Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 1ª SECÇÃO | ||
Relator: | GREGÓRIO SILVA JESUS | ||
Descritores: | IMPUGNAÇÃO DE PATERNIDADE PRAZO DE PROPOSITURA DA ACÇÃO CONSTITUCIONALIDADE | ||
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Data do Acordão: | 06/19/2012 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | REVISTA | ||
Decisão: | CONCEDIDA A REVISTA | ||
Área Temática: | DIREITO CIVIL - DIREITO DA FAMÍLIA/ FILIAÇÃO | ||
Legislação Nacional: | CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGO 1842.º, N.º 1. CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA (CRP): - ARTIGOS 18.º, N.º 2, 26.º, N.º 1, 36.º, N.º 1. | ||
Jurisprudência Nacional: | ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA: -DE 31/01/2007, PROCESSO N.º 06A4303, EM WWW.DGSI.PT; -DE 21-2-2008, PROCESSO N.º 07B4668, EM WWW.DGSI.PT; -DE 3/07/2008, PROCESSO N.º 07B3451 -DE 7/07/2009, PROCESSO N.º 1124/05.3TBLGS.S1; -DE 25/03/2010, PROCESSO N.º 144/07.8TBFVN.C1.S1. ACÓRDÃOS DO TRIBUNAL CONSTITUCIONAL: -DE 10/01/2006, N.º 23/06, D.R., Iª SÉRIE-A, DE 28-02/06; -DE 28/11/2007, NºS 589/2007; -DE 12/05/2010, N.º 179/2010; -DE 23/11/2010, N.º 446/2010; -DE 25/01/2011, Nº 39/2011; -DE 24/03/2011, N.º 164/2011, D.R. N.º 93, SÉRIE II, DE 2011/05/13. -DE 11/10/2011, Nº 449/11; -DE 20/12/2011, N.º 634/11. | ||
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Sumário : | O prazo do art. 1842.º, n.º 1, al. a), do CC, na medida em que é limitador da possibilidade de impugnação, a todo o tempo, pelo presumido progenitor, da sua paternidade, é inconstitucional. | ||
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Decisão Texto Integral: | Revista nº 297/08.8TBPVL.G1.S1[1] Acordam no Supremo Tribunal de Justiça
I – RELATÓRIO
AA, residente no Lugar ..., ..., Póvoa de Lanhoso, intentou acção de impugnação de paternidade contra BB, CC, residentes no Lugar ..., DD, EE, residentes no Lugar da ..., e FF, residente no Lugar ..., todos da freguesia de ..., pedindo que sejam os réus CC, DD, EE e FF considerados como sendo filhos apenas da ré BB, rectificando-se os respectivos assentos de nascimento em conformidade. Alega para tanto, e em síntese, haver contraído casamento católico com a ré BB em 9/01/57, já dissolvido por divórcio decretado em 14/01/99, e aqueles réus estarem registados como filhos do autor apenas por força da presunção legal decorrente de haverem nascido na constância do casamento. O autor esteve emigrado em França entre os anos de 1966 e 1985, vinha a Portugal pelas festas natalícias, desde os nascimentos daqueles viu-se confrontado com dúvidas sobre a sua paternidade, e só agora tem como certo que a ré BB não lhe era fiel pois mantinha trato sexual com outros homens e que aqueles réus não são seus filhos, o que desde sempre vem correndo na sua freguesia. Só a ré BB contestou, excepcionando a caducidade do direito de acção do autor, invocando o abuso de direito, e impugnando os factos alegados tendentes a afastar a paternidade do autor, alegando constituir a acção uma infeliz manobra para vedar o acesso daqueles filhos à herança a