela arguida quando o mesmo foi enviado para o mar, em ..., e em ..., onde abandonaram a cabeça e os membros, estando também presente nos levantamentos efectuados, um deles, até feito por si, bem como, nas compras realizadas, tudo com o cartão bancário da vítima, bem como, nas transferências, uma delas, para a sua própria conta bancária.

A comparticipação é notória, e a arguida AA, apesar de, nos vários momentos da actividade criminosa, ter, como se disse, o domínio do facto, deu sempre o seu acordo à execução de um plano, que foi tido como bom por ambas as arguidas, com actos bem delineados e definidos para cada um dos comparticipantes.

A comunhão de esforços e vontades, a execução conjunta de um plano, primeiro no homicídio de CC, depois no desmembramento e dissipação do seu cadáver, continuando pela tentativa de dar a ideia que o mesmo não se encontrava em Portugal, para culminar nos vários momentos em que se apoderaram ou utilizaram o património da vítima, é evidente, clara e manifesta, dispensando-se, acredita-se, tal a clareza dos factos, de demais considerações complementares.


*


Quanto ao crime de homicídio qualificado, foram as arguidas pronunciadas nos termos combinados dos Artº 131 e 132 nsº1 e 2 als. e) e j), ambos do C. Penal.

Diz-nos o Artº 131 do C. Penal que:

Quem matar outra pessoa é punido com pena de prisão de 8 a 16 anos.

Neste comando legal estabelece-se o tipo legal fundamental dos crimes contra a vida, sendo a partir dele que se fixam, nos Artsº seguintes, os homicídios cuja culpa do agente é particularmente agravada, como no caso do homicídio qualificado do Artº 132, ou aqueles em que a mesma é sensivelmente diminuída, como no homicídio privilegiado do Artº 133.

O tipo objectivo de ilícito do crime de homicídio é, assim, causar a morte a outra pessoa e como crime material ou de resultado, exige-se, naturalmente, um nexo de causalidade entre o comportamento do agente e a morte, isto é, nos termos do Artº 10 do C. Penal, uma causalidade adequada para poder imputar objectivamente determinado resultado a uma concreta conduta delitiva, sendo inúmeros os meios de actuação possíveis que podem levar ao cometimento de um crime de homicídio.

Se a imputação objectiva se resolve pela via da causalidade adequada, no que toca aos elementos subjectivos do tipo, o crime de homicídio é, evidentemente, um crime doloso, que pode revestir qualquer uma das modalidades mencionadas no Artº 14 do C. Penal.

Como se sabe, o crime de homicídio simples cede relativamente à sua qualificação agravativa como homicídio qualificado, ou à sua qualificação atenuativa, como homicídio privilegiado.

Nessa medida, um homicídio qualificado não é mais do que uma forma agravada de homicídio e um homicídio privilegiado traduz-se, no fundo, num homicídio atenuado.

Quer a agravação resultante do Artº 132, quer a atenuação decorrente do Artº 133, ambos do C. Penal, têm a ver com a medida da culpa do agente, no primeiro caso, plasmada na sua especial censurabilidade ou perversidade e no segundo, estando sensivelmente diminuída.

Conforme refere Figueiredo Dias in Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, pag. 25 e seguintes “(…) a qualificação deriva da verificação de um tipo de culpa agravado, assente numa cláusula geral extensiva e descrito com recurso a conceitos indeterminados: a “especial censurabilidade ou perversidade do agente referida no n.º 1; verificação indiciada por circunstâncias ou elementos uns relativos ao facto, outros ao autor, exemplarmente elencados no n.º 2. Elementos estes assim, por um lado, cuja verificação não implica sem mais a realização do tipo de culpa e a consequente qualificação; e cuja não verificação, por outro lado, não impede que se verifiquem outros elementos substancialmente análogos (…) aos descritos e que integrem o tipo de culpa qualificador”.

In casu, estão em aferição directa as circunstâncias previstas nas als. e) e j) daquele preceito, onde se lê que será qualificado o homicídio:

e) determinado por avidez, pelo prazer de matar ou de causar sofrimento, para excitação ou para satisfação do instinto sexual ou por qualquer motivo torpe ou fútil; ou, quando o agente

j) Agir com frieza de ânimo, com reflexão sobre os meios empregados ou ter persistido na intenção de matar por mais de vinte e quatro horas.

Como se ensina amplamente na Doutrina e Jurisprudência, os exemplos-padrão plasmados no nº2 do Artº 132 do C. Penal são meramente exemplificativos, ali se enumerando várias circunstâncias que consubstanciam elementos da culpa e não do tipo, o que quer dizer, não só que as mesmas não são de funcionamento automático, como também, que outros factores, ali não enumerados, podem, em concreto, revelar que o agente, no cometimento do crime, revelou uma especial censurabilidade ou perversidade, justificadoras da punição agravada da norma. Nessa medida, o que importa aferir é se a factualidade da dinâmica criminosa permite concluir por uma atitude mais desvaliosa do agente, por uma personalidade delituosa particularmente negativa, em suma, por um especial juízo de censura.

"Sendo a enumeração meramente exemplificativa, sempre poderão existir outras circunstâncias não descritas no tipo penal, mas reveladoras da apontada situação, dando origem, assim, aos chamados casos de homicídio qualificado atípico. O que é fundamental é que se trate de um homicídio qualificado em circunstâncias que possam desencadear o efeito de indício de uma maior culpa" (Ac. do STJ de 4/7/96, in CJ, Ac. STJ, ano IV, Tº2, pág. 222. Cfr. Teresa Serra, "Homicídio Qualificado - Tipo de culpa e Medida da Pena", pág. 70 a 75).

As circunstâncias do nº2 do Artº 132, enquanto elementos de culpa, exigem que, na análise do caso concreto, se demonstre uma especial censurabilidade ou perversidade (Ac. do STJ de 12/07/89, in BMJ 389, pág. 310).

Pode dizer-se, como Teresa Serra, que existe especial censurabilidade quando "as circunstâncias em que a morte foi causada são de tal modo graves que reflectem uma atitude profundamente distanciada do agente em relação a uma determinação normal com os valores"; por seu turno, a especial perversidade supõe "uma atitude profundamente rejeitável, no sentido de ter sido determinada e constituir indício de motivos e sentimentos que são absolutamente rejeitados pela sociedade" (ob. cit, pág. 63 e 64).

