Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JSTJ000 | ||
Relator: | MAIA COSTA | ||
Descritores: | ARMA SERINGA ROUBO ROUBO AGRAVADO | ||
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Nº do Documento: | SJ20070118043515 | ||
Data do Acordão: | 01/18/2007 | ||
Votação: | MAIORIA COM * DEC VOT E * VOT VENC | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | NEGADO PROVIMENTO | ||
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Sumário : | I - De acordo com a definição legal do art. 4.° do DL 48/95, de 15-03, arma é “qualquer instrumento, ainda que de aplicação definida, que seja utilizado como meio de agressão ou que possa ser utilizado para tal fim”. II - A amplitude da letra do conceito impõe uma interpretação se não restritiva, pelo menos declarativa, sob pena de todo e qualquer objecto se poder transformar em arma. III - A caracterização de um objecto como arma terá, pois, a ver com as suas características e com a utilização ou afectação normal dela, com a idoneidade dessa utilização ou afectação normal como meio de agressão. IV - O uso desviado das propriedades do objecto não pode servir como critério para o definir como arma. Assim, uma bengala, podendo embora servir para uma agressão, não é seguramente uma arma. V - A lei, no citado art. 4.° do DL 48/95 admite, porém, uma extensão do conceito de arma a outro tipo de objectos, por meio da expressão “ainda que de aplicação definida”. VI - Essa expressão parece contemplar objectos cuja “aplicação definida” não seja a de meio de agressão, mas que, subtraídos ao contexto normal da sua utilização, podem ser integrados no conceito de arma. Será esse o caso das facas de cozinha, por exemplo. Nestes casos, a perigosidade dos objectos é evidente e só a sua integração no contexto espacial da sua utilidade é que lhes retira as características de arma. VII - Assim, arma não é (talvez seja preferível definir o conceito negativamente, por exclusão) o objecto que, podendo excepcionalmente ser aproveitado para praticar uma agressão, não foi fabricado com essa finalidade nem é essa a sua utilidade normal. VIII - Uma seringa é um instrumento com aplicação definida, e, em certos contextos, pode servir para ameaçar e coagir as pessoas, integrando assim a sua utilização o elemento típico do crime de roubo descrito no art. 210.°, n.º 1, do CP como “ameaça com perigo iminente para a vida ou integridade física”. IX - Uma seringa é um instrumento credível de ameaça. X - Contudo, só no caso de estar infectada, sendo então instrumento de transmissão de uma doença, é que a seringa pode ser considerada uma arma, qualificando o roubo nos termos do art. 210.º, n.º 2, al. b), do CP. XI - «Se para a relevância da ameaça, é indiferente que a seringa esteja ou não infectada (suposto, sempre, é evidente, que a vítima do roubo não conhece, nem tinha que conhecer o exacto estado da seringa), o mesmo já não acontece quando está em causa a qualificação de tal instrumento (de aplicação definida), como “arma”. Com efeito, agora, o que é decisivo não é que a seringa, na sua aparência, seja adequada a provocar um temor que anule a capacidade de reacção da vítima, mas, sim, que ela realmente seja ou possa ser utilizada como meio eficaz de agressão ou, por outras palavras, que sirva ou possa servir para ofender fisicamente uma pessoa, de forma significativa ou não insignificante. Ora, afigurase-nos tão claro que uma seringa infectada é uma arma (uma vez que a transmissão de uma doença a uma pessoa representa, sempre, para esta, uma ofensa física importante) como que o não é uma não infectada ou inócua do ponto de vista sanitário (uma vez que a simples picada de uma agulha não pode razoavelmente considerar-se uma lesão física significativa)» - cf. Ac. do STJ de 20-05-1998, Proc. n.