Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 3.ª SECÇÃO | ||
Relator: | LOPES DA MOTA | ||
Descritores: | ABSOLVIÇÃO CRIME MATÉRIA DE FACTO ERRO NOTÓRIO NA APRECIAÇÃO DA PROVA ERRO DE JULGAMENTO ERRO NA APRECIAÇÃO DAS PROVAS PODERES DA RELAÇÃO MODIFICABILIDADE DA DECISÃO DE FACTO RECURSO DE ACÓRDÃO DA RELAÇÃO RECURSO PARA O SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA NULIDADE DE ACÓRDÃO | ||
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Data do Acordão: | 12/19/2023 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | PROVIDO | ||
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Sumário : | I. O recurso tem por objeto um acórdão do Tribunal da Relação que aplica uma pena de 9 anos de prisão, proferido em recurso de um acórdão do tribunal coletivo que aplicou uma pena de prisão suspensa na sua execução, na sequência de um anterior acórdão do mesmo Tribunal da Relação que – alterando a matéria de facto, dando como provados factos não provados, com base na prova gravada, e revogando um acórdão absolutório da 1.ª instância – se pronunciou sobre a culpabilidade e determinou a devolução dos autos à 1.ª instância para determinação da pena. O arguido havia interposto recurso, que não foi admitido, do anterior acórdão da Relação que conheceu da questão da culpabilidade, mas não aplicou a pena. II. O âmbito do recurso, que circunscreve os poderes de cognição do STJ, delimita-se pelas conclusões da motivação, sem prejuízo dos poderes de conhecimento oficioso de vícios da decisão recorrida a que se refere o artigo 410.º, n.º 2, do CPP, de nulidades não sanadas e de nulidades da sentença. III. O regime dos recursos do CPP, em que a medida da pena aplicada define o critério de atribuição de competência do STJ – sem prejuízo de se notar que, com as alterações da Lei n.º 94/2021 à al. e) do n.º 1 do artigo 400.º do CPP, a pena aplicada deixou de constituir critério nos casos de absolvição em 1.ª instância – efetiva, de forma adequada, a garantia do duplo grau de jurisdição, quer em matéria de facto, quer em matéria de direito, consagrada no artigo 32.º, n.º 1, da Constituição, enquanto componente do direito de defesa em processo penal, reconhecida em instrumentos internacionais que vigoram na ordem interna e vinculam o Estado Português ao sistema internacional de proteção dos direitos humanos (artigos 14.º, n.º 5, do PIDCP e 2.º do Protocolo n.º 7 à CEDH). IV. A decisão do recurso implica a consideração das vicissitudes processuais que, na sua dinâmica, conduziram à formação do acórdão recorrido, que ocorre em momentos e por atos decisórios distintos, em 1.ª e 2.ª instâncias, devendo abranger as questões indissociáveis da culpabilidade e da determinação da pena (artigos 368.º e 369.º e 402.º, n.º 1, e 403.º, n.º 3, do CPP), que constituem o objeto do recurso. V. A decisão condenatória não pode deixar de considerar-se materialmente constituída por duas partes: uma relativa à questão da culpabilidade – aos factos provados e não provados e à respetiva qualificação jurídica –, que se encerra no anterior acórdão da relação, de 2021 – de que não foi admitido recurso, mas que se integra no acórdão recorrido, que dele se apropria, na sua totalidade, para dele extrair as consequências jurídicas dos factos provados, fundamentando a aplicação da pena –, e outra relativa à questão da determinação da pena, que se inicia com a prolação daquele acórdão da relação de 2021 e se encerra com o acórdão da relação de 2022 (acórdão recorrido), que revoga a condenação na pena de 5 anos de prisão suspensa na sua execução e aplica a pena de 9 anos de prisão. VI. No uso dos poderes de conhecimento oficioso conferidos ao STJ, há que, antes do mais, averiguar e decidir se ocorrem nulidades da decisão recorrida, suscetíveis de prejudicar o conhecimento das questões suscitadas no recurso. Situam-se neste âmbito as questões prévias de saber (a) se o Tribunal da Relação poderia, no acórdão recorrido (de 2022), considerar definitivamente alterada a matéria de facto, com fundamento no trânsito em julgado da sua anterior decisão de 2021 sobre essa matéria, de que não fora admitido recurso para o STJ, e (b) se essa decisão sobre a culpabilidade, resultante da alteração da matéria de facto, não seguida de determinação da sanção – em vez da devolução à 1.ª instância, para esse efeito, em divergência com a jurisprudência fixada por este STJ – comporta efeito que deva manter-se. VII. Não pode a matéria de facto considerar-se «definitivamente julgada», o que, a aceitar-se, face à não admissão do recurso do acórdão da Relação de 2021 e respetivos fundamentos, constituiria insuportável violação frontal do direito ao recurso enquanto componente do direito de defesa constitucionalmente garantido. VIII. Não havendo recurso em matéria de facto do acórdão da 1.ª instância –apenas foram arguidos vícios e nulidades da decisão –, nem renovação da prova – que depende sempre do recurso em matéria de facto e de pedido –, o Tribunal da Relação apenas pode modificar a matéria de facto, para remover um vício que for identificado e que impeça a decisão de direito, «se do processo constarem todos os elementos de prova que lhe serviram de base» [al. a) do artigo 431.º do CPP]. IX. Não tendo havido impugnação da matéria de facto nos termos impostos pelo artigo 412.º, n.ºs 3 e 4, do CPP, não podia o Tribunal da Relação modificar a decisão em matéria de facto dada como provada e como não provada na 1.ª instância, face ao disposto no artigo 431.º, al. b), do CPP, e mesmo que se pudesse admitir que o identificado «erro na apreciação da prova» poderia significar um vício de «erro notório na apreciação da prova» [artigo 410.º, n.º 2, al. c), do CPP], também não seria aceitável a alteração da decisão com base na prova gravada por esta não se poder incluir na previsão da al. a) do mesmo preceito. X. Ao apreciar as provas e ao alterar a matéria de facto, o acórdão do Tribunal da Relação pronunciou-se sobre uma questão de que não podia tomar conhecimento, o que constitui causa de nulidade da sentença (por excesso de pronúncia) prevista no artigo 379.º, n.º 1, al. c), aplicável ex vi artigo 425.º, n.º 4, do CPP. XI. A aplicação da sanção pela Relação, em conformidade com o AFJ n.º 4/2016, cuja observância se impunha, sem prejuízo da fundamentação da divergência (artigo 445.º, n.º 3, do CPP), teria evitado a devolução dos autos à 1.ª instância, pelo acórdão de 2021, “para ser proferida decisão condenatória”; ao não aplicar a sanção estaria o acórdão de 2021 também ferido de nulidade, por não ter conhecido de questão (questão da pena) de que deveria ter conhecido (nulidade por omissão de pronúncia), nos termos do artigo 379.º, n.º 1, al. c), aplicável ex vi artigo 425.º, n.º 4, do CPP. XII. A questão deve, porém, ser apreciada em função dos efeitos da nulidade da decisão recorrida (de 2022), a partir da respetiva declaração de nulidade, tendo em conta o disposto no artigo 122.º, n.º 1, do CPP, segundo o qual as nulidades de um ato processual tornam inválido o ato em que se verificam, bem como atos os que «dele dependerem e aquelas puderem afetar», devendo aqui incluir-se as conexões de ordem lógica entre o ato nulo e os atos que puderem ser afetados. XIII. Sendo nulo o acórdão recorrido na parte em que conheceu da declaração de culpabilidade (artigo 368.º do CPP) – factos que considerou provados e respetiva qualificação jurídica, considerando que estes preenchem os tipos de crime de abuso sexual p. e p. pelos artigos 171.º e 177.º do Código Penal – e não subsistindo qualquer facto que constitua crime, não pode haver lugar à aplicação de qualquer pena (artigo 369.º, n.º 1, do CP). XIV. Assim sendo, há que, nos termos do n.º 2 do artigo 122.º, determinar a invalidade do acórdão da 1.ª instância de 2022, que, na sequência do acórdão do Tribunal da Relação de 2021, aplicou ao arguido a pena de 5 anos de prisão suspensa na sua execução. XV. Nada restando para conhecer, nada há que decidir quanto ao suprimento e repetição de atos, sendo, em consequência, extraídas as conclusões que se impõem, no sentido da manutenção do decidido no acórdão da 1.ª instância que absolveu o arguido. | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam na 3.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça: I. Relatório 1. No âmbito do Processo n.º 1066/16.7T9CLD que corre termos no Juízo Central Criminal do Tribunal Judicial da Comarca de Leiria - Juiz 2, em 08.05.2018, foi proferido acórdão, que decidiu: «A) - julgar a acusação improcedente, por não provada e, consequentemente, absolvem o arguido AA dos dez crimes de abuso sexual de criança que lhe eram imputados pelo Ministério Público e pela assistente; B) - julgar improcedente, por não provado, o pedido de indemnização civil deduzido contra o demandado AA, do mesmo o absolvendo (…)». 2. Deste acórdão recorreram a assistente e o Ministério Público para o Tribunal da Relação de Coimbra. Por acórdão de 06.02.2019 o Tribunal da Relação de Coimbra julgou «pertinente solicitar a realização de esclarecimentos – artigo 158.º, n.º 1, al. a), do Código de Processo Penal – convocando a perita com o objetivo de dissipar a dúvida quanto no que respeita à capacidade da menor para entender e avaliar a natureza dos actos de natureza sexual que atribui ao progenitor, para concomitantemente esclarecer da possível influência da mãe e ainda para aquilatar da capacidade da menor para utilizar expressões como “denunciar”, “maluco”, “tarado” e “palerma”, tendo em consideração o QI apurado», esclarecer «se a menor poderá manter memória dos factos que relatou», devendo, «em caso de resposta afirmativa», «o tribunal ponderar tomar declarações à menor», notando que «ocorre ainda e para além da omissão de diligências essenciais para a boa decisão da causa, o vício do erro notório na apreciação da prova relativo à perícia», e em consequência, determinou o reenvio do processo para novo julgamento, nos termos dos artigos 426.º e 426.º-A do CPP. 3. Realizada nova audiência de discussão e julgamento, por acórdão do tribunal coletivo, com diferente composição, do mesmo Juízo Central Criminal do Tribunal Judicial da Comarca de Leiria - Juiz 2, proferido em 01.07.2020, foi decidido, de novo (transcrição parcial do dispositivo): «A) - julgar a acusação improcedente, por não provada e, consequentemente, absolvem o arguido AA dos dez crimes de abuso sexual de criança que lhe eram imputados pelo Ministério Público e pela assistente; B) - julgar improcedente, por não provado, o pedido de indemnização civil deduzido contra o demandado AA, do mesmo o absolvendo; (…)». 4. Inconformados com a decisão, dela interpuseram novo recurso o Ministério Público e a assistente, para o Tribunal da Relação de Coimbra. Foram suscitadas as seguintes questões (na síntese do Tribunal da Relação, que se transcreve): «Pelo Ministério Público: contradição insanável da fundamentação (art.º 410.º, n.º 2, al. b), do CPP); erro notório da apreciação da prova relativo à perícia; falta de fundamentação na apreciação das declarações para memória futura, por falta de concretização das apontadas “imprecisões” e “hesitações” manifestadas pela menor; inaplicabilidade do in dubio pro reo, por inexistirem dúvidas sobre a existência dos factos; Pela assistente: contradição insanável da fundamentação (art.º 410.º, n.º 2, al. b), do CPP); inaplicabilidade do in dubio pro reo; violação do disposto no art.º 163.º do CPP com a consequente nulidade do acórdão (art.º 379º, n.º 1, al. a), do CPP), por falta de devida fundamentação da desvalorização do efeito probatório do relatório pericial; erro na apreciação da prova por declarações para memória futura (os factos não provados devem transitar para os factos provados); omissão de pronúncia (por falta da reapreciação da prova produzida no seu conjunto e respetiva concatenação com a prova pericial).» 5. Por acórdão de 7 de abril de 2021, a Relação de Coimbra declarou não existir qualquer nulidade do acórdão e, no mais, reapreciando a prova (transcrição infra, 19), concluiu que «os juízos lógico-dedutivos aí efectuados NÃO são acertados, incorrendo o tribunal a quo em erro na apreciação da prova», pelo que julgou os recursos procedentes. Consequentemente, a partir «da prova produzida» considerou provados os factos abaixo descritos (infra, 16), modificando a matéria de facto dada como provada no acórdão recorrido, e procedeu ao respetivo enquadramento jurídico, concluindo que «terá o arguido de ser condenado pela prática de: - dois crimes de abuso sexual de crianças, previstos e punidos no artigo 171.º, n.ºs 1 e 2, com a agravação resultante do art.º 177.º, n.º 1, al. a), todos do Código Penal, bem como pelo artigo 69.º-C, nºs 1, 2 e 3 do Código Penal; (FP al E) - cinco crimes de abuso sexual de crianças, previstos e punidos no artigo 171.º, n.º 1, com a agravação resultante do art.º 177.º, n.º 1, al. a), todos do Código Penal, bem como pelo artigo 69.º-C, nºs 1, 2 e 3 do Código Penal - [FP als A(1), B (2), D(1), F (1) ] e, - um crime de abuso sexual de crianças, previsto e punido no artigo 171.º, n.º 3 alínea a), com referência ao artigo 170º., e com a agravação resultante do art.º 177.º, n.º 1, al. a), todos do Código Penal, bem como pelo artigo 69.º-C, nºs 1, 2 e 3 do Código Penal (FP al C)». Porém, não procedeu à determinação da medida da pena, por a sentença recorrida nada mencionar «em relação a comportamento, antecedentes criminais e condições pessoais e económicas do arguido circunstâncias cujo apuramento, segundo alguma jurisprudência, a absolvição não demandava (cfr. n.º 2, do art.º 128.º e n.º 1, a contrario, do art.º 369.º, do CPP), mas que agora a condenação torna necessário indagar, na medida em que que se revestem de relevo para encontrar a respectiva medida concreta da pena», no entendimento de que a esta situação não é aplicável o acórdão de fixação de jurisprudência n.º 4/2016 (Diário da República n.º 36/2016, Série I de 2016-02-22), segundo o qual «[e]m julgamento de recurso interposto de decisão absolutória da 1.ª instância, se a relação concluir pela condenação do arguido deve proceder à determinação da espécie e medida da pena, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 374.º, n.º 3, alínea b), 368.º, 369.º, 371.º, 379.º, n.º 1, alíneas a) e c), primeiro segmento, 424.º, n.º 2, e 425.º, n.º 4, todos do Código de Processo Penal.» Pelo que, revogando a decisão recorrida, determinou que os autos fossem «devolvidos à 1.ª instância para que se indag[assem] os factos, relativos ao circunstancialismo de vida pessoal, comportamento e personalidade do arguido, com interesse para a determinação da medida da pena, e, subsequentemente, aí [fosse] proferida decisão condenatória de acordo com o decidido». 6. Deste acórdão foi interposto recurso pelo arguido para o Supremo Tribunal de Justiça, o qual, por despacho de 01.06.2021, não foi admitido «ao abrigo do disposto nos arts 432.º, n.º 1, b) e 400.º, n.º 1, c), do CPP», porque, «embora tenha determinado a culpabilidade do arguido, não conheceu, a final, do objecto do processo». Reclamou o arguido do despacho que não admitiu o recurso, nos termos do disposto no artigo 405.º do CPP, tendo a reclamação sido indeferida por despacho da Senhora Vice-Presidente do Supremo Tribunal de Justiça de 07.07.2021, com o fundamento na inadmissibilidade do recurso [artigo 432.º, n.º 1, al. c), do CPP], pois que, «[e]stando em causa a definição da responsabilidade criminal, a decisão final sobre o objecto do processo será aquela que define a culpabilidade (factos) e a pena (consequências)», «o acórdão questionado não conheceu, a final, do objecto do processo ou de um elemento essencial do objecto – a determinação da pena, tendo em conta que foi ordenada a devolução dos autos à 1.ª instância, para determinação da pena a aplicar ao arguido – isto é, a hipótese de irrecorribilidade prevista na referida alínea c) do n.º 1 do artigo 400.º do CPP». Acrescentando-se neste despacho de indeferimento que «não foram ofendidas as garantias de defesa consagradas no artigo 32.º, n.º 1, da CRP, tendo em conta que o direito ao recurso em processo penal, garantido pela previsão de um duplo grau de jurisdição, terá de ser perspectivado como a faculdade de recorrer sobre a matéria da causa, e não sempre e em qualquer caso, atomisticamente, desenquadrado do conjunto, ou sobre uma questão parcial ou incidental ainda que decidida no procedimento de recurso ou por ocasião de um recurso (cf., Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 424/09, de 14.08.09), e que «no caso, além de terem intervindo duas instâncias, pode ainda o arguido recorrer para o Tribunal da Relação da decisão da 1.ª instância que vier a ser proferida na sequência do cumprimento do ordenado pelo tribunal superior.» 7. Por acórdão de 18.03.2022, o tribunal da 1.ª instância – após reabertura da audiência, interrogatório do arguido e análise do relatório social e do certificado registo criminal – julgou provados, ainda, outros factos relativos aos antecedentes criminais do arguido e às suas condições pessoais, económicas e familiares, e, a final, condenou o arguido AA nos seguintes termos: «1 – Pela prática de dois crimes de abuso sexual de crianças, previstos e punidos no artigo 171.º, n.º. 1 e 2, com a agravação resultante do artigo 177.º, n.º 1, al. a) do Código Penal, bem como pelo artigo 69.º C, n.º 1, 2 e 3 do Código Penal, na pena de 4 anos e 6 meses de prisão por cada um dos crimes. 2 – Pela prática de cinco crimes de abuso sexual de crianças, previstos e punidos no artigo 171.º, n.º 1, com a agravação resultante do artigo 177.º, n.º 1, al. a) todos do Código Penal, bem como pelo artigo 69.º-C, n.º 1, 2 e 3 do Código Penal, na pena de dois anos de prisão por cada um dos crimes. 3 – Pela prática de um crime de abuso sexual de crianças, previsto e punido no artigo 177.º, n.º 3 al. a), com referência ao artigo 170.º e com a agravação resultante do artigo 177.º, n.º 1 al. a) todos do Código Penal, bem como pelo artigo 69.º-C, n.º 1, 2 e 3 do Código Penal, na pena de 1 ano de prisão. 4 - Condenar o arguido, em cúmulo jurídico, nos termos do disposto no artigo 77.º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal, na pena única de 5 (cinco) anos de prisão, suspensa na sua execução pelo mesmo período de tempo, nos termos do artigo 50.º, nºs 1 e 5, do Código Penal, mediante: 4.1) - regime de prova, nos termos do artigo 53.º, n.ºs 1 e 4, do Código Penal; e 4.2) – sujeitar o arguido, no período da suspensão da execução da pena, à frequência de consultas de sexologia e do foro mental, para despiste de eventual problemática nessas áreas, sujeitando o mesmo ao tratamento que vier a ser considerado como adequado 5 – Condenar o arguido na sanção acessória de inibição do exercício das responsabilidades parentais pelo período de 5 anos (art. 69.º-C, n.º 3 do CP). (…)». 8. Inconformados com esta decisão, dela interpuseram recurso o arguido, o Ministério Público e a assistente para o Tribunal da relação de Coimbra. 9. Por acórdão de 12.10.2022, o Tribunal da Relação de Coimbra negou provimento ao recurso do arguido, julgou parcialmente procedentes os recursos do Ministério Público e da assistente e, em consequência, decidiu: «a) Condenar o arguido pela prática de dois crimes de abuso sexual de crianças, previstos e punidos no artigo 171.º, n.ºs 1 e 2, com a agravação resultante do art.º 177.º, n.º 1, al. a), todos do Código Penal, bem como pelo artigo 69.º-C, nºs 1, 2 e 3 do Código Penal; (FP al B) na pena de 6 anos de prisão por cada um dos crimes. b) Manter as restantes condenações pela prática dos demais crimes; c) Condenar o arguido, em cúmulo jurídico, nos termos do disposto no artigo 77.º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal, na pena única de 9 (nove) anos de prisão; d) Condenar o arguido na sanção acessória de inibição do exercício das responsabilidades parentais pelo período decorrente até a menor atingir a maioridade, ou seja, até 1-05-2030 (art. 69.º-C, n.º. 3 do CP). e) Julgar parcialmente procedente o pedido de indemnização civil e em consequência condenar o arguido a pagar à ofendida BB, representada por sua mãe CC, a quantia de 14.000 mil euros, acrescida de juros moratórios à taxa legal, desde o trânsito em julgado deste acórdão até integral pagamento, a título de indemnização pelos danos não patrimoniais causados. f) Manter no mais o acórdão recorrido.» 10. Deste acórdão do Tribunal da Relação vem agora interposto recurso pelo arguido para o Supremo Tribunal de Justiça. Apresenta motivação com as seguintes conclusões: «I. O arguido, ora recorrente, vem interpor recurso para o Supremo Tribunal de Justiça do acórdão proferido pela relação de Coimbra em 12 de outubro de2022. II. Acórdão do qual ora se recorre e que condenou o arguido / recorrente pela prática de dois crimes de abuso sexual de crianças, previstos e punidos no artigo 171º, n.ºs 1 e 2, com a agravação resultante do art.º 177.º, n.º 1, al. a), todos do Código Penal, bem como pelo artigo 69.º-C, nºs 1, 2 e 3 do Código Penal; (FP al B) na pena de 6 anos de prisão por cada um dos crimes, e manter as restantes condenações pela prática dos demais crimes. III. O que resultou na condenação, em cúmulo jurídico, na pena única de 9 (nove) anos de prisão, bem como na sanção acessória de inibição do exercício das responsabilidades parentais pelo período decorrente até a menor atingir a maioridade. IV. O tribunal a quo julgou ainda parcialmente procedente o pedido de indemnização civil e em consequência condenou o arguido a pagar à ofendida BB, representada por sua mãe CC, a quantia de € 14.000 (catorze mil euros), acrescida de juros moratórios à taxa legal, desde o trânsito em julgado do acórdão até integral pagamento, a título de indemnização pelos danos não patrimoniais causados. V. Sucede que é já extenso o histórico deste processo. VI. Por duas vezes o Tribunal de 1.ª Instância absolveu o arguido / recorrente –consoante acórdãos proferidos em 8 de maio de 2018 e em 1 de julho de 2020. VII. Entretanto, em sequência de Recursos da assistente e do MP foi proferido acórdão pelo Tribunal da Relação de Coimbra em 7 de abril de 2021 alterando e fixando a matéria de facto deliberada pelo Tribunal Coletivo de 1ª Instância (fls.1190 e 1191), qualificando juridicamente tal factualidade, e ordenando a condenação do arguido pela prática dos factos de que vinha acusado, designadamente que … “c) que os autos sejam devolvidos à 1ª instância para que se indaguem os factos, relativos ao circunstancialismo de vida pessoal, comportamento e personalidade do arguido, com interesse para a determinação da medida da pena, e, subsequentemente, aí seja proferida decisão condenatória de acordo com o ora decidido”. VIII. O referido acórdão foi assinado pelas senhoras juízes desembargadores Exma. Sra. Dra. DD e Exma. Sra. Dra. EE. IX. Devolvido o processo à 1.ª instância unicamente para que fosse proferida decisão condenatória de acordo com o anteriormente decido pelo TRC, aquele tribunal proferiu acórdão em 18/3/2022, condenando o arguido “em cúmulo jurídico, nos termos do disposto no artigo 77º, nºs 1 e 2, do Código Penal, na pena única de 5 (cinco) anos de prisão, suspensa no seu regime de prova, nos termos do artigo 53º, nºs 1 e 4, do Código Penal”. X. Nesta sequência, o arguido, bem como o Ministério Público e ainda a assistente, recorreram para o TRC, aquele concretamente em 26-04-2022. XI. O Tribunal da Relação ora recorrido, proferiu acórdão em 12 de outubro de 2022. Porém XII. O acórdão proferido em 12-10-2022, do qual ora se recorre, foi assinado pelas mesmas senhoras juízas desembargadoras Exma. Sra. Dra. EE, Exma. Sra. Dra. DD e ainda pelo Exmo. Sr. Dr. FF. XIII. As senhoras juízas desembargadoras Exma. Sra. Dra. EE e Exma. Sra. Dra. DD estavam, nos termos da alínea d) do n.º 1 do artigo 40.º do Código de Processo Penal, impedidas por participação anterior no julgamento do recurso no mesmo processo, situação que se suscita para os devidos e legais efeitos. Pois XIV. Prevê o n.º 1 do artigo 40.º do CPP, nenhum juiz pode intervir em julgamento, recurso ou pedido de revisão relativos a processo em que tiver, designadamente “Proferido ou participado em decisão de recurso anterior que tenha conhecido, a final, do objeto do processo, de decisão instrutória ou de decisão a que se refere a alínea a), ou proferido ou participado em decisão de pedido de revisão anterior.” XV. O arguido tomando conhecimento desta nova intervenção no processo por parte das referidas senhoras desembargadoras ora no julgamento de recurso– suscita ora a nulidade decorrente de tal procedimento nos termos previstos pelo 40.º e 41.º do Código de Processo Penal. XVI. Pois os atos praticados por juiz impedido são nulos por via da norma contida no artigo 40º/1 – alínea d) do Código de Processo Penal. XVII. E ainda que assim não se entenda, por qualquer outra razão inerente ao processado, sempre se dirá que seria de ter em consideração a alteração produzida pela Lei 94/2021 de 21 de dezembro que entrou em vigor no dia 22/3/2022, e que dispõe em matéria de impedimento de Juiz por participação anterior em processo designadamente em fase de instrução ficando vedado, também, intervir em julgamento sendo aplicável por interpretação extensiva – e por maioria de razão e segurança dos direitos de defesa na fase de recurso. XVIII. Situação de nulidade fundamentada ainda na analogia aplicável também à intervenção em julgamento de recurso após a redação conferida pela Lei 94/2021 de 21 de dezembro. XIX. Uma vez que, a verificar-se o impedimento previsto para os atos na fase de instrução, por maioria de razão se aplicaria aos atos/ julgamento em recurso, constituindo uma garantia da imparcialidade dos juízes, na medida em que as causas de impedimento constituem influências suscetíveis de afetar a imparcialidade no recurso ou pelo menos a sua aparência aos olhos da comunidade. XX. E se não se entender– isto é–caso o entendimento seja no sentido de a referida norma não se aplicar por o acórdão anterior não ter decidido, a final, o objeto do processo, sempre sem conceder, vem o recorrente desde já suscitar a inconstitucionalidade de tal interpretação. XXI. Reitera-se: para os efeitos previstos no art.º 70.º, 1, b), da Lei 28/82, de 15 de novembro, desde já se suscita a inconstitucionalidade do artigo 40.º, n.º 1, alínea d) do CPP, na versão introduzida pela Lei n.º 94/2021, de 21 de dezembro, quando interpretado no sentido que não tendo o coletivo determinado a medida da pena, mas apenas condenado o arguido, determinado os factos considerados provados, não existir impedimento por parte do juiz do Tribunal da Relação que tenha intervindo anteriormente no conhecimento e decisão de um recurso – após baixa para decisão a proferir em 1ª instância – não ficando impedido de voltar a conhecer de recurso deduzido no mesmo processo. Acrescentando ainda XXII. É inconstitucional interpretar o segmento “que tenha conhecido, a final, do objeto do processo”, constante da alínea d) do n.º 1 do artigo 40.º do CPP, no sentido de não ser aplicável o regime dos impedimentos por participação em processo num caso em que, embora não concretizada ainda a medida da pena aplicável ao arguido, o tribunal superior ordena a descida do processo à 1.ª instancia apenas para esse fim, tendo a Relação assente a matéria de facto e assim ficando o arguido irremediavelmente condenado pela prática dos factos dados como provados por este tribunal superior. XXIII. Em suma, não pode ser conforme com o texto constitucional uma interpretação segundo a qual pode ser o mesmo coletivo a decidir num processo em que não só já havia tido intervenção, como tinha mesmo ordenado a condenação do arguido, por violação das garantias de processo criminal, e nomeadamente o direito a um julgamento justo e imparcial, previstas no artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa (doravante, CRP). Nestes termos XXIV. Deverá o acórdão recorrido ser declarado nulo, nos termos supra expostos, e por consequência os autos devolvidos à Relação de Coimbra para nova apreciação do recurso, necessariamente por um diferente coletivo. XXV. No caso concreto, não existe qualquer garantia da imparcialidade do coletivo, visto que o mesmo já julgou a matéria e, naturalmente, tende a manter a sua posição, não tem o distanciamento necessário para formular um juízo suficientemente livre e seguro. XXVI. E tanto assim é, que pese embora o tribunal de 1.ª instância, em acórdão de 18 de março de 2022, tenha apenas fixado a concreta medida da pena, estando os factos assentes, certo é que cabia novo recurso para a relação de Coimbra, de facto e de direito, após o mesmo. XXVII. E o Tribunal recusou apreciar a matéria de facto, consoante supra alegado nas motivações cfr pontos 24 e seguintes. XXVIII. Logo após o acórdão do TRC de 7 de abril de 2021, que condenou o arguido, embora remetendo a determinação da medida da pena para o tribunal de 1.ª instância, o arguido interpôs recurso para o STJ, não tendo o mesmo sido admitido, por despacho de 1 de junho de 2021, com fundamento nos artigos 432.º, n.º 1, alínea b) e 400.º, n.º 1, alínea c), ambos do CPP. XXIX. O arguido reclamou da não admissão do recurso nos termos do artigo 405.º do CPP invocando, em síntese, que embora não tenha sido determinada a medida da pena, já se mostrava condenado pela prática dos crimes descritos. XXX. Ora, acontece que entendeu o STJ que “no caso, além de terem intervindo duas instâncias, pode ainda o arguido recorrer para o Tribunal da Relação da decisão da 1.ª instância que vier a ser proferida na sequência do cumprimento do ordenado pelo tribunal superior”. XXXI. Ou seja: foi entendimento do STJ que, após o acórdão condenatório proferido pelo TRC em 7 de abril de 2021, não era admissível o recurso para o tribunal superior. XXXII. Pois entendeu que não havia sido ainda proferida decisão final sobre o objeto do processo, consoante decorre da decisão proferida em 7/7/2021 pela Ínsigne Senhora Conselheira Vice-Presidente do STJ que se encontra junto aos autos, onde consta expressamente a final que “ …. Pode ainda o arguido recorrer para o Tribunal da Relação da decisão da Primeira instância que vier a ser proferida na sequência do cumprimento do ordenado pelo Tribunal Superior.” XXXIII. Porquanto o recurso seria a apresentar apenas após a determinação da concreta medida da pena pelo tribunal de 1.ª instância, recurso para a relação, que apreciaria matéria de facto, de direito e a medida da pena. Cabia, assim, à relação, a reapreciação da matéria de facto. XXXIV. Porém, a relação de Coimbra recusou-se a fazê-lo, formalizando – consoante consta na página 39 do acórdão ora recorrido: “A matéria de facto foi definitivamente julgada e fixada em Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 7 de Abril de 2021, o qual foi proferido após Acórdão absolutório decidido em sede de primeira instância e na sequência dos recursos interpostos pela Assistente e pelo Ministério Público. O Tribunal da Relação veio a julgar os respectivos recursos procedentes, alterando a matéria de facto e decidindo, de forma definitiva, os factos que se devem considerar provados e não provados.” XXXV. Tal entendimento do TRC colide frontalmente com a posição do tribunal superior. XXXVI. O meio de impugnação da decisão é através de recurso para o Tribunal da Relação e o momento adequado é após prolação do Acórdão na 1.ª instância, o qual foi proferido em 18/3/2022. XXXVII. Caberia, reitera-se, ao Tribunal da Relação, a reapreciação da matéria de facto da decisão final que foi proferida em 18/3/2022. XXXVIII. Ora: ao contrário da interpretação do STJ, facto é que a matéria de facto não foi apreciada pelo Tribunal da Relação de Coimbra que recusou. XXXIX. O Tribunal da Relação recusou conhecer do recurso o que se traduz numa clara violação da Lei do processo e dos direitos da defesa, designadamente do recurso, direito fundamental constitucionalmente consagrado, o que foi coartado e impedido pela decisão da relação nesta parte evidenciando uma recusa de acesso ao direito e à justiça com uma absoluta diminuição das garantias de defesa, uma vez que a Constituição da República Portuguesa garante a existência ao menos de um grau de recurso quanto à sua já decretada condenação, consoante entre outros o disposto no número um do art. 32.