Subjacente, então, à especial censurabilidade e perversidade está um acrescido desvalor ético - jurídico traduzindo culpa agravada e que tem a ver com "a maior desconformidade que a personalidade manifestada no facto possui, face à suposta querida ordem jurídica, em relação à desconformidade, já de si grande, da personalidade subjacente à prática de um homicídio simples" (cfr. Figueiredo Dias, Comentário Conimbricense do Código Penal, vol. I, Coimbra Editora, 1999, p. 29 , C.J., ano XII, Tº4, pág. 52 e "Liberdade, Culpa e Direito Penal", Coimbra Ed., 3ª edição, 1995, págs. 183-185).

Os factos relevantes para tal apreciação correspondem a todas as circunstâncias da conduta, quer na acção externa (instrumento utilizado, tipo e número das lesões, dinâmica do evento, etc), quer nos aspectos relacionados com os motivos e objectivos que presidiram à acção (factos psíquicos), o que não se confunde com o dolo.

Dos autos resulta, inequivocamente, o preenchimento dessa noção geral de especial censurabilidade/perversidade, na medida em que as arguidas praticaram os factos com intenso desprezo pela vida de CC e movidas pelo desejo incontrolado de se apoderarem do seu património, sendo seguro que reflectiram sobre os meios empregues para o efeito pretendido, o que revela premeditação sobre os procedimentos que realizaram em conjunto.

Os actos materiais de homicídio, levados a cabo sobre uma pessoa que a arguida BB sabia estar apaixonada por si, são bem reveladores de uma total insensibilidade em relação aos sentimentos da vítima e os objectos que as arguidas transportaram consigo para o local do crime indicam a aludida reflexão, sobre a forma como pretendiam executar o acto criminoso – prendendo a vítima a uma cadeira e sedá-la, enquanto a arguida AA aguardava no exterior que a co-arguida lhe desse conta do desenrolar dos acontecimentos – e são denunciadores e uma evidente frieza de ânimo no modo como tudo foi executado e na insistência na asfixia de CC, apesar de terem conseguido a sua reanimação num primeiro momento.

O móbil do crime foi o enriquecimento fácil, aproveitando-se da circunstância de a vítima ter recebido uma importante indemnização para disso tirarem vantagem, tendo o seu assassínio sido resultado da preparação e execução de um plano nesse sentido.

Há, assim, uma evidente violência exercida sobre a vítima – que ansiando por um encontro amoroso veio, afinal, a encontrar a morte pelas mãos daquela que amava – que demonstram, como bem notou a decisão recorrida, aquele grau de perigosidade social enquadrável num quadro de especial censurabilidade, o qual, agravando a culpa, justifica, também por aqui, o enquadramento nos termos constantes da pronúncia.

O conjunto destas circunstâncias merece uma censura especial, largamente superior à reportada ao homicídio simples e manifestamente subsumível às als. e) e j) do nº2 do Artº 132 do C. Penal, assim se qualificando, sem qualquer dúvida, o homicídio perpetrado pelas arguidas na pessoa de CC.

(…)

B.4. Medida das penas a aplicar à arguida AA

Importa agora, determinar as penas a aplicar à arguida AA, na sequência do que atrás se decidiu sobre os crimes por si cometidos.

Como se sabe, na determinação da pena concreta, importa ter em conta, nos termos do Artº 71 do C. Penal, as necessidades de prevenção geral e especial que nos autos se imponham, bem como, as exigências de reprovação do crime, não olvidando que a pena tem de ser orientada em função da culpa concreta do agente e que deve ser proporcional a esta, em sentido pedagógico e ressocializador.

Como ensina Figueiredo Dias in Direito Penal, Parte Geral, Tomo 2, As consequências jurídicas do crime. 1988, pág. 279 e segs:

«As exigências de prevenção geral, ... constituirão o limiar mínimo da pena, abaixo do qual já não será possível ir, sob pena de se pôr em risco a função tutelar do Direito e as expectativas comunitárias na validade da norma violada; as exigências de culpa do agente serão o limite inultrapassável de todas e quaisquer considerações preventivas, por respeito ao princípio politico-criminal da necessidade da pena (Artº 18 nº2 da CRP) e do principio constitucional da dignidade da pessoa humana (consagrado no nº1 do mesmo comando).

Por fim, as exigências de prevenção especial de socialização, sendo elas que irão determinar, em último termo e dentro dos limites referidos, a medida concreta da pena»

Importa ainda ter em conta que:

«A função primordial de uma pena, sem embargo dos aspectos decorrentes de uma prevenção especial positiva, consiste na prevenção dos comportamentos danosos incidentes sobre bens jurídicos penalmente protegidos.

O seu limite máximo fixar-se-á, em homenagem à salvaguarda da dignidade humana do condenado, em função da medida da culpa revelada, que assim a delimitará, por maiores que sejam as exigências de carácter preventivo que social e normativamente se imponham.

O seu limite mínimo é dado pelo quantum da pena que em concreto ainda realize eficazmente essa protecção dos bens jurídicos.

Dentro destes dois limites, situar-se-á o espaço possível para resposta às necessidades da reintegração social do agente.

Ainda, embora com pressuposto e limite na culpa do agente, o único entendimento consentâneo com as finalidades de aplicação da pena é a tutela de bens jurídicos e, (só) na medida do possível, a reinserção do agente na comunidade» (Cfr. Anabela Miranda Rodrigues, RPCC, Ano 12º, nº 2, pág. 182 e Ac. do STJ de 4-10-07, Proc. nº 2692/07).

Com a previsão do Artº 131 do C. Penal, protege-se o bem jurídico vida, como fundamento primeiro da culpa criminal, o seu principal valor axiológico, aquele que a nível individual se tem por mais sagrado, por natureza irreversível.

Na verdade, é o livre arbítrio que define a condição humana, na capacidade de – melhor ou pior, mais ou menos livremente, mais ou menos condicionadamente – decidir o seu próprio destino em cada momento, na possibilidade de escolher entre o certo e o errado, com todas as consequências daí inerentes, para si e para os seus semelhantes.

Ora, matar é o mais grave acto concebível numa sociedade humana, vedado até – no que Portugal se pode orgulhar em ser um dos primeiros países do Mundo a abolir, espera-se que em definitivo, a pena de morte - ao ius puniendi do Estado, aquele que não deixa possibilidade de regresso, a única conduta verdadeiramente irreparável, a criação do vazio, da ausência, do nada.