º 370/98. | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam no Supremo Tribunal de Justiça: I. RELATÓRIO AA, com os sinais dos autos, foi condenado na 2ª Vara Criminal de Lisboa, pela prática de sete crimes de roubo, previstos e punidos pelo art. 210º, nº 1 do CP, na pena de 1 ano e 8 meses de prisão por cada um e, em cúmulo jurídico, na pena única de 3 anos e 6 meses de prisão. Desta decisão recorreu o MP para este STJ, alegando o seguinte: Ao interpor o presente recurso, cuja matéria de facto se não põe em crise, fazemo-lo por discordar de dois aspectos com relevância para a decisão da causa. O primeiro prende-se com o facto de o Tribunal a quo ter feito, em nosso entender, uma errada subsunção dos factos ao Direito, qual seja a de considerar que a seringa utilizada pelo arguido aquando da prática de um dos crimes de roubo não constitui circunstância agravante (arma) desse mesmo crime. O segundo prende-se, quanto a nós, com o facto de a medida da pena concreta encontrada, ou seja três anos e seis meses de prisão, não realizar de forma adequada as finalidades da punição, designadamente ao nível da prevenção geral e especial, entendendo nós que a mesma deveria cifrar-se a nível superior. Efectivamente, o tribunal deu como provado que, para praticar o roubo de 29/3/06 («Ourivesaria Malaquite»), o arguido exibiu perante a empregada da loja «uma seringa usada, embrulhada em prata, que deixava ver a ponta de uma agulha, apontou-a na direcção da funcionária», exibição essa que persistiu já depois de se ter apoderado do bem subtraído (números 39 e 40 da matéria de facto). E deu também como provado que, ao usar a dita seringa, o fez «com o propósito de intimidar e constranger as suas vítimas, impedindo-a de reagir, o que efectivamente conseguiu» (n° 44). Ora, «para efeitos do disposto no Código Penal, considera-se arma qualquer instrumento, ainda que de aplicação definida, que seja utilizado como meio de agressão ou que possa ser utilizado para tal fim», como prescreve o art. 4º do Decreto-Lei n° 48/95, de 15 de Março. E o crime de roubo será qualificado quando o agente trouxer arma no momento do crime, nos termos das disposições conjugadas dos arts. 210º, nº 2, al. b) e 204° n° 2 al. f) do Código Penal. A esse crime corresponde a moldura penal de 3 a 15 anos de prisão. A razão de ser dessa agravante está, a nosso ver, na maior perigosidade objectiva que a posse de uma arma representa em circunstâncias como as do facto em questão. Perigosidade essa que se traduz na fragilização acrescida de bens jurídicos pessoais da vítima, em especial a integridade tísica e a própria vida. É claro que uma seringa (completa: êmbolo e agulha, como neste caso), à semelhança de tantos outros objectos da vida corrente (v. g., uma faca de cozinha ou um machado), não é em si mesmo uma arma. Mas pode ser utilizada como tal (como o foi). E, sendo-o, deparamos com um instrumento perfurante (como um pequeno estilete) susceptível de provocar lesões físicas graves, susceptíveis até de conduzir à morte. Pense-se, desde logo, na perfuração do globo ocular, ou, bem pior, na lesão da bexiga na sequência de um golpe dado no ventre, idóneo a provocar uma peritonite fulminante. Neste estrito plano, afigura-se-nos de todo indiferente para o funcionamento da agravante que a seringa em questão fosse ou não usada. O facto de o ser, e de tal ser perceptível pela vítima, poderá (e deverá) ser tido em conta na medida da pena concreta, dentro do quadro prévio da moldura penal qualificada. E na mesma sede deverá ser considerada a representação social da ameaça com seringa enquanto processo executivo de um crime (predatório ou não). O cidadão comum tende a ver nela um factor de contaminação de doenças graves (SIDA, hepatite C, etc.), sobretudo quando o seu portador é manifestamente um toxicodependente (era, aliás, o caso). Em suma: porque o arguido se muniu de uma seringa que utilizou em disposição de ofender fisicamente a vítima, terá o crime de roubo de ser qualificado pela especial perigosidade do meio, ou seja, pela arma. Também a medida da pena única aplicada é merecedora de reparo. Passa-se aqui em claro o facto de todos os crimes terem suscitado igual pena, sem consideração do diverso grau de lesão dos bens jurídicos tutelados nem ponderação do poderoso meio coactivo utilizado pelo arguido em seis deles (uma pistola, por sinal inoperante, o que é indiferente para o coagido, que de tal é suposto não saber). O que mais releva, a nosso ver, é que se ficou aquém das