Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 3.ª SECÇÃO | ||
Relator: | CONCEIÇÃO GOMES | ||
Descritores: | RECURSO PER SALTUM VIOLAÇÃO CONFISSÃO MEDIDA DA PENA PREVENÇÃO GERAL PREVENÇÃO ESPECIAL | ||
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Apenso: | |||
Data do Acordão: | 01/12/2022 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | NEGADO PROVIMENTO | ||
Indicações Eventuais: | TRANSITADO EM JULGADO | ||
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Sumário : | I - A moldura penal abstrata prevista para o crime de violação, p. e p. pelo art. 164.º, n.º 2, al. a) do CP, é de 3 a 10 anos de prisão. II - A aplicação das penas visa a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade (art. 40.º, n.º 1, do CP). III - A determinação da medida da pena, dentro dos limites da lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, sendo que em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa (arts. 71.º, n.º 1 e 40.º, n.º 2, do CP), vista enquanto juízo de censura que lhe é dirigido em virtude do desvalor da ação praticada (arts. 40.º e 71.º, ambos do CP). IV - Na determinação concreta da medida da pena, como impõe o art. 71.º, n.º 2, do CP, o tribunal tem de atender a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depõem a favor do agente ou contra ele, designadamente as que a título exemplificativo estão enumeradas naquele preceito, bem como as exigências de prevenção que no caso se façam sentir, incluindo-se tanto exigências de prevenção geral como de prevenção especial. V - A primeira dirige-se ao restabelecimento da paz jurídica comunitária abalada pelo crime, que corresponde ao indispensável para a estabilização das expectativas comunitárias na validade da norma violada. A segunda visa a reintegração do arguido na sociedade (prevenção especial positiva) e evitar a prática de novos crimes (prevenção especial negativa) e por isso impõe-se a consideração da conduta e da personalidade do agente. VI - Considerando que a medida da concreta da pena, assenta na «moldura de prevenção», cujo limite máximo é constituído pelo ponto ideal da proteção dos bens jurídicos e o limite mínimo aquele que ainda é compatível com essa mesma proteção, que a pena não pode, contudo, exceder a medida da culpa, e que dentro da moldura da prevenção geral são as necessidades de prevenção especial que determinam o quantum da pena a aplicar», dentro da moldura penal abstrata prevista para o crime de violação, p. e p. pelo art. 164.º, n.º 2, do CP, pelo qual foi condenado mostra-se justa, necessária, adequada e proporcional, a pena de sete anos e oito meses de prisão aplicada ao arguido. | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam, na 3ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça
1. RELATÓRIO
1.1. No Juízo Central Cível e Criminal ..., Juiz ..., foi julgado em processo comum com intervenção do tribunal coletivo o arguido AA, filho de BB e de CC, nascido a .../.../1968, natural da freguesia da ..., concelho de ..., divorciado, com residência na Estrada ..., ..., ..., atualmente em prisão preventiva no EP de ..., à ordem dos presentes autos e por acórdão de 13 de julho de 2022 foi deliberado, na parte que aqui releva:
A) No que concerne à parte criminal:
1. Condenar o arguido AA pela prática de um crime de violação, punido pelo artigo 164.º, nº 2, do Código Penal, na pena de sete anos e oito meses de prisão.