A morte, o nada, o fim de uma vida, de projectos, a ausência de um futuro, bom ou mau, que as arguidas, sem qualquer direito, e no âmbito de um comportamento brutal, de assinalável violência, destruíram em relação ao CC, uma jovem na flor da idade e com todo um futuro pela frente.

O juízo de censura é, assim, elevadíssimo, o desvalor social da acção enorme, e a ilicitude muito intensa, o que também acontece em relação aos crimes de profanação de cadáver, furto, acesso ilegítimo e burla informática, mas sendo particularmente significativas quanto aos ilícitos de homicídio qualificado e de profanação de cadáver, atenta a natureza dos mesmos e a gravidade material com que foram cometidos.

A arguida AA, à semelhança da sua co-arguida, agiu com dolo directo, com um modo de execução altamente reprovável, revelando uma censurabilidade e uma culpa que excedem, em muito, o mínimo da moldura penal correspondente ao tipo de homicídio qualificado, desde logo, pela elevada ilicitude decorrente de uma conduta muito censurável e gratuita.

A frequência preocupante com que, nos últimos tempos, vêm ocorrendo crimes de homicídio voluntário (consumado ou tentado), tornam prementes as exigências de prevenção e repressão desses ilícitos.

É certo que a arguida AA não tem antecedentes criminais – como é aliás regra com os homicidas – mas esse facto é pouco significativo, não só por ser o que se espera de qualquer cidadão, mas também, pela sua juventude.

Como ensina Figueiredo Dias, ob cit., pág 231, há que reter aquele “mínimo da pena capaz de, perante as circunstâncias concretas do caso relevantes, se mostrar ainda comunitariamente suportável à luz da necessidade de tutela dos bens jurídicos e da estabilização das expectativas comunitárias na validade da norma violada”, ou o “mínimo de prevenção geral de integração (sob a forma de defesa do ordenamento jurídico”

No seu comportamento processual, a arguida AA não demonstrou qualquer arrependimento, desde logo, porque a sua postura ziguezagueante, confessando primeiro vários factos para depois os negar, acabando, no fundo, por se afirmar quase totalmente inocente em relação à materialidade que lhe era imputada, não revela qualquer interiorização do desvalor social da sua conduta e da gravidade que a mesma denuncia, tendo tentado urdir, ao contrário, uma estratégia de defesa que visava a sua completa desresponsabilização deste tétrico quadro criminoso.

Impressiona a frieza na prática dos factos, assim como impressiona a idêntica frieza com que os descreveu, detalhadamente, onde não se vislumbra qualquer emoção nem compaixão genuínas em relação á vítima.

Estamos a falar, no conjunto do comportamento das arguidas, de uma conduta mórbida, hedionda, grotescamente censurável, em que os pormenores são macabramente realistas e com uma dimensão de atrocidade, felizmente, pouco comum na realidade portuguesa.

Como bem se escreveu no despacho recorrido que aplicou às arguidas a medida de coação de prisão preventiva (transcrição):

A gravidade geral dos factos é gigante e absolutamente esmagadora. Inexistem palavras para descrever os crimes em causa. Estamos perante factos absolutamente hediondos e que se mostram macabros. Choca qualquer sociedade civilizada ouvir os relatos das arguidas. Estamos perante o crime mais grave do ordenamento jurídico cometido de uma forma fria, calculista, pensada e totalmente macabra. A frieza das declarações das arguidas assusta e choca, como se asseverou, qualquer sociedade civilizada e organizada. O desprezo absoluto pela vida humana e pelo corpo humano; a facilidade com que se trata de tal modo a vítima; o detalhe e a falta de emoção no relato, que atestam a mencionada frieza assustadora. As arguidas pernoitavam normalmente sabendo que tinham um corpo na bagageira do carro; tinham consigo um polegar e um indicador para que o telemóvel do arguido fosse desbloqueado através do sensor de impressões digitais; desmembraram o corpo numa garagem e abandonaram-no em sítios diferentes; alegam que abandonaram a cabeça e a “ouviram rolar” como se estivéssemos perante uma bola de futebol.

É gigante a dimensão do crime, não só atingido o bem jurídico maior, como gozando com ele e utilizando-o para fins fúteis e calculistas. Estamos perante uma conduta altamente culposa e ilícita.”.

Em suma, entende-se, na esteira do já decidido pelo tribunal recorrido, que apesar de nas molduras penais dos crimes de furto simples, acesso ilegítimo e burla informática, se admitir a aplicação de penas de multa, as mesmas, in casu e atentas as fortíssimas exigências de prevenção geral e especial que no caso concorrem, não asseguram, com suficiência, as finalidades punitivas, razão pela qual se determina a aplicação de penas de prisão.

Por fim, atendeu ainda este tribunal às medidas das penas parcelares fixadas à arguida BB, bem como, às penas parcelares aplicadas à arguida AA pelos crimes de profanação de cadáver, peculato e burla informática, para as quais se entendeu que teriam, necessariamente, umas e outras, de permanecer inalteradas, pela circunstância de, por um lado, a responsabilidade criminal da arguida BB, estar, como se sabe, já extinta, e por outro, pela proibição da reformatio in pejus, constante do Artº 409 do CPP, tendo em conta que, em relação aos factos relativos a tais crimes – profanação de cadáver e peculato – nenhuma alteração é efectuada na presente decisão, nem foi peticionado o agravamento das respectivas penas, seja pelo assistente, seja pelo MP.

No que respeita ao crime de burla informática e ainda que se proceda à alteração factual da sua matéria, por via dos recursos intentados pelo assistente e MP, a verdade é que nenhum deles, em concreto, peticiona um aumento da pena a aplicar por este ilícito á arguida AA, pelo que, por força daquela proibição e pela impossibilidade de a prejudicar, julgou o presente tribunal não mexer, também aqui, na pena parcelar que já lhe foi aplicada pela instância sindicada.

Mais se considerou, ter por referência as penas já aplicadas à arguida BB pelos crimes de homicídio, furto simples e acesso ilegítimo, de forma a manter alguma correspondência com o decidido pela 1ª instância e que é inalterável, fixando desse modo à arguida AA penas parcelares ligeiramente inferiores às que foram determinadas para a arguida BB, o que se justificará pela circunstância de esta ter tido uma participação, material, de mera execução, superior à da sua co-arguida.