necessidades de prevenção (geral e especial) que este conjunto de comportamentos criminais requer. O arguido, que já não era propriamente um jovem (tinha 35 anos), valeu-se sempre da superioridade que lhe conferia o meio coactivo utilizado (uma aparência de arma de fogo, em seis casos, a seringa, no sétimo), para, em circunstâncias banais e absolutamente pacíficas da vida quotidiana (nas quais o cidadão comum se deve sentir plenamente tranquilo), assaltar pessoas indefesas (normalmente isoladas, normalmente mulheres) para subtrair o que melhor lhe apetecia. E fê-lo para manter um padrão de abuso de drogas duras que já lhe acarretara a perda do emprego e dos meios de subsistência — o que de modo algum se pode considerar um propósito com o menor valor de socialidade nem de relevância humanitária. (Curioso é que o dinheiro que então lhe faltava tenha aparecido tão depressa já depois de preso e à boca do julgamento para indemnizar algumas das vitimas). Nem a sociedade se compadece com uma pena tão singela como aquela que foi aplicada, nem o arguido dá garantias de que não voltará a reincidir num quadro motivacional semelhante (note-se que negou exaustivamente e contra todas as evidências o uso da seringa, desculpou-se ligeiramente com a toxicodependência, e apenas assumiu o que lhe era de maior conveniência estratégica). CONCLUSÕES 1ª Por se ter considerado que a seringa não era uma arma para efeitos de qualificação de um dos crimes de roubo violou o acórdão recorrido o disposto no artigo 210° n° 1 e n°2 al. b) com referencia ao artigo 204º nº 2 al. f) do CP com reflexo na medida concreta daquela pena que se cifrou em limite inferior àquele que deveria ter sido encontrado. 2a A medida concreta da pena aplicada não realiza de forma adequada e suficiente as necessidades de prevenção geral e especial assim se violando o disposto no artigo 40° do CP e, bem assim, o artigo 71° do mesmo diploma legal; deve, pois, a medida de pena cifrar-se em limite superior àquele que foi encontrado pelo tribunal a quo. Contra-alegou o arguido, pugnando pela integral manutenção do acórdão recorrido. É a seguinte a matéria de facto fixada pela 1ª instância: Factos provados: 1. O arguido é consumidor de droga desde os 20 anos de idade, e no início do mês de Março de 2006 deixou de exercer funções na empresa “Salvador Caetano”, onde trabalhava. 2. Porque ficou desempregado, e necessitava adquirir o estupefaciente que consumia diariamente, decidiu efectuar roubos para assegurar o dinheiro que precisava, usando a violência, a ameaça ou outro meio, se necessário fosse. 3. Em data não apurada o Arguido comprou a um desconhecido na Feira da Ladra em Lisboa, por montante indeterminado, uma pistola, uma arma de ar comprimido, marca “Gamo”, modelo “R77”, de origem espanhola, tambor de oito orifícios, cano com 5,5cm com um comprimento total de 18cm, inutilizada por não possuir o respectivo cão, elemento essencial para obter o disparo de projéctil, mas com a aparência de ser uma arma com capacidade para disparar projécteis. 4. Tendo na sua posse tal objecto e na execução do seu plano, no dia 21 de Marco de 2006 por volta das 23h, o arguido foi ao clube de vídeo “Blockbuster”, sito na Rua da...., 20, em Lisboa, onde pediu à empregada .... que lhe trocasse uma nota, e simulando procurá-la nos bolsos, foi estudando o local, acabando por dizer que tinha que ir ao carro buscá-la, saindo de seguida. 5. Aguardou 15 minutos e quando a loja estava prestes a fechar, ainda com dois clientes no seu interior, que não eram visíveis do exterior, entrou e empunhando a pistola já descrita, apontou-a na direcção das funcionárias .. e ..., que estavam ao balcão, dizendo: ”O dinheiro rápido”. 6. Receando pela vida e integridade física, ambas abriram as respectivas caixas registadoras, das quais o arguido retirou a quantia total de € 273,20 (duzentos setenta três euros e vinte cêntimos) em notas e moedas do Banco Central Europeu, e em posse desta, colocou-se em fuga. 7. NUIPC 222/Ob.UPZLSB 8. No dia 24 de Março de 2006, cerca das 21h30m, o arguido dirigiu-se ao clube de vídeo “Blockbuster”, localizado na Rua ... 