B) No que concerne à parte civil: Julgar o pedido de indemnização cível formulado pela demandante DD procedente e, em consequência, condenar o demandado/arguido AA a pagar à demandante 30.000,00€ (trinta mil euros), a título de indemnização pelos danos sofridos. 1.2. Inconformado com o acórdão dele interpôs recurso o arguido AA, para este Supremo Tribunal de Justiça, que motivou, concluindo nos seguintes termos: (transcrição): 1.º O arguido em sede de audiência de julgamento confessou todos factos e colaborou deste modo, para a descoberta da verdade material dos mesmos. 2.º O recorrente é primário e encontra-se inserido familiar e socio-profissionalmente. 3.º O Tribunal a quo, salvo o devido respeito, não valorou tais circunstâncias e, em especial, à data dos factos o recorrente ser consumidor de bebidas alcoólicas, situação que presentemente já não se verifica, o Relatório Social é favorável ao mesmo. 4.º Nos presentes autos, o Tribunal o quo não fez, na determinação da medida concreta da pena, salvo o devido respeito por opinião diversa, uma equitativa ponderação das circunstâncias que depunham a favor e contra o recorrente, privilegiando estas últimas em detrimento daquelas. 5.º Existiam, assim, nos autos elementos suficientes para o Tribunal a quo ter aplicado pena de prisão, em quantitativo bastante inferior. 6.º Por maiores que sejam quaisquer exigências de prevenção geral (atendendo que as de prevenção especial são baixas face à ausência de antecedentes criminais e à sua inserção socioprofissional), a medida da pena nunca poderá ser superior à medida da culpa, sob pena de violação do art. 40.º, n.º 2 do Código Penal. 7.º Pelo que, a pena e a medida da pena encontrada, isto é, sete anos e oito meses de prisão efetiva, mostrou-se exagerada, é manifestamente injusta e desproporcional, principalmente quando comparada com a conduta de outros arguidos, pela prática do mesmo crime. 8.º Por todo o exposto, a medida da pena, deverá ser outra, optando-se por uma pena próxima dos limites mínimos legais, isto é, 3 (três) anos. 9.º Pena esta que, contudo, deverá ser suspensa na sua execução, na medida em que a inexistência de condenações anteriores, um Relatório Social favorável à ressocialização do recorrente em liberdade, parece-nos que estamos, pois, perante circunstâncias, que o legislador contempla, para a concessão da suspensão da pena. 10.º E nesta situação, o prognóstico mostra-se bastante favorável ao recorrente, afigurando-se-nos, assim, não estar, de todo, afastada a possibilidade de a simples censura do facto e a ameaça de prisão afastar o recorrente definitivamente deste género de criminalidade! 11.º Nunca esquecendo, que o que está em causa é a esperança fundada de que a ressocialização em liberdade, do recorrente, possa ser alcançada, sem se descurar os fins da punição. 12.º Pelo que se entende, e salvo o devido respeito, que deverá ser reapreciada a pena e a medida da pena em função do atrás exposto. 13.º A não consideração das circunstâncias supra explanadas e existentes nos autos, as quais beneficiariam a medida da pena aplicável em concreto, viola o disposto no art.º 40.º, nº 2 do art.70º, 71.º e 50.º do C. Penal. Nestes termos e nos melhores de direito, sempre salvo o devido respeito pelo Tribunal a quo, deve o presente recurso ser julgado procedente e em consequência, deverá a decisão ora recorrida, ser substituída por outra que, ponderados todos os elementos de facto e de direito, objetivos e subjetivos aplique ao arguido pena de prisão até 3 anos de prisão, contudo suspensa na sua execução, nos termos dos arts. 40.º, 70.º, 71.º e 50. º do Código Penal, por ser de direito e de Justiça! 1.3. Na 1ª Instância houve Resposta do Ministério Público e da Assistente, os quais se pronunciaram pela improcedência do recurso, concluindo, o Ministério Público nos seguintes termos: «1. A prova feita em Tribunal foi devidamente ponderada pelo Tribunal recorrido, que aplicou corretamente ao caso a lei aplicável, e encontrou o sancionamento devido, termos em que nenhuma censura merece o douto acórdão. 2. Sempre se dirá que, no caso “sub judice”, a simples censura do facto e a ameaça da prisão, subjacentes à suspensão de execução da pena, não atingem, de forma adequada e suficiente, as finalidades da punição. 