º da CRP, reitera-se. XL. Deverá o acórdão recorrido ser declarado nulo por violação, entre outros do disposto na alínea c) do n.º 1 do artigo 379.º do CPP e, em consequência, ordenada a descida dos presentes autos ao Tribunal da Relação de Coimbra para nova apreciação, por diferente coletivo, quanto à matéria de facto. XLI. Também quanto à mesma decisão e não podendo sobre a mesma fazer juízo de inconstitucionalidade no entanto suscita-se ainda a inconstitucionalidade da interpretação segundo a qual não pode o arguido recorrer da matéria de facto para o Tribunal da Relação da decisão da Primeira instância que vier a ser proferida na sequência do cumprimento do ordenado por esse Tribunal Superior que devolve os autos à 1ª instância para que se indaguem os factos, relativos ao circunstancialismo de vida pessoal, comportamento e personalidade do arguido, com interesse para a determinação da medida da pena, e, subsequentemente, aí seja proferida decisão condenatória e que não conheceu, a final, do objeto do processo ou de um elemento essencial do objecto - a determinação da pena, tendo em conta que foi ordenada a devolução dos autos à 1.ª instância, para determinação da pena a aplicar ao arguido. XLII. Ou (a contrario) da interpretação segundo a qual é admissível recurso da matéria de facto dos acórdãos da relação que não ponham termo à causa – como é ocaso dos presentes autos – acórdão de 7 de abril de 2021- devendo esse recurso ser interposto, no prazo legal, após prolação do acórdão de 2ª instância, por violação do disposto na alínea c) do nº 1 do artigo 400º a contrario e o disposto na alínea c) do n.º 1 do artigo 379.º do CPP e ainda artigo 399º do Código de Processo Penal. XLIII. Entende ainda o recorrente – com o devido respeito que a fundamentação do acórdão recorrido é insuficiente consoante conhecida nos termos elencados na motivação que consta dos pontos 64 e seguintes supra uma vez que não analisou devidamente os elementos dos autos nem realizou raciocínio logico que permita sustentar as conclusões a que chegou. XLIV. Sem expor uma fundamentação que indique e muito menos demonstre quais as provas em que se baseou para formar a sua convicção e qual o compreensível e claro raciocínio lógico-dedutivo e qual o exame crítico que tenha efetuado que lhe permita chegar a tal conclusão (que permita formar tal convicção) para, daí decretar a condenação do arguido. XLV. Prevê o n.º 2 do artigo 374.º do CPP: “Ao relatório segue-se a fundamentação, que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.” XLVI. Ou seja: é imprescindível a indicação dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal. XLVII. Sucede que o acórdão proferido em 1ª instância não contém nem integra qualquer fundamentação. XLVIII. E não se entenda que a fundamentação da matéria de facto decorre daquela que foi assente pelo Tribunal da Relação, pois nem faz remissão para tal, nem a remissão poderia existir. XLIX. Ainda que vinculado na sua decisão, ao tribunal a quo cabe o ónus de fundamentação. L. Não pode entender-se – nem implicitamente - que pretendeu fundamentar a decisão por remissão, pois tal não é admissível, em processo penal. LI. Por falta de fundamentação desta decisão recorrida, padece a mesma de nulidade insanável, por inobservância do disposto no artigo 97.º, n.º 5, artigo 374.º n.º 2 e artigo 379.º, todos do CPP, a qual se conclui. LII. Assim como foi violado o n.º 1 do artigo 205.º da Constituição da República Portuguesa: “As decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei.” LIII. O que tem por consequência a nulidade da decisão recorrida nos termos das disposições conjugadas dos artigos 374.º n.º 2, e 379.º, n.º 1, al. a) do CPP. LIV. Também considera existir erro notório na apreciação da prova pelo que, ordenada a descida dos presentes autos ao Tribunal da Relação de Coimbra para apreciação da matéria de facto que recusou conhecer anteriormente, mas por diferente coletivo, deve ser conhecida nos termos elencados na motivação que consta dos pontos 64 e seguintes e 105 e seguintes, supra. E concretamente LV. A assistente serviu-se do presente procedimento criminal como um instrumento que a mesma criou e sustentou com o propósito único de comprometer e neutralizar a presença do pai da vida da filha menor de ambos, afastando-o do convívio entre a filha e o pai. LVI. A assistente utilizou o presente procedimento criminal como forma de realizar os seus interesses pessoais no que toca à relação com o pai da BB. LVII. A perícia de natureza sexual foi absolutamente inconclusiva. LVIII. A BB não apresentou qualquer sintomatologia compatível com os abusos descritos pela assistente. LIX. Nunca a assistente levou a filha a um hospital, nem quando alegadamente viu nódoas negras, nem quando a criança lhe terá contado factos suscetíveis de abuso sexual. LX. Tampouco a assistente procurou aprofundar a conversa com a criança, com calma e naturalidade, para que pudesse efetivamente apurar a dimensão e realidade dos factos em causa. LXI. Não existe uma única data concreta, uma referência temporal. LXII. Ninguém consegue recordar-se da data em que a criança falou com a mãe, a data em que foram à CPCJ ou qualquer outra data relevante e impactante na vida desta criança, neste âmbito. LXIII. E não é credível que esta mãe não se recordasse de uma única data tendo em conta a gravidade dos factos de que o arguido vem acusado. LXIV. Sendo a matéria de facto insuficiente para se concluir por um juízo seguro (de direito) para concluir pela condenação por aquele número de crimes e datas não concretamente apuradas e num número de vezes que não se consegue apurar nos autos, de modo nenhum, tendo sido calculado por probabilidades. LXV. Resulta da experiência comum, sustentada pelo relatório do INML, que não é possível que os factos tenham ocorrido consoante explicados pela assistente pois, a ocorrer, teriam consequências físicas. LXVI. E muito embora a assistente só tenha levado a criança ao INML em novembro, também não há qualquer justificação para que assim tenha sido, sem que esta mãe se tenha preocupado em ir de imediato, o quanto antes, a um hospital, para que a menina fosse observada. LXVII. Também nunca a assistente providenciou assistência psicológica ou psiquiátrica para a BB. Nem para si própria. LXVIII. Também nunca a BB esteve sozinha com os técnicos, inclusivamente, a assistente, que já tinha uma consulta marcada com o seu psiquiatra, aproveitou para nessa consulta, que por coincidência ocorreu dias depois de a criança ter alegadamente conversado com a mãe, contar ao psiquiatra o que se estaria a passar e, só depois, entrou a criança na sala, ficando lá a assistente a assistir ao que a criança dizia. LXIX. Foi a assistente quem contou a alegada versão da filha as técnicas da CPCJ, antes de a menina entrar, tendo-lhes contado a versão que quis, e, sem se ausentar da sala, de lá ouviu o que a criança tinha para dizer, sendo impossível de olvidar que a figura materna da mãe, presente num momento destes, não implica apenas o relato das verdades. LXX. Na avaliação psicológica e na tomada de declarações para memória futura resultou clara a influência e pressão intensa por parte da mãe sobre a criança, designadamente nas frases e expressões pela mesma usadas. LXXI. A assistente pretendia afastar e castigar este pai. LXXII. A assistente age como se a filha fosse propriedade sua. Entende que lhe cabe decidir se o pai deve ou não fazer parte da vida da BB. LXXIII. Entendeu o Tribunal Coletivo que proferiu o acórdão absolutório proferido em 8de maio de 2018 – num julgamento de imediação e proximidade direta – que o comportamento de CC contra aquele constitui uma forma de resolver a regulação das responsabilidades parentais, afastando definitivamente o pai da vida da BB. Assim como de toda a família paterna. LXXIV. Não se compreende que a mãe, tendo conhecimento dos alegados factos transmitidos pela menor no final de agosto de 2016, tendo pressa em falar com o seu advogado – o que fez logo no dia seguinte, tendo este supostamente marcado uma reunião com a CPCJ –, não fizesse rigorosamente nada além de esperar pacientemente que chegasse o dia 14 de setembro, sem tomar qualquer outra medida para providenciar cuidados à sua filha. LXXV. Do depoimento da testemunha avô GG – avô materno da BB – e do que o mesmo disse acerca do arguido, concluiu o Tribunal em 1ª instância que a mãe estaria motivada pelo ressentimento e inimizade para com o arguido seja pela falência do seu relacionamento seja pela vontade de o afastar da filha de ambos. LXXVI. Perceciona-se de forma muito clara que a aversão que GG manifestou em audiência de discussão e julgamento contra o arguido. LXXVII. Não é credível, não só para a defesa, como também não o foi para o tribunal de1.ª instância, que perante tais alegadas revelações não se tomassem medidas imediatas. LXXVIII. Não se encontra qualquer descrição credível por nenhuma das testemunhas -muito menos conhecimento direto – em relação aos relatos da menor. LXXIX. A assistente não poderá ter feito um depoimento credível e rigoroso, estando o mesmo viciado de contradições, imprecisões e, de resto, de comportamentos completamente opostos aos que uma mãe teria numa situação semelhante. LXXX. A assistente e os seus familiares manifestaram interesse direto em ver o arguido condenado, trazendo versões concertadas, ensaiadas e parciais. LXXXI. Existem ainda inconsistências e contradições entre a versão da assistente e do seu pai ao relatarem a noite em que a menor alegadamente lhes revelou quetinha sofrido de abusos sexuais por parte do seu pai. LXXXII. Os factos, para serem considerados provados, têm necessariamente de ser sustentados em prova documental e testemunhal produzida em audiência. LXXXIII. E é facto que o Tribunal Coletivo em 1ª Instância apreciou os depoimentos fundou a sua decisão “na análise crítica e conjugada das declarações do arguido AA e da assistente CC, declarações para memória futura da menor BB, depoimentos das testemunhas e análise dos documentos indicados”. LXXXIV. Não podem considerar-se provados a maioria dos factos constantes do acórdão em crise. LXXXV. Porquanto não foi produzida prova no sentido de se considerarem provados os fatos elencados, não tendo existindo sustentação para a mesma. LXXXVI. Não existe qualquer prova direta dos factos descritos na acusação. LXXXVII. Estas incongruências, contradições e desvalorizações da concretização exatidão das declarações e depoimentos não podem ser ignoradas. LXXXVIII. Matéria de facto que não foi apreciada pelo tribunal a quo, reitera-se. LXXXIX. Caso se considere que o Tribunal da Relação não deve reapreciar a matéria de facto, sempre se dirá e sem conceder que este mesmo Tribunal pode ainda conhecer da matéria de facto. A saber XC. Em qualquer caso, mesmo que este Tribunal entenda não devolver os autos à Relação de Coimbra para apreciação da matéria de facto, sempre deverá a mesma ser então apreciada por este tribunal superior. XCI. Entende o recorrente que sempre caberá recurso, perante o STJ, dessa mesma matéria de facto. XCII. A Lei n.º 94/2021, de 21 de dezembro aprovou as medidas previstas na Estratégia Nacional Anticorrupção e, entre outras, procedeu a diversas alterações ao Código de Processo Penal, aplicáveis, não só aos novos processos, mas também aos processos em curso. XCIII. Neste contexto, o diploma procedeu a alterações, designadamente, nos artigos 432.º e 434.º do CPP. XCIV. No caso concreto, entende o arguido / recorrente que existiu erro notório na apreciação da prova, o que constitui, bem assim, fundamento para o recurso perante o STJ. XCV. Invoca a existência de erro notório na apreciação da prova- vício de apuramento da matéria de facto, que prescinde da análise da prova produzida para se a ter somente ao texto da decisão recorrida, por si ou conjugado com as regras da experiência comum. XCVI. Bem assim, há erro notório na apreciação da prova quando se dão factos como provados que, face às regras da experiência comum e à lógica normal da vida, não se poderiam ter verificado ou são contraditados pela prova produzida. XCVII. Assim, nos termos do artigo 434.º do CPP, na redação introduzida pela Lei n.º 94/2021, de 21 de dezembro, o recurso interposto para o STJ visa exclusivamente o reexame de matéria de direito, sem prejuízo do disposto nas alíneas a) e c) do n.º 1 do artigo 432.º, que dizem respeito aos recursos de decisões das relações proferidas em 1.ª instância e aos recursos de acórdãos proferidos pelo tribunal do júri ou pelo tribunal coletivo, os quais, por força desta alteração legislativa, passaram a admitir recurso para o STJ com os fundamentos previstos nos n.ºs 2 e 3 do artigo 410.º do CPP. XCVIII. A douta decisão proferida pelo Tribunal a quo assenta num erro notório na apreciação da prova, fazendo constar como factos provados factos que não deveriam ser considerados provados e considerando outros factos como não aprovados, quando, da prova produzida resultou o contrário. Importando, portanto, alterar a matéria de facto considerada provada e não provada. XCIX. In casu, recorre para este Tribunal com diversos fundamentos sendo a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, consoante se prevê na alínea a) do n.º 2 do artigo 410.º, o erro notório na apreciação da prova previsto na alínea c) do número 2 do artigo 410.º e artigo 434.º do CPP; e por outro lado erro de direito, erro na qualificação jurídica dos factos provados. C. Assim, com fundamento nas motivações articuladas e nas conclusões das mesmas extraídas se considera que os factos provados no acórdão recorrido –que constam na página 79 e 80. Factos de “A” a “F” - por elementar falta de fundamentação não podem manter-se seja por insuficiência, por erro notório de apreciação das declarações para memória futura e ainda por falta de fundamentação. CI. Deste modo, não se concede a decisão a que chegou o tribunal, existindo erro notório na apreciação da prova, a qual, merecia considerações diferentes conseguinte diferente decisão da vertida no acórdão em crise. CII. Em suma, após a produção da prova, o tribunal formou a sua convicção por via ilações, conclusões e análises dos depoimentos que são contrários ao que deveriam ter sido, caso se atente nos depoimentos em causa. CIII. Conclusões, de resto, absolutamente contrárias às do tribunal de 1.ª instância, que beneficia de dois princípios fundamentais: o da oralidade e o da imediação. CIV. Parece-nos, sobretudo, que todos os pontos indicados supra, nomeadamente os relacionados com a matéria de facto, deveriam ter sido pelo menos suficientes para suscitar, dúvidas aquando da apreciação dos meios probatórios referidos, sendo certo que essas dúvidas sempre teriam de ser tratadas e enquadradas num modelo de aceitação dos mais elementares princípios de direito penal. CV. Considerada toda a prova produzida ao longo de muitas sessões de julgamento, verifica-se que não é possível ultrapassar a dúvida razoável. CVI. E a persistência de dúvida razoável após a produção da prova tem de atuar em sentido favorável ao arguido e, por conseguinte, conduzir à consequência imposta no caso de se ter logrado a prova completa da circunstância favorável ao arguido. CVII. Porquanto a conservação da dúvida razoável após a produção de prova tem de atuar em sentido favorável ao arguido. CVIII. O princípio in dubio pro reo é violado sempre que a entidade competente profere decisão contra o réu quando não tenha ultrapassado o patamar da dúvida razoável. CIX. E, aí, a consideração do princípio da presunção da inocência, através, principalmente de uma das suas manifestações, o princípio in dubio pro reo, era fundamental. CX. A posição do Tribunal é de verdadeiro non liquet: não consegue superar a dúvida gerada pela contradição insanável de versões das únicas pessoas que assistiram aos factos. CXI. Acresce que, considerando os princípios da imediação e da livre apreciação da prova, tendo a decisão recorrida sido obtida com o benefício da imediação e da oralidade – apenas pode ser afastada se ficar demonstrado ser inadmissível a sua utilização pelas mesmas regras da lógica e da experiência comum. O que não se verificou. CXII. A livre apreciação da prova é indissociável da oralidade com que decorre julgamento em 1ª Instância. CXIII. Através da imediação, do contacto pessoal entre o julgador e os diversos meios de prova, o Tribunal avaliou a credibilidade dos depoimentos e declarações, bem como teve acesso à personalidade do arguido. CXIV. Ou seja: a inocência do arguido, ou por esta alegada no processo-crime teve vencimento na 1ª instância, por duas vezes, onde se produz a prova e imediação CXV. O Tribunal Coletivo Criminal de Leiria por duas vezes julgou a prova dos factos, avaliou cuidadosamente, e perante o que decorreu em audiência face aos princípios da oralidade, imediação e livre apreciação da prova produzida, suficientemente esclarecido e convicto da versão e da matéria ali apresentada, absolveu por duas e sucessivas vezes o arguido do ignominioso crime pelo qual vem condenado. CXVI. Ora, não pode o tribunal de recurso ignorar a análise feita pelo tribunal a que relativamente à credibilidade e postura de determinados intervenientes, com base na imediação e na oralidade. CXVII. E, de facto, o Tribunal de 1.ª Instância adquiriu esta prova e valorou-a de acordo com as regras basilares do direito processual penal, com observância dos princípios, nomeadamente, da investigação, da livre apreciação da prova e da imediação. CXVIII. E o discurso da criança foi considerado pelo coletivo de Leiria demasiado complexo para a idade da mesma. CXIX. A prova produzida em audiência de discussão e julgamento foi muito importante, pois nesta tivemos o confronto entre afirmações entre si contraditórias, sendo que se demonstram evidências que a imediação desta prova permitiu percecionar, como foi o caso dos autos, designadamente sinais linguísticos e físicos que por demasiado evidentes sempre seriam de valorar pelo Tribunal a quo. CXX. O Tribunal foi colocado perante, em parte, alguma encenação e falta de verdade quanto à versão que trouxe a assistente e algumas testemunhas que mereceram reduzida credibilidade, tendo deposto sem espontaneidade e sendo que alguns deles “de família” até concertaram as suas versões. CXXI. Também as declarações da menor BB mostram repetições, hesitações, contradições, confusões e afirmações induzidas que resultam da maneira como lhe foram dirigidas as perguntas, não tendo havido qualquer descrição livre inicial, tudo se resumindo a perguntas. CXXII. O relato está contaminado com uma versão repetidamente verbalizada a que aderiu por conflito de lealdades, para melhor resolver animosidades transmitidas por terceiros, aderindo à “versão da mãe” contagiada por implantes de factos que não ocorreram sustentados em algumas expressões linguísticas que nem sequer sabe o significado. CXXIII. A versão da criança é a versão da manifesta influência e intervenção da mãe sobre a menor e sua inserção familiar concreta, veja-se o ambiente de pressão hostilidade contra o pai. CXXIV. Das perícias realizadas retira-se que existiu profunda interferência e contaminação de depoimento por parte da BB, por um lado, e por outro não se retira que tenham sido praticados os crimes de que o arguido foi acusado. CXXV. E enquanto o tribunal de 1.ª instância, que absolveu o arguido, formou a sua convicção de acordo com os elementos dos autos e da audiência de julgamento, demonstrando adequado conhecimento e adequada valoração em relação aos factos em discussão nestes autos. CXXVI. O Tribunal da Relação não faz uma análise detalhada e crítica da prova, ignorando toda a prova produzida em primeira instância. Omite conhecer factos adquiridos em 1.ª Instância. CXXVII. Nestes termos, não podem os factos enumerados de A a F ser considerados provados, na medida em que não foi produzida prova suficiente que os sustente. CXXVIII. Assim, perante tudo o exposto, resulta claro e de experiência comum, que nunca a versão da assistente colhe alguma veracidade, repudiando-se a mesma na totalidade, não correspondendo à verdade. CXXIX. Sendo que, analisando crítica e imparcialmente, não pode o arguido ser condenado por uma fantasia criada pela assistente e pelos seus pais, sem qualquer verossimilhança com a realidade, CXXX. Porquanto, não só não faz sentido toda a história criada, como não faz sentido o comportamento desta mãe caso a história fosse verdadeira. CXXXI. De igual modo, também o comportamento do advogado da mãe, dos psiquiatras e das técnicas da CPCJ não se coaduna com a versão apresentada pela assistente, CXXXII. Não se concedendo que fosse esta a postura que pessoas todas adotariam quando confrontadas com o conhecimento deste género de factos, se acreditassem que assim era. CXXXIII. Em suma, de toda a prova produzida em audiência – e falta dela – não há prova suficiente no sentido de incriminar e, consequentemente, condenar o arguido pelos crimes pelos quais vai acusado. CXXXIV. Motivo pelo qual o arguido foi duas vezes absolvido em 1ª instância, por dois coletivos diferentes. CXXXV. Não pode, nunca, um arguido ser condenado só por ter esse estatuto processual. CXXXVI. O arguido tem direito a um julgamento justo, imparcial, com direito à sua defesa. CXXXVII. E, perante tudo o exposto nesse recurso, analisando fria e criticamente toda aprova produzida, as decisões do tribunal de Leiria e do tribunal da Relação de Coimbra e ainda, todos os relatórios e pareceres técnicos que constam dos autos CXXXVIII. Não pode o arguido ser condenado por 8 crimes de abuso sexual na pessoa da sua filha. CXXXIX. Existe erro notório na apreciação da prova, com violação do disposto no artigo 410.º/2 – alíneas a) e c) e 432.º/1 – alínea b) e ainda artigo 434.º todos do CPP. CXL. Devendo ser absolvido, por falta de produção de prova que assim o indique. CXLI. A prova foi toda ela reapreciada não existindo razões para alterar os factos fixados pelo tribunal de 1.ª Instância no seu acórdão de 1 de julho de 2020. CXLII. Mostra-se estruturada a partir de todos os elementos dos autos e os adquiridos em audiência de julgamento, conjugada toda a prova produzida, relacionando todos os elementos de prova. CXLIII. Os factos foram conhecidos e foi valorada a prova, assentes os factos provados e os factos não provados, evidenciando-se no Acórdão que foram adquiridos de acordo com os ensinamentos da experiência comum e pelas regras da lógica e de acordo com critérios legalmente fixados. CXLIV. Destarte, a única interpretação dos artigos 171.º do Código Penal, e 125.º e 127.º do CPP, consentida pelo artigo 32.º, n.º 2, 1.ª parte da CRP é que, perante a existência de versões contraditórias dos factos dadas por cada um dos sujeitos processuais, o julgador só poderá privilegiar como prova determinante da prática dos ilícitos as declarações dos queixosos, se estas forem em si credíveis e corroboradas por outros meios de prova também eles em si credíveis e a prova que sustenta a versão contrária do Arguido não seja ela igualmente credível de acordo com critérios de objetividade motiváveis no preenchimento dos requisitos dos crimes em causa, só assim sendo admissível a elisão da presunção constitucionalmente consagrada, sendo que não se poderá admitir que a decisão se sustente exclusivamente em declarações da assistente e suas testemunhas, descredibilizando as declarações do Arguido e testemunhas por si arroladas. CXLV. Assim, entende o Arguido, aqui recorrente, que a douta decisão do Tribunal a quo, baseada na interpretação normativa já suficientemente veiculada, viola o artigo 32.º, n.º 2, 1.ª parte da CRP que consagra os princípios da presunção de inocência, in dubio pro reo e in dubio pro libertate como garantias de defesa em processo penal. CXLVI. Parece-nos, sobretudo, que todos os pontos indicados supra, nomeadamente os relacionados com a matéria de facto, deveriam ter sido suficientes para suscitar no julgador dúvidas aquando da apreciação dos meios probatórios ali referidos, sendo certo que essas dúvidas sempre teriam que ser tratadas e enquadradas num modelo de aceitação dos mais elementares princípios de direito penal. CXLVII. E, aí, a consideração do princípio da presunção da inocência, através, principalmente de uma das suas manifestações, o princípio in dubio pro reo era fundamental. CXLVIII. Dúvidas não restam, ao aqui Recorrente, que se deve pronunciar este Douto Tribunal ad quem, pela sua absolvição plena, pelos motivos, de resto, também já explanados supra. CXLIX. Em matéria de direito, entendeu o TRC ser adequada a condenação do arguido /recorrente a uma pena de prisão efetiva de 9 (nove) anos. CL. Porém, a mesma mostra-se excessiva e desproporcional. CLI. O acórdão recorrido viola, concretamente, as normas constantes dos artigos 40.º e 71.º, ambos do CP, bem como o n.º 2 do artigo 18.º da CRP. CLII. A pena concreta tem como limite máximo inultrapassável a medida da culpa (cfr. art.º 40.º n.º 2 do CP). A determinação da medida concreta, dentro desses limites, faz-se, então, em função da culpa, que estabelece o limite máximo da medida concreta, e das exigências de prevenção geral e especial. CLIII. A culpa, repete-se, funciona como limite máximo da medida concreta, sendo que abaixo desse limite, intervêm as considerações de prevenção geral e prevenção especial, as ditas finalidades das penas (art.º 40.º n.º 1 do CP). CLIV. Se para a fixação dos limites da moldura penal, foram ponderadas as necessidades mínimas e máximas de prevenção geral, conciliando esse esforço com o presente e transversal respeito pela dignidade da pessoa, assim, também, a procura da medida da pena entre os limites da moldura terá de ser, em primeiro lugar, um juízo de ponderação das circunstâncias agravantes e atenuantes (nomeadamente, as elencadas no n.º 2 do art.º 71.º do CP), à luz das necessidades de prevenção geral, para fazer corresponder essa ponderação a uma medida mínima e máxima a fixar entre os limites mínimo e máximo da moldura legal; dentro daqueles limites concretos, será, então, fixada a pena, sob a ponderação das necessidades de prevenção especial e à luz das circunstâncias relevantes a tal respeito. CLV. Este é o método de aplicação do art.º 71.º que tem na devida conta o princípio de que a prevenção geral, nomeadamente, a prevenção geral positiva constitui a finalidade primacial da pena, na justa medida em que é ela (prevenção geral)que dá o se e o quantum da necessidade da própria pena. CLVI. Na epígrafe “Da determinação da medida das penas”, com maior relevo para a questão, nada se diz acerca das características de personalidade do arguido. CLVII. É, também, repetida a factualidade dada (erradamente) como provada, valorada a alegada ausência de arrependimento. CLVIII. Porém, importa realçar a situação sócio económica do arguido, bem como o facto de o mesmo ser primário, encontrar-se socialmente bem integrado, tendo reconhecimento integral e transversal da comunidade envolvente, que o vê como um cidadão cumpridor e respeitador. CLIX. Assim, e no que se refere á determinação da medida concreta da pena há a considerar que: a) O Arguido é primário; b) De facto, nenhuma da factualidade imputada ao Arguido ocorreu, de tal forma que a mesma não se pode dar como provada, já que a prova produzida foi inexistente, motivo pelo qual a matéria de facto dada como provada foi devidamente impugnada; c) Não existe contacto entre o Arguido e a filha, a alegada vítima; d) O Arguido encontra-se bem integrado na sociedade; e) Mantém a sua atividade profissional, e com o rendimento contribui para o sustento e manutenção da filha; f) O Arguido mantém uma relação próxima com amigos e familiares. CLX. Tudo circunstâncias que depõem a favor do Arguido e evidenciam o exagero da pena de 9 de prisão efetiva aplicada e que foram integralmente desconsideradas pelo Tribunal a quo. CLXI. Assim, analisados todos estes fatores, e no hipotético quadro de confirmação da condenação, prolatada por aquele Tribunal a quo, sempre teria que ser a medida concreta da pena do Recorrente, aferida pelo patamar mínimo da moldura legal em causa, mostrando-se justa e adequada uma pena não superior a 5 anos, a qual satisfaz plenamente as exigências de prevenção geral, e ainda as de prevenção especial pois que a submissão do Arguido a julgamento produziu neste um efeito inibidor de qualquer conduta antijurídica cujas consequências estão bem interiorizadas por ele – sendo que, conforme vem de se expor, é profunda certeza do mesmo que não praticou qualquer ilícito. CLXII. Fatores aqueles supra que também depõem a favor da suspensão da pena, dado que, o juízo de prognose quanto a não reincidência neste tipo de crime, e uma conduta futura do Arguido conforme ao direito e às normas sociais, só poderá ser favorável. CLXIII. Por conseguinte, tendo em conta as concretas necessidades de prevenção que se fazem sentir, considera-se que a mera submissão do Arguido a julgamento, com a efetiva aplicação de pena não superior a 5 anos será suficiente para satisfazer a finalidade punitiva do Estado, que se requer que seja suspensa na sua execução, nos termos e cumpridos os requisitos plasmados no CP, obviando, assim, aos efeitos nefastos do ponto de vista da reinserção social do Arguido decorrentes da aplicação de uma pena de prisão efetiva, sendo a sua aplicação adequada e suficiente às finalidades da punição. CLXIV. O cumprimento de uma pena de prisão efetiva, é causa direta de dessocialização dos condenados, uma vez que os mesmos são retirados da sociedade onde estavam, melhor ou pior inseridos, e colocados numa instituição fechada, com regras e uma cultura muito próprias, que em nada se compara àquela que deve ser e se espera que venha a ser a sua vivência em sociedade, após a sua devolução à liberdade. CLXV. Nos termos do n.º 1 do artigo 50.º do Código Penal, o “tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.” CLXVI. Dispõe ainda o n.º 2 do mesmo artigo que “O tribunal, se o julgar conveniente adequado à realização das finalidades da punição, subordina a suspensão da execução da pena de prisão, nos termos dos artigos seguintes, ao cumprimento de deveres ou à observância de regras de conduta, ou determina que a suspensão seja acompanhada de regime de prova.” CLXVII. Quanto à personalidade do Recorrente, remete-se para o que, supra, já se expôs no segmento factual, acerca do perfil do Arguido, da sua inserção socioeconómica e, claro está, da inexistência de contactos com a filha BB. CLXVIII. É que, sublinhamos uma vez mais, esses precisos traços serão também aqui fundamentais, num segmento de direito, para fundamentar a escolha e a opção por aquilo que é, in casu, a possível (e desejável) aplicação do instituto da suspensão da pena. CLXIX. Ora, resulta claro que o preenchimento do instituto em causa, não pode ser feito de forma arbitrária ou descontextualizada: ele obedece a requisitos específicos, que se relacionam com a personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, que têm de ser casuisticamente (factualmente) comprovados. CLXX. Daí que, para esse desiderato, e sem prejuízo de muitos destas linhas já estarem delineadas e desenvolvidas supra, aqui se vão mobilizar (novamente) os principais traços de perfil do Arguido, aqui recorrente, que poderão ser utilizados (são efetivamente fundamentais) para mobilização concreta deste instituto da suspensão da pena – que se requer. CLXXI. Com efeito, entende o Recorrente que a sua personalidade não denota quaisquer traços de delinquência, criminalidade ou manipulação de terceiros. CLXXII. Também, consoante supra explanado, o Arguido tem a profunda certeza de não ter praticado qualquer dos factos pelos quais vem acusado. CLXXIII. Pelo que não deve a sua suposta ausência de arrependimento ser erradamente entendida pelo Tribunal como reveladora de insensibilidade, desrespeito, desprezo, ausência de arrependimento motivada por alheamento da gravidade dos factos alegadamente cometidos ou ausência de valores ético-jurídicos, pois tal não é, de forma alguma, a realidade. CLXXIV. Assim, deve determinar-se também por esse motivo a suspensão da execução da pena de prisão. CLXXV. Verifica-se que o Recorrente se encontra totalmente integrado na sociedade, contribuindo de forma ativa para o sustento e formação da filha, bem como para o seu próprio sustento. CLXXVI. Pelo que o cumprimento de uma pena efetiva de prisão apenas contribuirá para a sua (e da sua filha, diga-se) estigmatização e desintegração social. CLXXVII. O Recorrente é primário. CLXXVIII. Daí que, não tendo quaisquer antecedentes criminais, pode aquilatar concretamente, este Douto Tribunal ad quem, que a efetiva aplicação do instituto da suspensão da pena, além de desejável, e além de também estar neste vetor devidamente justificada, adequa-se perfeitamente ao comportamento respeitador da lei que o aqui recorrente tinha vindo a demonstrar. CLXXIX. Finalmente, e porque relevante para o caso em apreço devido à cobertura mediática que este tipo de crimes tem, bem como as consequências gravosas que advêm da prática que os Tribunais algumas vezes levaram a cabo, redutora da culpabilidade dos arguidos, crê-se que poderá o Douto Tribunal a quo ter levado em linha de conta esse mesmo mediatismo e problemática na determinação da medida da pena a aplicar, condenando o aqui Recorrente deforma “exemplar” e não da forma justa. CLXXX. O que se exige é que a aplicação de uma medida privativa de liberdade é sempre de ultimíssima ratio: perante a oportunidade e possibilidade de aplicação de uma medida que permita o preenchimento das expectativas de prevenção geral especial do agente – o que é o caso – deve o decisor privilegiar as que, precisamente, possam atingir aquele fim sem privar o individuo da sua liberdade. CLXXXI. O que não se pode admitir é que num caso em que os ditames de prevenção geral e especial permitem a aplicação do instituto de suspensão da pena, se afaste a mobilização dessa possibilidade, por referência a uma qualquer imposição de consideração de “alarme social”. CLXXXII. Pelo que, na verdade, também neste ensejo, se deve privilegiar a possibilidade de aplicação do instituto de suspensão da pena – uma vez que as exigências de prevenção se encontram cumpridas e uma vez que os requisitos de aplicação do próprio instituto se encontram, também, preenchidos. CLXXXIII. Dando cumprimento ao princípio da intervenção mínima plasmado no artigo 70.