31-A, em ..., Lisboa, 9. Uma vez no seu interior, aproximou-se do balcão e abrindo o casaco, retirou da cintura a já descrita pistola, e empunhando-a com a mão direita na direcção do funcionário D...., exigiu-lhe a entrega de todo o dinheiro que estava nas caixas registadoras. 10. Receando pela vida e integridade física e sem poder reagir dado ver uma arma apontada contra si, com medo que o arguido a disparasse, D... abriu as caixas e acabou por lhe entregar a quantia total de € 178,16 (cento setenta oito euros e dezasseis cêntimos) em notas e moedas do Banco Central Europeu, que o arguido arrebatou e levou consigo, fugindo a pé. 11. No dia 26 de Março de 2006, pelas 00h 06m, o arguido entrou no Estabelecimento “Telepizza”, sito no n.° 22 da Rua ...., em Lisboa, 12. Abeirando-se do balcão, em posse da já descrita pistola, apontou-a ao empregado .... que estava junto da caixa registadora e de imediato lhe disse: “retira o dinheiro da caixa”. 13. Como .... não tinha as chaves da caixa registadora consigo, o arguido acabou por levar consigo a gaveta da caixa registadora, avaliada em € 60,00 (sessenta euros), acrescida de IVA e € 100 (cem euros) em moedas do Banco Central Europeu, que nela se encontravam. 14. Ainda nesse mesmo dia 26 de Março de 2006, pelas 02h15m, em Telheiras, na Rua ...., 00-D, no “Espaicafé”, o arguido solicitou ao funcionário ... que lhe trocasse 5 moedas de € 1,00, por uma nota. 15. Ao que este acedeu, dirigindo-se à caixa registadora, sempre seguido pelo arguido. 16. Quando estava junto da caixa, o arguido abeirou-se rapidamente junto deste e agarrando-o pelo braço esquerdo, apontou-lhe já descrita pistola à zona do tórax e disse-lhe em voz baixa: “Abre a caixa e dá-me o dinheiro todo que tens aí,…rápido…” 17. Perante esta situação o ofendido, receando levar um tiro, temendo pela sua integridade física e vida, levantou os braços e disse: “…leva o que quiseres”, ao mesmo tempo que premia o botão abrindo a gaveta da caixa registadora. 18. O arguido puxou a gaveta e retirou as notas do Banco Central Europeu ali existentes, no montante de € 495,00 (quatrocentos noventa cinco euros), que levou consigo, abandonando a correr o estabelecimento. 19. No dia 28 de Março de 200B, cerca das 12h, o arguido entrou no Mini Mercado “...” localizado na Rua ...., 2C, na Quinta da Luz, em Lisboa. 20. Pegando em mercadoria ao acaso, o arguido colocou-se na fila da caixa, onde os clientes aguardavam para o pagamento dos produtos. 21. Quando chegou a sua vez, sacou da descrita pistola e apontando-a na direcção da operadora de caixa ,... , disse-lhe em voz baixa:” Abra a caixa, já! Já, já, saque daí o dinheiro todo”. 22. Aflita, ... permaneceu imóvel, pelo que o arguido furioso voltou a dizer-lhe em voz mais alta: “Abra a caixa, já! Já, já, saque daí o dinheiro todo”. 23. Todavia, com medo de que o arguido disparasse sobre si um tiro, acabou por abrir a caixa registadora, e este debruçando-se sobre a bancada, retirou do interior da gaveta todas as notas de € 20,00 e € 10,00 do Banco Central Europeu, no montante total de € 237,00 (duzentos e trinta sete euros). 24. Enquanto retirava e guardava aquele dinheiro, o arguido ordenou a ... que abrisse a outra gaveta que estava por baixo da caixa registadora. 25. Apercebendo-se do que estava a suceder, ... passou à frente do arguido e agarrou-o pela cintura, tendo-o no entanto largado, por este lhe ter encostado a arma à barriga. 26. Conseguindo assim libertar-se, o arguido fugiu em direcção à Avenida do Colégio Militar, no sentido do Estádio da Luz. 27- A 29 de Março de 2006, pelas 07h55,. o arguido verificando que a loja estava sem clientela, entrou na “Papelaria....”, na Rua ..., 20, ao Lumiar, e pediu a.. um maço de tabaco, marca “Português suave- Vermelho”. 28. Quando colocou o maço em cima do Balcão e aguardava o pagamento, o arguido voltou-se para trás, fingindo que via os jornais. 29. Quando se voltou, empunhava já a descrita pistola e disse-lhe: “…Não faça nada, não diga nada, eu quero o dinheiro todo que está na caixa”. 30. Receando pela sua integridade física e vida,... abriu a gaveta da caixa registadora e entregou ao arguido as notas que tinha. 