que têm direito. Na réplica, o autor sustentou a improcedência da invocada excepção de caducidade, aduzindo a inconstitucionalidade do prazo estabelecido no art. 1842º, nº 1, al. a) do Código Civil, na medida em que é limitador da possibilidade de impugnação, a todo o tempo, pelo progenitor e, consequentemente, violador dos artigos 18º, nº 2, 25º e 26º, nº1 da CRP. Realizada audiência preliminar, foi proferido despacho saneador-sentença que julgou procedente aquela excepção peremptória e, em consequência, declarou extinto, por caducidade, o direito do autor., absolvendo os réus do pedido. Recorreu o autor, mas sem êxito, uma vez que a Relação no seu Acórdão de fls. 134 a 141, após suprir a nulidade em que se mostrava incursa a decisão recorrida por total omissão de especificação dos fundamentos de facto, negou provimento à apelação e confirmou, por unanimidade, a sentença ali recorrida. Continuando inconformado, o autor trouxe a este Supremo Tribunal recurso de revista excepcional. Apresentados os autos aos Juízes que constituem o Colectivo a que se refere o n.º 3 do artigo 721-A do Código de Processo Civil, foi decidido não admitir a revista excepcional por inexistência da dupla conforme, uma vez que tendo a Relação declarado nula a sentença da 1ª instância não há “dupla”, tudo se passando como sendo a decisão da Relação a primeira, ordenando-se a remessa dos autos à distribuição, na sequência do que veio a ser o recurso recebido como revista normal.
Nas alegações que apresentou, o autor tira as seguintes conclusões: 1ª - O artigo 1842°, n° 1, alínea a) do C. Civil, quer na redacção anterior, quer na redacção posterior àquela que lhe foi dada pela Lei n° 14/09, de 1 de Abril, é inconstitucional. 2ª - Tal juízo de inconstitucionalidade, advém do facto de o prazo aí previsto ser limitador da possibilidade de impugnação a todo o tempo, pelo presumido progenitor, da sua paternidade, violando direitos fundamentais da pessoa, como "o direito fundamental à identidade pessoal", o "direito fundamental à integridade pessoal" e o "direito ao desenvolvimento da personalidade", previstos nos artigos 18°, 2, 25° e 26°, 1 da C.R.P.. 3ª - Sendo, como é, inconstitucional aquele preceito legal - na medida em que estabelece o prazo nele previsto -, não se verifica a excepção de caducidade, como foi decidido. 4ª - Deve, assim, revogar-se a douta decisão em recurso, ordenando - se o prosseguimento dos demais termos do processo até final. 5ª - A decisão impugnada, violou, ou fez inadequada interpretação, entre outras disposições legais, dos artigos 1842°, 1, a) do C. Civil; 18°,2, 25° e 26°, 1 , da CRP..
Não foram oferecidas contra-alegações. Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir. ª As conclusões do recorrente – balizas delimitadoras do objecto do recurso (arts. 684º, nº 3 e 685º-A, nº 1 do Código de Processo Civil – doravante CPC) – consubstanciam uma única questão: saber se o artigo 1842°, n° 1, alínea a) do Código Civil, quer na redacção anterior, quer na redacção posterior àquela que lhe foi dada pela Lei n° 14/09, de 1/04, é inconstitucional.