Assim sendo, julgam-se adequadas aplicar à arguida AA, em co-autoria com a arguida BB, as seguintes penas parcelares:

- 20 anos de prisão pelo crime de homicídio qualificado;

- 1 ano e 10 meses de prisão pelo crime de furto simples;

- 8 meses de prisão por cada dos dois crimes de acesso ilegítimo;


*


Importa agora proceder ao cúmulo jurídico destas penas com as já fixadas pela instância recorrida, de:

- 1 ano e 10 meses de prisão pelo crime de profanação de cadáver;

- 1 ano e 6 meses de prisão pelo crime de burla informática;

- 1 ano e 6 meses de prisão pelo crime de peculato;

Em sede de cúmulo jurídico, nos termos do Artº 77 do C. Penal, considerando, em conjunto, os factos e a personalidade do agente, é indiscutível que tais ilícitos, ligados pela mesma intenção de obtenção de vantagens patrimoniais, revelam uma intensa gravidade, com uma imagem global muito negativa, a merecer, nesta operação cumulatória, uma particular severidade, que corresponda aos anseios da comunidade no sentido de a culpa que a arguida revela na globalidade dos factos delitivos tenha a sua conformidade na pena única a aplicar, assim reflectindo a enorme gravidade dos crimes cometidos – principalmente, o homicídio qualificado e a profanação de cadáver - o elevado grau da ilicitude, a dimensão de culpa, e a necessidade punitiva.

Nesta medida, entre uma baliza que se situa entre um mínimo de 20 anos e um máximo de 28 anos de prisão, condena-se a arguida AA na pena única de 25 anos de prisão, que se julga como adequada e proporcional às necessidades de prevenção geral e especial, às finalidades da punição, ao grau de ilicitude, ao juízo de censura e à dimensão da culpa revelada pela arguida no cometimento dos factos.

Procedem assim, nestes termos, os recursos deduzidos pelo assistente e pelo MP.

(…)

2. 1. Conforme é sabido, as relações conhecem de facto e de direito (art. 428.º, do C.P.P.)3.

Saliente-se que foi a revisão de 19984 do nosso código adjetivo que veio assegurar o recurso efetivo da matéria de facto, reforçada posteriormente pela revisão de 20075.

A doutrina6 e a jurisprudência do Supremo Tribunal7 têm-se pronunciado, amiúde, sobre o conhecimento da matéria de facto pelos Tribunais da Relação, sendo possível fazer-se um breve apanhado, a este propósito, sobre algumas ideias base.

Assim, o reexame da matéria de facto pela segunda instância não corresponde a um novo julgamento, visando, antes, a correção de erros de julgamento.

Por sua vez, a sindicância dos erros de julgamento exige que o tribunal de recurso aprecie de forma completa os concretos fundamentos do recurso.

Contudo, o recurso em matéria de facto não pressupõe uma reapreciação total do complexo da prova produzida que serviu de fundamento à decisão recorrida, mas tão só uma reapreciação autónoma sobre a razoabilidade da decisão proferida pelo tribunal a quo quanto aos pontos de facto que o recorrente considere incorretamente julgados. Mas, se não exige uma avaliação global, é mister que se confronte o juízo sobre os factos do tribunal recorrido com a sua própria convicção determinada pela valoração autónoma das provas que o recorrente identifica nas conclusões da motivação, não sendo suficiente uma referência mais ou menos genérica à fundamentação da decisão recorrida.

Será, nestes termos, sempre exigível que se demonstre que, na situação concreta, a matéria de facto tem efetivo suporte na fundamentação, avaliando-se e comparando-se especificadamente os meios de prova indicados pelo recorrente e que este entende imporem decisão diversa.

Neste contexto, só pode estranhar-se a alegação da recorrente em dizer que o Tribunal da Relação de Évora não podia ter alterado a matéria de facto fixada na primeira instância, eliminando determinados pontos da matéria de facto provada e não provada, nem podia ter aditado ou alterado a redação de pontos dados como assentes, pois, se detetou vícios na apreciação da prova, então devia ter ordenado o reenvio do processo para novo julgamento!

Ora, como anotam os Professores Helena Morão e Paulo Pinto de Albuquerque, no comentário ao art. 431.º, do C.P.P., o Tribunal da Relação tem os seguintes poderes havendo recurso da matéria de facto: o poder de suprimir matéria de facto não essencial, oficiosamente ou a requerimento, nos termos do art. 380.º n.º 1 b); o poder de acrescentar, modificar ou suprimir matéria de facto se do processo constarem todos os elementos de prova que serviram de base à decisão sobre a matéria de facto (art. 431.º a)); o poder de acrescentar, modificar ou suprimir matéria de facto se a prova documentada foi impugnada (art. 431.º b)); e o poder de acrescentar, modificar ou suprimir matéria de facto quando houver renovação da prova (art. 431.º c)).

Acentuam ainda os ilustres Professores que a ordem do elenco destes poderes não é arbitrária, respeitando a ordem querida pelo legislador e refletida nos arts. 426.º e 431.º.

Como recorda também Ana Barata Brito8, o Tribunal Constitucional deu sempre relevância aos poderes de cognição das Relações em matéria de facto e na leitura da Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, ainda que o direito ao recurso não resulte do disposto no art. 6.º da Convenção, devem os recursos obedecer às regras mínimas exigíveis a um processo equitativo (o duplo grau de jurisdição em matéria penal está consagrado no art. 2.º do protocolo n.º 7, de 1984).

Por outro lado, não se deve falar de uma total ausência de imediação e oralidade, como também a falta destes atributos não deve constituir impedimento - sempre recorrente - de conhecimento de facto pelas Relações.

O modelo atual do nosso processo penal autoriza indubitavelmente o reexame das provas em segunda instância, na vertente da reapreciação das provas produzidas em primeira instância, faculdade que não pode deixar de aproximar o juiz de recurso do juiz de julgamento.

No caso em análise, importa relembrar que o Ministério Público e o assistente interpuseram recursos para o Tribunal da Relação do acórdão do tribunal coletivo da primeira instância, impugnando, por via ampla ou alargada, a respetiva matéria de facto.

Logo, nada obstava que o acórdão, ora recorrido, tivesse alterado (e até aditado), como fez nos termos devidamente descritos, a matéria de facto dada como provada e não provada pela primeira instância.