31. Todavia, reparando nas moedas, o arguido exigiu-lhe a sua entrega, dizendo: “dê-me também as moedas de € 1,00 e de € 2,00, só essas”, ao que aquela acedeu. 32. Na posse do dinheiro e do maço de tabaco, o arguido começou a recuar em direcção à porta, sempre de arma apontada para ... dizendo: “não faça nada, não chame ninguém, não faça nenhum sinal”. 33. Em posse da quantia monetária de € 100,00 (cem euros) e do referido maço de tabaco, no valor de € 2,35 (dois euros e trinta cinco cêntimos), abandonou o estabelecimento comercial, em passo normal, como se tratasse de um cliente, em direcção à Alameda ...., em Lisboa. 34. Nesse mesmo dia 29 de Março de 2006, mas cerca das 18h 00m, em Lisboa, na ....s, o arguido foi ao Hipermercado” Feira Nova”. 35. Uma vez no seu interior, o arguido dirigiu-se à Ourivesaria “ ...” e perguntando se a ourivesaria tinha “Visa”, pediu à funcionária ...que lhe mostrasse as pulseiras em ouro mais caras que tinha e que estavam na montra. 36. Desconfiada pelo tipo de pedido e por se ter apercebido que o arguido estava já há muito junto da montra, esta mostrou-lhe três pulseiras. 37. Após ter escolhido e pedido que embrulhasse uma pulseira em ouro amarelo de 20 cm de comprimento, no montante de € 1.120,00 (mil cento e vinte euros), o arguido disse que ia ao Multibanco e saiu da loja. 38. Tendo visto o Arguido, e dele suspeitado, um segurança do centro comercial manteve-se por perto. 39. Entrando novamente na ourivesaria, o arguido exibindo uma seringa usada, embrulhada em prata, que deixava ver a ponta de uma agulha, apontou-a na direcção da funcionária, e agarrando o embrulho, disse: “não pies, está caladinha, vou levar a pulseira”. 40. Em posse da pulseira, exibindo sempre a seringa, o arguido recuou até à porta, e abandonou a correr a loja, enquanto que .... gritava. 41. Já em fuga, foi detido pelo Segurança do Centro Comercial e por um agente da PSP de folga, que por mero acaso ali se encontrava. 42. A pulseira em ouro foi recuperada e entregue de imediato à Ourivesaria. 43. O arguido agiu sempre, em todas as ocasiões de modo voluntário, consciente e livre, com o propósito de fazer seus o dinheiro e demais objectos dos quais pela forma descrita se apoderou. 44. Usando objectos como a seringa e a pistola com o propósito de intimidar e constranger as suas vítimas, impedindo-as de reagir, o que efectivamente conseguiu, e, por essa forma, apoderar-se dos bens que estas possuíam ou que estavam à sua guarda, bem sabendo que os mesmos não lhes pertenciam e que agia contra a vontade dos seus donos. 45. O arguido não tinha naquela altura outros rendimentos pelo que praticou os factos referidos de forma repetida e regular e como modo de obtenção de proveito económico, que destinava à aquisição de droga. 46. Sabia que praticava factos proibidos por lei. 47. Do CRC do Arguido nada consta. 48. Quando foi detido o Arguido consumia diariamente 3 a 4 gramas de cocaína que fumava ou injectava. 49. Que se encontra preso que o Arguido aderiu a programa de terapia ao consumo de estupefacientes, sendo actualmente acompanhado no CAT das Taipas e no programa dos Narcóticos Anónimos. 50. Em ambiente prisional trabalha como faxina e zelador do pátio, o que implica auxiliar o delegado desportivo, e tem mantido bom comportamento laboral e disciplinar 51. Beneficia de visitas dos pais e de amigos que o têm apoiado. 52. O arguido procedeu ao pagamento de indemnizações, directamente ou por intermédios das respectivas seguradoras, ao “Blockbuster”, à “Telepizza”, ao Mini Mercado “Horta da Luz” e à ”Papelaria 2001”, cujos legais representantes se declararam ressarcidos e desistiram das queixas por si apresentadas contra o Arguido nestes autos. 53. O pai do Arguido tem uma empresa de consumíveis de escritório e informática, tendo o Arguido expectativa de, quando regressar à liberdade, poder trabalhar para o seu pai como delegado comercial. 