º do CP, o tribunal dá preferência às penas não privativas da liberdade, sempre que estas realizem de forma adequada e suficiente as finalidades da punição. CLXXXIV. No que respeita ao juízo de prognose a efetuar pelo Tribunal, “Há que considerar, também, que um juízo sobre a probabilidade de o agente vir a cometer crimes no futuro é sempre incerto. A pena não pode basear a sua legitimidade num juízo desse tipo”. CLXXXV. Como princípio, pode dizer-se que é legítimo punir por causa do crime cometido, não por aqueles que possam vir a ser cometidos. CLXXXVI. Pelo que necessariamente terá de se concluir que a aplicação de uma pena de prisão efetiva em nada contribuirá para as finalidades de prevenção geral e especial requeridas in casu. CLXXXVII. E que se encontram preenchidos todos os pressupostos da suspensão de execução da pena, caso a mesma venha a ser alterada para um quantum que o permita. CLXXXVIII. Face a tudo o que vem de se expor, outra conclusão não se pode retirar que não seja a de que, a manter-se a condenação do Recorrente a uma pena efetiva de prisão, incorrer-se-á em violação do princípio da proporcionalidade ou da proibição do excesso. CLXXXIX. Acresce que a prisão efetiva do Arguido apenas terá como resultado, não só de inserção social do Arguido, como também a revitimização da sua filha. CXC. O Arguido, enquanto pai, tem por obrigação prover ao sustento da sua filha. CXCI. A sua prisão efetiva, como vem de se expor, apenas terá como efeito a impossibilidade de trabalhar, para com o fruto de tal trabalho, proporcionar à sua filha um nível de vida condigno, algo que sempre fez e que pretende continuar a fazer CXCII. Acresce que uma prisão não é um ambiente em que o Arguido queira que os seus familiares e amigos o contactem e, como vem de se expor, esse contacto sempre existiu. CXCIII. Também o estigma de “ter o pai preso” servirá apenas para revitimizar a sua filha. CXCIV. Pelo que, como é bom de se ver, a condenação desproporcionada, infundada desgarrada da realidade, em nada serve os interesses da menor, da Assistente, ou até do Estado. CXCV. No caso em apreço, e na tese da defesa ao menos pela aplicação do princípio in dubio pro reo a apreciação da matéria de facto conduziria à absolvição do arguido. CXCVI. Assim não ocorrendo e sempre sem conceder, analisadas todas as circunstâncias relevantes para a determinação da medida da pena, impõe-se a suspensão da pena de prisão de 5 anos a que foi condenado o arguido. CXCVII. Absolvendo-se o arguido dos crimes de que vem acusado como se julga irá ocorrer, evidentemente que a conduta ilícita em que se estriba a condenação do arguido a pagar uma indemnização à Demandante se extingue assim como a responsabilidade indemnizatória do arguido. CXCVIII. Na eventualidade de condenação do arguido pelos ilícitos penais em causa, o valor total de € 14.000,00 arbitrado pelo Tribunal recorrido se mostra excessivo, não só tendo em conta o dano provado nos autos, como pelo valor indemnizatório médio entendido adequado pelos tribunais para casos semelhantes. CXCIX. É que embora indemnizável, em conceito, julgando-se provada a prática dos ilícitos, portanto, ficando assente a existência do ato ilícito e do nexo entre este e um eventual dano, competia à Demandante fazer prova não só do dano, mas também sua extensão e gravidade, o que manifestamente não logrou, nem podiam, cfr vem de se expor. Devendo ser concedido provimento ao recurso e o acórdão recorrido ser revogado e substituído por outro que observe as normas legais aplicáveis consagradas no Código Penal, Código de Processo Penal e na Constituição da República Portuguesa. Nestes termos nos demais de direito e com o sempre douto suprimento (…) deverá: I. Ser julgadas procedentes a invocadas nulidades do acórdão recorrido, com as legais consequências; Ou, em qualquer caso, (II) Ser julgado procedente o presente recurso, revogando-se a decisão recorrida e em consequência ser o arguido absolvido (…)». 11. A Senhora Procuradora-Geral Adjunta no Tribunal da Relação de Coimbra apresentou resposta em que se pronuncia no sentido da improcedência do recurso, nos seguintes termos (transcrição): «(…) As conclusões – que no caso nada têm de sintéticas-contém múltiplas queixas e desabafos que penosamente se leriam sem estremecimento se por detrás delas se não vislumbrasse sempre o sofrimento de uma criança. Expurgadas do rosário de lamúrias vejamos quais as questões levantadas no presente recurso. I - As senhoras juízas desembargadoras Exma. Sra. Dra. EE e Exma. Sra. Dra. DD estavam, nos termos da alínea d) do n.º 1 do artigo 40.º do Código de Processo Penal, impedidas por participação anterior no julgamento do recurso no mesmo processo. O artigo 40.º do Código do Processo Penal que tem como epígrafe “impedimento por participação em processo”, determina, na parte que aqui interessa que “nenhum juiz pode intervir em julgamento, recurso ou pedido de revisão relativos a processo em que tiver proferido ou participado em decisão de recurso anterior que tenha conhecido, a final, do objeto do processo, de decisão instrutória ou de decisão a que se refere a alínea a) [aplicação de medida de coação prevista nos artigos 200.º a 202.º], ou proferido ou participado em decisão de pedido de revisão anterior.” Não tendo havido antes “recurso anterior que tenha conhecido, a final, do objeto do processo”, não se vê como justificar a invocação deste preceito. In claris non fit interpretatio. Para coonestar o seu desiderato vem o recorrente invocar a “analogia aplicável também à intervenção em julgamento de recurso após a redação conferida pela Lei 94/2021 de 21 de Dezembro”, suscitando “a inconstitucionalidade da norma contida nos artigos 40.º, n.º 1, alínea d), na versão introduzida pela Lei n.º 94/2021, de 21 de dezembro, na interpretação segundo a qual o juiz do tribunal da Relação que tenha intervindo anteriormente no conhecimento e decisão de um recurso – após baixa para decisão a proferir em 1ª instância – não fica impedido de voltar a conhecer de recurso deduzido no mesmo processo”. Por cautela suscita também a inconstitucionalidade da interpretação do “segmento “que tenha conhecido, a final, do objeto do processo”, constante da alínea d) do n.º 1 do artigo 40.º do CPP, no sentido de não ser aplicável o regime dos impedimentos por participação em processo num caso em que, embora não concretizada ainda a medida da pena aplicável ao arguido, o tribunal superior ordena a descida do processo à 1.ª instancia apenas para esse fim, tendo a Relação assente a matéria de facto e assim ficando o arguido irremediavelmente condenado pela prática dos factos dados como provados por este tribunal superior”. Não levantou o problema da inconstitucionalidade da norma do nº 4 do artigo 426º do Código do Processo Penal, que determina que “se da nova decisão a proferir no tribunal recorrido vier a ser interposto recurso, este é sempre distribuído ao mesmo relator, excepto em caso de impossibilidade”, que é a norma que determinou a distribuição. Parecem-nos inúteis mais considerações sobre o facto de não se verificar qualquer impedimento (…). II - O meio de impugnação da decisão [sobre a matéria de facto] é através de recurso para o tribunal da relação e o momento adequado é após prolação do Acórdão na 1ª instância. Entende o recorrente que, após a matéria de facto ter sido alterada pela Relação, poderia recorrer para a Relação da matéria de facto por esta fixada, uma vez que o Supremo lhe não admitiu o recurso - que pretendia para essa instância suprema - do decidido na Relação. Ou seja, houve matéria de facto que foi objecto de recurso e foi fixada definitivamente pela Relação. Como havia necessidade de complementar essa matéria, determinou-se o reenvio para a primeira instância para a determinar e proceder, de acordo com esta, a nova apreciação. De tal decisão, obviamente cabe recurso para a Relação, no que tange à matéria de facto nova e da questão de direito. Obviamente não há qualquer contradição entre a decisão do Supremo Tribunal de Justiça e o Tribunal da Relação de Coimbra, que só uma imaginação fértil pode configurar. No que toca a não haver recurso da matéria de facto já fixada em recurso para o próprio tribunal que a decidiu, parece-nos uma questão óbvia que um recurso consiste num pedido de reapreciação a outro tribunal, de superior hierarquia, e não num pedido ao autor da decisão para a repensar. Mais uma vez, in claris non fit interpretatio. (…) III – Nulidade insanável por falta de fundamentação do acórdão proferido em 1ª instância - 374.º n.º 2, e 379.º, n.º 1, al. a) do CPP. Entende o recorrente que o acórdão da primeira instância baseado na quase totalidade na matéria fixada em recurso, deveria aí ter repetido enumeração dos factos provados e não provados, bem como repetido uma exposição tanto quanto possível completa, dos motivos, de facto, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal de recurso. Ora tal sentença não pode, de forma alguma ser vista de forma autónoma e desligada da decisão que, em recurso, a conformou. Conjugando tais decisões, fácil é constatar que inexiste a apontada nulidade. Aliás, sempre se diga que, com a prolação da decisão ora em recurso deixou tal sentença de vigorar quo tale, insubsistindo, e teria sido dado remédio à apontada nulidade, caso ela tivesse existido. Não é aqui invocada qualquer inconstitucionalidade. IV - Erro notório na apreciação da prova pelo Tribunal da Relação de Coimbra “A partir da Reforma de 1998, a incursão do Supremo no plano fáctico da forma restrita consentida pelo art. 410.º, n.º 2, do CPP, é ainda possível, não já face a questão colocada pelo interessado, a pedido do recorrente, ou seja, como fundamento do recurso, mas por iniciativa própria, para evitar que a decisão de direito se apoie em matéria de facto ostensivamente insuficiente, fundada em erro de apreciação ou assente em premissas contraditórias detectadas por iniciativa do STJ, ou seja, se concluir que, por força da existência de qualquer dos vícios, não pode chegar a uma correcta solução de direito, e devendo sempre o conhecimento oficioso ser encarado como excepcional, surgindo como último remédio contra tais vícios.”- Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12 de Setembro de 2007 (…). Colocada a questão nos termos que decorrem deste perpicaz ensinamento, não há lugar a vascolejar o acervo factual portado aos autos pelo recorrente, mas tão só de curar se a decisão recorrenda padece de vício, sem necessidade de dissecar e discutir cada hediondo facto. Seja-nos permitido dizer que não lobrigamos mácula na matéria factual fixada, sendo esta a que resulta com meridiana clareza da percepção que extrai, não sem acentuada mágoa, um homem médio do acervo probatório, donde se realçam as declarações da vítima com todas as limitações decorrentes da idade e do pejo e o juízo pericial, cujo valor tarifado foi adrede desconsiderado. A inconstitucionalidade trazida aos autos neste particular e doutamente enunciada como “a única interpretação dos artigos 171.º do Código Penal, e 125.º e 127.º do CPP, consentida pelo artigo 32.º, n.º 2, 1.ª parte da CRP é que, perante a existência de versões contraditórias dos factos dadas por cada um dos sujeitos processuais, o julgador só poderá privilegiar como prova determinante da prática dos ilícitos as declarações dos queixosos, se estas forem em si credíveis e corroboradas por outros meios de prova também eles em si credíveis e a prova que sustenta a versão contrária do Arguido não seja ela igualmente credível de acordo com critérios de objetividade motiváveis no preenchimento dos requisitos dos crimes em causa, só assim sendo admissível a elisão da presunção constitucionalmente consagrada”, é, na nossa modesta opinião, um dialelo manifestamente incapaz de traçar um rumo. (…) V - Pena de prisão efetiva de 9 anos excessiva e desproporcional, violadora das normas dos artigos 40.º e 71.º, ambos do CP, bem como o n.º 2 do artigo 18.º da CRP. Para lá das enunciações gerais que cedo conhecemos e vão sendo glosadas ao longo de toda uma vida, o certo é que a determinação concreta da medida da pena é uma operação delicadíssima, que invoca para além da mundividência do julgador toda uma série de mecanismos psicológicos indefiníveis e concepções éticas e ônticas. Daí que se busque na plurisubjectividade da decisão a possível objectividade. É fácil para quem representa o interesse concreto de um sujeito processual, mas profundamente difícil para quem almeja a possível imparcialidade. Daí que, de forma categórica, nos seja apenas possível concluir que a medida das penas contidas na decisão luminar em recurso se nos afigura não violar os ditames da lei e da justiça, inexistindo motivo, face à culpa intensa do agente e às necessidades de prevenção que o caso gritantemente conclama, para as substituir por outras que se possam haver como mais rigorosamente calibradas. Mandatória se nos afigura uma longa pena de prisão efectiva, único remédio capaz de reformar o recorrente e reconduzi-lo para os caminhos da juridicidade e ancilar a pena acessória aplicada, única medida capaz de lograr à vítima um crescimento saudável, que obnubile o ambiente malsão da sua infância. Uma suspensão da pena, propugnada pelo recorrente, parece-nos que inviabilizaria completamente a necessária interiorização, por parte deste, da censurabilidade da sua actuação pregressa. Termos em que (…) deve o presente recurso ser julgado improcedente, confirmando-se a douta decisão recorrida com todas as legais consequências (…)». 12. Respondeu também a assistente pugnando pela improcedência do recurso, dizendo em síntese (transcrição parcial): «(…) Não existe qualquer fundamento relevante que permita colocar em crise a decisão ínsita no Acórdão da Relação de Coimbra, que procedeu na única forma possível, face à matéria de facto fixada como estando provada, condenando o arguido pela sua prática, com uma pena justa e proporcional à gravidade dos factos. (…) II. – Começa o arguido por invocar a nulidade do Acórdão condenatório, por alegada violação do disposto no art.º 40.º do CPP. Nulidade que invoca sem conter a indicação da norma que constitui a fonte de tal vício. Ou seja, sem mencionar em que norma do CPP assenta a sua fundamentação da nulidade do Acórdão. O arguido invoca a nulidade pelo facto de o recurso da decisão da primeira instância que fixou a pena ter sido apreciado por dois juízes desembargadores que haviam integrado o colectivo que proferiu a decisão que fixou a matéria de facto e ordenou que o processo baixasse à primeira Instância para fixação da pena. Acontece que a distribuição do recurso ao mesmo relator que havia proferido a decisão anterior foi efectuada no estrito cumprimento do art.º 426.º do CPP, inexistindo qualquer violação da lei e muito menos causa de nulidade. No Acórdão da Relação de Coimbra, de 7 de Abril de 2021, foi julgada e fixada a matéria de facto e o Tribunal determinou o reenvio do processo para que fosse julgada a fixação da medida da pena, ordenando que fossem recolhidas as provas necessárias e adequadas para esse efeito, que fosse reaberta a audiência e proferida nova decisão. O que foi cumprido pela primeira instância. Tendo cabido novo recurso para o mesmo Tribunal da Relação, foi dado cumprimento ao disposto nas regras do CPP, com distribuição do processo ao mesmo relator. A situação processual verificada encontra-se precisamente nas antípodas do que é mencionado pelo arguido, que invoca que, ao ser distribuído o processo ao mesmo relator foram violadas as normas do CPP, mas na verdade o que foi feito correspondeu ao cumprimento integral do que é mencionado pela citada norma. Por força do disposto no art.º 426.º do CPP, a norma do art.º 40.º do CPP não pode ter o sentido interpretativo que o arguido/recorrente lhe pretende atribuir, bem pelo contrário. O recorrente apela a uma aplicação analógica do art.º 40.º do CPP, mas a aplicação analógica pretendida afigura-se descabida, porquanto não se verifica a necessidade de recorrer à analogia, na medida em que não se verifica qualquer lacuna, a situação encontra-se prevista e nos termos exactos que foram cumpridos. O recurso à analogia, enquanto processo de integração de lacunas, justificação quando a lei não prevê a situação em apreciação, o que, de todo não é o caso da situação invocada. Sendo de salientar outras duas notas essenciais, para deitar por terra a já frágil argumentação do arguido/recorrente: • A primeira é que nenhuma da jurisprudência citada pelo arguido contém decisão para caso semelhante ao dos presentes autos, não sustentando o que é alegado pelo arguido; • No rol de inconstitucionalidades invocadas pelo arguido não foi suscitada tal vício em relação ao art.º 426.º do CPP, ao abrigo do qual o processo foi distribuído e julgado, em parte, pelo mesmo colectivo. O que significa que inexiste qualquer inconstitucionalidade ou qualquer fundamento para que seja o acórdão, por esta razão, julgado nulo. (…) III. – Alega o recorrente que não foi apreciada a matéria de facto pelo Tribunal da Relação e que foi violado o direito ao recurso, e apoia-se na interpretação sui generis, por esse motivo que apresenta da decisão do STJ, que rejeitou o recurso por si interposto da decisão da Relação de 7 de Abril de 2021. Ora, os argumentos do arguido, nesta parte, na verdade, contêm sentido enganador, em que o arguido vai repetindo e reiterando as mesmas afirmações, com a expectativa que uma mentira, dita muitas vezes, se torne numa verdade. A verdade inequívoca é a seguinte: o arguido recorreu do Acórdão da primeira Instância que determinou a pena a aplicar ao arguido, requerendo a revisão da matéria de facto, mas não cabia tal recurso, por a matéria de facto já estar definitivamente decidida e fixada. O recurso interposto da matéria de facto não tinha cabimento processual. A matéria de facto encontra-se devida e definitivamente julgada e assente, na medida em que a lei processual penal apenas prevê uma instância de recurso da matéria de facto. O referido Aresto do Tribunal da Relação de Coimbra, de 7 de Abril de 2021, julgou a matéria de facto e ordenou o reenvio do processo para a primeira Instância, apenas para efeito de fixação da medida da pena, resultando da decisão que: “os autos sejam devolvidos à 1ª instância para que se indaguem os factos, relativos ao circunstancialismo de vida pessoal, comportamento e personalidade do arguido, com interesse para a determinação da medida da pena e, subsequentemente, aí seja proferida decisão condenatória de acordo com o ora decidido”. O que significa que a intervenção do Tribunal de Primeira Instância, da qual o arguido interpôs recurso, se limitou a decidir acerca da pena a fixar e determinar para os factos já decididos e o enquadramento típico já estabelecido, no que se reporta à determinação dos crimes pelos quais o arguido deveria ser condenado. Ou seja, em termos práticos e concretos, o Tribunal de primeira Instância apenas estava incumbido de decidir acerca da pena a fixar ao arguido pelos crimes que o mesmo foi condenado pelo Acórdão da Relação de Coimbra. Assim, se o Tribunal da Comarca de Leiria apenas estava incumbido de decidir acerca da pena (nem faria sentido decidir acerca dos factos e do enquadramento jurídico dos mesmos, porquanto isso significaria reapreciar uma decisão do Tribunal superior), por conseguinte, apenas estava vinculado a ter de fundamentar a decisão que haveria de proferir, ou seja, sobre a fixação da pena. O Tribunal da Relação decidiu e fundamentou a decisão acerca dos factos considerados provados. O Tribunal de Primeira instância decidiu sobre a pena a fixar para o respectivo crime. Não incumbia à Primeira instância justificar a decisão que já havia sido proferida pelo Tribunal superior e que já estava fundamentada, por acórdão em relação ao qual não foi colocada em crise a sua validade. Como se disse e reitera, a matéria de facto encontra-se definitivamente julgada pelo Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 7 de Abril de 2021, não cabendo qualquer recurso da mesma. Até porque, não tem cabimento recorrer de uma decisão do Tribunal da Relação para o Tribunal da Relação. O que o arguido pretendia, na verdade, era que o Tribunal da Relação alterasse a decisão que o próprio proferiu, e que considerasse que decidiu com base em erro notório da prova, o que obviamente não aconteceu. O arguido vai usando a decisão do STJ, de rejeição do recurso que havia interposto, acabando por lhe conferir um significado que o mesmo, de todo, não tem, deturpando o seu sentido, isolando e descontextualizando uma ou outra afirmação que consta do mesmo. A decisão Singular, proferida a 7 de Julho de 2021, pelo STJ, que decidiu não admitir o recurso interposto, teve por base, entre outros fundamentos, a inadmissibilidade do recurso, assentou no facto de os recurso interpostos de decisões das relações para o STJ não poderem incidir sobre matéria de facto. O arguido parece não aceitar o facto de apenas existir uma instância recursiva de matéria de facto e essa instância de recurso, nos presentes autos, já foi esgotada, não cabendo novo recurso. O que se verificou foi uma tentativa do arguido de aproveitar o facto de o Tribunal da Relação ter remetido os autos para a primeira instância para que esta fixasse a pena e tirar proveito disso para estender os efeitos de um recurso possível, tentando fazer passar a ideia falsa que terá sido a Primeira Instância a fixar a matéria de facto. De resto, o que o arguido pretendia no seu recurso, era que o Tribunal da Relação recuperasse a decisão da primeira instância, quando a mesma foi revogada pela própria Relação. Apenas poderia caber recurso da decisão da primeira Instância no que tange à matéria que lhe foi relegada, ou seja, a da pena a fixar. E dessa parte o arguido não interpôs recurso, ao contrário daquela que foi a posição da Assistente e do Ministério Público. Nesta fase processual, não se afigura admissível o recurso da matéria de facto. A mesma encontra-se decidida e de forma definitiva, não podendo ser submetida a qualquer tipo de sindicância. O recurso, na parte que o arguido denominou de “Impugnação de facto – do erro da apreciação da prova” não tinha cabimento processual, porquanto admitir o mesmo significaria subverter as regras processuais vigentes. A decisão proferida, nesta parte, afigura-se irrepreensível, e não podia ser outra que não fosse a da não apreciação da matéria de facto, por não ser admissível a interposição de recurso de uma decisão do Tribunal da Relação para o mesmo Tribunal da Relação e de matéria de facto já definitivamente decidida. Não houve qualquer violação do direito de recurso. A consagração do direito de recurso, prevista na Constituição, está regulada no CPP, que determina as condições, as circunstâncias e o tipo de recurso que é admitido, não se tratando de um direito absoluto, no sentido de o arguido poder recorrer de todas as decisões para todas as instâncias. IV. – Prossegue o Arguido, invocando a nulidade do Acórdão de 7 de Abril de 2021, que fixou, definitivamente a matéria de facto, alegando que o mesmo se afigura carecido de fundamentação. Na verdade, em bom rigor, o único argumento no qual o arguido ancora as suas alegações, nesta parte, é no número de páginas usadas pelo Acórdão para fundamentar a sua decisão. Tal argumentação, no mínimo, afigura-se descabida, pois, o que releva não será, certamente, o número de páginas no qual se fundamentam os factos que se consideram provados e não provados, mas outrossim os fundamentos usados. O Acórdão da Relação, nesta parte, afigura-se cristalino e devidamente fundado, indicando os meios de prova que foram determinantes, concatenando as provas entre si e recorrendo aos fundamentos de recurso que Assistente e Ministério Público apresentaram e aos quais acabou por reconhecer razão. O que, na verdade, se verifica, é que o arguido não se conforma com a decisão tomada e com as apreciações feitas sobre os meios de prova, preferindo e mostrando maior simpatia pela decisão absolutória que havia sido proferida em primeira instância, compreende-se porquê. Pretende também que o Acórdão da primeira Instância, que fixou a pena, contivesse fundamentação para justificar e motivar a decisão da Relação que revogou a decisão que a própria primeira instância havia proferido. Nada mais descabido. Ao Tribunal da primeira Instância mais não incumbia do que acatar a decisão do Tribunal Superior, não lhe cabendo fundamentar ou repetir fundamentação da decisão já proferida pela Relação. V. – O Arguido prossegue, apresentando o que denomina a tese do arguido sobre os factos, através da qual apresenta a sua leitura acerca das provas e o seu entendimento sobre o modo como deveria ter sido decidida a matéria de facto. Na verdade e em bom rigor, o que o arguido faz é transcrever as decisões que foram proferidas em sede de primeira instância, querendo fazer ressuscitar acórdãos que foram revogados. A fase de alegações para apelar a uma decisão da matéria de facto já decorreu e a tese do arguido não vingou. O que se afigura inconcebível é que pretenda fazer passar a tese que as decisões proferidas em sede de primeira instância é que têm valor, tese que tem sido utilizada insistentemente pelo arguido. No fundo, o arguido refere que quem está em condições de decidir é a primeira instância, por ter sido quem ouviu as testemunhas e procedeu ao julgamento, mas as regras do processo penal prevêem uma instância de recurso e as decisões do Tribunal superior prevalecem sobre as dos tribunais inferiores, percebe-se que o arguido não se resigna a esta realidade, mas não existe outra. Não havendo jurisprudência que cite que possa ter valor contrário. A verdade é que, através do presente recurso, de forma disfarçada, o que o arguido pretende fazer é recorrer para o Supremo Tribunal de Justiça da matéria de facto (…). Este recurso não tem cabimento. O exercício que o arguido vai fazendo, ao longo das suas motivações, ainda que de forma encapotada, é apresentar a sua versão, a sua leitura e a sua interpretação acerca das provas, ao mesmo tempo que vai tecendo comentários, depreciativos, diga-se em abono da verdade, sobre a assistente, as testemunhas, os peritos e até o mandatário da assistente, mas usa de falta de honestidade intelectual, pois, denomina de falta de fundamentação o que, na verdade, é uma discordância da fundamentação. A verdade é que quem decide é o Tribunal e não o arguido. O arguido vai afivelando o seu recurso com a máscara de invocar a falta de fundamentação do Acórdão mas, na verdade, está a interpor recurso da matéria de facto, e a sua verdadeira pretensão assenta em querer que os factos sejam julgados de forma diferente da que foram. Querendo alterar os factos que constam como provados e os que são considerados não provados. No fundo, acaba por reconhecer que a intenção principal do recurso assenta em pretender que o STJ reaprecie a matéria de facto que o Tribunal da Relação rejeitou e bem. O arguido pode apelidar o fundamento do seu recurso como bem lhe aprouver, mas a verdade é que o que apresenta, nesta sede, é um recurso da matéria de facto e os recursos para o Supremo Tribunal de Justiça, em processo penal, são apenas de matéria de direito (salvo excepções nas quais não se enquadram os presentes autos). Tudo quanto é invocado, nesta parte do recurso, encontra-se definitivamente decidido e julgado e em sentido contrário à pretensão do arguido. Neste momento e nesta fase do processo, apenas está em causa a decisão final e definitiva acerca da pena que deve recair sobre o mesmo. VI. – O arguido reporta-se, ainda, a uma alegada dúvida insanável por parte do Tribunal, invocando à necessidade de decidir de acordo com as regras provenientes do princípio in dubio pro reo. A verdade é que, nos presentes autos a invocação de tal princípio é destituído de cabimento, porquanto o Tribunal não teve qualquer dúvida em apurar os factos que deu como provados e, na verdade, não tinha fundamentos para ter dúvidas. O Tribunal da Relação mencionou com precisão quais as provas que, analisadas isoladamente e em conjunto com as demais, conduziram à conclusão acerca dos factos que deveriam ser considerados provados e com base nos quais o arguido foi condenado. O que se verifica, na verdade, é que o arguido invoca, sem razão, diga-se em abono da verdade, que o Tribunal deveria ter tido dúvidas e decidido com base nesse pressuposto. Não existe qualquer razão para considerar que tal princípio constitucional tenha sido violado. VII. – Por fim, o arguido insurge-se contra a pena concreta que o Tribunal decidiu aplicar, apelando a que a pena seja reduzida para dentro de um tempo de prisão que seja enquadrável na pena suspensa. Para justificar a sua tese, o arguido invoca factos e circunstâncias que não ficaram demonstradas, acabando por desviar o centro essencial da matéria em questão. O arguido centra a discussão em saber se se aceita ou não a suspensão da pena, tentando apelar ao Tribunal que tenha em atenção as circunstâncias pessoais do arguido, por entender que o mesmo tem condições para cumprir em pena sem ser em prisão. Aliás, o arguido tece as suas alegações como se lhe tivesse sido aplicada uma pena até 5 anos de prisão. Mas a questão principal que se coloca, de todo, não é essa, o que o Tribunal tem de ajuizar, em primeiro lugar, é a pena que cabe para cada crime e depois concluir pelo cúmulo das penas, o que o Tribunal da Relação fez e bem. Encontrada a pena única de 9 anos de prisão, não faz sentido a discussão acerca da suspensão da mesma, por o instituto não ter cabimento. Não pode o Tribunal reduzir a pena apenas para afastar o arguido dos efeitos e do estigma da prisão efectiva, como parece ser a vontade do arguido. O Acórdão que está em recurso procedeu a uma adequada, inquestionável e irrepreensível ponderação acerca dos fundamentos, dos princípios e dos fins das penas e da proporcionalidade adequada à gravidade do facto, à intensidade do dolo, à gravidade da lesão, ao desvalor da acção e do resultado e ao grau de censura. O Tribunal ponderou, adequadamente, um conjunto de factores a montante e a jusante que justificaram a aplicação da pena de 9 anos de prisão. Nomeadamente, tendo em atenção que: 1. O arguido não revelou, em qualquer momento, arrependimento pelos factos praticados; 2. O arguido não interiorizou a gravidade dos seus actos nem a censura do seu comportamento, como resulta entre outros e de forma evidente do relatório social elaborado, continuando a não admitir a prática dos factos, assumindo papel de vitimização, o que não pode deixar de ser considerado como factor agravante da responsabilidade criminal pelos actos praticados, na medida em que o arguido não quer admitir a gravidade e a censura dos actos que praticou; 3. O arguido, com o seu acto, causou na criança, dores físicas que alguns dos actos perpetrados se revelaram potenciadores, como acontece a manipulação dos órgãos genitais da criança com dedos e objectos; 4. O impacto negativo que os vários actos praticados sobre a vítima encontram-se bem revelados no relatório INML e bem assim como no Relatório da Faculdade de Psicologia de Coimbra, da leitura e interpretação destes dois relatórios científicos e o cruzamento das informações nele constantes, permitem aferir o sinal da incomensurável gravidade do impacto na criança, que desenvolve a sua personalidade com uma marca negativa da imagem do seu progenitor que, em vez de a proteger, cuidar e amar, como seria expectável, a utilizou e manipulou para satisfação dos seus instintos sexuais mais perturbados e das suas taras sexuais, o que se revela nos actos que a criança protagonizou e na fobia que manifesta em relação àquele; 5. A idade da criança à data da prática dos factos – 5 anos, colocando-a em especial vulnerabilidade, perversamente aproveitada pelo arguido para satisfação dos seus intuitos libidinosos; 6. Ainda o tipo de actos sexuais praticados, reveladores de uma gravidade acentuada. Ora, conjugando o grau de ilicitude grave, a censurabilidade elevada, as consideráveis razões de prevenção geral e as elevadíssimas razões de prevenção especial, o Tribunal da Relação de Coimbra aplicou uma pena justa e proporcional. Inexistindo cabimento legal e fundamento aceitável para que seja determinada a suspensão da pena. VIII. – Continua a não assistir qualquer razão ao arguido quando, agora a propósito da indemnização a pagar à vítima, para além de tudo o mais, vem invocar que o dano que a vítima sofreu não se revela grave, o que apenas demonstra que o arguido continua sem compreender o sentido lesivo e desvalioso dos seus actos, o que, certamente, terá oportunidade de melhor interiorizar ao longo da execução da pena. O arguido insurge-se contra o montante fixado de indemnização a pagar à sua filha, mas sem lograr apresentar fundamentos concretos susceptíveis de pôr em causa a decisão proferida, nesta parte, acaba por recorrer apenas por que sim… Em suma: • seja porque as nulidades invocadas pelo arguido se afiguram destituídas de fundamento, • porque as normas que invoca como estando feridas de inconstitucionalidade são perfeitamente compatíveis com a lei magna do nosso ordenamento jurídico, • porque recorre da matéria de facto, sem que, nesta fase, possa ser aceite recurso da matéria de facto, • ou porque as alegações que apresentam se afiguram descabidas e sem fundamento, o recurso interposto não pode deixar de improceder (…)». 