2. Passando à segunda questão colocada pela recorrente, a suposta verificação dos vícios previstos no art. 410.º n.º 2 a) e c), do C.P.P., no acórdão recorrido, limitar-nos-emos a repetir o que a jurisprudência deste Supremo Tribunal tem vindo a afirmar, praticamente una voce, a este respeito, que, relativamente aos recursos interpostos para o STJ de acórdãos de Tribunais da Relação, que decidiram já recursos anteriores, não podem os vícios previstos nas diferentes alíneas do citado art. 410.º n.º 2 servir de fundamento ao recurso, podendo, porém, serem, oficiosamente, conhecidos pelo Supremo9.

Isto é, não a pedido dos recorrentes, mas tendo o STJ a possibilidade de, ex officio, conhecer dos mesmos desde que resultem do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugado com as regras da experiência comum.

Em todo o caso, sempre se dirá que analisada, em toda a sua extensão, a decisão recorrida não detetamos do respetivo texto qualquer dos mencionados vícios, nomeadamente, a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e o erro notório na apreciação da prova invocados pela recorrente.

Pelo contrário, constata-se a clareza de todo o seu texto e do sentido da decisão, clareza que resulta da exaustiva e criteriosa análise de toda a prova especificada nos recursos da matéria de facto, a que minuciosamente se procedeu, reveladora de uma grande preocupação e espírito crítico, não existindo a mais leve obscuridade no que à fundamentação (da decisão) da matéria de facto se refere.

Trata-se de um texto totalmente lógico, bem estruturado e devidamente fundamentado, cumprindo, na íntegra, os imperativos legais e constitucionais.

A alteração da matéria de facto que teve lugar, encontra-se bem justificada e suportada pelas provas especificadas nos recursos, provas cuja avaliação, em primeira instância, o Tribunal da Relação exaustivamente reanalisou e censurou, de uma forma sempre objetivada, de modo claro e percetível e sem desrespeito pelos princípios que regem a prova, na vertente da apreciação: livre apreciação, presunção de inocência e in dubio pro reo.

Nestes termos, não ocorrendo tais vícios, não faz qualquer sentido o insistentemente solicitado reenvio do processo para novo julgamento, dado não se observar, in casu, o condicionalismo do art. 426.º, do C.P.P.

3. Nega também a recorrente, de forma vigorosa, a sua participação, em coautoria, no homicídio da vítima CC, dado não ter ficado provado um plano previamente combinado, atribuindo ao Tribunal da Relação o cometimento de um erro de apreciação das provas e defendendo a posição sufragada pela primeira instância, que a absolveu deste crime.

Ora, como refere o Professor Germano Marques da Silva10, é autor material de um crime quem executa o facto por si mesmo, sendo também autor material (coautor material) quem, em caso de participação, toma parte direta na execução, por acordo ou juntamente com outro ou outros.

Esta cooperação na execução do crime pode resultar de acordo ou não, mas neste caso importa ainda que os comparticipantes tenham consciência de cooperarem na ação comum, pois se falta o ajuste ou a consciência de cooperação na ação comum e cada um age por si, não há comparticipação, mas coautoria colateral ou coautoria paralela.

Na comparticipação criminosa, vale o princípio da imputação objetiva recíproca, segundo o qual a cada um dos comparticipantes é imputada a totalidade do facto típico, independentemente da concreta atividade de que cada um dos participantes haja realizado.

Por sua vez, segundo o Professor Figueiredo Dias11, na esteira de Claus Roxin, constituindo a coautoria, prevista no art. 26.º, do Cód. Penal, a execução em conjunto dos factos - havendo um “condomínio do facto” - implica a existência de uma decisão conjunta e de uma execução conjunta em que cada coautor toma parte direta na execução, realizando cada um a sua tarefa decorrente de uma “divisão de trabalho” prévia.

Também para o Professor Faria Costa12, para se definir uma decisão conjunta basta a existência da consciência e vontade de colaboração de várias pessoas na realização de um tipo legal de crime (“juntamente com outro ou outros”).

É evidente que na sua forma mais nítida, tem de existir um verdadeiro acordo prévio – podendo ser tácito – que tem igualmente de se traduzir numa contribuição objetiva conjunta para a realização típica.

Por seu turno, para a Professora Helena Morão13, na coautoria é possível que cada coautor pratique um ato de execução distinto, que alguns coautores pratiquem atos de execução idênticos e, no limite, que todos os coautores pratiquem, por si, todos os mesmos atos de execução.

Finalmente, para a Professora Maria Fernanda Palma14, “tomar parte direta na execução” significa realizar uma conduta a que o resultado típico pode ser imputado no contexto do acordo criminoso e, não necessariamente, praticar atos de execução como se de uma autoria singular se tratasse.

Não muito diferentemente, a nossa jurisprudência15, de forma praticamente uniforme, tem vindo a afirmar que, na comparticipação criminosa, sob a forma de coautoria, são essenciais uma decisão e uma execução conjuntas.

A decisão conjunta pressupõe um acordo que, sendo necessariamente prévio, pode ser tácito e bastar-se com a existência da consciência e vontade de colaboração dos vários agentes na realização de determinado tipo legal de crime. No que concerne à execução, não é indispensável que todos os agentes intervenham em todos os atos ou tarefas tendentes ao resultado final, bastando que a atuação de qualquer deles, embora parcial, se integre no todo e conduza à produção do resultado, sem embargo da liderança/proeminência de um deles.

Tal como o autor deve ter o domínio funcional do facto, também o coautor tem de deter o domínio funcional da atividade que realiza, integrante do conjunto da ação para a qual deu o seu acordo e que, na execução desse acordo, se dispôs a levar a cabo16.

Cada comparticipante é punido segundo a sua culpa, independentemente do grau de culpa dos outros (art. 29.º, do Cód. Penal).

Mas, voltando, de novo, ao acórdão recorrido, os Senhores Desembargadores deram por adquirido que ambas as arguidas, entre os meses de fevereiro e março de 2020, por forma a se apoderarem do património monetário pertencente ao CC, formaram o propósito de lhe tirar a vida e combinaram entre si um plano para irem ao encontro da vítima para a matar, plano este, no qual a arguida AA desempenhou um papel fundamental, desde logo, ao fornecer as ampolas de Diazepam que se destinavam a adormecer o CC, e tendo ainda a mesma arguida assistido ao primeiro “mata-leão” efetuado pela arguida BB no corpo da vítima, não é credível que após este ter reagido, assim que recuperou a consciência e feito com que esta arguida de novo se lançasse sobre si para o sufocar, a arguida AA, por qualquer razão que não se vislumbra, se tenha conseguido afastar, num exercício de ginástica assaz difícil, passando por cima ou ladeando a sua companheira enquanto esta asfixiava uma pessoa, para se ir refugiar no quarto da vítima e fechado a porta do mesmo.