54. As habilitações literárias ao Arguido consistem no 12º ano. FACTOS NÃO PROVADOS a) Que o Arguido seja toxicodependente desde os 20 anos de idade. b) Que o Arguido comprou a pistola na execução do seu plano. c) Que no dia 29 de Março de 2006 na “Papelaria 2001” o Arguido tenha dito a ... “pois será pior para si”. d) Que na ourivesaria Malaquite o Arguido disse a .. “está calada ou espeto-te com a seringa”. e) Que, acto contínuo,... fez sinal ao Segurança do Centro Comercial, que se colocou atrás de um pilar. f) Que a pulseira de ouro valia € 1.600,00 (mil e seiscentos euros). O MP teve vista dos autos nos termos do art. 416º do CPP. Realizou-se a audiência de julgamento nos termos legais, no decurso da qual o sr. Procurador-Geral Adjunto emitiu opinião no sentido do não provimento integral do recurso. O patrono do recorrente manteve a posição assumida nas alegações de recurso. Cumpre agora decidir. II. ANÁLISE DO RECURSO Duas são as questões a resolver: 1ª - a de saber se a seringa utilizada pelo arguido deve ser considerada uma arma, e portanto qualificar o crime de roubo praticado na Ourivesaria Malaquite nos termos do art. 210º, nº 2, b), por referência à al. f) do nº 2 do art. 204, ambos do CP; 2ª - se a pena única deve ser agravada, em resultado, ou não, da qualificação daquele crime de roubo. A) A questão da arma Constituirá uma seringa uma arma, de acordo com a definição legal do art. 4º do DL nº 48/95, de 15-3? O tribunal recorrido afastou essa possibilidade, “não obstante o uso que lhe foi dado”. A recorrente, no entanto, considera, como vimos, que a seringa, não sendo em si mesma uma arma, pode ser utilizada como tal, sendo susceptível de ser usada como instrumento perfurante e de provocar, por essa forma, lesões físicas graves, ou mesmo a morte, se atingir certas zonas do corpo, como o globo ocular ou a bexiga. Segundo a mencionada definição legal, arma é “qualquer instrumento, ainda que de aplicação definida, que seja utilizado como meio de agressão ou que possa ser utilizado para tal fim.” A amplitude da letra do conceito impõe uma interpretação se não restritiva, pelo menos declarativa, sob pena de todo e qualquer objecto se poder transformar em arma. Se desenvolvermos o argumento da recorrente quanto à utilização perversa da seringa como instrumento perfurante, poderíamos igualmente referir que objectos ainda menos ofensivos, como um arame, um corta-unhas, um pequeno pau, um simples e pacato palito, podem ter utilizações extremamente perversas e altamente danosas para as pessoas, como seria o caso de introdução profunda na vagina ou no ânus, ou também nos globos oculares, ou nos ouvidos, etc., segundo a “fantasia” do agressor, pois é um facto que a perversidade humana não tem limites (e a prática sistemática da tortura ainda hoje em muitos países está aí para o confirmar). A caracterização de um objecto como arma terá, pois, a ver com as suas características e com a utilização ou afectação normal delas, com a idoneidade dessa utilização ou afectação normal como meio de agressão. O uso desviado das propriedades do objecto não pode servir como critério para o definir como arma. Assim, uma bengala, podendo embora servir para uma agressão (as famosas “bengaladas” dos romances de Eça), não é seguramente uma arma. Um cinto, sendo outrora e possivelmente ainda hoje, mas mais escassamente, meio frequente de “educação” paterna, também certamente ninguém o considerará uma arma. Mesmo uma navalhinha de bolso, daquelas de descascar maçãs, não é “promovida” a arma por haver a possibilidade de ser utilizada como instrumento ofensivo. E um inofensivo guarda-chuva, acompanhante imprescindível das pessoas quando a meteorologia é adversa, pode ser aproveitado como instrumento de agressão, quiçá mortal, se utilizada a sua ponta metálica, sem que seguramente ninguém defenda que o guarda-chuva é uma arma. Já uma pistola, uma faca de ponta e mola, uma moca, por exemplo, não levantam a ninguém dúvidas de que são armas. A lei, no citado art. 4º do DL nº 48/95, admite, porém, uma extensão do conceito de arma a outro tipo de objectos, por meio da expressão “ainda que de aplicação definida”. Essa expressão parece contemplar objectos cuja “aplicação definida” não seja a de meio de agressão, mas que, subtraídos ao contexto normal da sua utilização, podem ser integrados no conceito de arma. Será esse