3. Em concreto, carece de justificação a pretensão do recorrente, devido ao grau de ilicitude ser elevado, a intensidade do dolo que é acentuada, pois o arguido obrigando, pelo uso da força, a ofendida a manter consigo cópula vaginal, indiferente aos movimentos que a mesma envidava para se conseguir libertar e às expressões que o mesmo durante o ato ia proferindo, como “deixa-me consolar”. E ainda à necessidade de acautelar, face às condições pessoais do arguido, a realização de finalidades de prevenção especial de socialização, não obstante a ausência de antecedentes criminais; Como consequência o douto acórdão não viola os preceitos legais invocados pelo recorrente. Vossas Excelências, melhor saberão fazendo, JUSTIÇA!». 1.4. Neste Tribunal o Exmº Procurador-Geral Adjunto emitiu Parecer no sentido da improcedência do recurso, nos seguintes termos: «1. Por douto acórdão proferido, em 1ª Instância, no processo supra-identificado, foi decidido condenar o arguido AA, pela prática, em autoria material, de um crime de violação, punido pelo artigo 164.º, nº 2, do Código Penal, na pena de sete anos e oito meses de prisão. 2. Inconformado, o arguido interpôs recurso circunscrito à matéria de direito, de acordo com o disposto no art.º 432º, nº 1, al. c) do Código de Processo Penal. Questiona a excessiva dureza da pena única, que entende dever ser fixada mais próximo do limite mínimo e suspensa na respectiva execução. A tal recurso respondeu, detalhada e fundadamente, o Exmo. Magistrado do Ministério Público junto da 1ª Instância, pugnando pela respectiva improcedência. 3. Crendo-se que nada obstará ao conhecimento do recurso por parte do Supremo Tribunal de Justiça, deverá o mesmo ser apreciado em sede de conferência, de acordo com o disposto no art.º 419º, n.º 3, al. c) do Código de Processo Penal. Dir-se-á, desde logo, que a precisão e exaustividade dos argumentos aduzidos na resposta do Exmo. Colega – que se acompanha inteiramente – nos dispensam de maiores considerandos. 4. Vejamos como o acórdão recorrido justificou a fixação da medida da pena: “Valorando, então, os diferentes fatores de determinação da pena a que se referem as diversas alíneas do n.º 2 do art. 71º do Código Penal, no caso em apreço, verifica-se que: -O grau de ilicitude do facto típico, entendendo-se que se situa num grau elevado (o arguido entra na casa da ofendida, no seu reduto de proteção e aí pratica os factos, deixando-a com as lesões descritas no facto nº 15); - O dolo direto com que o arguido atuou; - Não tem antecedentes criminais registados no certificado de registo criminal; -O arguido confessou os factos (facto favorável) Tudo ponderado, o Tribunal considera justa e adequada uma pena de sete anos e oito meses de prisão.” Justificadamente, trata-se de um dos crimes que mais repugna à consciência dos cidadãos que se regem pelas normas sociais e jurídicas vigentes, susceptível de produzir, como produziu, danos psicológicos gravíssimos para a vítima, duradouros e dificilmente ultrapassáveis. Recorde-se que esta foi atacada e violada no seio da sua habitação, apesar da resistência que opôs ao arguido e a que este reagiu com brutalidade. Ora, o Tribunal fixou a pena concreta no seu terço superior e, também aqui, terá certamente tido em conta a admissão dos factos, feita em audiência. Parece-nos, pois, que o aresto fez uma adequada interpretação dos critérios contidos nas disposições conjugadas dos art.ºs 40º, n.º 1 e 71º, n.º 1 e 2, als. a) a c), e) e f) do Código Penal e sem defraudar as expectativas comunitárias. Atendeu-se, cremos, à vantagem da reintegração tão rápida quanto possível do arguido em sociedade; sem se esquecer, porém, que a pena deve visar também, de forma equilibrada, a protecção dos bens jurídicos e a prevenção especial e geral, neste caso particularmente relevantes. Com efeito, a gravidade do comportamento do arguido tinha, obviamente, em conformidade e de acordo com os critérios acima referidos, de ser traduzida em pena correspondente à medida da sua culpa; o que o tribunal recorrido conseguiu com uma pena que respeita as finalidades visadas pela punição. E, ainda que o Tribunal pudesse, porventura, ter optado por um quantum ligeiramente inferior, sempre permaneceria arredada a hipótese de suspensão da execução da pena; totalmente infundada perante a gravidade da actuação delituosa do arguido. 5. Assim, concluindo, dir-se-á que o douto acórdão recorrido qualificou e sancionou de forma adequada e criteriosa a matéria fáctica fixada, pelo que o recurso deverá improceder». 1.6. Foi cumprido o art. 417º, do CPP.
1.7. Com dispensa de Vistos, dadas as circunstâncias decorrentes da pandemia, e não tendo sido requerida audiência, seguiu o processo para conferência.