ª I I – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
Vem exposta a seguinte matéria de facto: 1º- O autor, AA, e a ré BB, contraíram, reciprocamente, casamento católico no dia 9 de Janeiro de 1957; 2º- Este casamento foi dissolvido por divórcio decretado por sentença proferida em 14 de Janeiro de 1999, já transitada em julgado. 3º- Foram registados como filhos do autor e da ré BB, os réus: - CC, nascida em …/…./19…; - DD, nascido em …/…/19…; - EE, nascido em …/…/19…; - FF, nascido em …/…/19…. 4º- O autor alegou, para além do mais, na petição inicial - que “ a R. CC não é filha do autor, facto que em surdina corria na aldeia, mas que ele nunca quis acreditar” (artigo 11º); - que, desde praticamente o nascimento dos demais réus “se viu confrontado com a dúvida sobre a paternidade, visto que o período da concepção não coincidia com as suas vindas a Portugal” ( artigo 14); - “ só agora o autor, com 79 anos de idade, conseguiu racionalizar e assumir aquilo que na sua freguesia vem correndo desde sempre sobre a sua não paternidade destes filhos” (artigo 16º); - “ altura houve, quando do seu divórcio, que o A. relativamente a alguns dos réus equacionou impugnar a paternidade, no que foi informado, então, da não possibilidade decorrente de o prazo poder ter decorrido (artigo 20º) - e que “ o Supremo Tribunal de Justiça, em recentes acórdãos, julgou inconstitucional o prazo do artigo 1842º, nº1, al. a) do Código Civil, na medida em que limita a possibilidade de impugnação, a todo o tempo, pelo presumido progenitor, da sua paternidade”, “daí a tempestividade da presente acção” ( artigos 24º e 25º). 5º- A presente acção foi proposta em 30 de Maio de 2008. ª DE DIREITO
Se o artigo 1842°, n° 1, alínea a) do Código Civil, quer na redacção anterior, quer na redacção posterior àquela que lhe foi dada pela Lei n° 14/09, de 1/04, é inconstitucional
À data da instauração da presente acção o prazo estabelecido no citado artigo 1842°, n° 1, al. a) do Código Civil (CC por diante) para a acção de impugnação de paternidade poder ser intentada pelo marido, era de dois anos desde que teve conhecimento de circunstâncias de que possa concluir-se a sua não paternidade, e o legislador, pela Lei nº 14/09, de 1/04, reformulou a redacção da mesma alínea alterando o prazo de caducidade para três anos. A questão da inconstitucionalidade da norma de direito transitório constante do artigo 3º da Lei nº 14/09, de 1 de Abril, por violação do nº 3 do artigo 18º da Constituição, mostra-se ultrapassada e definitivamente resolvida nos autos com o reconhecimento no acórdão recorrido dessa mesma inconstitucionalidade, aderindo à fundamentação e corroborando o juízo de inconstitucionalidade formulado pelo Tribunal Constitucional, no seu Acórdão nº 164/2011[2], de 24/03/11, sem prejuízo de se entender que para a solução do presente litígio a mesma se apresenta totalmente irrelevante, que o prazo de caducidade seja de dois anos ou de três anos, pois que a questão nuclear que verdadeiramente se coloca é a de saber se a norma do art. 1842°, n° 1, al. a) do CC, na medida em que limita a possibilidade de impugnação a todo o tempo pelo presumido progenitor, da sua paternidade, é inconstitucional. Não é nova tal questão e não tem colhido unanimidade de respostas na jurisprudência, dissentimento particularmente relevante no referente às orientações perfilhadas neste Supremo Tribunal, onde tem imperado a harmonia, e no Tribunal Constitucional. O Supremo Tribunal de Justiça teve oportunidade de se pronunciar por diversas vezes sobre esta questão, sempre considerando inconstitucional a norma em causa por limitar a possibilidade do progenitor e marido da mãe propor, a todo o tempo, acção de impugnação da paternidade, desde que teve conhecimento de circunstâncias de que possa concluir-se que não era pai biológico, por violação do direito à tutela judicial efectiva e bem assim do preceituado pelos arts. 26.º, n.º 1, 36.º, n.º 1, e 18.º, n.