Na sua tentativa de se isentar de responsabilidades, a arguida AA procura inculcar a ideia de que só acompanhou a arguida BB, por estar apaixonada por ela e ter medo que alguma coisa lhe sucedesse, não sendo, contudo, esta atitude coerente com a circunstância de se ter afastado de uma situação que, momentos antes, tinha observado (o “mata-leão”), sem que tivesse feito o que quer que fosse para impedir esse ato.

Por outro lado, mesmo que se admita essa tese, apesar de frontalmente contrariada pelo depoimento da arguida BB – ou seja, que, no momento do segundo estrangulamento – a arguida AA pudesse estar no quarto do CC, a verdade é que tal em nada a isenta de responsabilidade no que estava a acontecer, tendo em conta que, estamos a falar de uma distância mínima de 2/3 metros, em que era possível, à arguida AA, ver perfeitamente o que estava a acontecer e atuar em conformidade se assim o tivesse querido.

Nessa medida, e como constava do despacho de pronúncia, violaria todas as regras de a experiência comum não colocar a arguida AA no exato local dos factos, tendo assistido, sem nenhuma dúvida, ao ato material de asfixia do CC, levado a cabo pela arguida BB – no sentido em que foram as mãos desta que o sufocaram – mas sem que nada tivesse feito, ou dito, para a impedir, aderindo, desde logo, por omissão, a tal comportamento, tendo o pleno domínio do facto para lhe pôr termo, optando, contudo, por nada fazer.

Por outro lado, não se pode acreditar que pelo facto de a arguida AA ter realizado manobras de reanimação no CC, afaste, quanto a si, o dolo de homicídio, já que tais manobras, pelo menos, em relação ao primeiro momento de asfixia, foram também realizadas pela arguida BB e isso não a impediu de voltar a sufocar o CC quando este voltou a si.

Daí que se tenha de entender que essa reanimação (frustrada no caso da arguida BB e com sucesso quando praticada pela arguida AA, o que não é de admirar atenta a sua qualidade de ...) não é de molde a colocar em dúvida o dolo de homicídio, atenta a conduta subsequente da arguida BB, à qual a arguida AA deu todo o seu apoio, estando colocada atrás desta e nada fazendo, ou dizendo, para travar tal ato criminoso.

Foram muitos os momentos (horas, para ser mais preciso, atento o seu próprio depoimento), em que a arguida AA se poderia ter afastado da casa do CC ou poderia ter tentado impedir a arguida BB de fazer, materialmente, o que fez. Mas não.

Assistiu, calma, livre, voluntária e conscientemente, aos momentos finais do CC, apoiando a arguida BB em cada momento daquela atividade homicida.

Como também é bem salientado no acórdão em análise, a prova não pode ser analisada de forma compartimentada, segmentada, atomizada, mas, ao invés, dever ser valorada na sua globalidade, estabelecendo conexões, conjugando os seus diferentes meios de prova e não desprezando as presunções simples, naturais ou hominis, que são meios lógicos de apreciação das provas e de formação da convicção.

Importa ainda dizer que as provas não têm forçosamente de criar no espírito do julgador uma absoluta certeza dos factos a provar, certeza, essa, que, muitas vezes, será impossível, ou quase impossível de alcançar.

O que é necessário, é que as mesmas provoquem um grau de probabilidade tão elevado, que se baste, como certeza possível, para as necessidades de vida, de forma a se poder concluir, sem dúvida razoável, que uma pessoa praticou determinados factos.

Ora, tendo o tribunal recorrido apreciado todos os elementos constantes dos autos, valorando-os de uma forma crítica e de acordo com a experiência comum, sem dúvida razoável, é possível afirmar a participação da arguida AA no homicídio do CC, nos exatos termos plasmados no despacho de pronúncia.

E o mesmo se diga em relação à demais factualidade constante do dito despacho, que é imputada a ambas as arguidas, em comunhão de esforços e vontades e que o tribunal coletivo da primeira instância, algo estranhamente, atribuiu, tão somente, à arguida BB.

Não pode ser, igualmente, esquecido que a arguida AA esteve sempre presente em todos os atos materiais cometidos pela arguida BB após o homicídio, e, nalguns deles, participou até de forma direta: limpou a casa da vítima em conjunto com aquela; ajudou a transportar o corpo do CC para o carro; participou no desmembramento do corpo nos termos já referidos; dissipou o cutelo utilizado em tal desmembramento que havia sido comprado em conjunto; levantou diretamente dinheiro e foi diretamente beneficiária de uma transferência, para a qual foram utilizados os dedos do CC, que haviam sido cortados pela arguida BB com a sua ajuda; acompanhou sempre a arguida BB nos restantes levantamentos, tendo o dinheiro em causa sido apreendido no seu quarto; acompanhou a arguida BB nas compras que efetuaram com o cartão de débito do CC, sendo que uma delas foi para aquisição de um produto que se destinava a si própria e assistiu às mensagens que a arguida BB enviava aos amigos e colegas de trabalho do CC, no sentido de dar a ideia de que este tinha viajado para o estrangeiro, usando para tanto, a arguida BB, os dedos polegar e indicador daquele, que tinham sido retirados do seu corpo e guardados num envelope que ficou sempre na posse das arguidas.

É curioso, aliás, notar, como faz o tribunal recorrido, que, em sede de primeiro interrogatório, a arguida AA assumiu que tais mensagens foram por vezes enviadas quando as arguidas estavam no seu quarto, com os seus pais (sendo o progenitor militar da GNR) em outras divisões da casa e tendo-lhe sido perguntado se não achava tal comportamento hediondo, a arguida respondeu que assim não considerava, já que, como ..., está habituada a ver partes do corpo humano e que tal conduta – tentar convencer os amigos do CC que este estava vivo mas tinha viajado para fora do país – lhe pareceu fazer sentido, atenta a lógica subjacente de procurar evitar que se soubesse que aquele havia sido assassinado.