*** 2. FUNDAMENTAÇÃO 2.1. No acórdão recorrido foram dados como provados os seguintes factos: (transcrição) Da acusação:
1. No dia ... de fevereiro de 2021, pelas 12h, o arguido AA abordou a ofendida DD, que já conhecia por serem ambos residentes na freguesia da ..., e porque DD em tempos havia prestado cuidados à sogra do arguido. 2. Nessa abordagem o arguido disse a DD que o seu telemóvel, marca ..., cor branca, encontrava-se sem bateria, e por isso solicitou àquela que levasse o aparelho para sua casa a fim de ser carregada a bateria. 3. DD acedeu a tal pedido. 4. Pelas 13h, do referido dia, o arguido dirigiu-se à residência da ofendida, sita na Rua..., ..., ..., para recuperar o telemóvel, e bateu à porta. 5. DD abriu a porta ao arguido e dirigiu-se à cozinha para ir buscar o telemóvel. 6. Apercebendo-se que a ofendida se encontrava sozinha, o arguido decidiu que iria ter relações de cópula com aquela, mesmo contra a sua vontade e usando a força física. 7. Dando curso a esse plano, o arguido fechou a porta e entrou na residência e seguiu atrás da ofendida. 8. Já na cozinha, no momento em que DD se levantou, após ter desligado o carregador do telemóvel da corrente elétrica, o arguido agarrou na nuca da ofendida e empurrou-a contra o sofá ali existente, sem nunca a largar. 9. DD caiu então no sofá na posição de decúbito dorsal. 10. Ato contínuo, recorrendo à sua força física, o arguido despiu-lhe o casaco e a t-shirt e apalpou-lhe as mamas. 11. Sem nunca deixar de a agarrar, o arguido puxou as calças e as cuecas da ofendida até ao joelho. 12. De seguida, o arguido baixou o fato-macaco que trajava até à zona pélvica, deixando cair dos bolsos uma chave com a inscrição ..., um isqueiro, cor branca, da marca ..., um corta-unhas, e uma navalha com cabo vermelho e com lâmina com 8 cm, e, sem utilizar preservativo, introduziu o pénis na vagina da ofendida. 13. Nesse momento DD desferiu uma bofetada na face do arguido, gritou por socorro e pediu ao arguido que a deixasse. 14. Não obstante, o arguido prosseguiu com tal conduta, agarrando nos ombros da ofendida, impedindo-a assim de se libertar, fazendo movimentos com o pénis no interior da vagina daquela e dizendo-lhe: “deixa-me consolar”. 15. Em consequências do uso da força física pelo arguido, DD sofreu: - no abdómen: equimose de coloração ligeiramente arroxeada, irregular, localizada na metade direita do andar inferior do abdómen, com 4 cm por 2,5 cm de maiores dimensões; duas equimoses arredondadas, muito ténues, esverdeadas, localizadas a nível do terço inferior do flanco esquerdo, ambas com cerca de 2 cm de diâmetro: - no membro superior esquerdo: equimose de coloração avermelhada, irregular, localizada sobre a região acrómio-clavicular, com 3,5 cm por 1,5 cm de maiores dimensões. 16. Decorridos cerca de 15 minutos, quando a ofendida tentava libertar-se do arguido, este desequilibrou-se e caiu no sofá, acabando por não ejacular. 17. Nessa sequência, a ofendida levantou-se e empurrou o arguido até à porta, acabando o mesmo por abandonar a residência. 18. O arguido agiu de forma livre, consciente e deliberada, com o propósito concretizado, de, da forma descrita, obrigar a ofendida a praticar cópula consigo. 19. Agiu bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei penal. Do pedido de indemnização civil: 20. Em consequência da atuação do arguido, DD sentiu-se humilhada, nervosa, perturbada e transtornada. 21. DD deixou de ter relações sexuais com o marido. 22. DD tem dificuldade em encarar as pessoas refugiando-se em casa. 23. Por causa do sucedido DD chora. 24. Os factos foram alvo de comentários públicos na freguesia que muito abalam a assistente. 25. Em consequência da atuação do arguido, DD tem sentimentos de vergonha, humilhação e está perturbada. Mais se provou que:
26. AA, nascido em .../.../1968, é o mais novo de uma fratria de quatro elementos. Iniciou o percurso escolar em idade própria, contudo, a reduzida motivação pelos estudos e a necessidade de contribuir para a economia familiar, determinaram que abandonasse o sistema de ensino por volta dos doze anos de idade, habilitado com o 4º ano de escolaridade. Saiu de casa pela primeira vez (afastamento temporário do agregado de origem) por volta dos vinte anos de idade, quando cumpriu o serviço militar obrigatório, que teve a duração de um ano, aproximadamente. Aos 26 anos de idade, contraiu matrimónio e desse casamento nasceu uma filha, atualmente com 24 anos de idade. O casamento cessou pelo divórcio. À data dos factos (25.02.2021), residia sozinho em habitação pertença de herdeiros. Em termos de atividade profissional, cedo começou a auxiliar o pai em tarefas de ..., atividade que foi mantendo de forma regular até ao cumprimento do serviço militar. Posteriormente, trabalhou em empresas de ..., como ..., e em meados de 2003/2004 passou a laborar na Fábrica de ..., onde permaneceu 7 anos consecutivos. Na sequência de desemprego, em 2012 integrou o PROSA (Programa de Ocupação Social de Adultos - para desempregados com baixa empregabilidade e fragilidades sociais inscritos nas Agências de Emprego da ...), durante 1 ano e meio, na Junta de Freguesia da .... Antes de ser sujeito a medida de coação de prisão preventiva, estava desempregado há mais de 1 ano e desde 28.04.2021 tem a ficha de inscrição inativa na Agência para a Qualificação e Emprego de .... A satisfação das necessidades básicas encontrava-se assegurada, com dificuldades, através do Programa de Rendimento Social de Inserção (RSI) no valor mensal de cerca de 189€ (cento e oitenta e nove euros). AA referiu ter iniciado o consumo de bebidas alcoólicas em excesso quando cumpriu o serviço militar. Referiu que ocupava os tempos livres em atividades relacionadas com o campesinato e trabalhos pontuais. O primeiro contacto com o Sistema formal de Justiça ocorreu em 2009, tendo-lhe sido aplicado o instituto de suspensão provisória do processo, pela prática de um crime de violência doméstica. Por incumprimento, foi condenado em 2010, na pena de 2 anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período, com regime de prova, cujas obrigações, igualmente, não cumpriu, tendo acabado por cumprir 2 anos de prisão efetiva, entre 15.03.2011 e 15.03.2013 (Procº 2/09....). Foi, novamente, condenado na pena de 2 anos e 8 meses de prisão, no âmbito do Proc.º 626/10...., pela prática de um crime de violência doméstica qualificada. Em contexto prisional, não tem havido registo de infrações disciplinares.
É tido como trabalhador e adequado no desempenho das funções, ainda que por força da anterior reclusão e consumo de bebidas alcoólicas não disponha de um vínculo laboral estável. 27. Do seu certificado de registo criminal nada consta.
*** 3. O DIREITO 3.1. O objeto do presente recurso atentas as conclusões da motivação do recorrente, que delimitam o objeto do recurso, prende-se com a seguinte questão: - A dosimetria da pena.
Defende o recorrente que o Tribunal “a quo” não valorou as circunstâncias que depõem a favor do arguido, designadamente não registar antecedentes criminais, encontrar-se inserido familiar e socio-profissionalmente, de ter confessado os factos, pelo que pugna por uma pena de prisão até 3 anos de prisão, suspensa na sua execução.
A moldura penal abstrata prevista para o crime de violação, p. e p. pelo art.164º, nº.2, al. a) do Código Penal é de 3 a 10 anos de prisão.