º 2, da CRP. Por sua vez, o Tribunal Constitucional, particularmente nos seus acórdãos mais recentes, vem decidindo no sentido da não inconstitucionalidade. Na verdade, desde o Acórdão deste Supremo Tribunal de 31/01/07, na Revista nº 06A4303[3], se diz que o respeito pela verdade biológica sugere a imprescritibilidade não só do direito de investigar como do de impugnar, e que a previsão de um prazo com os fins típicos e abstractos da defesa e segurança tornou-se pouco convincente nestas matérias. É o que decorre do seguinte passo da fundamentação, sempre recordado pela jurisprudência ulterior sobre o tema: “Com efeito, o “direito fundamental à identidade pessoal” e o “direito fundamental à integridade pessoal” ganhando uma dimensão mais nítida, como, ainda, “o direito ao desenvolvimento da personalidade”, leva, em si, a que não se coloquem desproporcionadas restrições aos direitos fundamentais consubstanciado na aludida identidade pessoal e ao desenvolvimento da personalidade, pelo que as razões que estiveram na origem da declaração da inconstitucionalidade do mencionado art. 1817º nº 1 do C.C. estão, outrossim para a disposição contida no art. 1842º nº 1 al. a) do mesmo Código. Na verdade, não pode atribuir-se o relevo antigo á ideia de insegurança prolongada, porque este prejuízo tem de ser confrontado com o mérito do interesse e do direito de impugnar a todo o tempo, ele próprio tributário da tutela dos direitos fundamentais à identidade e ao desenvolvimento da personalidade.”. No acórdão recorrido, todavia, concluiu-se pela não inconstitucionalidade, indo fundamentalmente buscar arrimo nas recentes decisões do Tribunal Constitucional, particularmente nos seus Acórdãos nºs 589/2007 de 28/11/2007, 179/2010 de 12/05/10, 446/2010 de 23/11/10 e nº 39/2011, de 25/01/2011[4]. Os contributos argumentativos de um e doutro lado neste debate aparentam estar sedimentados, razão pela qual passaremos a acompanhar de muito perto, com a devida vénia, o teor do Acórdão desta Secção de 25/03/10, na Revista nº 144/07.8TBFVN.C1.S1, com relato do Cons. Hélder Roque, que aborda a temática de forma exaustiva e proficiente, o que nos dispensa de aqui tecer outras lucubrações, porventura de contributo irrelevante, e nos põe a coberto do risco de nos tornarmos fastidiosos. Assim, no âmbito da acção de investigação de paternidade, foi declarada pelo Tribunal Constitucional no Acórdão nº 23/06, de 10/01/06, publicado no DR, Iª série-A, de 28/02/06, a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma do artigo 1817º, nº 1, do CC, que prevê a extinção, por caducidade, do direito de investigar a paternidade, um prazo de dois anos a partir da maioridade do investigante, em conformidade com o disposto pelo artigo 26º, nº 1, reconhecendo que o direito do filho ao apuramento da paternidade biológica é uma dimensão do “direito fundamental à identidade pessoal”, na vertente de se saber de onde se vem, ou de quem se vem, a que se reportam os artigos 25º, nº 1 e 26º, nº 1, da Constituição da República, que não seria, devidamente, acautelado se a acção que o concretiza estivesse sujeita ao dito prazo de caducidade. Coloca-se, então, a questão de saber se esta doutrina é aplicável, com base no princípio ou argumento do paralelismo ou da identidade de razão, por interpretação extensiva, às acções de impugnação de paternidade, que o artigo 1842º, nº 1, als. a), b) e c), do CC, sujeita a prazos distintos de caducidade, consoante sejam propostas pelo marido, pela mãe, ou pelo filho, respectivamente. A este respeito, no citado Acórdão desta Secção de 25/03/10, afirmou-se o seguinte[5]: “A propósito da hipótese concreta de a acção de impugnação de paternidade ser movida pelo filho maior ou emancipado, foi decidido, neste particular, pelo Tribunal Constitucional, que “as razões que estiveram na origem da declaração da inconstitucionalidade do mencionado artigo 1817º, nº 1, do Código Civil estão outrossim para a disposição contida no artigo 1842º nº 1, alínea c) do mesmo Código, não se antevendo que o mencionado prazo de caducidade se justifique, quer dizer, que seja necessário e proporcional face aos valores que estão em causa, sempre que uma questão de filiação é colocada e que se afaste a possibilidade do direito ser conforme à