13. Recebidos, foram os autos com vista ao Ministério Público, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 416.º, n.º 1, do Código de Processo Penal (CPP), tendo o Senhor Procurador-Geral Adjunto, acompanhando a posição do Ministério Público no tribunal recorrido, emitido parecer no sentido da improcedência do recurso, nos seguintes termos: «(…) 4. o arguido centrou a sua extensa motivação nas questões seguintes: • Impedimento das Sras. Juízas Desembargadoras; • Impugnação da decisão sobre matéria de facto; • Nulidade insanável por falta de fundamentação do acórdão proferido em 1ª instância - 374.º n.º 2, e 379.º, n.º 1, al. a) do Código de Processo Penal; • Erro notório na apreciação da prova pelo Tribunal da Relação de Coimbra; • Pena de prisão efetiva de 9 anos excessiva e desproporcional, violadora das normas dos artigos 40.º e 71.º, ambos do CP, bem como o n.º 2 do artigo 18.º da CRP. Ora, a nossa Exma. Colega escalpelizou de forma exaustiva todas estas questões, pelo que não poderemos deixar de aderir, na íntegra, às suas alegações, nada tendo a acrescentar. Recordaremos, tão só, que a vítima foi a própria filha do arguido, o que inviabiliza, desde logo, a eventual possibilidade de efectuar, a seu respeito, um juízo de prognose favorável que permitisse a suspensão da execução da pena. De resto, um sinal de (maior) brandura na fixação da pena única desrespeitaria, por completo, as expectativas comunitárias. Justificadamente, trata-se de um dos crimes que mais repugna à consciência dos cidadãos que se regem pelas normas sociais e jurídicas vigentes. Notar-se-á, ainda, que o Tribunal a quo acrescentou, à pena parcelar mais alta, uma ínfima parcela da diferença entre esta e a soma aritmética de todas elas. Parece-nos, pois, que o aresto fez uma adequada interpretação dos critérios contidos nas disposições conjugadas dos art.ºs 40º, n.º 1 e 71º, n.º 1 e 2, als. a) a c), e) e f) do Código Penal. Atendeu-se, cremos, à vantagem da reintegração tão rápida quanto possível do arguido em sociedade; sem se esquecer, porém, que a pena deve visar também, de forma equilibrada, a protecção dos bens jurídicos e a prevenção especial e geral, neste caso particularmente relevantes. Em suma, as fortíssimas exigências de prevenção e a gravidade do comportamento do arguido tinham, obviamente, em conformidade e de acordo com os critérios acima referidos, de ser traduzidos em pena única correspondente à medida da sua culpa; o que o tribunal recorrido conseguiu com uma pena inteiramente justa e que respeita as finalidades visadas pela punição e, neste específico contexto, relativamente benévola. 5. Assim, concluindo, dir-se-á que o douto acórdão recorrido sancionou de forma adequada e criteriosa a matéria fáctica fixada, pelo que o recurso deverá improceder.» 14. Deste parecer foi dado conhecimento ao arguido, o qual reafirmou a posição anteriormente assumida, acrescentando ainda: «(…) Acresce que a tese da defesa, e assim o recurso, contemplam diversos pontos relativamente aos quais o Senhor Procurador-Geral Adjunto não comentou e não tomou posição designadamente: A) Impedimento das Sras. Juízas Desembargadoras; B) Impugnação da decisão sobre matéria de facto; C) Nulidade insanável por falta de fundamentação do acórdão proferido em 1.ª instância - 374.º n.º 2, e 379.º, n.º 1, al. a) do Código de Processo Penal; D) Erro notório na apreciação da prova pelo Tribunal da Relação de Coimbra; E) Pena de prisão efetiva de 9 anos excessiva e desproporcional, violadora das normas dos artigos 40.º e 71.º, ambos do Código Penal, bem como o n.º 2 do artigo 18.º da Constituição da República Portuguesa. Pontos muito concretos, sobre os quais nada é referido, limitando-se o Digníssimo Senhor Procurador-Geral Adjunto a aderir, sem mais, à posição da Magistrada do Ministério Público, explanada em sede de resposta ao recurso, sem mais considerações, abstendo-se de um juízo crítico e da necessária análise do caso concreto. E relativamente ao ponto A), facto é que o arguido tomando conhecimento de nova intervenção no processo por parte das senhoras desembargadoras, ora no julgamento de recurso – suscita ora a nulidade decorrente de tal procedimento nos termos previstos pelo 40.º e 41.º do Código de Processo Penal. Porquanto os atos praticados por juiz impedido são nulos por via da norma contida no artigo 40º/1 – alínea d) do Código de Processo Penal. E ainda que assim não se entenda, por qualquer outra razão inerente ao processado, sempre se dirá que seria de ter em consideração a alteração produzida pela Lei 94/2021 de 21 de dezembro que entrou em vigor no dia 22/3/2022, e que dispõe em matéria de impedimento de Juiz por participação anterior em processo designadamente em fase de instrução ficando vedado, também, intervir em julgamento sendo aplicável por interpretação extensiva – e por maioria de razão e segurança dos direitos de defesa na fase de recurso, situação de nulidade fundamentada ainda na analogia aplicável também à intervenção em julgamento de recurso após a redação conferida pela Lei 94/2021 de 21 de dezembro. E se não se entender – isto é – caso o entendimento seja no sentido de a referida norma não se aplicar por o acórdão anterior não ter decidido, a final, o objeto do processo, sempre sem conceder, vem o recorrente desde já suscitar a inconstitucionalidade de tal interpretação. Reitera-se: para os efeitos previstos no art.º 70.º, 1, b), da Lei 28/82, de 15 de novembro, desde já se suscita a inconstitucionalidade do artigo 40.º, n.º 1, alínea d) do CPP, na versão introduzida pela Lei n.º 94/2021, de 21 de dezembro, quando interpretado no sentido que não tendo o coletivo determinado a medida da pena, mas apenas condenado o arguido, determinado os factos considerados provados, não existir impedimento por parte do juiz do Tribunal da Relação que tenha intervindo anteriormente no conhecimento e decisão de um recurso – não ficando impedido de voltar a conhecer de recurso deduzido no mesmo processo. Em suma, não pode ser conforme com o texto constitucional uma interpretação segundo a qual pode ser o mesmo coletivo a decidir num processo em que não só já havia tido intervenção, como tinha mesmo ordenado a condenação do arguido, por violação das garantias de processo criminal, e nomeadamente o direito a um julgamento justo e imparcial, previstas no artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa. No caso concreto, não existe qualquer garantia da imparcialidade do coletivo, visto que o mesmo já julgou a matéria e, naturalmente, tende a manter a sua posição, não tem o distanciamento necessário para formular um juízo suficientemente livre e seguro. Ponto que não foi apreciado no Parecer. E também relativamente aos restantes pontos (B), C), D) e E)), os mesmos não foram apreciados nem mesmo analisados mediante referido parecer, e quanto a estes, veja-se, em suma, o seguinte: Logo após o acórdão do TRC de 7 de abril de 2021, que condenou o arguido, embora remetendo a determinação da medida da pena para o tribunal de 1.ª instância, o arguido interpôs recurso para o STJ, não tendo o mesmo sido admitido, por despacho de 1 de junho de 2021, com fundamento nos artigos 432.º, n.º 1, alínea b) e 400.º, n.º 1, alínea c), ambos do CPP. O arguido reclamou da não admissão do recurso nos termos do artigo 405.º do CPP invocando, em síntese, que embora não tenha sido determinada a medida da pena, já se mostrava condenado pela prática dos crimes descritos, tendo o Supremo Tribunal de Justiça entendido que “no caso, além de terem intervindo duas instâncias, pode ainda o arguido recorrer para o Tribunal da Relação da decisão da 1.ª instância que vier a ser proferida na sequência do cumprimento do ordenado pelo tribunal superior”. Pois entendeu que não havia sido ainda proferida decisão final sobre o objeto do processo, consoante decorre da decisão proferida em 7/7/2021 pela Insigne Senhora Conselheira que se encontra junto aos autos. Porquanto o recurso seria a apresentar apenas após a determinação da concreta medida da pena pelo tribunal de 1.ª instância, recurso para a relação, que apreciaria matéria de facto, de direito e a medida da pena. Cabia, assim, à relação, a reapreciação da matéria de facto. Porém, a Relação de Coimbra recusou-se a fazê-lo, formalizando – consoante consta na página 39 do acórdão ora recorrido. Tal entendimento do Tribunal da Relação de Coimbra colide frontalmente com a posição do tribunal superior. Caberia, reitera-se, ao Tribunal da Relação, a reapreciação da matéria de facto da decisão final que foi proferida em 18/03/2022. Ora: ao contrário da interpretação do STJ, facto é que a matéria de facto não foi apreciada pelo Tribunal da Relação de Coimbra que recusou. O Tribunal da Relação recusou conhecer do recurso o que se traduz numa clara violação da Lei do processo e dos direitos da defesa, designadamente do recurso, direito fundamental constitucionalmente consagrado, o que foi coartado e impedido pela decisão da relação nesta parte evidenciando uma recusa de acesso ao direito e à justiça com uma absoluta diminuição das garantias de defesa, uma vez que a Constituição da República Portuguesa garante a existência ao menos de um grau de recurso quanto à sua já decretada condenação, consoante entre outros o disposto no número um do art. 32.º da CRP, reitera-se. Também quanto à mesma decisão e não podendo sobre a mesma fazer juízo de inconstitucionalidade no entanto suscita-se ainda a inconstitucionalidade da interpretação segundo a qual não pode o arguido recorrer da matéria de facto para o Tribunal da Relação da decisão da Primeira instância que vier a ser proferida na sequência do cumprimento do ordenado por esse Tribunal Superior que devolve os autos à 1ª instancia para que se indaguem os factos, relativos ao circunstancialismo de vida pessoal, comportamento e personalidade do arguido, com interesse para a determinação da medida da pena, e, subsequentemente, aí seja proferida decisão condenatória e que não conheceu, a final, do objeto do processo ou de um elemento essencial do objeto - a determinação da pena, tendo em conta que foi ordenada a devolução dos autos à 1.ª instância, para determinação da pena a aplicar ao arguido. Sem expor uma fundamentação que indique e muito menos demonstre quais as provas em que se baseou para formar a sua convicção e qual o compreensível e claro raciocínio lógico-dedutivo e qual o exame crítico que tenha efetuado que lhe permita chegar a tal conclusão (que permita formar tal convicção) para, daí decretar a condenação do arguido. É imprescindível a indicação dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal, consoante resulta n.º 2 do artigo 374.º do Código de Processo Penal. Sucede que o acórdão proferido em 1ª instância não contém nem integra qualquer fundamentação. E não se entenda que a fundamentação da matéria de facto decorre daquela que foi assente pelo Tribunal da Relação, pois nem faz remissão para tal, nem a remissão poderia existir. Não pode entender-se – nem implicitamente - que pretendeu fundamentar a decisão por remissão, pois tal não é admissível, em processo penal. O que tem por consequência a nulidade da decisão recorrida nos termos das disposições conjugadas dos artigos 374.º n.º 2, e 379.º, n.º 1, al. a) do CPP. Também considera existir erro notório na apreciação da prova pelo que, ordenada a descida dos presentes autos ao Tribunal da Relação de Coimbra para apreciação da matéria de facto que recusou conhecer anteriormente, mas por diferente coletivo. Não podem considerar-se provados a maioria dos factos constantes do acórdão em crise. Não existe qualquer prova direta dos factos descritos na acusação. Invoca a existência de erro notório na apreciação da prova -vício de apuramento da matéria de facto, que prescinde da análise da prova produzida para se ater somente ao texto da decisão recorrida, por siou conjugado com as regras da experiência comum. Não se concede a decisão a que chegou o tribunal, existindo erro notório na apreciação da prova, a qual, merecia considerações diferentes e conseguinte diferente decisão da vertida no acórdão em crise. Sendo que a conservação da dúvida razoável após a produção de prova tem de atuar em sentido favorável ao arguido. A posição do Tribunal é de verdadeiro non liquet: não consegue superar a dúvida gerada pela contradição insanável de versões das únicas pessoas que assistiram aos factos. Assim, resulta claro e de experiência comum, que nunca a versão da assistente colhe alguma veracidade, repudiando-se a mesma na totalidade, não correspondendo à verdade. O arguido tem direito a um julgamento justo, imparcial, com direito à sua defesa. Circunstâncias que depõem a favor do arguido e evidenciam o exagero da pena de 9 de prisão efetiva aplicada e que foram integralmente desconsideradas pelo Tribunal a quo – e também estas não apreciadas no Parecer. O que se exige é que a aplicação de uma medida privativa de liberdade é sempre de ultimíssimo ratio: perante a oportunidade e possibilidade de aplicação de uma medida que permita o preenchimento das expectativas de prevenção geral e especial do agente – o que é o caso – deve o decisor privilegiar as que, precisamente, possam atingir aquele fim sem privar o individuo da sua liberdade. Concluindo, e salvo o devido respeito, não entende a defesa que o Parecer tenha tido verdadeiramente em consideração o conteúdo e fundamentos do recurso, porquanto, perante a análise do mesmo, verifica-se que não foram considerados esses mesmos fundamentos na sua execução, senão somente a posição do Ministério Público junto da instância. Não há referência crítica ao recurso, somente a invocação dos fundamentos que deram lugar ao acórdão antecedente. Cada indivíduo é diferente e merecedor dessa individualidade, tal como cada processo é diferente e deve ser conduzido e julgado de acordo com o seu desenvolvimento. Não é pelo facto de se ser arguido que automaticamente se perde toda a credibilidade e direito de defesa, amplo e justo. A defesa entende que, neste parecer, não há lugar a individualidade e análise da prova feita e da larga prova testemunhal, mas sim, uma subscrição integral do que outrora foi referido pela Exma. Magistrada do Ministério Público junto da Instância, genericamente exposto no Parecer in casu, sem especial identificação com caso concreto, sendo algo abstrato, pouco incisivo e, s.m.o., pouco crítico e pormenorizado, tendo em conta a dimensão, complexidade e intervenientes do mesmo.» 15. Colhidos os vistos e não tendo sido requerida audiência, o recurso foi apresentado à conferência – artigos 411.º, n.º 5, e 419.º, n.º 3, alínea c), do CPP. Apreciando e decidindo. II. Fundamentação Factos 16 O acórdão recorrido (acórdão da Relação de 12.10.2022), considerou provados os seguintes factos dados como factos provados no anterior acórdão do mesmo Tribunal da Relação, de 07.04.2021, que alterou a matéria de facto dada como provada e como não provada, dando como provados factos não provados do acórdão da 1.ª instância de 01.07.2020: «A - Em data não concretamente determinada entre pelo menos 1-05-2016 e finais de Agosto de 2016, no interior da sua residência em ..., ..., quando a filha BB se encontrava sozinha consigo, o arguido AA, pelo menos uma vez, acariciou a filha BB manualmente nas nádegas, friccionou, com os dedos a sua zona vulvar, com movimentos para a frente e para trás, causando-lhe dor nessa região; B - Em data não concretamente determinada mas entre pelo menos 1-05-2016 e finais de Agosto de 2016, no interior da sua residência em..., ..., quando a mencionada filha se encontrava a dormir na cama, o arguido AA, pelo menos por duas vezes, retirou-lhe o pijama, até a mesma ficar nua, e friccionou a sua língua na boca dela, nos seios e na vagina da criança, tendo colocado o seu corpo em cima da criança, friccionando o seu pénis na zona vulvar da criança, com movimentos pélvicos para a frente e para trás; C - Em data não concretamente determinada mas entre pelo menos 1-05-2016 e finais de Agosto de 2016, no interior da sua residência em ..., ..., o arguido, pelo menos por uma vez, após despir-se, solicitou à filha, BB, que lhe acariciasse o pénis tendo esta obedecido; D - em data não concretamente determinada mas entre pelo menos 1-05-2016 e finais de Agosto de 2016, no interior da sua residência em ..., ..., o Arguido AA, pelo menos por uma vez, estando nu, colocou o seu pénis sobre os lábios da filha e disse para ela o beijar nessa zona, o que aquela acabou por fazer; E - em data não concretamente determinada mas entre pelo menos 1-05-2016 e finais de Agosto de 2016, no interior da sua residência em ..., ..., o arguido, pelo menos por três vezes introduziu os dedos e um objecto com luz e outro idêntico a uma agulha na vagina da criança, causando-lhe dor, bem como colocou bolachas na vagina da criança, sua filha, comendo as mesmas; F - em data não concretamente determinada mas entre pelo menos 1-05-2015 e finais de Agosto de 2016, o arguido AA, pelo menos por uma vez, encontrando-se na zona da ..., trincou a zona vulvar da sua filha, BB, que se encontrava nua; - A BB reagiu aos actos do pai dando-lhe pontapés; - O arguido praticou sobre a filha actos de natureza e conteúdo sexual, para satisfazer os seus instintos sexuais e lascívia, tendo perfeita consciência da sua idade e do respectivo parentesco. - Ao atuar da forma descrita, o arguido quis praticar sobre a filha BB, actos de natureza e conteúdo sexual, o que fez. - O arguido agiu deliberada, livre e conscientemente, com a intenção de satisfazer os seus instintos sexuais e lascívia, tendo perfeita consciência da idade da menor e do respectivo parentesco. - Mais sabia o arguido que com as suas condutas, molestava a integridade psicológica e emocional da menor, prejudicando gravemente o seu livre desenvolvimento sexual. - Não obstante, quis e manteve tais condutas com a menor sua filha, bem sabendo que as mesmas eram proibidas e punidas por lei.» 17. E relativamente à mesma factualidade do acórdão do Tribunal da Relação de 07.04.2021 considerou não provados os factos não provados desse mesmo acórdão, nos seguintes termos: «Nenhuns outros factos relevantes para a discussão da causa se provaram.» 18. No acórdão da 1.ª instância de 01.07.2020 haviam sido dados como: a) Factos provados: «1- O arguido AA e CC conhecem-se desde os dez anos de idade, dos tempos da escola. 2- Por alturas do Carnaval de 2011, começaram a namorar e, em Agosto desse ano, CC engravidou com o objectivo de constituírem família. 3- Em ... de Maio de 2012 nasceu BB, filha do casal e em resultado de gravidez desejada por ambos. 4- Pelo menos de desde dia não concretamente apurado de Maio ou Junho de 2012, o arguido AA, CC e a filha BB começaram a viver juntos em casa daquele. 5- Cerca de oito a nove meses depois, separaram-se e CC foi morar para casa de seus pais, levando a filha BB. 6- Nos meses subsequentes, CC, levando a filha BB, foi por vários períodos para a casa do arguido, num esforço, recíproco de reconciliação. 7- Após a separação, por acordo entre o arguido AA e CC, homologado por sentença de 21.01.2014, foram reguladas as responsabilidades parentais relativamente à BB, ficando esta a residir com a mãe, e ficando o arguido AA com a possibilidade de estar com a mesma (após esta completar 3 anos de idade) às terças e quintas-feiras de todas as semanas, das 19h00 às 21h00, bem como em fins-de-semana intercalados, entre o final da tarde de sexta-feira e segunda-feira de manhã, e ainda, durante quinze dias, seguidos ou interpolados, durante as férias de Verão. 8- Mesmo quando estavam separados, CC, por vezes, ia passar a noite ou fins-de-semana a casa do arguido, disponibilizando-se para ir a ... para passearem e estarem juntos. 9- Entretanto, começaram a surgir discussões entre CC e seu pai GG por aquela pensar em sair de casa de seus pais e ir viver com o arguido, dizendo este que se tal acontecesse deixaria de a ajudar financeiramente. 10- No dia 23 de Fevereiro de 2016, CC e seu pai GG envolveram-se numa discussão por aquela ter deixado cair uma taça na bancada da cozinha, partindo-a, o que levou GG a dizer à filha “és uma criança” e ”é sempre a mesma merda” ao que aquela retorquiu “criança és tu” e “vai pró caralho”. 11- Então, GG agarrou a filha CC pelo pescoço e empurrou-a para o quintal da casa, o que levou esta a ligar para o 112, originando a deslocação da GNR àquela casa para tomar conta da ocorrência. 12- Nesse dia, CC saiu de casa de seus pais e voltou para casa do arguido, juntamente com a filha BB. 13- Em dia não concretamente apurado de Maio de 2016, separaram-se e CC voltou, com a filha BB, para casa de seus pais. 14- Após essa separação, os contactos entre o arguido e a filha BB mantiveram-se nos termos que estavam regulados pelo tribunal. 15- Em Agosto de 2016, BB passou 15 dias de férias com o pai, o ora arguido AA. 16- No dia 16 de Setembro de 2016, o arguido deslocou-se a casa dos pais de CC para levar a filha BB tal como estabelecido no acordo de regulação das responsabilidades parentais. 17- CC não permitiu que o arguido levasse a filha BB invocando “suspeitas de maus tratos à menor, a nível físico e psicológico tendo sido aconselhada pelo seu advogado». b) Factos não provados «Nenhuns outros factos relevantes para a discussão da causa se provaram em audiência de julgamento, nomeadamente não se provou que: a- alguma vez, o arguido AA, colocou a sua mão por baixo da roupa da filha BB, e lhe tocou nas nádegas, e em frente da mãe CC; b - o arguido praticou “actos de cariz sexual” no interior da sua residência em..., ..., quando a filha BB se encontrava sozinha consigo; c - alguma vez, o arguido AA acariciou a filha BB manualmente nas nádegas, nem que friccionou, com os dedos, a sua zona vulvar, com movimentos para a frente para trás, causando-lhe dores nessa região; d - alguma vez, quando a filha BB se encontrava a dormir na cama, o arguido AA retirou-lhe o pijama, até a mesma ficar nua, nem que após, friccionou a sua língua na boca, nos seios e na vagina da menor, nem que tenha colocado o seu corpo em cima da mesma, ou sequer tenha friccionado o seu pénis na zona vulvar da menor, com movimentos pélvicos para a frente e para trás; e - alguma vez, o arguido AA, após despir-se, solicitou à filha BB que lhe acariciasse o pénis nem que esta o tenha feito; f - alguma vez, o arguido AA, encontrando-se despido, colocou o seu pénis nos lábios da filha BB nem que lhe tenha solicitado que a mesma beijasse o seu pénis nem que esta o tenha feito; g - alguma vez, o arguido AA, introduziu os seus dedos e objectos (pinos de uma luz de presença e uma agulha grande) no interior da vagina da filha BB nem que tenha colocado bolachas na vagina da BB nem que tenha comido qualquer bolacha colocada na vagina da filha; h- alguma vez, quando se encontrava sozinho com a filha BB, na ..., o arguido AA tirou a roupa a esta, aproximou a sua boca junto da sua vagina, e trincou-lhe a zona vulvar; i - devido a “actos de cariz sexual” praticados pelo arguido, a filha BB tenha sofrido dores e chorado; j - BB tenha pedido ao arguido AA para parar (com actos que se não provaram) nem que este se tenha recusado a parar de praticar actos (que não se demonstraram); k - o arguido deu palmadas na filha BB para que esta o deixasse continuar a praticar “actos de cariz sexual” (que não se demonstraram); l - alguma vez, o arguido procurou constranger a filha BB dizendo-lhe que tinha uma arma no bolso nem que a tenha advertido de que se contasse algo ia preso; m- em resultado de qualquer comportamento do arguido AA, a menor BB apresente sintomatologia indicadora de perturbação/sofrimento emocional e sintomas comummente associados a casos de abuso sexual, como: medo – de ser alvo de novo comportamento abusivo; ansiedade – quando antecipa a eventualidade de surgirem novos abusos; insegurança – ausência de sentimento de protecção assegurado pela família; impotência/desamparo – sentia que não controlar os acontecimentos, sendo incapaz de impedir os abusos; instabilidade emocional/comportamental na abordagem da temática abusiva; n- o arguido, alguma vez, agiu sobre a filha BB para satisfação dos seus desejos sexuais nem que tenha praticado “actos de cariz sexual”, tendo perfeita consciência da sua idade e de que era sua filha, bem sabendo que o fazia contra a sua vontade; o - o arguido, alguma vez, tenha actuado sobre a filha BB com qualquer conduta proibida e punida por lei; p - a menor BB passou a dormir mal devido a qualquer comportamento do arguido; q - devido a qualquer comportamento do arguido, a menor BB acordava de noite sobressaltada, aos gritos, com o sono agitado e alterado; r - a menor BB temia a chegada do pai a casa da mãe; s - a menor BB pedia que fechassem portas e janelas; t - voluntariamente e de forma espontânea, a menor BB descreveu à mãe e aos avós maternos “as práticas que o pai lhe infligiu”; u - a menor BB alguma vez relatou qualquer situação passada com o pai num pinhal próximo da casa dos avós maternos; v - a menor BB deixou de se referir ao arguido como “pai” nem que, por sua iniciativa, o chamava de “maluco”, “palerma” e “tarado”; x - a menor BB é uma criança afectada psiquicamente por qualquer actuação do arguido.» 19. Para além dos factos dados como provados pelo Tribunal da Relação (pelo acórdão de 07.04.2021, supra, 16), o acórdão da Relação de 12.10.2022 considera ainda como provados os seguintes factos dados como provados no acórdão da 1.ª instância de 18.03.2022, proferido em cumprimento do acórdão da Relação de 07.04.2021, relativos aos antecedentes criminais e às condições pessoais do arguido: «1 – O arguido por sentença proferida em 1.07.2020, transitada em julgado em 16.09.2020, foi condenado no processo comum singular nº. 748/18.3... PBCLD, Tribunal Judicial da Comarca de Leiria, ..., Juízo local Criminal, J2, como autor de um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo artigo 143º, nº. 1 do Código Penal, tendo sido condenado na pena de 30 dias de multa, à taxa diária de € 7,00, perfazendo o total de € 210,00, substituída por 30 horas de trabalho. A referida pena foi declarada extinta em 06.03.2021. 2 – O arguido tem como habilitações literárias o bacharelato em ..., obtido na Escola Superior ..., aos 21 anos de idade. 3 – O arguido trabalha numa empresa de distribuição alimentar, a M..... . .......... ............. .., há cerca de dezassete anos, desempenhando funções de técnico de controlo de qualidade no centro de distribuição em .... 4 - O arguido aufere o salário ilíquido mensal de 941 euros, acrescido de complementos. 5 - O arguido tem como despesas mensais fixas a amortização do empréstimo contraído para aquisição de habitação, no valor mensal de cerca de € 150,00, o pagamento do valor fixado a título de alimentos devidos à menor e os encargos mensais com os consumos de água, energia, transporte próprio. 6 – O arguido viveu maritalmente com a assistente e dessa relação nasceu em 1 de maio de 2012 a filha de ambos BB. 7 – Após a separação a BB ficou a viver com a mãe. 8 – O arguido vive sozinho, em habitação própria, situada numa localidade rural do concelho de .... 9 – O arguido contactava regularmente com a menor e passava com esta fins de semana intercalados. 10 – Posteriormente foi estabelecido um regime provisório de visitas, vigiadas em instalações da segurança social, pelo juízo de Família e Menores de ..., as quais foram interrompidas no âmbito do envolvimento do arguido nos presentes autos. 11– As visitas vigiadas foram retomadas em outubro de 2018, com periodicidade semanal, nas instalações da Santa Casa da Misericórdia de .... 12 – Posteriormente as referidas visitas vigiadas passaram a ser efectuadas nas instalações do Tribunal Judicial de .... 13 – As visitas foram suspensas em março de 2020, na sequência da instauração do estado de emergência devido à pandemia (Covid 19). 14 – O arguido mantém contacto regular com os pais e com uma irmã. 15 – Entende a DGRSP que em caso de condenação existem condições pessoais para a execução de uma medida penal na comunidade, supervisionada por esses serviços; considerando que nessa eventualidade, a sanção deverá ser associada a obrigações de afastamento da vítima e de comparência a consultas de sexologia ou do foro da saúde mental para despiste de eventual problemática e tratamento terapêutico que venha a ser clinicamente adequado.» 20. O acórdão da Relação de 12.10.2022 apresenta a seguinte motivação da decisão em matéria de facto, reproduzindo a motivação da decisão do acórdão de 07.04.2021, que alterou a matéria de facto do acórdão da 1.