A aplicação das penas visa a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade (art. 40º, nº 1, do CP). A determinação da medida da pena, dentro dos limites da lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, sendo que em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa (arts. 71º, nº1 e 40º, nº 2, do CP), vista enquanto juízo de censura que lhe é dirigido em virtude do desvalor da ação praticada (arts. 40º e 71º, ambos do Código Penal). E, na determinação concreta da medida da pena, como impõe o art. 71º, nº 2, do Código Penal, o tribunal tem de atender a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depõem a favor do agente ou contra ele, designadamente as que a título exemplificativo estão enumeradas naquele preceito, bem como as exigências de prevenção que no caso se façam sentir, incluindo-se tanto exigências de prevenção geral como de prevenção especial. A primeira dirige-se ao restabelecimento da paz jurídica comunitária abalada pelo crime, que corresponde ao indispensável para a estabilização das expectativas comunitárias na validade da norma violada. A segunda visa a reintegração do arguido na sociedade (prevenção especial positiva) e evitar a prática de novos crimes (prevenção especial negativa) e por isso impõe-se a consideração da conduta e da personalidade do agente. Conforme salienta o Prof. Figueiredo Dias1, a propósito do critério da prevenção geral positiva, «A necessidade de tutela dos bens jurídicos – cuja medida ótima, relembre-se, não tem de coincidir sempre com a medida culpa – não é dada como um ponto exato da pena, mas como uma espécie de «moldura de prevenção»; a moldura cujo máximo é constituído pelo ponto mais alto consentido pela culpa do caso e cujo mínimo resulta do «quantum» da pena imprescindível, também no caso concreto, à tutela dos bens jurídicos e das expectativas comunitárias. É esta medida mínima da moldura de prevenção que merece o nome de defesa do ordenamento jurídico. Uma tal medida em nada pode ser influenciada por considerações, seja de culpa, seja de prevenção especial. Decisivo só pode ser o quantum da pena indispensável para se não ponham irremediavelmente em causa a crença da comunidade na validade de uma norma e, por essa via, os sentimentos de confiança e de segurança dos cidadãos nas instituições jurídico-penais». E, relativamente ao critério da prevenção especial, escreve o ilustre mestre, «Dentro da «moldura de prevenção acabada de referir atuam irrestritamente as finalidades de prevenção especial. Isto significa que devem aqui ser valorados todos os fatores de medida da pena relevantes para qualquer uma das funções que o pensamento da prevenção especial realiza, seja a função primordial de socialização, seja qualquer uma das funções subordinadas de advertência individual ou de segurança ou inocuização. (...). A medida das necessidades de socialização do agente é pois em princípio, o critério decisivo das exigências de prevenção especial para efeito de medida da pena». O Tribunal Coletivo, tendo presente a moldura abstrata da pena de prisão prevista para o crime de violação, p. e p., pelo art. 164º, nº 2, do Código Penal, levou em consideração os seguintes fatores: «O grau de ilicitude do facto típico, entendendo-se que se situa num grau elevado (o arguido entra na casa da ofendida, no seu reduto de proteção e aí pratica os factos, deixando-a com as lesões descritas no facto nº 15); O dolo direto com que o arguido atuou; Não tem antecedentes criminais registados no certificado de registo criminal; O arguido confessou os factos (facto favorável)». E julgou como adequado e proporcional, fixar a pena do arguido em sete anos e oito meses de prisão, pela prática de um crime de violação, p. e p., pelo art. 164º, nº 2, do Código Penal. Considerando os critérios norteadores a que aludem os arts. 71º, nºs 1 e 2, e 40º, nº 1 e 2, do Código Penal, ponderando as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime depõem contra o arguido temos - o elevado grau de ilicitude dos factos e o seu modo de execução - no dia 25 de fevereiro de 2021, pelas 12h, o arguido AA abordou a ofendida DD, que já conhecia por serem ambos residentes na freguesia da ..., e porque DD em tempos havia prestado cuidados à sogra do arguido; nessa abordagem o arguido disse a DD que o seu telemóvel, marca ..., cor branca, encontrava-se sem bateria, e por isso solicitou àquela que levasse o aparelho para sua casa a fim de ser carregada a bateria; DD acedeu a tal pedido; pelas 13h, do referido dia, o arguido dirigiu-se à residência da ofendida, sita na Rua..., ..., ..., para recuperar o telemóvel, e bateu à porta; DD abriu a porta ao arguido e dirigiu-se à cozinha para ir buscar o telemóvel; apercebendo-se que a ofendida se encontrava sozinha, o arguido decidiu que iria ter relações de cópula com aquela, mesmo contra a sua vontade e usando a força física; dando curso a esse plano, o arguido fechou a porta e entrou na residência e seguiu atrás da ofendida; já na cozinha, no momento em que DD se levantou, após ter desligado o carregador do telemóvel da corrente elétrica, o arguido agarrou na nuca da ofendida e empurrou-a