realidade em homenagem a essas restrições”. Nesta decisão, o direito constitucional que se procurou salvaguardar foi, por isso, também, o direito à identidade, mas sem distinguir entre as situações de investigação e as de impugnação, ou seja, como aí se refere, «sempre que uma questão de filiação é colocada»” [6], sendo certo, outrossim, que a limitação temporal não encontra grande apoio na natureza, predominantemente, moral e pessoal, do estado civil, com larga repercussão de interesse geral. Relativamente à hipótese paralela da acção de impugnação de paternidade, intentada pelo marido da mãe, decidiu, por seu turno, o Tribunal Constitucional, que “há inevitavelmente uma diferença de grau entre a investigação da paternidade, em que patentemente está em causa o direito à identidade pessoal do investigante (e relativamente ao qual a imposição de um limite temporal pode implicar a violação do direito ao conhecimento da identidade dos progenitores), e a impugnação da paternidade, em que releva a definição do estatuto jurídico do investigante em relação a um vínculo de filiação que lhe é atribuído por presunção legal”, acrescentando-se que “...não estará aqui em causa um direito à identidade pessoal, entendida no sentido há pouco explanado do direito ao conhecimento da identidade dos progenitores (que tem apenas relevo para a acção de investigação da paternidade), mas o direito ao desenvolvimento da personalidade na dimensão de um direito de auto-conformação da identidade que não poderá deixar de ser reconhecido em relação ao presumido pai...”. Seria, pois, como que se o direito à identidade do filho, apesar de questionado na acção, não fosse o seu objecto directo ou imediato, porquanto o processo destinar-se-ia, sobretudo, a fazer prevalecer o direito à auto-conformação da identidade do pai. Por outro lado, diz-se, igualmente, nesta decisão, que se justificaria uma restrição à verdade biológica, que deixaria de assumir um «valor absoluto», em detrimento de outros princípios, tais como o da protecção da família conjugal, e ainda que não esteja em causa o direito à identidade do filho, justificar-se-iam os limites a esse direito, na acção de impugnação, com a prevalência de determinados outros valores[7].” Isto é, a conclusão a retirar deste último acórdão em análise é que na investigação de paternidade está em causa o direito à identidade pessoal do investigante, relativamente ao qual a imposição de um limite temporal pode implicar a violação do direito ao conhecimento da identidade dos progenitores. Porém, uma vez estabelecida uma paternidade por presunção legal, já não será tão relevante saber da sua correspondência com a realidade biológica. E isto em nome de valores como a segurança das relações familiares. Escreveu-se ainda nesse acórdão de 25/03/10: “De todo o modo, importa indagar se as razões aduzidas para a declaração de inconstitucionalidade do prazo de caducidade, reportada, unicamente, à modalidade da acção de impugnação de paternidade proposta pelo filho maior ou emancipado, devem valer, igualmente, para o caso de o autor da impugnação da paternidade ser o pai. É que, também, agora, para além do autor defender um direito próprio à verdade biológica, em matéria de paternidade, e pretender esclarecer a sua posição social e jurídica, quer em relação ao filho presumido, quer em relação ao agregado familiar, quer ainda ao meio social em que se insere, está, igualmente, a garantir o direito à identidade do presumido filho, em especial, tratando-se de menor, apesar deste assumir a posição processual de réu, sendo, portanto, uma questão de filiação. (...) Na acção de impugnação de paternidade, é, sempre, o direito à identidade da filiação, o direito a ter um pai, que está em causa, embora repartido pelo direito de o pai presumido ilidir a presunção de paternidade que sobre ele incide, enquanto duas faces opostas de uma mesma realidade. E, nem se diga, em sentido contrário, em nome da defesa de valores como a da segurança das relações familiares que, uma vez estabelecida uma paternidade, por presunção legal, já não é assim tão relevante saber