o caso das facas de cozinha, por exemplo. Nestes casos, a perigosidade dos objectos é evidente e só a sua integração no contexto espacial da sua utilidade é que lhes retira as características de arma. Poderemos então concluir que arma não é (talvez seja preferível, definir o conceito negativamente, por exclusão) o objecto que, podendo excepcionalmente ser aproveitado para praticar uma agressão, não foi fabricado com essa finalidade nem é essa a sua utilidade normal. Posto isto, que dizer de uma seringa? Trata-se sem dúvida de um instrumento com aplicação definida, e que, em certos contextos, pode servir para ameaçar e coagir as pessoas, integrando assim a sua utilização o elemento típico do crime de roubo descrito no art. 210º, nº 1 do CP como “ameaça com perigo iminente para a vida ou integridade física”. Foi o que aconteceu no caso dos autos. A integração dos factos praticados pelo arguido na Ourivesaria Malaquite no crime de roubo não está em causa. A dúvida é saber se a seringa é, para além de instrumento credível de ameaça, uma arma. Não restam dúvidas de que a seringa foi retirada do seu normal contexto espacial e funcional. Mas terá uma seringa idoneidade para servir como meio de agressão? É certo que a picada de uma agulha não pode deixar de ser considerada uma lesão física, mas, fora dos casos perversos indicados pela recorrente, tratar-se-á sem dúvida de uma lesão insignificante (a não ser no caso especial dos hemofílicos). A eficácia de seringa como meio de agressão é irrelevante. Aliás, e voltando um pouco atrás, é notório que a eficácia da seringa como meio de coacção resulta, não do medo da picada, mas do medo de que possa estar infectada e, por essa forma, propagar doença perigosa, associada, como está, junto da opinião pública, a utilização de seringas infectadas por toxicodependentes à difusão de doenças contagiosas como a SIDA e a hepatite. É o medo da infecção, e não propriamente da picada, da “agressão” física, que atemoriza as pessoas. E daí que só no caso de estar de facto infectada, sendo então instrumento de transmissão de uma doença, a seringa possa ser considerada uma arma. Neste sentido se tem pronunciado este STJ, nomeadamente nos acórdãos de 20.5.1998 (rec. nº 370/98, 3ª Secção, CJ, VI, 2, 205)), de 8.7.1998 (rec. 604/98, 3ª Secção) e de 28.3.2001 (rec. nº 115/01, 3ª Secção). Do primeiro retira-se o seguinte extracto: “Esta norma [art.° 4.° do DL 48/95] deve valer com o sentido mais amplo que os seus termos consentem? Parece-nos que não. Se alguém, com intenção de ofender corporalmente, bate com uma almofada de penas ou de espuma de borracha noutra pessoa, aquela foi, sem dúvida, utilizada como meio de agressão; no entanto só por absurdo, é que se consideraria arma, para efeitos penais. Então, se nem todos os instrumentos utilizados como meio de agressão, em sentido amplo, devem ser havidos, necessariamente, como “armas”, impõe-se restringir este conceito, de molde a abranger aqueles que servem ou podem servir para ofender fisicamente uma pessoa, de forma significativa ou não insignificante. Voltemos ao caso dos autos. A visão de uma seringa empunhada contra uma pessoa gera, sem dúvida, um temor que paralisa a vontade de resistir de quem quer que seja. Porquê? Simplesmente, porque existe a séria possibilidade de que aquela esteja infectada, nomeadamente, com o vírus da SIDA (esta é, hoje, seguramente, associação de ideias mais comum). Não suscitará, portanto, qualquer dúvida que tal conduta integra o elemento típico do roubo descrito, no art.° 210.”, n.