Não é assim possível, sob pena de se violar, grosseiramente, o bom senso e o equilíbrio na apreciação da prova, bem como as regras da experiência que devem presidir a qualquer aferição probatória, consoante é pertinentemente dito pelo Tribunal da Relação, distinguir as responsabilidades das arguidas, no sentido em que ambas estavam, de igual modo, intrínseca e profundamente envolvidas no plano traçado para se apropriarem do dinheiro pertencente a CC.

Excluindo as matérias relacionadas exclusivamente com uma das arguidas – o peculato, quanto à arguida AA, e os ilícitos de furto de uso de veículo e detenção de arma proibida no que concerne à arguida BB – tudo o mais foi, na verdade, cometido em comunhão de esforços e vontades, num cenário de coautoria, pelo que houve, nesta parte, uma errada apreciação e valoração das provas pelo tribunal da primeira instância, não podendo, deste modo, o tribunal recorrido ter deixado de julgar procedente a impugnação alargada da matéria de facto efetuada pelos recorrentes e, em consequência, ter alterado a factualidade provada, fazendo-a coincidir com a que se mostrava plasmada no despacho de pronúncia, no que toca à participação da arguida AA ali descrita, e retirar daí as necessárias consequências jurídicas.

Para finalizarmos este capítulo, é inegável que a arguida AA, no caso do homicídio da vítima, praticou atos de execução em conjunto, ainda que diferenciados, a começar logo pela entrega, para os efeitos mencionados, que fez à arguida BB das ampolas de Diazepam17, no próprio dia - mas concretamente algumas poucas horas antes - em que ocorreu a morte do vítima, ou seja, para utilização praticamente imediata18, de acordo com um plano previamente traçado entre as mesmas, tinha o domínio funcional do facto, não se limitando a prestar auxílio à falecida arguida BB, indo bem mais além, sem prejuízo de se reconhecer que teve, em toda esta dinâmica, um papel não tão ativo como esta última, que terá de ter reflexo, naturalmente, ao nível da determinação da medida concreta da pena correspondente.

Acrescente-se ainda que a arguida AA, com exceção das cerca de 4 horas que permaneceu no interior do veículo à porta da casa da vítima, até a sua companheira a vir chamar para entrar na dita residência, esteve sempre fisicamente ao lado da arguida BB, apoiando-a, sem manifestação de qualquer gesto de reprovação, e disponível para intervir de uma forma mais enérgica, se necessário fosse, já para não falar da sua participação nos factos que tiveram imediatamente lugar após a morte da vítima, como a limpeza da do interior da habitação, a fim de serem eliminados quaisquer vestígios.

Nesta conformidade, bem andou o tribunal recorrido em ter considerado a arguida AA como coautora, dentro dos parâmetros que atrás vimos, do crime de homicídio qualificado na pessoa do infeliz CC.

4. Sem grande explanação e desenvolvimento, insurge-se também a recorrente por, em sua opinião, o Tribunal da Relação ter violado o princípio in dubio pro reo19, que, como se sabe, é um princípio ligado à prova e atinente, por conseguinte, à matéria de facto20, pelo que é descabido e deslocado trazê-lo à colação, nesta sede, conhecidos que são os poderes de cognição do STJ.

Aditaremos apenas que o tribunal recorrido, conforme resulta inequivocamente da fundamentação da decisão, não ficou com dúvidas sobre a participação ativa da recorrente no homicídio da vítima CC, não fazendo, pois, sentido a invocação deste princípio.

5. Finalmente, considera a mesma que a pena única que lhe foi aplicada seria, em qualquer caso, excessiva, devendo ser reduzida.

Tendo apenas a recorrente posto em causa a medida concreta da pena única aplicada pelo tribunal recorrido, e convocando a doutrina21 e a jurisprudência22 mais relevantes, diremos que a determinação da pena do concurso implica, fundamentalmente, duas operações: em primeiro lugar, o tribunal tem de determinar a pena que concretamente caberia a cada um dos crimes em concurso, seguindo o procedimento normal de determinação da pena; em seguida, construirá a moldura penal do concurso, que é uma verdadeira moldura penal, com o seu limite máximo e o seu limite mínimo, dependendo esta operação da espécie ou das espécies de penas parcelares que tenham sido concretamente determinadas.

Estabelecida a moldura penal do concurso, o tribunal determinará, então, dentro dos limites daquela, da medida da pena conjunta do concurso, que encontrará em função das exigências gerais da culpa e de prevenção. Mas, para além dos critérios gerais de medida da pena contidos no art. 71.º n.º 1, do Cód. Penal, a lei fornece ao tribunal um critério especial: «Na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente» (art. 77.º n.º 1, 2.ª parte).

Como salienta o Professor Figueiredo Dias23, tudo deve passar-se, por conseguinte, como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado. Na avaliação da personalidade do agente, revelará, sobretudo, a questão de se saber se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência ou mesmo a uma “carreira” criminosa ou tão só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade. De grande relevo, será também a análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente (exigências de prevenção especial de socialização).

Na situação concreta, tendo por base uma moldura abstrata que tem como limite mínimo 20 anos de prisão e limite máximo 25 anos de prisão24 consideramos, em consonância com os critérios legais assinalados e tendo, designadamente, em conta a enorme gravidade dos factos praticados – em particular, o homicídio qualificado e a profanação de cadáver – o elevado grau da ilicitude, a dimensão da culpa, a ausência de antecedentes criminais, no caso pouco relevante, dada a idade da arguida, a não interiorização do desvalor social da conduta levada a cabo, a sua postura ziguezagueante, confessando primeiro vários factos para depois os negar, e sem esquecermos as fortes exigências de prevenção geral, adequada e justa uma pena única de 23 anos de prisão, assistindo, deste modo, alguma razão, neste restrito âmbito, à recorrente e nos afastamos, nesta parte, da posição muito esclarecida - reconheça-se - expressa pelo Senhor Procurador-Geral Adjunto, no seu parecer.

IV. Decisão

Em face do exposto, acorda-se em:

a) rejeitar, por inadmissibilidade legal, o recurso da arguida AA, na parte que diz respeito à impugnação da matéria de facto, como aos invocados vícios do art. 410.º n.º 2, do C.P.P., e à violação do princípio in dubio pro reo (arts. 420.º n.º 1 b) e 434.º., do C.P.P.); e

b) julgar parcialmente procedente o recurso da referida arguida e revogar o acórdão recorrido, no segmento relativo à determinação da medida concreta da pena única, em resultado do cúmulo jurídico, que se fixa agora em 23 (vinte e três) anos de prisão, em vez dos 25 (vinte e cinco) anos de prisão aplicados pelo tribunal recorrido, por ser mais justa, adequada e proporcional e mantendo-se, no mais, o acórdão do Tribunal da Relação de Évora.