da sua correspondência com a realidade biológica, como se à tranquilidade da boa consciência apenas interessasse a paternidade, independentemente da fonte de onde a mesma provenha. Nem, por outro lado, se afirme, como argumento adverso, que a caducidade da acção de impugnação proposta pelo pai não impede que o filho venha, mais tarde, a instaurar a sua própria acção de impugnação, agora sem qualquer prazo de caducidade a limitá-lo. É que este não pode constituir um argumento decisivo, devendo antes funcionar em favor da tese da imprescritibilidade, porquanto se o filho pode impugnar a paternidade, sem limitação de prazo, também, a impugnação do presumido progenitor pode sempre ser intentada, sob pena de inaceitável discriminação de um dos elos da relação jurídico-filial. Efectivamente, as razões de segurança jurídica, fundadas na paz social que advém dum quadro jurídico-familar estabilizado, mesmo não correspondendo à verdade biológica, deixam de fazer sentido perante o devir social. Numa altura em que a sorte da relação jurídica de paternidade se joga na certeza da prova científica, e em que os testes de ADN são um instrumento privilegiado para alcançar esse fim, fora do sortilégio da prova testemunhal, constituiria fonte de incompreensão e de surpresa social que aquela prova ficasse prisioneira da prova por presunção, alcançada num contexto em que a realidade nada tem a ver com a verdade sociológica que está subjacente à presunção de paternidade que decorre do estipulado pelo artigo 1826º, nº 1, do CC. Veja-se a situação inquietante em que o marido, sujeito a um acto de infidelidade da esposa, gerador de um filho, abdica de impugnar a paternidade deste, preferindo a defesa do casamento e da estabilidade familiar futura, mas é surpreendido por um novo adultério, anos depois, que o determina, então, a impugnar aquela paternidade. Trata-se de uma nova ética, mas que, no fundo, se reconduz à ética primordial do primado da família ou da comunidade natural, que sobreleva o escândalo de uma situação familiar com, porventura, dezenas de anos, poder vir a ser abalada, por uma acção de impugnação tardia, quando os interessados na destruição da paternidade presumida entendam não dever continuar a manter a discrepância entre a paternidade presumida e a realidade biológica, devendo, então, “a perempção ceder perante alterações excepcionais e graves da vida familiar que tornem injusta e inútil a subsistência do vínculo” [8]. É que a permanência de um vínculo que o impugnante não quer pode trazer mais inconvenientes do que vantagens para o filho, em virtude da presença de um pai contrafeito e da impossibilidade de investigar a paternidade verdadeira[9] (12), prejudicando o marido a quem a mulher foi infiel e o próprio filho, que fica com um pai que impugnou a paternidade[10]. Com efeito, os desenvolvimentos da genética vêm acentuado a importância dos vínculos biológicos e do seu determinismo, tendo o “direito fundamental à identidade pessoal” e o “direito fundamental à integridade pessoal” adquirido uma dimensão mais nítida, associados ao “direito ao desenvolvimento da personalidade”, introduzido pelo artigo 26º, nº 1, da CRP, oriundo da revisão constitucional de 1997, consubstanciando-se num direito de conformação da própria vida, num direito de liberdade geral de acção, cujas restrições têm de ser, constitucionalmente, justificadas, necessárias e proporcionais[11]. É, por isso, que, valendo o direito ao livre desenvolvimento da personalidade[12], quer para o pretenso filho, como para o suposto progenitor, aquele princípio constitucional significa que para o primeiro o exercício do direito de investigar é indispensável para determinar as suas origens, a sua família e a sua “localização” no sistema de parentesco[13], enquanto que para o pai se traduz no direito de ilidir a presunção de paternidade atentatória da verdade biológica que se impunha afastar. De facto, os tempos correm a favor da imprescritibilidade das acções de filiação, por imperativo da verdade biológica, não tendo sentido, hoje, acentuar o argumento do enfraquecimento das provas, nem da