ª instância de 01.07.2020: «Motivação da matéria de facto A que consta do acórdão da Relação de Coimbra de 7 de Abril de 2021, que se transcreve: “O que resulta de forma clara do resultado da prova, agora complementada com os esclarecimentos da perita, é desde logo, que o relato dos factos que a menor fez perante a perita é credível e portanto corresponde à verdade. Atentemos então no teor integral do relatório da perícia, para melhor percepção do afirmado pela perita em audiência: “RELATÓRIO DA AVALIAÇÃO PSICOLÓGICA EFETUADA A BB, NO ÂMBITO DO PROC. 1066/16.7T9CLD - INQUÉRITO, QUE DECORRE NA COMARCA DE LEIRIA - MINISTÉRIO PÚBLICO - ... - DIAP - 1ª SECÇÃO, NO DIA 31 DE JANEIRO DE 2017 l. A fim de dar cumprimento ao solicitado pela Comarca de Leiria - Ministério Público ¬... - DIAP - la Secção (Proc. 1066j16.7T9CLD - Inquérito), "avaliação psicológica ... avaliação dos alegados factos e da credibilidade do relato, se a mesma tem capacidade para conservar memórias, reproduzir acontecimentos por si vivenciados, bem como compreender, avaliar e relatar factos, de forma a que o seu testemunho possa ser levado em consideração, bem corno, se dos alegados factos ocorridos, resultou algum sofrimento psicológico para a vítima", a BB foi submetida a uma avaliação psicológica, em contexto médico-legal, que incluiu uma entrevista baseada no modelo da Touch Survey (entrevista de contacto físico, desenvolvida por S. Hewitt, usada em casos em que se pretende averiguar sinais de abuso ou maus tratos em crianças em que se verifique a presença de capacidade de representação simbólica e em que a função verbal ainda não se encontre completamente desenvolvida), com o intuito de averiguar, do ponto de vista psicológico, a respeito do alegado abuso sexual de que se suspeita ter sido vítima, designadamente a credibilidade desta como testemunha, a veracidade das suas declarações e possível existência de sintomatologia associada à experiência traumática; foi realizada a observação do seu comportamento e a aplicação da Escala de Inteligência de Wechsler para o Período Pré-escolar e Primário (WPPSI-R), ajustada ao seu nível etário, para determinação do nível de desenvolvimento cognitivo. Foi, ainda, recolhida informação junto da sua progenitora, CC, que a acompanhou, para confirmar alguns dados fornecidos pela menor, assim como obter informações sobre possíveis alterações de comportamento, as quais a criança não seria capaz de responder dada a sua idade cronológica. 2. BB, de 4 anos, apresentou-se na Delegação do Centro do Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses no dia 31 de janeiro de 2017, acompanhada pela progenitora, CC, e pelos avós maternos, HH e GG. Ao longo da entrevista, não apresentou qualquer dificuldade no estabelecimento da relação com a perita, exibindo uma postura tranquila e entrando na sala de avaliação sem hesitações e sem dar indícios de ansiedade, permitindo que a progenitora e avó materna aguardassem no exterior, demonstrando facilidade de comunicação e capacidade de responder inteligivelmente às questões que lhe eram formuladas, dentro do que é esperado para a sua faixa etária, brincando com algum material lúdico no decorrer da sessão e evidenciando um diálogo fluente e diferenciado; em termos da sua postura, é uma criança bem-disposta, sorridente, mantendo um contacto visual adequado. Assim que entrou na sala de avaliação mostrou curiosidade sobre alguns objetos lúdicos disponíveis para as crianças, solicitando permissão para manipular alguns bonecos, mostrando interesse especial por dois dragões e uma boneca bebé. Começou por dialogar sobre temáticas neutras e conseguindo transmitir dados precisos, verbalizando factos pessoais e acontecimentos do seu quotidiano, que foram confirmados na entrevista com a progenitora; logo no início da abordagem da temática abusiva apresentou uma enorme perturbação emocional (mudança de postura e mutismo), a qual foi atenuada, permitindo a recolha de informação, embora mantendo uma instabilidade emocional e comportamental sempre que se tentou clarificar a temática confrangedora envolta no processo, mostrando-se envergonhada e com um discurso defensivo quando se falava no seu progenitor. Após um período de comunicação casual (essencial para proceder ao estabelecimento de uma relação empática), começou por fornecer os seus dados pessoais e aludiu a alguns aspetos do seu quotidiano, dizendo que tem 4 anos e frequentar "a pré", referindo que a sua educadora "é a II e a auxiliar é a JJ ... gosto mais da JJ"; sobre as tarefas desenvolvidas em contexto escolar afirmou que algumas são do seu agrado "gosto muito de fazer colagens ... " enquanto outras são executadas para cumprir ordens "não gosto de contar os meninos ... da última vez, eram 9 meninos ... não gosto de ir buscar o diário"; sobre as suas aprendizagens, mencionou que já conhece as cores principais assim como as secundárias e sabendo o nome das mesmas em inglês (iniciando, com espontaneidade e entusiasmo, a enumeração de cores e verbalizando o seu nome em inglês, solicitando que a perita a questionasse sobre o nome de outras cores que não tivesse referido), assim como conseguir proceder a contagens (fez uma enumeração rápida e direta de números até 15). No que respeita à relação com o seu grupo de pares, mencionou que mantém interações positivas com os colegas, embora estabeleça relações privilegiadas com duas companheiras "a KK e a LL, que é muito queixinhas e queria que eu apertasse as bochechas aos outros meninos … ", conversando, de seguida, sobre a forma como ocupam os tempos lúdicos "brincamos sempre na casinha", descrevendo, alegremente, as ações desenvolvidas no local "despimos e vestimos os bonecos ... faço sempre de mãe porque gosto ... posso mandar nelas", assim como fez relatos sobre danças executadas em épocas festivas "o MM, que também é da minha sala e é meu amigo, queria que eu dançasse com ele, mas só danço com as minhas amigas"; a propósito de não dançar com rapazes acrescentou, livremente, "só danço com as meninas, mas tenho dois namorados ... o NN e o OO e são os dois giros", descrevendo que o NN "tem olhos pretos" enquanto o outro "tem olhos azuis e é louro", com os quais não desenvolve interações específicas "até brinco pouco com eles, mas toda a gente tem que ter namorado ... "; quando questionada sobre o que fazem os namorados, sorriu e ergueu-se sobre a mesa para sussurrar ao ouvido da perita "dão beijos na boca, mas eu nunca dei ...”. Adicionou que é a progenitora que realiza o trajeto escolar "é sempre a mãe ... bem, nem sempre ... um dia, foi a avó"; livremente relatou a cor do automóvel da mãe "é cinzento", sendo transportada numa cadeira de retenção infantil "é uma cadeirinha da Minnie ... é cor-de-rosa com bolinhas brancas", que transita para o veículo do avô quando viaja naquele "a cadeirinha vai para a carrinha do avô ... sabes, é uma carrinha branca, mas hoje viemos no carro cinzento ...” Sobre a sua constituição familiar afirmou habitar com a progenitora "chama-se CC... não sei o que ela trabalha" e com os avós maternos "a avó HH e o avô GG", abordando com naturalidade, algumas rotinas familiares e afirmando que a sua progenitora "faz a melhor papinha ... papinha Nestum com mel", assim como procede aos seus cuidados de higiene "é a mãe que me lava ... às vezes, tomo um bocadinho sozinha ... ", havendo colaboração da avó HH "a avó ajuda a vestir o pijama ... ", mencionando que o pijama de que gosta mais "é o da Elsa" e acrescentando que no Natal recebeu "o fato da Elsa, as cuecas das princesas, o pijama do Mickey e o jogo do Mickey e a Elsa pequenina, porque a grande estava estragada…". Declarou que usufruem da companhia de um animal de estimação "temos um cão …é o F...., é um labrador preto ... antes, quando era pequeno, corria pelos pinhais ... eu não me lembro porque ainda estava na barriga da mãe ... o F.... gosta de ração, porque os cães só gostam de ração", adicionando que "quando for grande quero ser doutora dos animais ... ". Foram exploradas as suas atividades lúdicas no contexto familiar, referindo brincar com os primos e enumerando o GG "tem 4 anos, como eu", a PP, com 6 anos, a QQ, que desconhece a idade e a RR "é a mais pequenina"; quando está sozinha em casa, além de ver televisão "gosto de ver os desenhos da princesa Sofia e os desenhos da Elsa", comentou "não brinco a nada de especial ... ", divertindo-se com os bonecos preferidos no seu quarto "alguns estão no sótão, mas os avós dão ... são brinquedos que eram da mãe pequenina", descrevendo a primeira divisão "tem as paredes cor-de-rosa ... tem a cama de quando eu era bebé"; quando questionada se cabe dentro do berço, foi com um enorme sorriso que afirmou "o meu quarto só serve para brincar ... ", explicando que dorme com a progenitora "porque eu não quero dormir sozinha ... sempre dormi assim". Foi interrogada sobre a figura paterna, começando-se por perguntar qual o seu nome e ocorrendo uma mudança completa de postura (até aí descontraída, faladora e alegre) e encolhendo-se na cadeira, assumindo uma posição fetal, virando a cara para a parede e entrando em mutismo. Foi tranquilizada e deu-se continuidade à entrevista, abordando-se as atividades que decorrem no seu dia-a-dia, onde disse que não colabora nas atividades domésticas "mas já limpei os talheres com um pano", assim como ajuda a cuidar do aspeto da sua progenitora "já lhe escovei o cabelo ... ", aproveitando-se estas temáticas neutras para assegurar a sua capacidade para distinguir a verdade da mentira, apurando-se que tem capacidade para corrigir a perita e verificando-se que possui aptidão para distinguir na prática a verdade da mentira e a realidade da fantasia. Também foi avaliada a sua sugestionabilidade confirmando-se que, além de ter capacidade para corrigir a perita, demonstra aptidão para resistir às sugestões (ao serem introduzidas situações implausíveis, foi possível observar que possui capacidade de contestação). A sua estabilidade emocional ficou completamente restabelecida ao direcionar a conversa para o assunto dos penteados, chegando a levantar-se da cadeira, onde tinha permanecido tranquilamente sentada, e vindo para junto da perita com o objetivo de lhe fazer umas tranças no cabelo "pareces a Pipi das meias altas", Foi neste contexto, caracterizado pela serenidade, que lhe foi solicitado o nome do progenitor, ao que sussurrou "é AA"; enquanto continuava a fazer vários tipos de tranças, foram efetuadas algumas questões para obter informações relativas ao quotidiano com o pai e quais as atividades que fazia e lhe proporcionavam prazer, mas manteve a mesma postura contida, limitando-se a dizer que não vivia mais ninguém em casa do progenitor, assim como não existiam animais domésticos, comentando que, por vezes, o pai a ia buscar à escola "mas não me lembro da cor do carro", embora recorde que tinha uma cadeirinha onde era transportada "mas não me lembro da cor", Procedeu-se à avaliação do funcionamento cognitivo, onde a menor se manteve atenta e interessada, com uma postura adequada à situação avaliativa. Seguidamente, foi realizada uma pausa para o almoço, do qual a BB regressou muito bem-disposta. Após um diálogo tranquilo e para averiguar a sua capacidade de identificar diferentes sentimentos, foi utilizada a Touch Survey, onde assinalou diversas emoções/afetos (feliz, assustada, triste e zangada) e que interações/situações é que lhe provocavam essas sensações, revelando ficar "feliz, quando estou com a mamã", "assustada, quando a mamã pintou a cara no halloween", "triste, quando na escola queria a mamã e não a tinha" e "zangada, quando o pai lambia o meu pipi", sendo esta última afirmação verbalizada com vergonha e em voz sussurrada. Durante a realização desta prova, e com a utilização de figuras humanas pré-desenhadas, identificou as zonas do corpo onde lhe fazem diversos tipos de toques e desenhando espontaneamente a boca ajustada ao sentimento despertado com cada tipo de contacto (abraços, cócegas, pontapés/bater, beijos e zonas íntimas); relativamente aos abraços, disse quem o faz "a avó, o avô e a mamã" e assinalou a zona dos ombros/tronco onde ocorrem, desenhando na figura uma boca sorridente, com um traço suave; quanto a cócegas, verbalizou quem o faz "é a mamã", mencionando "nos bracinhos" e voltando a desenhar uma boca sorridente ». com um traço suave; quando questionada sobre atitudes agressivas (pontapés/bater), narrou que tal acontece esporadicamente por parte de alguns colegas "são os meninos maus", assinalando as pernas e o rabo e desenhando uma boca triste com um traço suave; relativamente aos beijos, teve duas posturas distintas: na primeira, começou por afirmar que lhe dão "beijos bons", provenientes da figura materna e dos avós, apontando para as bochechas "dão beijinhos na cara e no cabelo" e comentando "fazem-me ficar com cara de feliz", e desenhando uma boca feliz, com um traço suave; seguidamente e com um comportamento encrespado (oposto ao comportamento exibido até então, em que esteve tranquila), disse agitadamente "também há beijinhos maus ... faço uma cara de zangada, assim ... " ,esboçando a emoção na figura pré-desenhada com um traço forte e enraivecido e dizendo "é o papá que dá". Após ser tranquilizada (quis fazer um boneco, desenhando-se a si própria e acalmando-se), conseguiu explicar que o progenitor "dava beijos nos pés, no pipi e nas maminhas", indicando na figura pré-desenhada os pés, a vagina e a região mamária; aproveitou-se a sua relativa estabilidade emocional e a temática para terminar a prova, sendo questionada sobre quem lhe tocava nas zonas íntimas, explicando, com naturalidade, que no banho é tocada pelas progenitora e avó, mas acrescentando com constrangimento "o papá também mexia", voltando a desenhar uma boca de zangada, na figura pré-desenhada que simboliza esse contacto. Foi realizado um pequeno intervalo para a menor proceder à sua alimentação. Foi-lhe perguntado se queria continuar a conversar noutra sala, "a sala dos segredos", mostrando-se bastante curiosa e aderindo ao convite. Com bastante calma foi-lhe solicitado para relatar em que circunstância é que os comportamentos abusivos aconteciam, ao que respondeu com constrangimento "era na cama e na banheira ... era em todo o lado e fazia muitas vezes". Por sua iniciativa começou a desenhar e esclarecendo que ia fazer o esboço da cama na qual os abusos aconteciam e comentando "era quando estava a dormir... também fazia na banheira quando me dava banho ... mexe e esfrega com força", exemplificando na boneca bebé (com a qual tinha estado a brincar), abrindo-lhe as pernas e massajando a região vaginal; ao ser questionada se tomava banho com o progenitor, afirmou que tal não acontecia "ele não tomava banho comigo, só me lavava ... ele fazia coisas malucas ... tu não sabes que ele é maluco?". Quanto aos comportamentos abusivos ocorridos na cama, conseguiu explicar "era na cama da Laranjeira ... ele esmagava-me quando dava socos com a sua piloca no meu pipi ... tu não sabes que ele é maluco? ... às vezes, também me chamava nomes ... tonta e bruta ..., voltando a abrir as pernas do boneco e lambendo a região vaginal e narrando "ele lambia o meu pipi e dizia que era o jogo dos beijos ... tu conheces esse jogo? ... ele lambia também na boca e nas maminhas e lambia os olhos ... eu não gostava das lambidas e chorava ... II e declarando que lhe pedia "para ele parar, mas ele não fazia o que eu lhe dizia ... " com espontaneidade, agarrou no boneco dragão, com que tinha estado a brincar, introduzindo a cauda do dragão na boca e dizendo "ele também punha assim a piloca dele na minha boca ... eu dava beijos na piloca dele, mas não gostava ." ele queria que eu mexesse, mas eu não quero e só mexi uma vez ... ele só fazia maluquices ... ele é mau porque quando eu não queria fazer mais, ele dava-me palmadas ... não gosto dele". Foi feita uma tentativa para obter pormenores das interações abusivas (a criança já demonstrava alguma irrequietude), ao que esclareceu que o progenitor lhe tirava o pijama "eu acordava e ficava toda nua ... uma vez, fiquei toda nua na rua…”I descrevendo que em dia incerto "ele despiu-me na ... ", é um espaço velho, nada de especial ... tem uma barraca com ratos e coisas ao monte", adicionando "também me fez mal na ..., mas não quero falar mais disso porque um dia magoou-me .. , deu-me um tipo choque… põe os dentes no pipi e aleijou-me e eu não gosto que ele faça isso…ele é maluco", justificando que esse é o motivo por que não quer estar com o progenitor "uma vez, nas escadas, ameaçou-me com uma arma que tinha no bolso ... não a vi, mas se ele disse, é porque tinha", tendo receio de ser maltratada "porque eu contei e ele disse para não contar porque ia preso…". 3. Resultados da bateria psicométrica: 3.1 Ao longo da aplicação da WPPSI-R, com o objetivo de avaliar o funcionamento cognitivo global da menor, aquela apresentou os seguintes resultados: Escala Verbal: 62 pontos QI Verbal = 116 (Médio Superior: 110-119) Escala de Execução: 53 pontos QI Realização = 103 (Médio: 90-109) Escala Total: 115 pontos QI Total = 111 (Médio Superior: 110-119) Do ponto de vista psicométrico, o Quociente Intelectual Total obtido revela um funcionamento cognitivo superior à média esperada para o seu grupo etário, podendo-se concluir que a menor possui capacidades para raciocinar utilizando a lógica. 4. Foi realizada uma entrevista com a progenitora, CC, 38 anos, desempregada, que confirmou os dados do quotidiano verbalizado pela BB, assim como clarificou algumas afirmações da menor. Sobre o desenvolvimento da filha, elucidou que ingressou no ensino pré-primário aos 15 meses, onde ocorreu uma boa adaptação "sempre foi uma criança bem-disposta", não detetando alterações no padrão de sono nem nos padrões alimentares. Relativamente à sua união com o pai da BB, explicou que se separaram a primeira vez quando a bebé tinha 8 meses "ele pôs-me fora de casa ... disse-me que era o que acontecia às pessoas que se portavam mal ... ele rebaixava-me"; apesar desta separação precoce, foram ocorrendo períodos de reconciliação e justificando "sempre tive na ideia de formar uma família, apesar das advertências dos meus pais", havendo separações de 2 ou 3 semanas, tendo a Regulação das Responsabilidades Parentais sido realizada em 2014 "numa altura em que estivemos mais tempo separados e ele queria estar com a menina", elucidando que a Regulação das Responsabilidades Parentais só entrava em vigor nos momentos em que ocorriam as separações "quando estávamos bem, vivíamos todos juntos". Sobre o relacionamento entre pai e filha, afirmou que "era normal mas, quando ela tinha 3 anos, ele costumava enfiar-lhe a mão por baixo do rabo ... a criança não gostava daquilo ... eu não achava aquilo correto, mas nunca pensei nada de especial sobre aquilo, a não ser que era um disparate ... ", assim como recordou outro episódio em que acordou durante a noite, estando a criança a dormir entre eles, "e ele estava a masturbar-se ... não achei aquilo bem". Separaram-se em definitivo em maio de 2016, indo o AA buscar a criança à instituição escolar "duas vezes por semana para jantar", assim como "aos fins-de-semana que lhe competiam", não notando qualquer alteração na menor. Recordou que num dia em que o AA foi buscar a BB à escola para jantarem, aquele coincidiu com uma ida à praia organizada pela instituição escolar "sei, porque tive o cuidado de arranjar uma mochila com roupa suplementar para a BB mudar depois de vir da praia"; para sua surpresa, quando o ex-companheiro lhe entregou a filha à noite "apesar de eu ter mandado a roupa para a mudarem, ele entregou-ma só de macacão, sem cuecas"; ao estranhar tal situação, questionou a criança por não ter roupa interior, ao que aquela lhe respondeu "que o pai a tinha despido para fazer cocó, numas terras de um pomar", explicando que a BB não fez referência a nada de especial em relação a si própria, embora contasse "que tinha andado a brincar num barracão e que, por aquilo que ela disse, terá visto o pai a masturbar-se"; questionada sobre o nome da localidade em questão, referiu que se chamará .... No dia seguinte, afirmou ter ido questionar as educadoras "que me garantiram que tinham despedido o fato de banho molhado e vestido as cuecas", concluindo que "talvez por descuido" ele poderia não ter voltado a vestir a roupa interior à filha. Em julho, quando a BB regressou após 15 dias de férias com o pai, detetou modificações na sua postura "parece que vinha triste, magra, malcuidada, a cheirar mal da boca ... estava mais parada e não queria dormir na cama, mas em almofadas no chão", atribuindo tais alterações "à falta de cuidado do pai ... nunca me passou mais nada pela cabeça". Em Agosto, passou a ser confrontada com as recusas da BB em acompanhar o progenitor quando ele a ia buscar "começou a fugir e a dizer que não ia com aquele maluco … quando ele a tentava agarrar para a levar, ela dava-lhe estalos e murros e não queria mesmo ir”, não conseguindo perceber o porquê de tal atitude. Nos momentos em que a menor estava serena "comecei a perguntar-lhe porque é que ela dizia que o pai era maluco" altura em que a BB lhe contou os supostos comportamentos abusivos "ela disse que o pai lhe mexia e lhe lambia o pipi ... que a acordava a meio da noite e que quase a esmagava, que lhe encostava a pilinha ao pipi e lhe dava socos com a piloca no pipi, que a chegou a magoar porque lhe metia uma coisa com um espinho nas pernas ... nunca percebi ao que ela se referia", mas apercebendo-se que a criança estava com temor de relatar o sucedido "dizia que ele lhe dizia que não podia contar porque lhe fazia mal e que depois ia preso ... que a terá ameaçado com uma arma ... “, o que a levou a ir expor a situação à CPCJ a 14 de setembro de 2016. Quanto a alterações emocionais/comportamentais detetadas na filha, referiu que a criança não apresenta alterações do apetite, nem nos padrões de sono, embora se mostre inquieta quando se fale na possibilidade de voltar a estar com o progenitor "tem medo que a obrigam a estar com ele.” 5. Conclusão Em função da observação efetuada à BB e tendo em conta os resultados obtidos nas diferentes provas a que a menor foi submetida, bem como em função do contacto direto mantido com a mesma, pensamos ter reunido dados que nos permitem concluir o seguinte: - Evidencia uma idade aparente compatível à sua idade real, com uma apresentação cuidada e com um discurso claro e organizado, pormenorizado e com comentários afetivos espontâneos no que diz respeito a dados do seu quotidiano; na abordagem da temática abusiva, evidenciou uma clara resistência em abordar esta situação, destacando-se as claras alterações ao nível da sua comunicação não-verbal, além de um discurso defensivo. No que respeita à adaptação à realidade, situa-se no tempo e no espaço e demonstra ter conhecimentos adequados sobre a sua vida familiar, escolar e social. Não se observaram alterações ao nível do pensamento. Ao nível dos afetos, evidencia capacidade de reconhecer e exprimir emoções. Ao nível da sua vida imaginária e com recurso a temas neutros observou-se que distingue a verdade da mentira, conseguindo discriminar a realidade da fantasia e ser resistente à sugestão. Quanto aos quesitos específicos, cumpre-nos referir: - quesito 1: "se a mesma tem capacidade para conservar memórias, reproduzir acontecimentos por si vivenciados, bem como compreender, avaliar e relatar factos, de forma a que o seu testemunho possa ser levado em consideração; A avaliação cognitiva traduz uma capacidade cognitiva sem limitações de acordo com o esperado para a sua faixa etária, apresentando uma capacidade narrativa e mnésica que lhe permite narrar eventos de forma lógica e coerente (é capaz de entender e responder corretamente a questões que envolvem os conceitos de "quê", "quem", "quando" e "onde", dando informações quanto a atos, localizações, protagonistas e interações verbais; de igual modo, evidencia capacidade de narrar de forma inteligível sequências de eventos rotineiros e situações do quotidiano, assim como de responder a questões sobre atividades e pessoas) e, com recurso a temas neutros, observa-se que distingue claramente a verdade da mentira e realidade de fantasia (tem capacidade para corrigir a perita, quando esta propositadamente comete lapsos - trocar identidades, locais), sendo resistente à sugestão. Assim, do ponto de vista psicológico, foi possível constatar que tem capacidade para prestar testemunho. - quesito 2: "se dos alegados factos ocorridos, resultou algum sofrimento psicológico para a vítima;" No que respeita a características específicas da sua personalidade deparámo-nos com uma criança sem perturbações visíveis do desenvolvimento e estabelecendo um relacionamento interpessoal adequado à sua idade cronológica, sendo uma criança sociável, assertiva, educada e respeitadora de regras, comportando-se adequadamente em relação ao contexto em que se encontra, não demonstrando constrangimentos ou receios infundados ao interagir com terceiros e com capacidade para expressar emoções autênticas (alegria e afetos), o que nos faz pressupor que o seu nível de maturidade é normal nos seus diversos níveis. No entanto, através da entrevista realizada e da observação do seu comportamento, apuraram-se alguns indicadores comportamentais e psicológicos que, embora não possam ser encarados como dados definitivos e inquestionáveis, podem funcionar como um "sinal de alerta", pois são compatíveis com o conhecimento teórico de como as crianças atormentadas abordam a temática abusiva. Com efeito, a BB revelou: - uma dificuldade na narrativa do evento negativo, havendo mesmo relutância na sua abordagem (os estudos na área do abuso sexual referem que a descrição é comummente acompanhada por uma sensação de falta absoluta de controlo da situação - provocando angústia, agravada pelo medo da revivência de uma experiência traumática). Apesar da inexistência de uma síndroma clínica específica de crianças abusadas (como referido anteriormente), também podemos verificar que a menor apresenta sintomatologia indicadora de perturbação/sofrimento emocional e sintomas comummente associados a casos de abuso sexual (além das verbalizações que podem preencher critérios que a literatura científica relaciona com a probabilidade da existência de situações abusivas), como: • Medo - de ser alvo de novo comportamento abusivo; • Ansiedade - quando antecipa a eventualidade de surgirem novos abusos; • Insegurança - ausência de sentimento de proteção assegurado pela família; • Impotência/Desamparo - sentia que não conseguia controlar os acontecimentos, sendo incapaz de impedir os abusos; • Instabilidade emocional/comportamental na abordagem da temática abusiva. - quesito 3: "avaliação dos alegados factos e da credibilidade do relato.” Assim, relativamente à suspeita de abuso sexual por parte do seu progenitor e procedendo a uma análise qualitativa do relato da BB tendo em conta critérios que a literatura científica refere como indicadores de maior credibilidade (validade e veracidade das alegações), verificamos que aquele apresenta características encontradas em relatos verdadeiros; - No que concerne à validade, ponderando as declarações produzidas pela menor ao longo da entrevista de avaliação, foi possível concluir que o seu relato a respeito da alegada experiência abusiva apresenta consistência interna (coerência num mesmo testemunho), externa (compatibilidade dos relatos, tendo em conta as declarações obtidas na Polícia Judiciária e as declarações prestadas nesta Delegação), consistência entre relatos (coerência global ao longo da avaliação) e persistência das declarações (ao longo do tempo e entre contextos). - Relativamente à veracidade do seu relato, verificamos que este apresenta um número significativo de características habitualmente presente em relatos verídicos. Assim, em termos de características gerais a narrativa proferida apresentou uma estrutura lógica, uma vez que os segmentos da história se ordenam de forma coerente, espontânea, havendo enquadramento temporal e contextuai dos eventos com as suas atividades rotineiras, bem como referências aos antecedentes e aos acontecimentos posteriores ao alegado episódio abusivo, detalhes inusuais e/ou compreendidos de acordo com uma perspetiva infantil (e.g. socos com a piloca no pipi) e compatibilidade do relato com o nível de desenvolvimento. Coligindo tudo o que foi possível avaliar e analisando o relato da menor à luz dos indicadores de veracidade / credibilidade (tendo sido possível submeter as declarações ao teste de validade) e não havendo indicadores significativos de fantasia, mentira ou sugestão (não nos parece que existam, neste caso específico, processos que possam contaminar a veracidade do testemunho, nomeadamente a presença de distorções significativas de memória), resulta um parecer positivo quanto à credibilidade do relato da menor, uma vez que o seu testemunho apresenta um conjunto significativo de indicadores compatíveis com experiências efetivamente vividas.” Convém recordar que o perito, pessoa dotada de especiais conhecimentos técnicos, está melhor preparado para percepcionar ou apreciar da credibilidade do depoimento, funcionando, assim, como auxiliar do juiz no que respeita à percepção da credibilidade da testemunha e não substituir-se-lhe na avaliação do testemunho. Ou seja, o perito apenas indica, de acordo com os estudos que fez, se a testemunha merece ou não credibilidade. Ora, de acordo com o art.º 163.º do C.P.P., o relatório pericial impõe-se, em princípio, ao julgador, que o tem de acatar. Se dele divergir essa divergência tem que ser devidamente fundamentada. Sobre o valor deste tipo de resultados pronunciou-se já o S.T.J., em Acórdão de 11 de julho de 2007 (Processo: 07P1416, disponível in www.dgsi.pt), relator Conselheiro Santos Monteiro: “O artigo 163.º do Código de Processo Penal fixa o valor da prova pericial, estabelecendo uma presunção “juris tantum” de validade do parecer técnico ofertado pelo perito, que obriga o julgador. Quer dizer que a conclusão a que chegou o perito só pode ser desprezada se o julgador, para poder rebatê-la, dispuser de argumentos, da mesma forma, científicos (n.º 2 do artigo 163.º). No mesmo sentido Ac STJ de 11-01-2006, Proc. n.º 4299/05, 3.ª Secção, relator Cons Oliveira Mendes. No caso, o tribunal recorrido respeitou o valor da prova pericial, após os esclarecimentos da perita, concluindo pela credibilidade da menor. Aliás, basta pensar que uma criança com 4 anos de idade, por maior que seja o seu QI, é incapaz de descrever - e ilustrar com brinquedos - os referidos actos de abuso sexual, excepto se os tiver experienciado, pois não possui capacidade para imaginar ou desenvolver cenários tão complexos como os que envolvem uma situação de abuso sexual. A utilização da palavra “denunciar”, certamente escutada em conversas de adultos, foi também proferida na consulta ao médico psiquiatra SS, não infirma a veracidade do relato produzido pela menor. “Quanto à utilização das expressões como “tarado”, “maluco” e “palerma”, a perita declarou que a menor apresentava um desenvolvimento cognitivo que lhe permitia entender o sentido de tais expressões. Afastada ficou também a possibilidade de que o depoimento da BB estivesse condicionado pela influência da mãe. Assim sendo, as referências à “enorme pressão da mãe”, influência da mãe sobre a menor, “estando aquela motivada pelo ressentimento e inimizade para com o arguido seja pela falência do seu relacionamento seja pela vontade de o afastar da filha”, perdem qualquer fundamento objectivo, e a construção de uma “cabala” familiar, assessorada pelo padrinho da menor, baseada em circunstâncias laterais, inquina a motivação por falta de rigor e concede-lhe a aparência de uma narrativa romanceada, sem respaldo no quadro fáctico provado, com o consequente prejuízo da valia técnico jurídica em que deve assentar a decisão. Aliás resulta das regras da experiência como avisado e adequado, a prévia consulta de psiquiatria para aquilatar da verdade dos factos narrados pela menor, de modo a que não se produza denúncia caluniosa, sobretudo por quem está aconselhado por advogado, padrinho da menor. Como resulta também compreensível e desejável que a mãe - para além dos conflitos com o arguido -mediante a suspeita da prática de tais actos sobre a filha, empreenda tudo ao seu alcance para a proteger. Daí que seja natural que a acompanhe constantemente - afinal trata-se de uma criança com 4/5 anos de idade, - e que os avós façam o mesmo. Eliminado o facto de contaminação da prova testemunhal apontado na motivação do acórdão recorrido, resta analisar as declarações para memória futura. Entendeu o tribunal recorrido que “As declarações prestadas pela menor em sede de declarações para memória futura não foram prestadas de forma a que se apresentem como seguras relativamente aos factos em análise. Tal decorre quer da imprecisão das mesmas, quer das hesitações manifestadas pela menor. Da apreciação das mesmas extrai-se ainda que a menor revelou alguma dificuldade em responder de forma espontânea ao que lhe foi perguntado pela Senhora Procuradora, sendo que, em algumas ocasiões, a mesma respondeu a questões que já sugeriam a resposta (fls. 125) e referiu ainda outras situações não descritas na acusação, como o facto de “o pai não lhe dar comida nenhuma”. Vejamos então a transcrição das referidas declarações: “CD - DIA 19/04/2017 OFENDIDA – BB Início de depoimento da testemunha BB Juiz Como é que se chama? Como é que te chamas? BB BB. Juiz QQ? BB BB. Juiz QQ. BB BB. Juiz BB, BB sim senhor. E a BB quantos anos é que tem? BB 4. Juiz 4, 4 dedos estou eu a ver, 4. 