Sem tributação (art. 513.º n.º 1, do C.P.P.).

Lisboa, 3 de julho de 2024

(Processado e revisto pelo Relator)

Pedro Branquinho Dias (Relator)

Ana Barata Brito (Adjunta)

Maria do Carmo Silva Dias (Adjunta)

_______


1. Foram já introduzidas as alterações determinadas pelo acórdão do Tribunal da Relação de Évora.

2. Foram já transcritas em I.1., no Relatório deste acórdão.

3. Por seu turno, o recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça visa exclusivamente o reexame da matéria de direito, sem prejuízo do disposto nas alíneas a) e c) do n.º 1 do art. 432.º (art. 434.º, do C.P.P.).

4. Lei n.º 59/98, de 25/8.

5. Lei n.º 48/2007, de 29/8.

6. Com muito interesse, Helena Morão e Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, Vol. II, 5.ª edição atualizada, UCP Editora, pgs. 714 e 715, e Ana Barata Brito, Os poderes de cognição das Relações em matéria de facto em processo penal, no E-book sobre recursos do CEJ.

7. Acórdão de 14/5/2008 (Relator o Senhor Conselheiro Armindo Monteiro), Proc. n.º 1139/08, da 3.ª S.

8. Loc. cit.

9. Vide, por todos, os acórdãos de 17/4/2024 (Relatora a Senhora Conselheira Maria do Carmo Silva Dias), Proc. n.º 266/22.5GLSB.L1.S1, 23/11/2023 (Senhor Conselheiro António Latas), Proc. n.º 419/21.3PCLSB.L1.S1, e 15/2/2023 (Senhora Conselheira Ana Barata Brito) Proc. n.º 7528/13.0TDLSB.L3.S1, in www.dgsi.pt.

10. Direito Penal Português, Parte Geral, II, Teoria do Crime, Verbo, 1998, pgs. 282 e 283.

11. Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, Coimbra Gestlegal, 3.ª edição, pg. 924.

12. Formas do crime, Centro de Estudos Judiciários, Jornadas de Direito Criminal, Fase 1, 1983, pg. 170.

13. Autoria e Execução Comparticipadas, Almedina, 2017, pg. 364.

14. Citada por Helena Morão, in Autoria e Execução Comparticipadas, pg. 372, nota 867.

15. Entre vários, os acórdãos do STJ de 19/6/2024 (Relatora a Senhora Conselheira Maria do Carmo Silva Dias), Proc. n.º 1519//15.4JAPRT.P1.S2, de 30/11/2022 (Senhor Conselheiro Ernesto Vaz Pereira), Proc. n.º 1915/18.5T8BRG.G1.S1, de 7/4/2022 (Senhora Conselheira Helena Moniz), Proc. n.º 22/18.5PFALM.L1.S1, de 14/12/2017 (Senhor Conselheiro Francisco Caetano), Proc. n.º 470/16.5JACBR.S1 e de 6/10/2004 ( Senhor Conselheiro Henriques Gaspar), Proc. n.º 04P1875, todos disponíveis no sítio indicado, e de 22/2/95 ( Senhor Conselheiro Vaz dos Santos), Proc. n.º 47103, in BMJ 444-209.

16. Já a cumplicidade (art. 27.º, do Cód. Penal), a outra modalidade de comparticipação criminosa reconhecida no nosso direito, pressupõe um facto praticado dolosamente por outro, estando subordinada ao princípio da acessoriedade ou da subalternização. Ao cúmplice falta precisamente o domínio do facto típico, sendo-lhe aplicada a pena fixada para o autor, especialmente atenuada.

17. Ansiolítico do grupo dos benzodiazepínicos. Estes medicamentos são capazes de agir no Sistema Nervoso Central (SNC) e possuem propriedades calmantes, sedativas e relaxantes. Estão sujeitos obrigatoriamente a prescrição médica, atendendo ao perigo potencial que acarretam para a saúde física e psíquica dos utentes.

18. No sentido de ser um ato de execução, cfr. Manuel de Cavaleiro Ferreira, Da Participação Criminosa, Lisboa: Oficinas Gráficas, 1934, pg. 150.

19. Princípio fundamental do nosso processo penal, que decorre da presunção constitucional da inocência (art. 32.º n.º 2, da C.R.P.) e que se traduz numa imposição dirigida ao julgador no sentido de se pronunciar de forma favorável ao arguido, quando tiver dúvidas sobre os factos decisivos para a decisão da causa.

20. Cfr., v.g., os acórdãos do STJ de 21/2/2024 (Relatora a Senhora Conselheira Teresa de Almeida), Proc. n.º 102/20.7JELSB.L1.S1, e 31/1/2024 (Senhor Conselheiro João Rato), Proc. n.º 908/17.4PDAMD.L1.S1, no sítio indicado.

21. Por todos, Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As consequências jurídicas do crime, 1993, Aequitas Editorial Notícias, pg. 283 e ss., Maria João Antunes, Penas e Medidas de Segurança, 2.ª ed., Almedina, pg. 71 e ss., Anabela Mirando Rodrigues, A determinação da medida da pena privativa de liberdade, 1995, Coimbra Editora, pg. 520 e ss., e Artur Rodrigues da Costa, O Cúmulo jurídico na Doutrina e na Jurisprudência do STJ, JULGAR n.º 21, Setembro-Dezembro de 2013, pg. 172 e ss.

22. Entre outros, os acórdãos do STJ de 11/10/2023, relator o Senhor Conselheiro Ernesto Vaz Pereira, Proc. n.º 3673/22.0T8PNF.P1.S1, de 11/7/2023, relatora a Senhora Conselheira Maria do Carmo Silva Dias, Proc. n.º 5310/19.0JAPRT.G1.S1, de 18/5/2022, relatora a Senhora Conselheira Helena Fazenda, Proc. n.º 388/20.7GDSTB.S1 e de 16/5/2019, relator o Senhor Conselheiro Nuno Gonçalves, Proc. n.º 765/15.5T9LAG.E1.S1, todos disponíveis no sítio já indicado.

23. Ob.cit., pgs. 291 e 292.

24. Art. 77.º n.º 2, do Cód. Penal.