insegurança prolongada, porque este prejuízo tem de ser confrontado com o mérito do interesse e do direito de impugnar a paternidade, a todo o tempo, ele próprio tributário da tutela dos direitos fundamentais à identidade e ao desenvolvimento da personalidade[14]. Efectivamente, os prazos de caducidade nas acções de estabelecimento de filiação estão em crise ou tornaram-se menos sedutores, sobretudo quando a caducidade não visa proteger uma realidade com consistência familiar efectiva, um vínculo de filiação “social” que desempenhe as suas funções, um vínculo que se exprima por «posse de estado», apesar de lhe faltar o fundamento biológico, tornando-se a previsão de um prazo com os fins típicos e abstractos da defesa e segurança, pouco convincente nestas matérias [15]. Deste modo, o respeito puro e simples pela verdade biológica sugere, claramente, a imprescritibilidade não só do direito de investigar como do direito de impugnar. Enquanto a ordem jurídica nacional continuar a ser de matriz, essencialmente, biologista, é espectável que o direito de pesquisar a verdade não caduque, devendo o Direito da Filiação adequar-se à verdade biológica, por, apesar de tudo, ser ainda a “mais verdadeira”[16], ou, então, dito de outro modo, a menos imprevisível, que busca a coincidência entre o Direito e as realidades do sangue, em vez de procurar garantir o estatuto de filho “legítimo” e um certo entendimento da “paz das famílias”. Esta é a solução que está de acordo com a tendência moderna e dominante, embora não pacífica, em direito comparado, de sobrepor às exigências da segurança jurídica, da eficácia das provas e da estabilidade das situações familiares adquiridas aquele interesse público da procura da verdade biológica, quando, não obstante a subsistência jurídica da família conjugal e do vínculo da paternidade, o estado civil do filho não tem correspondência social, familiar e afectiva[17]. Assim sendo, as razões que estiveram na origem da declaração da inconstitucionalidade do artigo 1817º, nº 1, estão, outrossim, presentes na disposição contida no artigo 1842º, nº 1, a), ambos do CC. Ora, não se antevê que o mencionado prazo de caducidade se justifique, seja necessário e proporcional, face aos valores que estão em causa, sempre que uma questão de filiação é colocada, e que se afaste a possibilidade do direito ser conforme à realidade, em homenagem a essas restrições. O prazo para o exercício do direito de impugnação traduz mais uma hora de reflexão para a opção a tomar pelo interessado do que o tempo de preparação da prova para lograr em juízo o triunfo da verdade[18]. A valorização dos direitos fundamentais da pessoa, tais como o de saber quem é e de onde vem, na vertente da ascendência genética, e a inerente força redutora da verdade biológica, prevalecem sobre a ideia da existência de prazos de caducidade nas acções de estabelecimento da filiação. (...) O único interesse que poderia invocar-se em contraponto ao direito fundamental do marido da mãe em determinar, juridicamente, a verdadeira paternidade biológica da menor CC, seria o da «harmonia e estabilidade da vida e da família conjugal», se o mesmo, porém, devesse prevalecer, face ao princípio da proporcionalidade, pois que tais limitações específicas ao direito de agir contra os supostos filhos de progenitores casados, ao tempo do nascimento ou apenas no momento do seu reconhecimento, não se traduzem em efeitos discriminatórios, constitucionalmente, vedados. Efectivamente, as desvantagens que advêm para a menor da perda da possibilidade de vir a ter a paternidade fundada em presunção legal são menores e, claramente, proporcionadas, perante os benefícios resultantes para o autor de uma paternidade assente na correspondência com a verdade biológica, estabelecida e, devidamente, registada, em relação à menor, mas que depende, impreterivelmente, do afastamento daquela presunção legal que, uma vez removida, permitirá a fixação de outra, desta vez, biológica, e não já por presunção. Caso procedesse a caducidade do direito de impugnação, por parte do marido da mãe, cercear-se-ia, em definitivo, o