1, 2, 3, 4, 4 dedos sim senhor. Olha conheces AA? Não conheces. Estás a dizer que sim? E se dissesses para eu ouvir. Como é que se diz? Sim ou não. Sim? E dizer ao microfone. Assim está bom. Sim ou não. Podes dizer? BB Sim ou não. Juiz Sim ou não pronto. Então a pergunta é conheces o AA? Sim ou não. Conheces? Sim ou não. Conheces? Srs. Doutores a menina está a dizer que sim com, com, com a, com a cabeça literalmente. Está a dizer que sim. Sr. Doutor alguma objecção a isso? Procuradora Não Sr. Doutor. Juiz É pronto. Muito bem. Olha. Sr.ª Doutora, a Sr.ª Doutora formulava algumas perguntas …imperceptível… Procuradora Muito bem …imperceptível… Juiz Está bem? Procuradora Olá BB. BB Olá. Procuradora O meu nome é HH. Olha BB o meu nome é HH e vou conversar contigo um bocadinho está bem? Já disseste que tens 4 anos não é? 4? Tens 4 anos? Sim? Estás a dizer que sim com a cabeça? Pronto. Olha e tens irmãos? Não? Vives com a mãe? BB …imperceptível… Procuradora Como é que se chama a mãe? Sabes? BB CC. Procuradora Como? BB CC. CC. Procuradora CC? E o pai? Como se chama? Não sabes o nome do pai? BB AA. Procuradora AA? É AA? Olha tu vives só com a, se vives só com a mãe? Ou vives com mais alguém? BB Vivo com a mãe, com o avô e com a avó. Procuradora Com o avô e com a avó. BB E com a mãe. Procuradora E com a mãe. Não vive lá mais ninguém em casa? BB O F.... já morreu. Procuradora O? BB O F..... Procuradora Não consigo perceber o que estás a … BB O F.... já morreu. O F.... é o meu cão. Procuradora Já? O cão já morreu? Estava doente era? BB Ele estava com uma massa no olho. Procuradora Foi? BB Agora só tenho a ganso, a G..... Procuradora Olha diz-me uma coisa BB. Tu costumas estar só com a mãe? Tu vais para a escola? Cost… está lá todos os dias é? Tu, o dia todo? Vais de manhã e vens à tarde, é? BB É, eu vou de manhã e depois quando está a fazer noite a mãe vem-me buscar. Procuradora À tarde vai-te buscar a mãe? BB Quando está a fazer noite, a mãe vem-me buscar. Procuradora Vai-te buscar. Isto é todos os dias, não é? De vez em quando gostas mais de ficar em casa não é? Olha. BB Quando é fim-de-semana e eu quero ir para, e eu agora, eu não que… eu quero ficar em casa, não quero ir à rua. Procuradora Não queres ir à rua. Porquê não gostas de ir para a rua brincar? BB Gosto, mas eu queria ficar em casa. Procuradora Porquê? BB De pijama, porque eu tinha frio. Procuradora Olha, está bem, também está bem pensado também gosto de ficar em casa, porque é mais quentinho. E, e ficas sempre em casa aos fins-de-semana? BB Não. Procuradora Então? BB Às vezes vou passear à rua com a mãe. Procuradora Com a mãe? Vais só com a mãe, não vais com o pai? BB Vou com o avô e com a avó. Procuradora E com o pai nunca vais para casa do pai? Não vais? Não costumas ir passar fins-de-semana a casa do pai? Não? BB Eu costumava. Procuradora Costumavas? BB Porque é assim. Eles chatearam-se depois ele, fizeram assim e depois agora já não vou com, para a casa dele. Procuradora Não, agora já não vai para casa do pai? Mas ias passar fins-de-semana a casa do pai era? Ias de vez em quando para casa do pai? E dormias em casa do pai? Sim? Não estás a compreender a pergunta? Costumavas estar, costumavas ir para casa do pai também não era? E ficava lá não era? BB Quando ainda eles não chatearam-se, eu estava com a mãe e com ele. Procuradora Quando a mãe estava com ele? Era? BB Quando ele não se chatearam, a mãe e ele não se chatearam eu vivia com eles os dois. Procuradora Vivias com os dois, não era? BB Sim. Procuradora Depois eles chatearam-se os dois, mas tu depois começaste a ir a casa do pai também não foi? Ias de vez em quando passavas lá 1 dia, 2 dias não é? Mais dias até às vezes, não era? BB Às vezes. Procuradora E depois nunca mais foste porquê? BB Porque ele fez-me mal. Procuradora Porque ele? BB Fez-me mal. Procuradora Fez-te mal? Lembras-te do que é que ele te fez? Podes contar não contamos a ninguém. Lembraste do que é que ele te fez? Porque é que tu dizes que o pai fez mal? BB Porque ele fez mal. Procuradora Mas porque é que tu dizes isso? Explica lá. BB Porque ele faz-me mal. Procuradora Quando tu, quando tu dizes que o pai te fez mal. O pai dava-te palmadas? BB Não. Procuradora Não? Tu gostas do pai? Não gostas do pai? Porquê? BB Porque ele fez-me mal. Procuradora Mas fez-te mal como BB? Consegues dizer porque é que te fez mal? BB Eu não sei. Procuradora Tu não sabes? Tu contaste a alguém que ele te fez mal? BB Eu contei aos pais dele. Procuradora Ó? BB Mas ele não foram dizer. Procuradora Não consigo ouvir o que estás a dizer. BB Eu contei ao pai, aos pais dele mas eles começaram-se a rir. Eles não foram denunciar. Procuradora Olha o que, lembras-te do que é que contaste? Talvez fosse melhor, não sei se está a ficar gravado. Juiz Pois. Procuradora A BB, tens que falar um bocadinho mais alto. Porque depois fica gravado sabes? Como se tivesses a fazer um espetáculo, estás a ver? Fica a tua voz gravada, a tua e a minha e a de todos nós. Olha BB lembras-te do que é que contaste? Consegues dizer o que é que contaste? BB Eu só lembro de algumas coisas. Eu só me lembro de algumas coisas. Procuradora Não consigo perceber. Juiz Eu só me lembrava de algumas coisas. Procuradora E de que é que te lembravas? BB Eu lembro-me. Procuradora Podes dizer à vontade. Advogado …imperceptível… Procuradora Diga? Advogado Só um jeitinho vai passar …imperceptível… Procuradora Podes contar à vontade. Não queres contar? Conta. BB Eu estava a dormir e depois ele foi buscar uma … Procuradora Uma? BB … agulha, agulha e foi daqui coiso, e depois fez assim. Procuradora Pôs-te o quê na mão? BB Ele, ele, ele foi, ele foi buscar uma agulha e depois fez …imperceptível… Procuradora Uma coisa? BB Ele foi buscar uma agulha … Procuradora Uma agulha? BB … depois pôs naqueles coisos …imperceptível… e depois faz aqui. Procuradora Pôs-te uma agulha? Pôs-te uma agulha aonde? No pipi? BB Mas ele pôs na, ele pôs naquela coisa de por ali e depois aí e depois pôs aqui. Procuradora Mas pôs-te aí no pipi, magoou-te foi? O que é que sentiste? Diz lá. BB Aleijou-me o pipi. Procuradora Como é que? Juiz Aleijou o pipi. Aleijou o pipi, foi? Pois. Procuradora E lembras-te de que tamanho era a agulha? BB Era grande. Procuradora Como? BB Era grande. Procuradora Era grande? E de que cor era lembras-te? BB Era uma agulha cinzenta. Procuradora Cinzen… BB Mas não era aquela que tinha a bolinha vermelha. Procuradora Olha e diz-me uma coisa. E o pai disse-te porque é que estava a fazer isso? Não te disse nada na altura? E para além de ter tido, de ter feito o que é que tu fizeste quando o pai te fez isso? Lembras-te? BB Quando ele fazia mal eu dava-lhe pontapés. Procuradora Deste-lhe pontapés? Lembras-te de há quanto tempo é que isso foi? BB Foi quando a mãe saiu. Procuradora Quando a mãe saiu de casa. Olha e depois de, de, de, e para além disso pronto. O pai fez-te mal, disseste que o pai te fez mal mas fez-te alguma coisa mais, para além da, da, da, da agulha? Fez-te mais alguma coisa? Que tu queiras contar. BB Fez. Procuradora O quê diz lá a quem? Que te lembres, tenta lá contar-nos. Só para, para nós sabermos não é. BB Ele dizia só eu para tomar banho e depois ele andava, fazia assim, e depois ele dizia para eu olhar para ele. E depois punha as mãos no meu rabo. Procuradora Depois punha as mãos? BB No meu rabo. Procuradora Na roupa e no teu rabo, e fazia o quê? BB Punha as mãos no rabo. Procuradora Punha só as mãos no rabo, dava-te palmadas era? BB Nada para mesmo dentro do rabo. Procuradora E mais? E o que fazia mais? BB E lambia-me o pipi, as maminhas e o rabo. Procuradora Não percebi. BB Lambia-me … Procuradora Lambia-te? BB … as, as maminhas o pipi e o rabo. Procuradora Lembras-te como é, como é que a coisa, como é que, como é que ele fazia isso? Brincava contigo? Deitava-te na cama? Era? BB É, ele levou a noite toda, quase me magoou. Procuradora Magoou-te? BB Mach… machucou. Magoou, machucou-me. Procuradora Machucou-te? E o que é que tu fizeste nessa altura? BB Eu chamava-lhe nomes e dava-lhe pontapés. E murros. Procuradora E que mais? Que mais te lembras? BB Ele punha bolachas no meu pipi e comia. Procuradora Punha bolachas e comia no pipi? Porque é que ele punha as bolachas no pipi e comia? BB Eu não sei. Procuradora Porque é que o, porque é que, o que é que o pai dizia? Quando fazia isso. Porque é que fazia isso? BB Eu não sei ele não me disse. Procuradora Tu não sabes não é? Estava a brincar contigo, era? Tu não gostavas, pois não? BB E depois quando nós íamos dormir ele punha-me o, a mão no rabo assim. Procuradora Tu dizias ao pai que tu não querias? BB Sim e a mãe também estava, estava a dizer que a, que eu também não queria. Procuradora E ele continuava era? BB E depois ele disse. Procuradora E que mais lembras-te? BB Ele não dava comer. Procuradora Dava-te de comer? Não te dava de comer? Não? Então como é que era? Como é que isso era? Pedias-lhe, dizias que tinhas fome e o pai não, não te dava almoço, nem jantar nem nada? Será que tu é que não te lembras? BB Não. Eu, eu lembro-me. Procuradora Então? Não gostavas da comida que o pai te dava, era? BB Ele não me dava comer nenhum. Procuradora Pronto. Não gostavas de ir para casa do pai não é? BB E, e, e ele disse que ia ir ver as árv… as árvores e disse que voltava e depois trancou-me a porta e deixou-me sozinha. Procuradora Sozinha? Tiveste medo foi? Choraste? Olha BB lembras-te de mais alguma coisa? BB Não. Procuradora Que queiras contar pronto, para nós sabermos. BB Eu não me lembro de mais nada. Procuradora Não te lembras de mais nada? Juiz Pronto. Olhe, olha a BB faz anos no dia 1 de Maio, é? E no ano passado a festa foi onde? BB No Espaço Verde. Juiz No Espaço Verde. E o Espaço Verde é aonde? BB É, é na rua antes de dar para o Pingo doce. Depois tem lá um coiso, depois há ali, depois vai ali e depois tem lá cavalos e uma piscina. Juiz Há ok. BB E nós, e nós andamos na, no cavalo. Mas não fomos para a piscina. Juiz Há e depois, mas o cavalo era um cavalo a sério? BB Eram muitos. Juiz Era? BB Eu queria andar na é… neles mas, só que eu queria andar na égua. Mas só pode ser no cavalo. Juiz Pois. Mas chegaste a andar sozinha no cavalo? BB Não. Juiz Não, pois. Teve alguém que estar contigo. E quem era que estava contigo? BB A Senhora. Juiz A Senhora. BB O Senhor. Juiz Um Senhor? Um Senhor, muito bem. Olha nesse dia, no dia dos teus anos o papá esteve contigo? Quando? À noite depois do espaço verde? BB Nos meus anos. Juiz Nos, nos teus anos. E esteve quando? Temos os seu anos, à tarde? À noite? O papá esteve contigo? BB Teve na minha festa de anos. Juiz Teve. Mas olha depois aquilo que contaste da bolacha e da agulha e do, e do pipi. Foi depois dessa altura? Ou antes? BB Depois. Juiz Não ouvi, não ouvi. BB Depois. Juiz Foi depois? Ah foi depois. Mas que uma semana, duas semanas, três semanas? BB Eu, eu fiz 5, … ai fiz 4 anos. Depois a mãe foi-se embora e depois ele fez-me. Juiz Foi? Exacto, sim. Está bem, está bem. E nessa altura tu ias à praia? Nessa altura quando aconteceu isso? A BB lembra-se de que, de ir, de ir há praia? BB Eu, eles faziam mal ao pai, ele disse se, se, se eu contasse ele ia preso. Juiz Pois. Mas ele, mas ele disse para não contar a ninguém? BB Eu contei à mãe. Juiz Contaram pronto. A BB contou à mamã. Mas ele disse há BB, ele o papá disse há BB para não dizer a ninguém. BB Mas eu disse há mamã. Juiz Mas, mas disseste há mamã. E disseste à mamã que o papá tocava no pipi, é isso? BB E disse mais coisas mas só que eu não me lembro. Juiz Pois. Mas disse que tocava no pipi com os dedos? BB Ele enfiou mesmo lá para dentro. Juiz Enfiava os dedos? Há os dedos. Olha e a história da agulha é que eu não percebo. A agulha era para quê? BB Era para me por no pipi. Juiz Para por no pipi? Pois. BB E é mais, era também com o coiso da eletricidade. Juiz Eu não ouvi. BB Também era com o coiso, aquele coiso da eletricidade. Juiz Também com a, com a ficha da eletricidade, a ficha? Olha e também dava beijinhos no pipi era? O papá? BB Não. Juiz Não. Mas punha bolachas no pipi e, e depois comias? Sim. Sr. Doutor? Advogado Não desejo nada Sr. Doutor. Juiz Não? Sr. Doutor pode ser directamente não, mas não deseja nada é isso? Advogado Não desejo nada. Juiz Muito bem, muito bem sim senhor. …imperceptível… está tudo vencido. Está terminado, está terminado a nossa conversa. Está bem BB? Olha tu vives com a mãe certo? Isso. BB E também o avô e a avô. Juiz Pronto. BB E com a G.... e com o gato. Juiz Pronto. E como é que estamos de escola? Eu sei que ainda é a creche não é? BB A minha, qual é a minha escola? Juiz Sim. BB É a Fancupa. Juiz Exacto. E tocar piano? Tu tocas piano? BB Eu não, só ando na música. Juiz Só andas na música. E o que é que se faz na música? BB É toco, acompanha-se com músicas os instrumentos, e também ando no Inglês e na dança e na … Juiz Ah no Inglês? BB Ando em todas. Juiz No Inglês, então o que é que sabes dizer em …corte de som… querias ter passado o Inglês …imperceptível… Procuradora Ó PP… ó PP, BB agora estou aqui no PP não sei porquê, se calhar podias-te chamar PP também te ficava bem. Tu é muito bonita olha BB. Tu disseste que o pai que tinha dito que ia preso, para tu não contares nada, não é? Tu sabes o que é que é ir preso? BB É para a prisão. Procuradora É prisão e tu sabes o que é a prisão? O que é? BB É uma casa. Procuradora É uma casa? E para que é que serve essa casa? BB É para pôr os maus. Procuradora Para os maus. Olha e diz-me uma coisa tu sabes o que é uma caçadeira? Não? Nunca ouviste falar em caçadeira? Juiz É uma pistola. Procuradora Uma pistola sabes o que é? Sabes? Para que é que serve a pistola? BB Para matar Procuradora Para matar. Pois, está bem. Eu não quero mais, não te vou perguntar mais nada. Juiz …imperceptível… Procuradora Agora. Juiz Sr. Doutor mais alguma pergunta a fazer à BB? Pronto está, está terminado …corte de som… Final de depoimento da testemunha BB.” Ora, considerando a idade da BB, então com cinco anos, afigura-se-nos que, ao contrário do que o tribunal recorrido considerou, a criança revela factos concretos, em tudo idênticos aos que relatou à perita, sendo natural que já não se lembrasse de tudo o que contara à mãe, atento o lapso de tempo decorrido. As perguntas feitas foram no geral amplas e abertas, e apenas quando a resposta continha a indicação da parte do corpo mediante as expressões “e depois faz aqui” e “e depois pôs aqui”, necessariamente implicando o respectivo gesto, a pergunta continha a parte do corpo indicada. É pois de lhe atribuir total credibilidade, até em face da consentaneidade global com o depoimento (prestado em audiência, das 10h40m as 12h31 - fls 441) da testemunha CC, sua mãe - a quem a mesma confidenciou o sucedido, negando-se a menor a dormir na cama e com fobia ao pai. Idênticos factos foram relatados às testemunhas TT e UU (prestados em audiência - cfr fls 441 e 442), a quem a BB relatara de forma espontânea os abusos do arguido, descritos no registo de atendimento da CPCJ (fls 4) “ não quero ir com o pai e não gosto de estar com o pai…não gosto de fazer nada com o pai…o pai mexe no pipi e esfrega (exemplificando através de gestos), o pai põe a língua no pipi e diz que é o jogo dos beijos…o pai aperta a piloca, ele diz para em mexer mas eu não quero, só mexi uma vez… põe os dentes no pipi e diz que é a dentada do leão, eu não gosto disso, aleija-me.” Questionada referiu que o pai se encontra nu e que lhe tira as cuecas.” Também o Dr SS, médico psiquiatra, que em audiência de julgamento (depoimento com duração de 29 m - cfr fls 442) referiu que a menor BB lhe fez relatos revelando ter sido vítima, por parte do pai, de actos de cariz sexual, obteve relatos idênticos, genuínos e claros, sendo que o Tribunal recorrido nem sequer se pronunciou, sobre o depoimento desta testemunha. Ainda o depoimento em audiência de julgamento da testemunha arrolada pelo arguido, VV, técnica da Segurança Social, a quem a criança em contexto de visita vigiada ao progenitor, disse que o pai era maluco, porque lhe "mexia do pipi". E o depoimento de GG, avô materno, a quem a BB também relatou os mesmos factos. Em suma, os factos relatados pela menor mostram-se corroborados pela restante prova, que não foi atendida pelo tribunal recorrido, pela “contaminação … da enorme pressão e presença da mãe”, a que já nos referimos. Mas validados os relatos da menor pela credibilidade que lhe foi atribuída no relatório pericial, nenhuma razão subsiste para duvidar da credibilidade das testemunhas que asseguraram que a menor lhes relatou factos idênticos. Logicamente, a versão do arguido, (Declarações em audiência, de 26 minutos - das 9h51m as 10h17m - fls 440 - e de 6 minutos na 2ª audiência - fls 978/v) que nem sequer está obrigado prestar juramento e incorre em pena de prisão, por contrária à da menor, é inverídica. Com efeito, existe uma impossibilidade real de considerar como credíveis e verídicas duas versões antagónicas sobre os factos. Ademais a credibilização da versão do arguido com base na conduta não verbal nem sequer foi observada pelo colectivo recorrido, atento o tempo de 6 minutos que duraram as respectivas declarações. O mesmo dir-se-á relativamente à atitude corporal da CC. Em suma, compulsada a fundamentação da matéria de facto, atenta a prova produzida devidamente concatenada, impõe-se concluir que os juízos lógico-dedutivos aí efectuados NÃO são acertados, incorrendo o tribunal a quo em erro na apreciação da prova.» Do acórdão recorrido sobre os factos referentes as condições pessoais, económicas e sociais do arguido: resultaram das declarações do arguido e da análise do relatório social junto aos autos e do certificado registo criminal.» Consequentemente, nesta base, alterando radicalmente a matéria de facto dada como provada e como não provada, conclui a Relação que se encontram provados os factos anteriormente descritos em 16, parcialmente coincidentes com os descritos como não provados em 1.ª instância (17.b). 21. O acórdão da 1.ª instância de 01.07.2020, que absolvera o arguido, revogado pelo acórdão da Relação de 07.04.2021, encontrava-se assim fundamentado (destacam-se os aspetos mais relevantes, na parte em que retoma os fundamentos do acórdão absolutório de 08.05.2018 [20.1, infra] e na parte em que dá cumprimento ao decidido no acórdão da Relação de 06.02.2019 (20.2, infra]): 21.1. «De acordo com a fundamentação da matéria de facto constante no Acórdão proferido em 8 de maio de 2018 a convicção do tribunal colectivo alicerçou-se nos seguintes fundamentos: “A decisão do tribunal colectivo, tomada em consciência e após livre apreciação crítica das provas produzidas em audiência, fundou-se na análise crítica e conjugada das declarações do arguido AA e da assistente CC, declarações para memória futura da menor BB, depoimentos das testemunhas e análise dos documentos indicados. (…) Essencialmente, devem ser ponderadas as declarações do arguido, as declarações para memória futura e as declarações de CC e depoimento de seu pai, sem menosprezar os depoimentos de quem, não tendo contactado directamente com a situação imputada, da mesma teve conhecimento indirecto. Porém, o conhecimento indirecto tem as limitações legalmente estabelecidas no artigo 129º, do Código de Processo Penal. (…) No caso em apreço, o arguido nega a prática dos factos clamando que se trata de uma invenção da mãe para o afastar da filha (“isso foi calúnia que foi inventada”). As declarações do arguido, bem como todo o seu comportamento em audiência de discussão e julgamento, revelaram-se calmas, serenas, coerentes e plenas de sofrimento e emoção contida (…) Todas as suas declarações e demais atitudes em audiência de discussão e julgamento foram acompanhadas de absoluta coerência em termos de linguagem não verbal. A sua postura corporal foi adequada e conforme aos sentimentos e explicações em causa, fossem de colaboração e de esforço quando explicava o relacionamento mantido com CC e a filha BB, fosse a situação pessoal, as férias, os desencontros com aquela e as reconciliações, casos em que mantinha uma postura corporal aberta e sem constrangimento; fosse quando transpirava revolta e dor quando se referia à “calúnia inventada” por CC para o afastar da filha. Em toda a sua análise, as declarações do arguido mostraram-se globalmente consistentes pelo que se tornaram convincentes. As declarações para memória futura prestadas pela menor BB foram antecedidas do “relatório da avaliação psicológica” de fls. 64 a 71, o qual apresenta um “parecer positivo quanto à credibilidade do relato da menor, uma vez que o seu testemunho apresenta um conjunto significativo de indicadores compatíveis com experiências efectivamente vividas”. Tal relatório não tem valor absoluto e apenas avalia a capacidade da menor para testemunhar; porém, não impede o tribunal colectivo de analisar e valorar as concretas declarações tomadas pela Sr.ª Procuradora da República e pelo Mmº Juiz de Instrução nos termos do artigo 271º, do Código de Processo Penal e que se mostram transcritas de fls. 116 a 136. Além disso, tal relatório assenta, essencialmente, na perspectiva da versão constante da queixa apresentada pela mãe da menor, salientando a constante presença da mãe e dos avós maternos; tal exame, sem presença de contraditório, parece buscar um sentido meramente legitimador e confirmativo do já existente no processo, sendo que tal correspondia, em suma, à vertente que a mãe (acompanhada do padrinho da menor e advogado da mãe) fez surgir na CPCJ de ... em 14.09.2016 (fls. 3 a 5).(…) As declarações para memória futura da menor BB ouvidas em audiência de discussão e julgamento (sessão de 27.02.2018) e transcritas a fls. 116 a 136 (saliente-se na transcrição a confusão entre “à” e “há”) são vagas com respostas estruturalmente induzidas e com várias manifestações das convicções de quem a interroga e largamente carentes de segurança mínima. Na verdade, não são feitas perguntas abertas nem simples; antes pelo contrário são perguntas de sim ou não e a maior parte das vezes sugestivas ou confusas e de múltiplas interpretações sem adequação à idade da criança. Ora, as declarações da menor BB mostram repetições, hesitações, contradições, confusões e afirmações induzidas que resultam da maneira como lhe foram dirigidas as perguntas, não tendo havido qualquer descrição livre inicial, tudo se resumindo a perguntas --- algumas muitas vezes repetidas e com recurso a linguagem e construção frásica excessivamente complexa para uma criança de 4 anos de idade --- e respostas, sendo que as primeiras muitas vezes já continham a reconstrução da própria ocorrência. Essas declarações foram produzidas, com o devido respeito pelo esforço desenvolvido em tal diligência, em moldes que se afastam das recomendações para a inquirição de menores. Da leitura e audição das declarações para memória futura não é possível assacar credibilidade e firmeza quanto aos factos em causa relativamente ao que é imputado ao arguido. Na situação concreta, houve sempre uma enorme pressão e presença da mãe em todas as situações em que a menor BB teve contacto com outras pessoas relativamente a esta (suposta) situação. Essa pressão verificou-se, nomeadamente, junto das técnicas da CPCJ e no INMLCF aquando da avaliação psicológica a que respeita o relatório de fls. 65 a 71. Porém, antes disso, a mãe já tinha chamado a BB a contar a história ao seu médico psiquiatra no dia 07.09.2016, ou seja, uma semana antes de se apresentar na CPCJ. Além disso, nas suas respostas a menor BB usa vocabulário que, manifestamente, não pode ser da sua lavra: “eles não foram denunciar” (fls. 123) ou quando responde acerca do que é uma caçadeira (fls. 136). Finalmente, veja-se o tempo que decorreu entre a “sinalização” apresentada pela mãe junto da CPCJ (14.09.2016 – fls. 3 e 4), a perícia de natureza sexual (18.11.2016 – fls. 35 a 38), a avaliação psicológica (31.01.2017 – fls. 64 a 71) e a tomada de declarações para memória futura (19.01.2017 – fls. 95/96), sendo certo que durante esse período a menor foi sujeita a intensa pressão por parte da mãe, como se apura dos relatos das senhoras técnicas que acompanharam o regime provisório de visitas (fls. 411 a 413 e 418); na verdade, se tal pressão é manifesta em público não será de excluir nos outros momentos quando é certo que a menor até dorme com a mãe; o que para além dessa influência também eleva os níveis de esforço para lhe agradar. A ponderação das declarações para memória futura --- por si só mas também englobadas neste contexto --- não permite que sejam valoradas com credibilidade e segurança para se terem como minimente fiáveis. Com efeito, verifica-se que existe incredibilidade subjectiva derivada da influência da mãe sobre a menor, estando aquela motivada pelo ressentimento e inimizade para com o arguido seja pela falência do seu relacionamento seja pela vontade de o afastar da filha (isto resulta do depoimento da mãe como do que o avô GG disse acerca do arguido); inexiste firme verosimilhança e não ocorrem quaisquer corroborações periféricas de carácter objectivo que o dotem de aptidão probatória (antes pelo contrário a linguagem da menor com o chavão “maluco, palerma e tarado” assevera a falta de genuinidade do seu discurso) e a persistência na incriminação não é credível porque apesar de prolongada no tempo e reiteradamente expressa é exposta com ambiguidades, contradições e insegurança sendo sempre obtida de modo sugestionado. A prestação de CC não tem qualquer credibilidade e levou o tribunal colectivo a admitir que a mesma criou esta situação e implantou na filha a convicção da realidade que a mesma relata. Para além dos aspectos já referidos acerca da pressão e presença constante da mãe sobre a menor existem outros pontos incongruentes no comportamento da mãe que apontam no sentido de a mesma ter preparado a situação. O episódio de 23 de Fevereiro de 2016 entre CC e o seu pai, que levou aquela a ligar para o 112, mostra a situação de vulnerabilidade, dependência e insegurança angustiante em que a mesma se encontrava. Depois do novo falhanço da relação com o arguido que levou à separação definitiva de ambos, CC foi obrigada a voltar para casa do pai de quem dependia em termos económicos há vários anos, sendo certo que este não suportava o arguido, como referiu em audiência de discussão e julgamento. A cronologia da reacção de CC é elucidativa e deve ser conjugada com a formação académica da mesma (psicóloga) e do padrinho (advogado) da menor BB (que a mãe baptizou sem dar conhecimento ao pai – fls. 202). Na versão de CC a menor contou-lhe os factos em apreço numa noite em que estava “transtornada” em final de Agosto; no dia 07.09.2016 leva a filha BB a contar a história ao seu psiquiatra SS (consulta onde também estiveram presentes os pais de CC); em dia não apurado conta ao seu advogado/padrinho da menor, este contacta a CPCJ e agendam reunião para o dia 14.09.2016; no dia 15 de Setembro de 2016 recusou entregar a menor ao pai alegando maus tratos. Na consulta com o seu psiquiatra SS CC deixa, no seu médico, uma ideia “naif”, mostra-se preocupada com a “situação” da filha e procurava saber o que fazer para ela não ir para casa do pai obrigada, conforme disse aquele psiquiatra na sessão da audiência de discussão e julgamento de 27.02.2018. Tendo em conta a formação académica de CC (psicóloga), a existência do processo de Regulação das Responsabilidades Parentais no Tribunal de Família e Menores de ... bem como o apoio e presença do seu advogado (e padrinho da menor) não se pode aceitar/qualificar a actuação de CC como “naif” junto do seu psiquiatra pois a mesma não precisava de perguntar a este médico como começar o processo nem de lhe pedir um papel para o processo. Tudo isto aponta no sentido de CC procurar preparar uma situação para além do que aparentava pois ela sabia e tinha apoio para agir, se quisesse, com a urgência atinente à gravidade que a mesma procurava difundir e levar a filha a confirmar. Se a filha BB tivesse dito a CC o que esta diz que a menor lhe contou “numa noite de Agosto”, nem a mãe nem os avós maternos (e seguramente nem o padrinho), tendo em conta também as relações tensas com o arguido, ficariam à espera tanto tempo ou iriam pedir ajuda ao médico psiquiatra antes de irem à CPCJ ou a outra entidade para despoletar o respectivo procedimento. Isto vai contra todas as regras de experiência e de comportamento normal e ainda mais contra a maneira de ser revelada em audiência de discussão e julgamento por CC e pelo seu pai. Aliás, o pai de CC disse em audiência de discussão e julgamento que “ao ouvirem os relatos da criança, nessa mesma noite ficaram completamente transtornados, deslocaram-se à casa do senhor doutor que é da nossa família e de confiança e deixaram recado”, no outro dia o senhor doutor falou com a mãe e disse para a menina não ir com o pai, passado um dia ou dois, “o progenitor” foi lá para ir buscar a menina mas não o deixaram levar e chamaram a GNR. Isto mostra, por um lado que perante tanto “transtorno”, a mãe, os avós maternos e o padrinho apenas decidiram não deixar a menor ir com o pai mas ninguém se preocupou com o “processo” (fosse das Responsabilidades Parentais, fosse crime) antes de contar a história ao médico psiquiatra e obter o “papel” para o processo; aliás, diz a mãe e o avô materno GG que o médico disse que tinham que denunciar e dar seguimento a isto. Por outro lado, as datas indicadas por GG também não se conjugam com a cronologia resultante dos documentos: é que a situação em que foi chamada a GNR por “o progenitor” querer levar a filha --- num dia que lhe cabia por virtude do acordo estabelecido em Tribunal--- não foi passado um dia ou dois mas no dia 15.09.2016. Igualmente CC veio dizer que a GNR esteve lá antes da consulta de psiquiatria, o que não é verdade como resulta dos depoimento do médico (consulta em 07.09.2016) e do teor de fls. 459/460 (auto de ocorrência da GNR: 15.09.2016); igualmente diz que as consultas de psiquiatria de CC começaram depois do nascimento da BB e antes de se separar: o médico psiquiatra SS atestou que a mesma é sua cliente desde 2015 por sofrer de “agorafobia”, uma perturbação de pânico, um transtorno de ansiedade e medo dos locais públicos. Além disso, a aversão que GG (tal como a filha) manifestou em audiência de discussão e julgamento contra o arguido bem como a sua impulsividade não lhe permitiriam ficar quieto como ficou; pelo menos levaria a filha a agir, qualquer que fosse o conselho do padrinho/advogado. Em suma, as declarações de CC e o depoimento de seu pai GG não mereceram credibilidade por não terem coerência nem consistência e serem destituídas de isenção. Também em termos de linguagem corporal CC foi elucidativa do desfasamento entre a realidade e declaração: por exemplo quando relata o que diz serem comportamentos estranhos da filha e a “noite de Agosto” em que esta teria feito as revelações, CC mostra uma atitude defensiva e nada credível – olhos imóveis, ombros fechados e encolhidos, mãos cruzadas à frente dos genitais, mãos imóveis, atitude de estátua e pés firmes para trás; aliás, ao longo das suas declarações, sempre que teve que falar dessas situações adoptava uma postura fechada e defensiva de incoerência. O ataque de choro que CC apresentou na sessão da audiência de discussão e julgamento de 23.04.2014 foi entendido, pelo tribunal colectivo, como uma sua reacção de ansiedade ao facto de o tribunal a confrontar com a situação em que se envolveu com o seu pai no dia 23.02.2016 e da qual resultou o seu regresso a casa do arguido contra a vontade do pai (eventual manifestação