contra o sofá ali existente, sem nunca a largar. DD caiu então no sofá na posição de decúbito dorsal; ato contínuo, recorrendo à sua força física, o arguido despiu-lhe o casaco e a t-shirt e apalpou-lhe as mamas; sem nunca deixar de a agarrar, o arguido puxou as calças e as cuecas da ofendida até ao joelho; de seguida, o arguido baixou o fato-macaco que trajava até à zona pélvica, deixando cair dos bolsos uma chave com a inscrição ..., um isqueiro, cor branca, da marca ..., um corta-unhas, e uma navalha com cabo vermelho e com lâmina com 8 cm, e, sem utilizar preservativo, introduziu o pénis na vagina da ofendida; nesse momento DD desferiu uma bofetada na face do arguido, gritou por socorro e pediu ao arguido que a deixasse; não obstante, o arguido prosseguiu com tal conduta, agarrando nos ombros da ofendida, impedindo-a assim de se libertar, fazendo movimentos com o pénis no interior da vagina daquela e dizendo-lhe: “deixa-me consolar”. A intensidade do dolo – na sua forma mais elevada de dolo direto e intenso – a gravidade das suas consequências - em consequência do uso da força física pelo arguido, DD sofreu: - no abdómen: equimose de coloração ligeiramente arroxeada, irregular, localizada na metade direita do andar inferior do abdómen, com 4 cm por 2,5 cm de maiores dimensões; duas equimoses arredondadas, muito ténues, esverdeadas, localizadas a nível do terço inferior do flanco esquerdo, ambas com cerca de 2 cm de diâmetro: - no membro superior esquerdo: equimose de coloração avermelhada, irregular, localizada sobre a região acrómio-clavicular, com 3,5 cm por 1,5 cm de maiores dimensões. Em consequência da atuação do arguido, DD sentiu-se humilhada, nervosa, perturbada e transtornada. DD deixou de ter relações sexuais com o marido. DD tem dificuldade em encarar as pessoas refugiando-se em casa. Por causa do sucedido DD chora. Os factos foram alvo de comentários públicos na freguesia que muito abalam a assistente. Em consequência da atuação do arguido, DD tem sentimentos de vergonha, humilhação e está perturbada.
Considerando, por outro lado, a conduta anterior aos factos – muito embora do CRC do arguido nada conste, o primeiro contacto com o Sistema formal de Justiça ocorreu em 2009, tendo-lhe sido aplicado o instituto de suspensão provisória do processo, pela prática de um crime de violência doméstica. Por incumprimento, foi condenado em 2010, na pena de 2 anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período, com regime de prova, cujas obrigações, igualmente, não cumpriu, tendo acabado por cumprir 2 anos de prisão efetiva, entre 15.03.2011 e 15.03.2013 (Procº 2/09....). Foi, novamente, condenado na pena de 2 anos e 8 meses de prisão, no âmbito do Proc.º 626/10...., pela prática de um crime de violência doméstica qualificada. Relativamente ao seu percurso de vida e às suas condições pessoais - AA, nascido em .../.../1968, é o mais novo de uma fratria de quatro elementos. Iniciou o percurso escolar em idade própria, contudo, a reduzida motivação pelos estudos e a necessidade de contribuir para a economia familiar, determinaram que abandonasse o sistema de ensino por volta dos doze anos de idade, habilitado com o 4º ano de escolaridade. Saiu de casa pela primeira vez (afastamento temporário do agregado de origem) por volta dos vinte anos de idade, quando cumpriu o serviço militar obrigatório, que teve a duração de um ano, aproximadamente. Aos 26 anos de idade, contraiu matrimónio e desse casamento nasceu uma filha, atualmente com 24 anos de idade. O casamento cessou pelo divórcio. À data dos factos (25.02.2021), residia sozinho em habitação pertença de herdeiros. Em termos de atividade profissional, cedo começou a auxiliar o pai em tarefas de ..., atividade que foi mantendo de forma regular até ao cumprimento do serviço militar. Posteriormente, trabalhou em empresas de ..., como ..., e em meados de 2003/2004 passou a laborar na Fábrica de ..., onde permaneceu 7 anos consecutivos. Na sequência de desemprego, em 2012 integrou o PROSA (Programa de Ocupação Social de Adultos - para desempregados com baixa empregabilidade e fragilidades sociais inscritos nas Agências de Emprego da ...), durante 1 ano e meio, na Junta de Freguesia da .... Antes de ser sujeito a medida de coação de prisão preventiva, estava desempregado há mais de 1 ano e desde 28.04.2021 tem a ficha de inscrição inativa na Agência para a Qualificação e Emprego de .... A satisfação das necessidades básicas encontrava-se assegurada, com dificuldades, através do Programa de Rendimento Social de Inserção (RSI) no valor mensal de cerca de 189€ (cento e oitenta e nove euros). AA referiu ter iniciado o consumo de bebidas alcoólicas em excesso quando cumpriu o serviço militar. Referiu que ocupava os tempos livres em atividades relacionadas com o campesinato e trabalhos pontuais. Em contexto prisional, não tem havido registo de infrações disciplinares. É tido como trabalhador e adequado no desempenho das funções, ainda que por força da anterior reclusão e consumo de bebidas alcoólicas não disponha de um vínculo laboral estável. A favor do arguido: a confissão integral e sem reservas.