direito fundamental do autor à identidade pessoal e, correlativamente, do filho a ver reconhecida a paternidade biológica. Aliás, face à pluralidade das pessoas a quem a lei hoje confere legitimidade para impugnar a paternidade presumida e à diversidade de prazos dos vários titulares da legitimidade activa para o efeito, isto é, três anos contados desde que teve conhecimento de circunstâncias de que possa concluir-se a sua não paternidade, para o marido da mãe, dentro dos três anos posteriores ao nascimento, para a mãe, e até 10 anos depois de haver atingido a maioridade ou de ter sido emancipado, ou, posteriormente, dentro de três anos a contar da data em que teve conhecimento de circunstâncias de que possa concluir-se não ser filho do marido da mãe, para o filho, por força do disposto pelo artigo 1842º, nº 1, a), b) e c), do CC, a opção pela paternidade presuntiva não poderá ter-se como consolidada antes de terem caducado todos os direitos de impugnação atribuídos aos seus diferentes titulares. E, a aceitar-se, tão-só, a inconstitucionalidade do prazo de caducidade da acção de impugnação de paternidade, por parte do filho, então, jamais se perfeccionaria a opção pela paternidade presuntiva. Escoam-se, assim, com o devido respeito, os argumentos que ainda pretendem sustentar a constitucionalidade do prazo de impugnação da paternidade presumida nas acções intentadas pelo marido da mãe. Conclui-se, pois, que a norma prevista no artigo 1842º, n.º 1, a), do CC, na dimensão interpretativa explicitada, é inconstitucional, por violação do direito à tutela judicial efectiva, na parte em que prevê o prazo de três anos para o marido da mãe intentar a acção de impugnação da paternidade, desde que teve conhecimento de circunstâncias de que possa concluir-se que não era o pai biológico, e bem assim como do estipulado pelos artigos 26º, nº 1, 36º, nº 1, e 18º, nº 2, da CRP. Logo, o prazo do artigo 1842º, nº 1, a), do CC, na medida em que é limitador da possibilidade de o presumido progenitor impugnar, a todo o tempo, a sua paternidade, constituindo uma salvaguarda desproporcional dos valores de certeza e segurança jurídica que visam evitar a manutenção de uma situação de pendência ou dúvida acerca da filiação, por períodos, excessivamente, longos, face à defesa do direito constitucional à identidade, consagrado pelo artigo 26º, nº 1, da CRP, é inconstitucional, razão pela qual não ocorre a caducidade da acção[19]. “. É a esta orientação jurisprudencial a que inteiramente se adere, perfilhada igualmente nos Acórdãos deste Supremo Tribunal de 7/07/09, Proc. nº 1124/05.3TBLGS.S1, 31/01/07 e 21/02/08 já citados, e que aqui aplicável conduz à revogação do decidido no acórdão recorrido. E acrescentamos, em paralelo à impressiva afirmação feita no Acórdão do STJ, de 3/07/08, Proc. nº 07B3451, que igualmente a procura da identidade pessoal passa não apenas pelo reconhecimento do pai que é, mas também pela eliminação de uma paternidade que não é. Julgamos, assim, que o respeito puro e simples pela verdade biológica sugere claramente a imprescritibilidade não só do direito de investigar como do de impugnar. O prazo previsto no art. 1842º, nº 1, alínea a), do CC, mesmo na actual redacção, na medida em que é limitador da possibilidade de impugnação, a todo o tempo, pelo presumido progenitor, da sua paternidade, é inconstitucional. Assim, não se verifica a caducidade da acção. Pelas razões expostas, deve o recurso ser julgado procedente. ª Resta sumariar em observância do nº 7 do art. 713º do CPC: O prazo do art. 1842º, nº 1, al. a), do CC, na medida em que é limitador da possibilidade de impugnação, a todo o tempo, pelo presumido progenitor, da sua paternidade, é inconstitucional. ª III -DECISÃO Termos em que se julga procedente a revista, revogando-se o acórdão recorrido, devendo os autos prosseguir a sua tramitação, em sede de 1ª instância, com a elaboração dos factos assentes e a organização da base instrutória. Custas nos recursos a cargo dos réus.
Lisboa, 19 de Junho de 2012
Gregório Silva Jesus (Relator) Martins de Sousa Gabriel Catarino _________________ |