de “agorafobia”). A testemunha TT, presidente da CPCJ de ... relatou como a Comissão foi contactada pelo Sr. Dr. WW no sentido de agendar uma reunião porque tinha conhecimento de uma situação; ouviram a menor no próprio dia ou no dia seguinte a tal contacto; confirma o teor de fls.3 e 4. A testemunha UU, psicóloga da CPCJ, descreveu como foi o encontro com a mãe e a menor após receberem a “sinalização” que foram acompanhadas pelos avós maternos; a menor quando falou do pai disse que não gostava dele porque a magoava; quando se referia ao pai chamava “pai” e nunca usou a palavra “maluco” e quando falaram do pai a menor reagiu dizendo que não queria falar. O que resulta do contacto destas testemunhas com a menor não permite concluir qualquer dos factos imputados nem dar relevância ao manifestado pela criança; por outro lado, mostra que a BB se refere ao arguido como “pai” e afasta a palavra “maluco”. Apresentaram depoimentos serenos, isentos e colaborantes com o sentido que perceberam do que lhes foi apresentado em primeiro lugar pela mãe e depois pela menor na presença daquela. O Senhor Professor XX (não conhece a BB) apenas conhece CC de uma consulta em Fevereiro de 2017, por causa da filha, à qual foi sozinha não levando a menor por indicação daquele; da situação concreta e da menor nada sabe para além do que lhe pode ter sido dito pela mãe. Esta testemunha nada sabe e lança a “hipótese” acerca do esforço de CC em toda a cadeia de contactos mais parecendo que diligencia por conseguir testemunhas credíveis e de estatuto relevante. A testemunha VV (psicóloga, conhece o arguido do âmbito da assessoria técnica porque acompanhou os convívios no âmbito da regulação das responsabilidades parentais – cfr. relatório de fls. 220 a 226) referiu que perguntou à BB porque é que dizia que o pai é “mau” e “malandro” mas ela não soube desenvolver (como acontece nas declarações para memória futura em que não é capaz de concretizar o “fez me mal” sem a ajuda de perguntas sugestivas fls. 122) e uma vez lhe disse ao ouvido que o pai lhe “mexeu no pipi”. A testemunha YY (socióloga, técnica da segurança social apenas esteve com a BB uma vez quando a mesma tinha 18 meses quando fez um relatório de regulação das responsabilidades parentais) nada de concreto sabe A testemunha ZZ (assistente social) não teve qualquer contacto nem presenciou convívios apenas “participou” nos relatórios como coordenadora de equipa. As testemunhas AAA (pai do arguido), BBB (irmã do arguido), CCC (sobrinha do arguido), DDD (sobrinha do arguido), EEE (vizinha do arguido), FFF (tio do arguido) e GGG relataram situações da vida familiar com a BB e alguns comentaram as fotografias juntas com a contestação; essencialmente com carácter abonatório. Foi igualmente relevante a análise dos diversos documentos, nos moldes já referidos: - o expediente da CPCJ de fls. 2 a 5 (“sinalização” da situação por parte de CC) – já foi analisado supra e releva também para perceber o tempo e o modo como CC se aproxima da CPCJ com a “sinalização”, bem como a primeira versão da “estória”; - relatório da perícia de natureza sexual em direito penal de 24.11.2016, cujo exame foi realizado em 18.11.2016 (fls. 35 a 38 = a fls. 47 e 48); na prática o exame é inconclusivo a não ser pelo modo como a “história do evento” é apresentada, mais uma vez, pela menor na presença da mãe e a insistência na palavra “maluco”; - relatório de perícia psicológica sobre a menor BB de 23.02.2017, cujo exame foi realizado em 31.01.2017 (fls. 64 a 71); já analisado supra e onde é manifesta a influência e intervenção da mãe sobre a menor, sendo que essas conclusões não põem em causa a evidente manipulação da mãe sobre o “discurso” da menor, sendo até curioso o modo como a mesma procura insinuar outras situações como a masturbação e a insistência no “maluco”; a conclusão de que “a menor apresenta sintomatologia indicadora de perturbação/sofrimento emocional comummente associados a casos de abuso sexual, resultam de generalização sem ponderar a situação de inserção familiar concreta da menor (como por exemplo o ambiente de pressão e crispação entre a sua mãe e o avô materno, que, por uma vez, levou ao chamamento da GNR bem como de toda a implantação feita da figura do “progenitor”); daí que, como já referido, este “parecer positivo quanto à credibilidade do relato da menor” não se possa impor ao tribunal colectivo como uma “verdade” absoluta, quando existem elementos que apontam no sentido de uma acção intensa sobre a vontade e percepção da criança; - assento de nascimento de BB (fls. 76); - transcrição das declarações para memória futura de BB (fls. 115 a 135) – já supra analisadas; - informação clínica respeitante a BB (fls. 169/170), da qual nada de relevante resulta; - certidão do processo de “Alteração da Regulação das Responsabilidades Parentais” (1470/13.2...-A): acta de conferência de 26.09.2013 em que é homologado “acordo provisório” (fls. 190/2), o “acordo de regulação das responsabilidades parentais” (fls. 193/6) homologado em acta de 21.01.2014 (fls. 197/8) e acta da conferência de pais realizada em 15.12.2016 (fls. 200 a 204), do qual resultam não só os acordos como a justificação da mãe para ter baptizado a filha sem nada dizer ao pai; também aí se apura a percepção do Tribunal de Família e Menores quando --- depois de referir que “parece-nos claro não ser do mínimo interesse da menor, até cabal esclarecimento da factualidade imputada, afastá-la totalmente dos contactos com o progenitor”--- salienta que “urge acautelar os direitos da BB nesses contactos, pelo que se determinará a efectiva presença de terceiros nas visitas a fixar, e não se tolerará que a progenitora actue como se a filha fosse estrita propriedade sua, agindo da forma como bem entende, em nome do aludido interesse da segurança da filha” (sic a fls. 203, realce nosso); - relatório social respeitante ao acompanhamento ao regime de convívios entre BB e o pai (fls. 219 a 226 = 421 a 427) desenvolvido no âmbito daquele processo, do qual se apura, entre o mais, toda a motivação e esforço de CC em afastar a filha do convívio com o pai e dificultar a aproximação, mantendo sempre presença e pressão de modo que estimula o receio da filha em relação ao pai; - fotografias de fls. 347 a 351 onde se encontram cenas familiares da menor com a família do pai e que foram analisadas e comentadas em audiência de discussão e julgamento; - informação acerca do regime de visitas provisório determinado pelo despacho de 15.12.2016, no processo de alteração das responsabilidades parentais (fls. 411 a 413 e 418/9), onde se avalia que “a mãe assume uma atitude de reduzida colaboração na execução da douta decisão judicial” e “a criança tem revelado, gradualmente, maior resistência em interagir com o pai, recorrendo a verbalizações vinculada a um discurso de adulto” (sic a fls. 412); - informação sobre a audição técnica especializada, datada de 24.01.2017, no âmbito do mesmo processo de alteração das responsabilidades parentais (fls. 414 a 417), onde consta que “a progenitora revelou total indisponibilidade/inflexibilidade face ao delimitar de propostas para execução do Regime de Convívios (…) assumindo que o mesmo (…) contende com o Processo de Inquérito Judicial pendente em sede da Jurisdição Penal (“a minha decisão está tomada, não aceito estas visitas, quero proteger a minha filha”)”. - auto de notícia (violência doméstica) elaborado pela GNR em resultado da deslocação à casa de GG em resultado da chamada de CC para o 112 (por o pai a ter agarrado pelo pescoço e empurrado para o quintal no exterior da casa), no dia 23.02.2016, que deu origem ao NUIPC 40/16.8... (fls. 456 a 458); - auto de ocorrência elaborado pela GNR pela deslocação à casa de GG quando, no dia 15.09.2016, CC recusou entregar a filha ao arguido que aí se deslocou para levar a BB em cumprimento do acordo homologado no processo de alteração das responsabilidades parentais (fls. 459/460); - despacho de encerramento do inquérito no processo 40/16.8... em que o Ministério Público qualifica os factos ocorridos no dia 23.02.2016 entre GG e a filha CC como ofensa à integridade física simples e, por isso, arquiva os autos por falta de queixa visto que esta faltou quando convocada para ser inquirida (fls. 468 a 470). (…) A formação da convicção do tribunal colectivo resultou, em suma, da conjugação das declarações do arguido que foram convincentes e concordantes com a síntese que resulta do comportamento de CC contra aquele e de afastamento da filha como forma de resolver a regulação das responsabilidades parentais, construindo um cerco a partir, supostas, “revelações” da filha numa noite de Agosto, após um período de férias com o pai; a valoração das declarações da mãe não deixa credibilidade e o mais que foi dito às outras pessoas (médicos, psicólogos, técnicos, peritos) está contaminado por esse vício inicial e, por isso, não tem força nem segurança para ser valorado com crédito acima de qualquer dúvida razoável; nessa perspectiva, como já foi referido, as conclusões da avaliação da capacidade de testemunhar não se sobrepõem ao que o tribunal percepcionou e ajuizou a partir do conjunto da prova produzida, sendo que as declarações para memória enfermam das lacunas de credibilidade supra apontadas; aliás, o resumo deste processo, está na parte final das alegações do Ilustre Mandatário da assistente quando clama pela aplicação do artigo 69º-C, do Código Penal (e assim ficava resolvido o processo em que se debatem a regulação das responsabilidades parentais). No que respeita aos factos não provados, os mesmos resultam de falta de prova ou de diferente perspectiva da realidade apurada. Na verdade, nada demonstrando que o arguido tenha praticado os factos constitutivos dos crimes imputados, fica afastado, naturalmente (e também nada foi demonstrado), que os sofrimentos e danos invocados no pedido de indemnização tenham existido ou resultado de actuação do arguido. Nada impede nem se nega a possibilidade de a BB ter sofrido ansiedade e outras angústias em resultado das separações, reunificações, desentendimentos e desavenças ocorridas entre a sua mãe e o seu pai; bem como entre a sua mãe e o seu avô materno e entre este e o seu pai. Porém, nada demonstra que a menor tenha sofrido tal em resultado das imputadas práticas de “actos/abusos sexuais”». 21.2. «De acordo com o decidido pelo Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra “Sendo a veracidade das declarações da menor atestada e afirmando a perita que não há indicadores de significativos de fantasia, mentira ou sugestão, afigura-se-nos fundamental solicitar esclarecimentos à perita que sejam fundamentados – e explicitados de forma a serem entendidos por não especialistas na matéria – para ultrapassar a dúvida quanto à capacidade da menor e quanto à possibilidade de ter sido instruída pela mãe – durante o período acima assinalado, de finais de Agosto de 2016 a 19.04.2017 – para narrar os factos que foi declarando”. Ou seja, entendeu o Tribunal da Relação de Coimbra que a “convicção do tribunal ficou presa no convencimento de que foi a mãe da menor que a manipulou. Convicção que parte de factos presumidos”. Importa, pois, clarificar a questão de forma a assegurar-se que a convicção é alcançada para além de toda a dúvida razoável. Face ao decidido foi ouvida a Senhora Perita em esclarecimentos complementares, ao abrigo do disposto no artigo 158º, nº. 1, al. a) do Código de Processo Penal, tendo em vista esclarecer a dúvida quanto à capacidade de a menor entender e avaliar a natureza dos actos de natureza sexual que atribuiu ao progenitor e para esclarecer da possível influência da mãe e ainda aquilatar da capacidade da menor para utilizar expressões como “denunciar”, “maluco”, “tarado” e “palerma”, tendo em consideração o QI apurado. De acordo com o declarado pela Senhora Perita em julgamento, a menor BB, quando foi ouvida pela mesma, prestou um depoimento espontâneo, tendo manifestado vontade em falar e apresentava capacidade para descrever os factos que descreveu e utilizar o vocabulário a que recorreu. No que concerne à utilização das expressões como “tarado”, “maluco” e “palerma”, a mesma declarou que a menor apresentava um desenvolvimento cognitivo que lhe permitia entender o sentido de tais expressões. No que concerne à utilização da expressão “denunciar”, a mesma declarou que a menor não apresentava capacidade para entender e utilizar essa expressão. A mesma manifestou ainda que do contacto que teve com a menor e face à forma espontânea como a mesma descreveu “o que o pai lhe fazia”, não teve a percepção que o depoimento da mesma estivesse condicionado pela influência da mãe. A mesma deu por reproduzido o teor e as conclusões que já se encontravam plasmadas no relatório pericial junto aos autos a fls.64 a 71, ou seja, o “parecer positivo quanto à credibilidade do relato da menor, uma vez que o seu testemunho apresenta um conjunto significativo de indicadores compatíveis com experiências efectivamente vividas”. A Senhora Perita esclareceu ainda que não se revelava producente o tribunal, nesta fase, proceder à inquirição da menor, uma vez que, atento o lapso de tempo já decorrido, a mesma poderia já não ter presentes os factos ou eventualmente apresentar “falsas memórias”. A prova pericial constitui uma forma de fornecer ao tribunal dados que possam ajudar a tomar a decisão judicial. A prova pericial e os resultados alcançados têm de ser conjugados com a demais provas produzidas, nomeadamente com as declarações prestadas pela menor em declarações para memória futura. A conclusão alcançada na avaliação psicológica realizada permite estabelecer que a menor apresentou um relato credível, mas daí não se pode concluir sem mais que o relatado corresponde ao sucedido e que o arguido ao negar a prática dos factos está a mentir. A prova directa sobre os factos só pode alicerçar-se no depoimento da menor e nas declarações do arguido. A perícia incide sobre o que a menor disse à perita na “consulta/exame” para efeito de elaboração do relatório pericial e não propriamente sobre as declarações para memória futura da BB, sendo que estas últimas são a única prova directa que pode suportar a acusação deduzida. O arguido ouvido em julgamento negou os factos. As declarações prestadas pela menor em sede de declarações para memória futura não foram prestadas de forma a que se apresentem como seguras relativamente aos factos em análise. Tal decorre quer da imprecisão das mesmas, quer das hesitações manifestadas pela menor. Da apreciação das mesmas extrai-se ainda que a menor revelou alguma dificuldade em responder de forma espontânea ao que lhe foi perguntado pela Senhora Procuradora, sendo que, em algumas ocasiões, a mesma respondeu a questões que já sugeriam a resposta (fls. 125) e referiu ainda outras situações não descritas na acusação, como o facto de “o pai não lhe dar comida nenhuma”. Atenta a idade da menor e as imprecisões do seu depoimento e levando-se ainda em consideração a factualidade descrita na acusação, surgem dúvidas no que concerne à determinação das circunstâncias de tempo, modo e de lugar no que concerne aos factos de que se encontra acusado o arguido. As declarações prestadas pela menor são, pois, vagas e carentes de segurança mínima. Para formar a convicção do tribunal sobre os factos em análise era preponderante atentar nas declarações prestadas pelo arguido e pela menor. O arguido negou os factos e as declarações prestadas pela menor enfermam das lacunas já apontadas. Impõe-se ainda atender à demais prova produzida e que se deu por reproduzida, destacando-se aqui as contradições assinaladas no depoimento prestado pela mãe da menor e do seu avô paterno. Em sede de audiência de discussão e julgamento foram juntos aos autos documentos pelo arguido e assistente. O arguido apresentou o parecer que se encontra junto aos autos, por si solicitado e que se reporta à análise do relatório pericial de avaliação psicológica realizado à menor BB. Com a apresentação de tal parecer pretende o arguido colocar em causa as conclusões alcançadas e consignadas no relatório de avaliação psicológica a que a menor foi sujeita, sugerindo que deveriam ter sido realizadas outras avaliações e ponderados outros factos e circunstâncias. Ou seja, o mesmo apresenta uma crítica em relação a metodologia seguida. Face à natureza deste “parecer”, o tribunal não irá atender ao mesmo, na vertente a que o mesmo se destinou, uma vez que o mesmo não tem a virtualidade de afastar a relatório pericial de avaliação psicológica junto aos autos. A assistente, por sua vez, juntou aos autos cópia do Relatório de Avaliação Psicológica que foi realizado no âmbito do processo de alteração da regulação das responsabilidades parentais nº. 1470/13.2... TBCLD-A (Comarca de Leiria - Instância Central – 1ª secção de Família e Menores ... – 1º Juízo), datado de 20 de setembro de 2019. O referido relatório resulta da avaliação psicológica realizada aos pais e avós maternos da menor BB. Este relatório foi elaborado em data posterior à prolação do acórdão absolutório e como tal não poderá ser tido em conta para formar a convicção deste tribunal em relação aos factos em discussão nestes autos. No entanto salienta-se que o mesmo foi junto aos autos pela assistente e que, no mesmo se refere, relativamente ao aqui arguido, que “as respostas que o mesmo deu às questões colocadas são válidas e sugerem honestidade na apresentação que faz de si próprio, o que confere fiabilidade aos resultados obtidos”. No mesmo relatório, conclui-se pela credibilidade de versões contrárias às do aqui arguido, nomeadamente da menor e da sua mãe, tornando claro que o facto de um psicólogo não detectar sinais de mentira, manipulação ou “memórias implantadas” num depoimento, não equivale a atestar a veracidade do mesmo, podendo suceder que em declarações contraditórias se chegue a idêntico resultado: ambas se revelam credíveis por não se terem encontrado indícios de mentira, manipulação ou “memórias implantadas”. Por último, cumpre referir que o MP, aquando da realização do primeiro julgamento, pediu que o arguido fosse absolvido face à prova que foi produzida. Em consequência do reenvio determinado pelo douto Tribunal da Relação de Coimbra, a prova a atender é a mesma. Ou seja, o relatório de avaliação psicológica realizada à menor que já constava dos autos e que foi confirmado neste julgamento pela Sra. Perita. Sustentando isso mesmo nas suas alegações finais, a mudança de posição do Ministério Público corresponde a uma mudança radical de opinião na avaliação da mesmíssima prova, o que não pode deixar de se salientar. Face ao que se deixa exposto, entende-se que existe uma dúvida razoável e inultrapassável não obstante o esforço desenvolvido. O arguido nega terminantemente a prática dos factos. Os mesmos só poderiam resultar provados com base nas declarações para memória futura da menor BB. Perante a negação do arguido e a inexistência de outra prova directa dos factos, o depoimento da menor teria que mostrar-se particularmente credível e fiável para conduzir à condenação do arguido. Como já se analisou, o depoimento da menor está longe de assegurar tais características de credibilidade e fiabilidade, apresentando-se vago e contraditório. A menor é a menos culpada disso, quer pela sua reduzida idade, quer pela circunstância de ter respondido ao que lhe foi perguntado, da forma que lhe foi perguntado e sem que se lhe tenha pedido que clarificasse contradições e vaguidades. Acresce que, como foi entendimento do Tribunal Colectivo que realizou o julgamento “inicial”, o conjunto da prova produzida em audiência, no que toca ao enquadramento das relações entre a família da menor (incluindo o arguido, a assistente, a menor e familiares próximos de todos e cada um) e aos eventos que estiveram na base deste processo, não reforça o depoimento da menor, pelo contrário contribuindo para semear dúvidas sobre todas as questões controversas. Ora, como resulta do já exposto, essa parte do decidido no primitivo acórdão não é abrangida pelo novo julgamento, não podendo nesta fase ser questionada. Depois de repetido parcialmente o julgamento, o Tribunal considera não resultar demonstrado que o depoimento da menor foi condicionado ou manipulado pela assistente, ou que toda a acusação se funda numa mentira contruída por adultos e inculcada na menor. Mas também não considera demonstrado, para lá de uma dúvida razoável, que o descrito na acusação sucedeu, sendo as declarações da menor insuficientes para garantir esse resultado. A posição do Tribunal é de verdadeiro non liquet: não consegue superar a dúvida gerada pela contradição insanável de versões das únicas pessoas que assistiram aos factos. O Tribunal admite a possibilidade de qualquer uma dessas versões ser a verdadeira, mas não consegue, face à prova produzida, decidir qual delas merece essa qualificação. E não encontra igualmente forma de superar esse impasse probatório. Assim, resta aplicar a solução legal (constitucional) para situações similares, fazendo valer o imposto pelo princípio “in dubio pro reo”. O princípio “in dubio pro reo” como decorrência ou corolário da garantia constitucional da presunção da inocência (artigo 32º, nº. 2 da Constituição da República) enquanto princípio probatório, por ser dirigido à apreciação dos factos objecto do processo, desdobra-se em dois vectores essenciais. O primeiro é o de que o ónus probatório da imputação de factos ou condutas que integram a prática de ilícito criminal cabe a quem acusa. O outro impõe que, em caso de dúvida razoável e insanável sobre os factos descritos na acusação ou na pronúncia, o tribunal deve decidir a favor do arguido. Ora, face ao que se deixa exposto, na situação dos presentes autos tal dúvida verifica-se e não foi possível ultrapassar a mesma face à prova produzida. Como tal a decisão será no sentido de absolver o arguido dos crimes pelos quais se encontra acusado.» Âmbito e objeto do recurso 22. O recurso tem, pois, por objeto um acórdão condenatório que aplica uma pena de 9 anos de prisão, proferido pelo Tribunal da Relação [acórdão da Relação de 12.10.2022], em recurso interposto de um acórdão do tribunal coletivo [acórdão da 1.ª instância de 18.03.2022, que aplicou uma pena de prisão suspensa na sua execução], proferido na sequência de um anterior acórdão do mesmo Tribunal da Relação [acórdão da Relação de 07.04.2021, que se pronunciou sobre a culpabilidade], o qual constitui decisão recorrível para o Supremo Tribunal de Justiça (artigos 399.º e 400.º, n.º 1, al. f), a contrario, do CPP). O acórdão da Relação de 07.04.2021 foi proferido em conhecimento de um recurso de um acórdão absolutório da 1.ª instância [acórdão da 1.ª instância de 1.7.2020] dando cumprimento a um outro acórdão da Relação de 6.2.2019 [proferido em recurso de um primeiro acórdão, também absolutório, de 08.05.2018], que ordenou o reenvio do processo à 1.ª instância nos termos dos artigos 426.º e 426.º-A do CPP. 23. De acordo com o artigo 434.º do CPP, na parte que agora releva, «o recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça visa exclusivamente o reexame de matéria de direito». O conhecimento das questões em matéria de facto, que assegura o exercício do direito ao recurso em matéria de facto, esgota-se nos tribunais da relação, que conhecem de facto e de direito (artigo 428.º do CPP). Tratando-se de um recurso de acórdão da Relação proferido em recurso [artigo 432.º, n.º 1, al. b), do CPP], não é admissível recurso para o Supremo Tribunal de Justiça «com os fundamentos previstos nos n.ºs 2 e 3 do artigo 410.º», isto é, com fundamento nos vícios da decisão recorrida e em nulidades não sanadas (aditamento do artigo 11.º da Lei n.º 94/2021, de 21 de dezembro), o que, todavia, não prejudica os poderes de conhecimento oficioso nestas matérias. O âmbito do recurso, que circunscreve os poderes de cognição deste tribunal, delimita-se pelas conclusões da motivação (artigos 402.º, 403.º e 412.º do CPP), sem prejuízo, se for caso disso, dos poderes de conhecimento oficioso de vícios da decisão recorrida a que se refere o artigo 410.º, n.º 2, do CPP [acórdão de fixação de jurisprudência («AFJ») n.º 7/95, DR-I, de 28.12.1995], de nulidades não sanadas (n.º 3 do mesmo preceito) e de nulidades da sentença (artigo 379.º, n.º 2, do CPP, na redação da Lei n.º 20/2013, de 21 de fevereiro). 24. Como se tem assinalado, este regime de recurso, em que a medida da pena aplicada define o critério de atribuição de competência do Supremo Tribunal de Justiça [assim, o AFJ n.º 5/2017, DR, Série I de 23.06.2017, pp. 3170ss] – sem prejuízo de se notar que, com as alterações da Lei n.º 94/2021 à al. e) do n.º 1 do artigo 400.º do CPP a pena aplicada deixou de constituir critério de definição de competência nos casos de absolvição em 1.ª instância – efetiva, de forma adequada, a garantia do duplo grau de jurisdição, quer em matéria de facto, quer em matéria de direito, consagrada no artigo 32.º, n.º 1, da Constituição (cfr. Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 4ª ed., 2007, Vol. I, p. 516), enquanto componente do direito de defesa em processo penal, reconhecida em instrumentos internacionais que vigoram na ordem interna e vinculam o Estado Português ao sistema internacional de proteção dos direitos humanos – artigo 14.º, n.º 5, do Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos («PIDCP») e artigo 2.º do Protocolo n.º 7 à Convenção Para a Proteção dos Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais («CEDH»). O direito a um «triplo grau de jurisdição» ou a «um duplo grau de recurso» em matéria penal, nos casos de maior gravidade [al. f) do n.º 1 do artigo 400.º do CPP] constitui-se no âmbito da liberdade de conformação do legislador na definição dos casos em que se justifica o acesso ao Supremo Tribunal de Justiça (entre muitos outros, os Acórdãos do TC n.ºs 189/2001, 336/2001, 369/2001, 49/2003, 377/2003, 495/2003 e 102/2004, em http://www.tribunalconstitucional.pt), posto que os critérios consagrados não se revelem arbitrários, desrazoáveis ou desproporcionados, ou ainda no caso de condenação no tribunal da relação em reversão de sentença absolutória em 1.ª instância, em conformidade com a obrigação imposta pelo artigo 14.º, n.º 5, do PIDCP que levou à alteração da al. e) do nº 1 do artigo 400.º do CPP pela Lei n.º 94/2021, de 21.12. 25. Tendo em conta as conclusões da motivação, vêm colocadas as seguintes questões: (i) Impedimento das Senhoras Juízas Desembargadoras e subsequente nulidade do acórdão recorrido – artigo 40.º, n.º 1, al. d) do CPP, incluindo a inconstitucionalidade da norma em caso de interpretação diversa da defendida pelo recorrente – conclusões XII a XXV; (ii) Nulidade do acórdão recorrido – artigo 379.º, n.º 1, al. c), do CPP, incluindo a inconstitucionalidade da norma em caso de interpretação diversa da defendida pelo recorrente – por não ter conhecido da matéria de facto – conclusões XXVI a XLII; (iii) Nulidade do acórdão recorrido – artigo 379.º, n.º 1, al. a), do CPP – por falta de fundamentação – conclusões XLIII a LIII; (iv) Erro notório na apreciação da prova e insuficiência para a decisão da matéria de facto provada – conclusões LIV a CIV; (v) Violação do princípio in dubio pro reo e erro na apreciação da prova – conclusões CV a CXLVIII; (vi) Medida e suspensão de execução da pena – conclusões CXLIX a CXCVI.; (vii) Indemnização à ofendida – conclusões CXCVII a CXCIX. Apreciação 26. A decisão do recurso, enquanto componente fundamental do direito de defesa de consagração constitucional, implica uma apreensão e consideração das vicissitudes processuais que, na sua dinâmica, conduziram à formação do acórdão recorrido, a qual, como resulta da matéria de facto, devendo abranger e abrangendo as questões indissociáveis da culpabilidade e da determinação da pena – artigos 368.º e 369.º e 402.º, n.º 1, e 403.º, n.º 3, do CPP, que constituem o objeto do recurso –, ocorre em momentos e por atos distintos, em 1.ª instância (Juízo Central Criminal do Tribunal Judicial da Comarca de Leiria, Juiz 2) e em 2.ª instância (Tribunal da Relação de Coimbra). Relembrando e sintetizando cronologicamente os passos e momentos de formação da decisão, desde a primeira decisão de absolvição em 1.ª instância até à condenação na pena de 9 anos de prisão aplicada no acórdão recorrido: (1) julgamento e absolvição em 1.ª instância, em 8.5.2018 (supra, 1); (2) recurso para a relação e decisão da relação de reenvio à 1.ª instância para novo julgamento [artigos 426.º e 426.º-A do CPP], para esclarecimentos relativos à perícia relativa à menor e suprimento de vício de erro notório na apreciação da prova, em 6.2.2019 (supra, 2); (3) novo julgamento e nova absolvição em 1.ª instância, em 1.7.2020 (supra, 3 e 20) (4) novo recurso para a relação e decisão da relação verificando «erro na apreciação da prova», revogando o acórdão recorrido e alterando e fixando a matéria de facto, com pronúncia sobre a culpabilidade [pela prática de 8 crimes de abuso sexual de crianças] e decisão de devolução à 1.ª instância para indagação dos factos necessários à determinação da pena e ser proferida decisão condenatória, em 7.4.2021 (supra, 4) (5) interposição de recurso desta decisão, pelo arguido, para o Supremo Tribunal de Justiça, não admitido, e indeferimento da reclamação da não admissão (supra, 5); (6) nova audiência de julgamento e nova decisão da 1.ª instância cumprindo a decisão da relação, completando a matéria de facto e condenando o arguido na pena única de 5 anos de prisão, suspensa na sua execução, pela prática dos 8 crimes de abuso sexual de criança estabelecidos pela relação, em 18.3.2022 (supra, 6); (7) novo recurso para o tribunal da relação e nova decisão da relação revogando a decisão condenatória da 1.ª instância e condenando o arguido na pena única de 9 anos de prisão, em 12.10.2022 (supra, 7, 8, 15, 18 e 19). 27. É assim que, como primeira nota relevante, importa ter em conta que a decisão condenatória não pode deixar de considerar-se materialmente constituída por duas partes: uma relativa à questão da culpabilidade – aos factos provados e não provados e à respetiva qualificação jurídica –, que se encerra no acórdão da relação de 07.04.2021 – de que não foi admitido recurso, mas que se integra no acórdão recorrido, que dele se apropria, na sua totalidade, para fundamentar a pena, isto é, para dele extrair as consequências jurídicas dos factos provados –, e outra relativa à questão da determinação da pena, que se inicia com a prolação do acórdão da relação de 07.04.2021, que estabelece os factos provados e a incriminação, e se encerra com o acórdão da relação de 12.10.2022, que revoga a condenação na pena de 5 anos de prisão suspensa na sua execução e aplica a pena de 9 anos de prisão. Desta forma se harmoniza a situação processual com a justificação da decisão da Senhora Vice-Presidente do Supremo Tribunal de Justiça que indeferiu a reclamação do despacho que não admitiu o recurso do acórdão da relação de 07.04.2021. Como consta dessa decisão [supra, 5], «[e]stando em causa a definição da responsabilidade criminal, a decisão final sobre o objecto do processo será aquela que define a culpabilidade (factos) e a pena (consequências)», «o acórdão questionado não conheceu, a final, do objecto do processo ou de um elemento essencial do objecto - a determinação da pena, tendo em conta que foi ordenada a devolução dos autos à 1.ª instância, para determinação da pena a aplicar ao arguido - isto é, a hipótese de irrecorribilidade prevista na referida alínea c) do n.º 1 do artigo 400.º do CPP». E aí se acrescentou também que tal indeferimento não ofendia as garantias de defesa consagradas no artigo 32.º, n.º 1 da Constituição, pois que o «direito ao recurso em processo penal, garantido pela previsão de um duplo grau de jurisdição, terá de ser perspectivado como a faculdade de recorrer sobre a matéria da causa, e não sempre e em qualquer caso, atomisticamente, desenquadrado do conjunto, ou sobre uma questão parcial ou incidental (…) e que «no caso, além de terem intervindo duas instâncias, pode ainda o arguido recorrer para o Tribunal da Relação da decisão da 1.