No que se refere à proteção de bens jurídicos, que constitui uma das finalidades das penas (art. 40º, nº 1, do CP), no caso o bem jurídico protegido no tipo em causa é a liberdade e a autodeterminação sexual «Cada pessoa adulta tem o direito de se determinar como quiser em matéria sexual, seja quanto a práticas a que se dedica, seja quanto ao momento ou ao lugar em que a elas se entrega ou ao(s) parceiro(s), também adulto(s), com quem as partilha – pressuposto que aquelas sejam levadas a cabo em privado e este(s) nelas consinta(m). Se quando a liberdade for lesada de forma importante a intervenção penal encontra-se legitimada, e mais do que isso, torna-se necessária». 2 As exigências de prevenção geral são bastante elevadas, pois, como é sobejamente reconhecido nos dias de hoje comportamentos desta natureza têm vindo a aumentar significativamente por todo o País, com consequências tão nefastas para as vítimas, que se repercutem pela sua vida, muitas vezes, com consequências irreversíveis, contribuindo para a degradação da sociedade em geral, e consequentemente contribuindo para a insegurança dos cidadãos, muito embora, relativamente aos crimes de violação «com baixíssima taxa de descoberta, queixa e punição, por medo de represálias, do receio de que a dificuldade da prova leve á absolvição, da falta de vontade de em reviver o traumatismo sofrido na sua reconstituição em interrogatório e na audiência do tribunal, eventuais sentimentos de culpa fundados na interiorização da ideologia da tentação feminina, etc», (v.g. MAY, 1977)3 - «O crime de violação o qual “ (…) mais do que qualquer outro crime (…) simboliza a violência, a imposição brutal, o domínio terrorista do homem sobre a mulher» 4. As exigências de prevenção especial – não obstante o arguido não ter antecedentes criminais registados no CRC, são elevadas e assumem especial relevância, consubstanciada na gravidade da conduta do arguido, que contava à data dos factos 52 anos, tendo já sido condenado em penas de prisão efetiva, por crimes contra as pessoas, o que demonstra que não serviram de admonição para prevenir a reincidência em sentido lato. Na determinação da medida da pena o modelo mais equilibrado é aquele que comete à culpa a função de determinar o limite máximo e inultrapassável da pena; à prevenção geral (de integração positiva das normas e valores) a função de fornecer uma moldura de prevenção, cujo limite máximo é dado pela medida ótima da tutela dos bens jurídicos, dentro do que é consentido pela culpa, e cujo limite mínimo é fornecido pelas exigências irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico; e à prevenção especial a função de encontrar o quantum exato da pena, dentro da referida moldura de prevenção, que melhor sirva as exigências de socialização do agente5. Assim sendo, considerando que a medida da concreta da pena, assenta na «moldura de prevenção», cujo limite máximo é constituído pelo ponto ideal da proteção dos bens jurídicos e o limite mínimo aquele que ainda é compatível com essa mesma proteção, que a pena não pode, contudo, exceder a medida da culpa, e que dentro da moldura da prevenção geral são as necessidades de prevenção especial que determinam o quantum da pena a aplicar», dentro da moldura penal abstrata prevista para o crime de violação, p. e p., pelo art. 164º, nº 2, do Código Penal, pelo qual foi condenado mostra-se justa, necessária, adequada e proporcional, a pena de sete anos e oito meses de prisão aplicada ao arguido AA. Atenta a medida da pena aplicada, mostra-se prejudicado o conhecimento da suspensão da execução da pena. Neste sentido, improcede o recurso do arguido.
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4. DECISÃO.
Termos em que acordam os Juízes que compõem a 3ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em negar provimento ao recurso do arguido AA. Custas pelo recorrente fixando a taxa de justiça em 5 (cinco) UC’s. Processado em computador e revisto pela relatora (art. 94º, nº 2, do CPP). *** Lisboa, 12 de janeiro de 2022
Maria da Conceição Simão Gomes (relatora) Nuno Gonçalves
______ 1 Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime”, Ed. Notícias, pág., 241-244. |