ª instância que vier a ser proferida na sequência do cumprimento do ordenado pelo tribunal superior.» O pleno respeito pelas garantias de defesa, que incluem o direito ao recurso, implica, assim, necessariamente, que se deva considerar a decisão da Relação no seu todo, abrangendo quer a parte relativa à culpabilidade – que só agora, e não antes, pode ser impugnada perante o Supremo Tribunal de Justiça – quer a parte relativa à determinação da sanção, que completa a decisão condenatória proferida em recurso pela relação e que, por aplicar uma pena de prisão superior a 5 anos, na ausência de dupla conforme [artigos 399.º e 400.º, n.º 1, al. e) e f), do CPP], preenche, também só agora, o critério de recorribilidade para este Tribunal (tendo em conta o acórdão condenatório da 1.ª instância de 18.03.2022). 28. Neste quadro, no uso dos poderes de conhecimento oficioso conferidos ao Supremo Tribunal de Justiça (supra, 22 e 23), há que, antes do mais, averiguar e decidir se ocorrem nulidades da decisão recorrida, entendida nos termos acabados de referir, que, a existirem, prejudicarão o conhecimento das questões suscitadas no recurso. Situam-se neste âmbito as questões prévias de saber (a) se o Tribunal da Relação poderia, no acórdão recorrido, considerar alterada a matéria de facto nos termos em que o fez, por considerar transitada em julgado uma sua anterior decisão (no âmbito do recurso do segundo acórdão da 1.ª instância, de 01.07.2020) sobre essa matéria, de que não fora admitido recurso, e (b) se a decisão sobre a culpabilidade, resultante da alteração da matéria de facto, não seguida de decisão de determinação da sanção, em vez de determinar a devolução à 1.ª instância, para esse efeito, em divergência com a jurisprudência fixada por este Supremo Tribunal da Justiça, comporta efeito que deva manter-se. Quanto à alteração da matéria de facto 29. O acórdão de 12.10.2022, pronunciando-se sobre as questões relacionadas com a apreciação da prova da matéria de facto integradora dos tipos legais de crime, limita-se, como se viu, a dar por reproduzido o anterior acórdão de 07.04.2021 e a considerar que esta matéria se encontra «definitivamente julgada pelo Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 7 de Abril de 2021, pelo que não dela não cabe recurso.» Como se viu, não pode a matéria de facto considerar-se «definitivamente julgada» – o que, a aceitar-se, face à não admissão do recurso do acórdão da Relação de 07.04.2021 e respetivos fundamentos (supra, 4 e 5), constituiria insuportável violação frontal do direito ao recurso enquanto componente do direito de defesa constitucionalmente garantido (artigo 32.º, n.º 1, da Constituição) –, havendo, pois, que verificar da admissibilidade e poderes de decisão da Relação para alteração da matéria de facto nos termos que constam da fundamentação do acórdão de 07.04.2021, que o arguido não aceita, suscitando várias questões a este respeito (supra, 25). 30. Como se viu (supra, 3 e 4), do acórdão da 1.ª instância de 01.07.2020, que absolveu o arguido, foram interpostos recursos pelo Ministério Público e pela assistente, julgados pelo acórdão da Relação de 07.04.2021. 30.1. Na síntese do Tribunal da Relação (supra, 4), o recurso do Ministério Público suscitou as seguintes questões: «- contradição insanável da fundamentação – art.º 410.º, n.º 2, al. b), do CPP; - erro notório da apreciação da prova relativo à perícia; - falta de fundamentação na apreciação das declarações para memória futura, por falta de concretização das apontadas “imprecisões” e “hesitações” manifestadas pela menor; - inaplicabilidade do in dubio pro reo, por inexistirem duvidas sobre a existência dos factos.» Conclui o Ministério Público dizendo que «o Tribunal julgou incorrectamente todas as provas apresentadas na acusação» e que «destarte e porque, em nosso entender, os autos dispõem de todos os elementos de facto e de direito que habilitam o Tribunal Colectivo a decidir nos termos supra expostos, deverá o douto acórdão recorrido ser declarado nulo e revogado e substituída por outro que condene o arguido (…)». 30.2. Por sua vez, na mesma síntese, o recurso da assistente suscitou as seguintes questões: «- contradição insanável da fundamentação – art.º 410.º, n.º 2, al. b), do CPP; - inaplicabilidade do in dubio pro reo; - violação do disposto no art.º 163.º do CPP com a consequente nulidade do acórdão - art.º 379.º, n.º 1, al. a) do CPP, por falta de devida fundamentação da desvalorização do efeito probatório do relatório pericial; - erro na apreciação da prova por declarações para memória futura – os factos não provados devem transitar para os factos provados; - omissão de pronúncia - por falta da reapreciação da prova produzida no seu conjunto e respectiva concatenação com a prova pericial.» Finalizando a recorrente por pedir que acórdão fosse «declarado nulo», «nos termos do art.º 120.º, n.º 2, al. d), do CPP» e «nos termos do art.º 379.º n.º 1 a) por remissão para o 374.º do CPP» e consequentemente «ser a matéria de facto alterada e a decisão final modificada com a consequente c) condenação do arguido na prática de 4 crimes de Abuso Sexual de criança (…)». 31. O acórdão da Relação, considerando no mesmo plano institutos e figuras processuais distintas, como nulidades, vícios e princípios de apreciação da prova, começou por apreciar a arguida «nulidade do acórdão recorrido», enfrentando a questão de saber se «o acórdão é nulo por apresentar uma contradição insanável, nos termos do art.º 410.º, n.º 2 a. b) do CPP, porque em suma confere credibilidade aos relatos da BB e retira essa mesma credibilidade na mesma frase e na mesma afirmação». Depois de afirmar que «não existe qualquer nulidade do acórdão», centra-se na prova dizendo que «o que resulta de forma clara do resultado da prova, agora complementada com os esclarecimentos da perita, é desde logo, que o relato dos factos que a menor fez perante a perita é credível e portanto corresponde à verdade», para atentar «no teor integral do relatório da perícia, para melhor perceção do afirmado pela perita em audiência». Relembrando o decidido, seguidamente, depois do relatório pericial, o acórdão da Relação transcreve as declarações da menor ofendida para memória futura (supra, 19) e, como se viu, conclui dizendo: «Ora, considerando a idade da BB, então com cinco anos, afigura-se-nos que, ao contrário do que o tribunal recorrido considerou, a criança revela factos concretos, em tudo idênticos aos que relatou à perita, sendo natural que já não se lembrasse de tudo o que contara à mãe, atento o lapso de tempo decorrido. As perguntas feitas foram no geral amplas e abertas, e apenas quando a resposta continha a indicação da parte do corpo mediante as expressões “e depois faz aqui” e “e depois pôs aqui”, necessariamente implicando o respectivo gesto, a pergunta continha a parte do corpo indicada. É pois de lhe atribuir total credibilidade, até em face da consentaneidade global com o depoimento (prestado em audiência, das 10h40m as 12h31 - fls 441) da testemunha CC, sua mãe - a quem a mesma confidenciou o sucedido, negando-se a menor a dormir na cama e com fobia ao pai. Idênticos factos foram relatados às testemunhas TT e UU (prestados em audiência - cfr fls 441 e 442), a quem a BB relatara de forma espontânea os abusos do arguido, descritos no registo de atendimento da CPCJ (fls 4) “ não quero ir com o pai e não gosto de estar com o pai…não gosto de fazer nada com o pai…o pai mexe no pipi e esfrega (exemplificando através de gestos), o pai põe a língua no pipi e diz que é o jogo dos beijos…o pai aperta a piloca, ele diz para em mexer mas eu não quero, só mexi uma vez… põe os dentes no pipi e diz que é a dentada do leão, eu não gosto disso, aleija-me.” Questionada referiu que o pai se encontra nu e que lhe tira as cuecas.” Também o Dr SS, médico psiquiatra, que em audiência de julgamento (depoimento com duração de 29 m - cfr fls 442) referiu que a menor BB lhe fez relatos revelando ter sido vítima, por parte do pai, de actos de cariz sexual, obteve relatos idênticos, genuínos e claros, sendo que o Tribunal recorrido nem sequer se pronunciou, sobre o depoimento desta testemunha. Ainda o depoimento em audiência de julgamento da testemunha arrolada pelo arguido, VV, técnica da Segurança Social, a quem a criança em contexto de visita vigiada ao progenitor, disse que o pai era maluco, porque lhe "mexia do pipi". E o depoimento de GG, avô materno, a quem a BB também relatou os mesmos factos. Em suma, os factos relatados pela menor mostram-se corroborados pela restante prova, que não foi atendida pelo tribunal recorrido, pela “contaminação … da enorme pressão e presença da mãe”, a que já nos referimos. Mas validados os relatos da menor pela credibilidade que lhe foi atribuída no relatório pericial, nenhuma razão subsiste para duvidar da credibilidade das testemunhas que asseguraram que a menor lhes relatou factos idênticos. Logicamente, a versão do arguido, (Declarações em audiência, de 26 minutos - das 9h51m as 10h17m - fls 440 - e de 6 minutos na 2ª audiência - fls 978/v) que nem sequer está obrigado prestar juramento e incorre em pena de prisão, por contrária à da menor, é inverídica. Com efeito, existe uma impossibilidade real de considerar como credíveis e verídicas duas versões antagónicas sobre os factos. Ademais a credibilização da versão do arguido com base na conduta não verbal nem sequer foi observada pelo colectivo recorrido, atento o tempo de 6 minutos que duraram as respectivas declarações. O mesmo dir-se-á relativamente à atitude corporal da CC. Em suma, compulsada a fundamentação da matéria de facto, atenta a prova produzida devidamente concatenada, impõe-se concluir que os juízos lógico-dedutivos aí efectuados NÃO são acertados, incorrendo o tribunal a quo em erro na apreciação da prova.» E é assim que conclui que «se encontram provados» os factos A a F da matéria de facto (supra 16), e que «consequentemente [se] eliminam os factos não provados coincidentes com a factualidade agora considerada provada», que constam do acórdão de 01.07.2020 (2.º acórdão de absolvição) (supra 18), radicalmente modificados, por extração, como provados, dos não provados. 32. Dispõe o artigo 410.º, n.º 1, do CPP, que, sempre que a lei não restringir a cognição do tribunal ou os respetivos poderes, o recurso pode ter como fundamento quaisquer questões de que pudesse conhecer a decisão recorrida. Estabelecendo o n.º 2 que, mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão e o erro notório na apreciação da prova. Por sua vez, o artigo 412.º, n.º 3, do mesmo diploma, impõe ao recorrente que, quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, deve especificar: a) os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados; b) as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida; c) as provas que devem ser renovadas. O n.º 4 do mesmo preceito dispõe sobre o modo de fazer as referências das especificações do n.º 3 – por referência ao consignado na ata, nos termos do disposto no n.º 3 do artigo 364.º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação – e o n.º 6 estabelece que, no caso previsto no n.º 4, o tribunal procede à audição ou visualização das passagens indicadas e de outras que considere relevantes para a descoberta da verdade e a boa decisão da causa. 33. As relações conhecem de facto (artigo 428.º do CPP), nos recursos em que é impugnada a matéria de facto, nos termos previstos no n.º 3 do artigo 412.º do CPP, sendo que, como é jurisprudência pacífica, uniforme e reiterada, os poderes de cognição do tribunal de recurso se delimitam pelas conclusões da motivação do recurso (supra, 23), não atribuindo a lei às relações poderes de conhecimento oficioso de erros de julgamento em matéria de facto. Também como é jurisprudência assente, os poderes de conhecimento oficioso do tribunal de recurso limitam-se à deteção e conhecimento dos vícios da decisão recorrida, a que se refere o artigo 410.º, n.º 2, do CPP, entre os quais se inclui o vício de erro notório na apreciação da prova, o qual, sendo manifesto, ostensivo e evidente à observação do leitor, se traduz num vício de lógica da decisão resultante do texto da decisão, por si só ou em conjugação com as regras da experiência, que não se confunde com o erro na apreciação da prova, com o erro de julgamento relativamente à apreciação e valoração da prova produzida. Citando de entre muitos outros, o eloquente acórdão deste Supremo Tribunal de 08.07.2020 (Raul Borges), Proc. 142/15.8PKSNT.L1.S1, em www.dgsi.pt, refletindo jurisprudência sólida e reiterada: «XIII – A sindicância de matéria de facto consentida pelo artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, tem um âmbito restrito, pois as anomalias, os vícios da decisão elencados no n.º 2 do artigo 410.º têm de emergir, resultar do próprio texto, da peça escrita, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, o que significa que os mesmos têm de ser intrínsecos à própria decisão, como peça autónoma. XIV – O erro-vício previsto na alínea c) do n.º 2 do artigo 410.º do Código de Processo Penal não se confunde com errada apreciação e valoração das provas, com o erro de julgamento relativamente à apreciação e valoração da prova produzida. XV – Tendo como denominador comum a sindicância da matéria de facto, são muito diferentes na sua estrutura, alcance e consequências. Aquele examina-se, indaga-se, através da análise do texto; esta, porque se reconduz a erro de julgamento da matéria de facto, analisa-se em momento anterior à produção do texto, na ponderação conjugada e exame crítico das provas produzidas do que resulta a formulação de um juízo, que conduz à fixação de uma determinada verdade histórica que é vertida no texto; daí que a exigência de notoriedade do erro vício se não estenda ao processo cognoscitivo/valorativo, cujo resultado vem a ser inscrito no texto, só este sendo suscetível de apreciação. XVI – Por outras palavras. Uma coisa é o vício de erro notório na apreciação da prova, outra é a valoração desta, o resultado da prova, (…). XVII – Enquanto a valoração da prova (…) obedece ao regime do artigo 127.º do CPP e é necessariamente prévia à fixação da matéria de facto, o vício da alínea c), bem como os demais constantes das alíneas a) e b) do n.º 2 do artigo 410.º do CPP, só surge perante o texto da decisão proferida em matéria de facto, que resultou daquela valoração da prova. XVIII – Estamos perante duas realidades que correspondem a dois passos distintos, sequenciais, tendo uma origem na outra: o de aquisição processual em resultado do julgamento; um outro, posterior, de consignação do que se entendeu ter ficado provado e não provado, no exercício final de um juízo decisório que se debruçou sobre a amálgama probatória carreada para os autos e dissecada/ponderada/avaliada após o exame crítico das provas, no seu conjunto e interligação, no jogo dialético das conexões, proximidades, desvios, disfunções, antagonismos. XIX – A primeira relaciona-se com a atividade probatória que consiste na produção, exame e ponderação crítica dos elementos legalmente admissíveis - excluídas as provas proibidas - a habilitarem o julgador a formar a sua convicção sobre a existência ou não de concreta e determinada situação de facto. XX – O erro vício será algo detetável, necessariamente a jusante desse iter cognoscitivo/deliberativo, lançado no texto da decisão, cujo sentido e conformação resultou da convicção assumida, que tem a natureza intrínseca de um “produto” de uma reflexão sobre dados adquiridos em registo de oralidade e imediação e que a partir daí ganha alguma cristalização. (…) XXII – Não se pode confundir o vício de erro notório na apreciação da prova com a valoração desta. Enquanto esta obedece ao regime do artigo 127.º do CPP e é prévia à fixação da matéria de facto, aquele – bem como os demais vícios constantes das alíneas do n.º 2 do art.º 410.º do CPP – só surgem perante o texto da decisão em matéria de facto que resultou daquela valoração da prova». 34. É assim que o artigo 431.º do CPP impõe requisitos específicos e restrições aos poderes das relações para modificação, em recurso, das decisões proferidas em matéria de facto, ao dispor que: “Sem prejuízo do disposto no artigo 410.º, a decisão do tribunal de 1.ª instância sobre matéria de facto pode ser modificada: a) Se do processo constarem todos os elementos de prova que lhe serviram de base; b) Se a prova tiver sido impugnada nos termos do n.º 3 do artigo 412.º; ou c) Se tiver havido renovação da prova.” A Relação não estaria, assim, impedida de, embora com fortes restrições, alterar a matéria de facto constante da sentença da 1.ª instância, mesmo que não tivesse sido interposto recurso da decisão em matéria de facto, por alegado erro de julgamento [caso da al. b)]. Porém, como se consignou no acórdão de 22.06.2022, proferido no Proc.º 215/18.5JAFAR.E1.S1, em www.dgsi.pt, que se segue de perto, esta possibilidade só poderia ocorrer por via e na sequência da verificação e declaração de vício a que se refere o artigo 410.º, n.º 2, do CPP, nomeadamente do vício de erro notório na apreciação da prova, nas condições impostas pelos artigos 426.º e 431.º, al. a), do CPP, em vista da superação desse vício, para uma boa decisão de direito. Estabelece o n.º 1 do artigo 426.º que «sempre que, por existirem os vícios referidos nas alíneas do n.º 2 do artigo 410.º, não for possível decidir da causa, o tribunal de recurso determina o reenvio do processo para novo julgamento relativamente à totalidade do objeto do processo ou a questões concretamente identificadas na decisão de reenvio». O que impõe ao tribunal da relação uma dupla decisão ou uma decisão em dois momentos: em primeiro lugar, a deteção e aferição (determinação e concretização) do vício e, em segundo lugar, a verificação e avaliação das possibilidades de sanação do vício e, sendo caso disso, a respetiva sanação, com base num juízo sobre a suficiência das provas necessárias para essa finalidade, que são as provas existentes no processo que serviram de base à decisão [al. a) do artigo 431.º do CPP]. Não tendo havido recurso em matéria de facto da decisão da 1.ª instância – como se viu apenas foram arguidos vícios e nulidades da decisão (supra, 30) –, nos termos do disposto no artigo 412.º, n.º 3, do CPP, nem renovação da prova – que depende sempre do recurso em matéria de facto e de pedido (artigos 412.º, n.ºs 1 e 3, al. c), 423.º, n.º 2 e 430.º do CPP) –, o Tribunal da Relação apenas pode modificar a matéria de facto, para remover um vício que for identificado e que impeça a decisão de direito, «se do processo constarem todos os elementos de prova que lhe serviram de base» [al. a) do artigo 431.º do CPP – neste sentido, designadamente, os acórdãos deste Supremo Tribunal de 30.1.2002 (Armando Leandro), Proc. 3264/01-3.ª, apud Vinício Ribeiro, Código de Processo Penal, Notas e Comentários, 3.ª ed., Quid Juris, 2020, p. 1067-1068, de 23.3.2006 (Santos Carvalho), Proc. 06)547, em www.dgsi.pt, e de 24.5.2018 (Carlos Almeida), Proc. 632/13.7PARGR.L2.S1, apud Código de Processo Penal Comentado, Henriques Gaspar et alii, cit., 3.ª ed., p. 1384). 35. Como se afirmou no mencionado acórdão de 22.06.2022 (Proc.º 215/18.5JAFAR.E1.S1), havendo arguição de vício do artigo 410.º, n.º 2, do CPP, o Tribunal da Relação deve verificar se «é possível decidir da causa» (artigo 426.º, n.º 1, do CPP) com os «elementos de prova que constam do processo», excluindo a documentação (gravação) da prova em audiência, que apenas pode servir de base à modificação da decisão em matéria de facto «se a prova tiver sido impugnada nos termos do n.º 3 do artigo 412.º» – neste sentido, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, Verbo, 2000, p. 368, onde se lê: «Não havendo lugar a reenvio para novo julgamento [por existirem os vícios do n.º 2 do artigo 410.º], a decisão do tribunal da 1.ª instância em matéria de facto pode ser impugnada (art.º 431.º): a) Se do processo constarem todos os elementos de prova quer serviram de base á decisão; b) Se, havendo documentação da prova, esta tiver sido impugnada, nos termos do artigo 412.º, n.º 3; c) Se tiver havido renovação da prova. (…) Havendo documentação da prova, para que o tribunal possa modificar a decisão em matéria de facto, é necessário que esta tenha sido impugnada» (no mesmo sentido, Pinto de Albuquerque, Comentário do CPP, Católica Editora, 2007, p. 1181). Se assim não fosse, perderia sentido a autonomização das alíneas a) e b) do artigo 431.º, pois que a previsão da al. a) absorveria a da al. b), conferindo à apreciação dos vícios em matéria de facto um âmbito e uma dimensão idêntica à da impugnação da matéria de facto, a que é imposto o ónus de especificação do n.º 3 do artigo 412.º do CPP, ou mesmo mais alargada na ausência de tal ónus. Assim se devendo considerar que a eliminação da expressão «havendo documentação da prova» constante da al. b), pela Lei n.º 48/2007, de 29/8, não introduziu qualquer elemento de novidade na sua previsão, que se define pela conjugação com o n.º 4 do artigo 412.º, que se refere à gravação (documentação) das provas. Com efeito, como se extrai da história do artigo 431.º do CPP, introduzido pela Lei n.º 59/98, de 25/08, este preceito veio suprir uma lacuna do regime processual do direito ao recurso em matéria de facto (cfr., a este propósito, o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 322/93 e respetivos votos de vencido), inspirando-se no artigo 712.º («Modificabilidade da decisão de facto»), n.º 1, al. a), do Código de Processo Civil de 1961, então vigente, segundo a qual, «[a] decisão do tribunal de 1.ª instância sobre a matéria de facto pode ser alterada pela Relação: a) Se do processo constarem todos os elementos de prova que serviram de base à decisão sobre os pontos da matéria de facto em causa ou se, tendo ocorrido gravação dos depoimentos prestados, tiver sido impugnada, nos termos do artigo 685.º-B, a decisão com base neles proferida». 36. Como se vê, o Tribunal da Relação, depois de verificar que o tribunal recorrido «respeitou o valor da prova pericial, após os esclarecimentos da perita, concluindo pela credibilidade do depoimento da menor» e que «ficou afastada a possibilidade de que o depoimento da BB estivesse condicionado pela influência da mãe», procedeu à análise das declarações da menor ofendida para memória futura, concluindo que «é de lhe atribuir total credibilidade, até em face da consentaneidade global com o depoimento (prestado em audiência, das 10h40m as 12h31 - fls 441) da testemunha CC, sua mãe – a quem confidenciou o sucedido», relatando também «factos idênticos» às testemunhas TT e UU (prestados em audiência - cfr fls 441 e 442) e notando que «também o Dr SS, médico psiquiatra, que em audiência de julgamento (depoimento com duração de 29 m - cfr fls 442) referiu que a menor BB lhe fez relatos revelando ter sido vítima» e o depoimento «de GG, avô materno, a quem a BB também relatou os mesmos factos». Com base nestas provas – e exclusivamente com base nelas –, concluiu a Relação, em resultado de diferente apreciação, que os «juízos lógico-dedutivos» da sentença da 1.ª instância «não são acertados, incorrendo o tribunal a quo em erro na apreciação da prova.» 37. O acórdão recorrido, que se limita a concluir pela ocorrência de «erro na apreciação da prova» não concretiza se se verifica um «erro notório na apreciação da prova» [artigo 410.º, n.º 2, al. c), do CPP] ou um erro de julgamento, sendo que, atendendo ao discurso argumentativo que fundamenta a decisão, é seguro concluir que o erro indicado corresponde, na avaliação da Relação, a um erro de julgamento, identificado na decorrência de apreciação e valoração das provas efetuadas pelo Tribunal da Relação, em divergência da decisão da 1.ª instância. Ora, não tendo havido recurso da decisão em matéria de facto, com impugnação da matéria de facto nos termos impostos pelo artigo 412.º, n.ºs 3 e 4, do CPP, não podia o Tribunal da Relação modificar a decisão em matéria de facto dada como provada e como não provada na 1.ª instância, face ao disposto no artigo 431.º, al. b), do CPP. E mesmo que se pudesse admitir que o identificado «erro na apreciação da prova» poderia significar um vício de «erro notório na apreciação da prova» [artigo 410.º, n.º 2, al. c), do CPP], também não seria aceitável a alteração da decisão com base na prova gravada por esta não se poder incluir na previsão da al. a) do mesmo preceito. 38. Assim sendo, se deve concluir que, ao apreciar as provas e ao decidir sobre a matéria de facto, alterando-a, o acórdão do Tribunal da Relação se pronunciou sobre uma questão de que não podia tomar conhecimento, o que constitui causa de nulidade da sentença prevista no artigo 379.º, n.º 1, al. c), do CPP, aplicável ex vi artigo 425.º, n.º 4, do mesmo diploma. Quanto à determinação da sanção 39. Como se viu (supra, 4), o acórdão de 07.04.2021, não procedeu à determinação da medida da pena por a sentença recorrida nada mencionar «em relação a comportamento, antecedentes criminais e condições pessoais e económicas do arguido circunstâncias cujo apuramento, segundo alguma jurisprudência, a absolvição não demandava (cfr. n.º 2, do art. 128.º e n.º 1, a contrario, do art. 369.º, do CPP), mas que agora a condenação torna necessário indagar, na medida em que que se revestem de relevo para encontrar a respectiva medida concreta da pena», no entendimento de que a esta situação não é aplicável o acórdão de fixação de jurisprudência nº 4/2016 (Diário da República n.º 36/2016, Série I de 2016-02-22), segundo o qual «[e]m julgamento de recurso interposto de decisão absolutória da 1.ª instância, se a relação concluir pela condenação do arguido deve proceder à determinação da espécie e medida da pena, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 374.º, n.º 3, alínea b), 368.º, 369.º, 371.º, 379.º, n.º 1, alíneas a) e c), primeiro segmento, 424.º, n.º 2, e 425.º, n.º 4, todos do Código de Processo Penal.». Pelo que, revogando a decisão recorrida, determinou que os autos fossem «devolvidos à 1ª instância para que aí [fosse] proferida decisão condenatória de acordo com o decidido». 40. Idêntica questão foi recentemente apreciada no acórdão de 25.10.2023 (Carmo Silva Dias), Proc. n.º 1519/15.4JAPRT.P1.S1, em www.dgsi.pt, em termos que merecem concordância e que agora se seguem. Aí se considerou o seguinte: «A este propósito, defende-se no citado acórdão do STJ n.º 4/2016, de 21.01.2016, que “não está a Relação impedida de obter os elementos necessários à determinação da sanção por via da realização de uma audiência, nos termos do artigo 371.º, pois, como vimos, em recurso são aplicáveis as disposições sobre deliberação e votação em julgamento, tendo em atenção a natureza das questões objeto do recurso (n.º 2 do artigo 425.º), nelas se incluindo tanto a questão da culpabilidade como a questão da determinação da sanção e, nesta, contempla‑se a possibilidade de a deliberação e votação sobre a espécie e a medida da sanção ser precedida de produção de prova nos termos do artigo 371.º Numa outra perspetiva, defende‑se uma interpretação extensiva ou mesmo por analogia do artigo 430.º do Código de Processo Penal, “por exigência do direito a um processo equitativo, no caso em que depois de uma absolvição em 1.ª instância poderá seguir‑se uma condenação no tribunal de recurso”. Por isso, acaba-se por concluir no citado acórdão do STJ n.º 4/2016, que “a lei processual penal, impõe à Relação o dever de, resolvida a questão da culpabilidade, decidir a questão da determinação da sanção”, assim se evitando que assuma uma “decisão deliberadamente ‘incompleta’ e, por isso, ilegal, porque afetada de nulidade”. (…) não tendo a Relação aplicado, no acórdão recorrido, as respetivas penas individuais e única, como lhe competia e, portanto, não se pronunciando sobre a questão da determinação da sanção, cometeu uma nulidade por omissão de pronúncia prevista nos arts. 369.º, 374.º, n.º 3, al. b), 375.º, 379.º, n.º 1, al. a), al. c) e nº 3 e 425.º, n.º 4, do CPP. (…) É que, para além do mais, não se pode olvidar o valor e a eficácia da decisão contida no ac. do STJ n.º 4/2016, visto o disposto no art. 445.º do CPP e, mesmo que nos termos do seu n.º 3 a Relação viesse a fundamentar as divergências relativas à jurisprudência fixada nessa decisão, único caso em que poderia determinar o reenvio, este deveria limitar-se à averiguação dos factos pertinentes, mas deveria ser sempre a Relação a determinar as sanções individuais e única a aplicar à arguida, para não inviabilizar ou inutilizar o disposto no art. 400. º, n.º 1, al. e), do CPP, o mesmo é dizer, o direito ao recurso da arguida perante uma decisão inovadora como esta (em que passa de uma absolvição da 1ª instância para uma condenação na Relação).» 41. A aplicação da sanção pela Relação, em conformidade com o AFJ n.º 4/2016, cuja observância se impunha, sem prejuízo da fundamentação da divergência (artigo 445.º, n.º 3, do CPP), teria evitado a devolução dos autos à 1.ª instância, pelo acórdão de 07.04.2021, “para ser proferida decisão condenatória”, o que teve lugar através do acórdão de 18.03.2022, e do acórdão da relação de 12.10.2022, proferido em recurso dessa decisão. Ao não aplicar a sanção estaria, então, o acórdão de 07.04.2021 também ferido de nulidade, por não ter conhecido de questão (questão da pena) de que deveria ter conhecido (nulidade por omissão de pronúncia), nos termos do artigo 379.º, n.º 1, al. c), do CPP, aplicável ex vi artigo 425.º, n.º 4, do mesmo diploma. A nulidade daquele acórdão, absorvida pelo acórdão recorrido, quanto à questão da culpabilidade, em resultado da modificação da decisão em matéria de facto não admitida por lei, tornaria inválida a decisão de devolução à 1.ª instância para determinação da sanção («para ser proferida decisão condenatória») e as decisões subsequentes, nomeadamente o acórdão da 1.ª instância de 18.03.2022 e o acórdão da Relação de 12.10.2022. 42. A questão deve, porém, ser apreciada na perspetiva dos efeitos da nulidade da decisão recorrida (acórdão da Relação de 12.10.2022) e a partir da respetiva declaração de nulidade, tendo em conta o disposto no artigo 122.º, n.º 1, do CPP, segundo o qual as nulidades de um ato processual (a sentença, no caso, por motivo específico relativo ao seu conteúdo, com o regime definido no artigo 379.º do CPP), tornam inválido o ato em que se verificam, bem como atos os que «dele dependerem e aquelas puderem afetar», devendo aqui incluir-se as conexões de ordem lógica entre o ato nulo e os atos que puderem ser afetados. Dispondo o n.º 2 do mesmo artigo que a declaração de nulidade determina quais os atos que passam a considerar-se inválidos e ordena, sempre que necessário e possível, a sua repetição. Ora, sendo nulo o acórdão recorrido na parte em que conheceu da declaração de culpabilidade (artigo 368.º do CPP) – factos que considerou provados e respetiva qualificação jurídica, considerando que estes preenchem os tipos de crime de abuso sexual p. e p. pelos artigos 171.º e 177.º do Código Penal (supra, 5) – e não subsistindo qualquer facto que constitua crime, não há, não pode haver, lugar à aplicação de qualquer pena (artigo 369.º, n.º 1, do CP). Assim sendo, há que, nos termos do n.º 2 do artigo 122.º, determinar a invalidade do acórdão da 1.ª instância de 18.03.2022, que, na sequência do acórdão do Tribunal da Relação de 07.04.2021, aplicou ao arguido a pena de 5 anos de prisão suspensa na sua execução. E, nada restando para conhecer, nada há que decidir quanto ao suprimento e repetição de atos, devendo, em consequência, ser extraídas as conclusões que se impõem, no sentido da manutenção do decidido no acórdão da 1.ª instância de 01.07.2020. 43. A nulidade apontada prejudica o conhecimento do recurso do arguido, não subsistindo qualquer questão que deva ser suprida na sequência da declaração da nulidade. III. Decisão 43. Nestes termos, e com os fundamentos expostos, acorda-se na Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em declarar nulo o acórdão do Tribunal da Relação de 12 de outubro de 2022 e, consequentemente, o acórdão da 1.ª instância de 18 de março de 2022, mantendo-se o decidido no acórdão da 1.ª instância de 1 de julho de 2020. Sem custas. Supremo Tribunal de Justiça, 19 de dezembro de 2023. José Luís Lopes da Mota (Juiz Conselheiro Relator) Maria Teresa Féria de Almeida (Juíza Conselheira Adjunta) Sénio Manuel dos Reis Alves (Juiz Conselheiro Adjunto) |