° 1, do C. Penal, como “ameaça com perigo iminente para a vida ou integridade física”; e isto, note-se, independentemente de a seringa estar ou não estar, na verdade infectada, uma vez que, no que concerne à relevância da ameaça, o que é decisivo é que ela, na sua aparência, seja adequada a neutralizar a resistência da vítima do roubo (e como vimos, nos tempos que correm, já a simples dúvida sobre se a seringa está ou não infectada é mais que bastante para determinar esse temor paralisante). Mas, se para a relevância da ameaça, é indiferente que a seringa esteja ou não infectada (suposto, sempre, é evidente, que a vítima do roubo não conhece nem tinha que conhecer o exacto estado da seringa), o mesmo já não acontece quando está em causa a qualificação de tal instrumento (de aplicação definida), como “arma”. Com efeito, agora, o que é decisivo não é que a seringa, na sua aparência, seja adequada a provocar um temor que anule a capacidade de reacção da vítima, mas, sim, que ela realmente seja ou possa ser utilizada como meio eficaz de agressão ou, por outras palavras, que sirva ou possa servir para ofender fisicamente uma pessoa, de forma significativa ou não insignificante. Ora, afigura-se-nos tão claro que uma seringa infectada é uma arma (uma vez que a transmissão de uma doença a uma pessoa representa, sempre, para esta, uma ofensa física importante) como que o não é uma não infectada ou inócua do ponto de vista sanitário (uma vez que a simples picada de uma agulha não pode razoavelmente considerar-se uma lesão física significativa) .” Não se pode, assim, aceitar a posição assumida por Faria Costa, na sua anotação ao art. 204º do Comentário Conimbricense do Código Penal (tomo II, p. 81), fundada aliás numa mais que duvidosa “teoria da impressão”. Na verdade, a al. f) do nº 2 do art. 204º do CP, ao qualificar o crime de furto (e o de roubo, por intermédio do art. 210º, nº 2, b) do CP) “trazendo [o agente], no momento do crime, arma aparente ou oculta” afasta claramente a relevância de tal doutrina. Com efeito, a equivalência, para efeitos de ilicitude, entre a arma aparente (visível, notória ou exibida) e a oculta (escondida, invisível) revela que não é o potencial atemorizador que importa para a qualificação, mas sim o potencial destrutivo ou ofensivo do instrumento. Uma arma, ainda que oculta, é um objecto sempre perigoso, que o agente pode empunhar em qualquer momento e produzir ofensas, mais ou menos graves, na integridade física das pessoas. É essa perigosidade intrínseca e objectiva das armas que a lei pune na al. f) do nº 2 do art. 204º do CP. É essa perigosidade que está ausente numa seringa não infectada. No caso dos autos, não se tendo provado que a seringa utilizada pelo arguido estava infectada, mas apenas que era “usada”, a mesma não pode ser considerada uma arma. Improcede, desta forma, a primeira questão. B) A questão da medida da pena Não se conformou igualmente a recorrente quanto à pena unitária, que considera que ficou aquém das necessidades de prevenção geral e especial que o conjunto de comportamentos delituosos adoptados pelo arguido requer. Sem menosprezar a gravidade dos factos praticados e do efeito destrutivo que este tipo de condutas revestem na tranquilidade das pessoas, na sua qualidade de vida, há que atender, porém, a que a “carreira” criminosa do arguido perdurou apenas por nove dias, e que terá sido desencadeada por um facto exógeno – o de o arguido ter ficado desempregado (ficando assim sem capacidade financeira para comprar o estupefaciente de que era dependente). Mas a esse condicionalismo, já de alguma forma mitigador da ilicitude e da culpa, há que acrescentar as circunstâncias posteriores ao crime, que são fortemente favoráveis ao arguido. Na verdade, para além do pagamento de indemnizações aos ofendidos, reparando assim os danos, provou-se que o arguido, depois de preso, aderiu a um programa de terapia ao consumo de estupefacientes, que tem o apoio da família, e inclusivamente tem a expectativa, naturalmente concretizável, de vir a trabalhar na empresa de informática que o pai possui. Todas estas circunstâncias desaconselham um prolongamento da privação da liberdade, prolongamento que obviamente se ergueria em obstáculo a uma recuperação social do arguido que neste momento se augura previsível e até provável. Nenhuma censura há a fazer à pena fixada no acórdão recorrido. Improcede, pois, também a segunda questão. III. DECISÃO Nos termos expostos, decide-se negar provimento ao recurso. Sem custas. Lisboa, 18 de Janeiro de 2007 Eduardo Maia Costa (relator) Carmona da Mota ( declaração de voto) Pereira Madeira ( Com voto vencido) Santos Carvalho Carmona da Mota (com a declaração de que: aceita “a não qualificação do roubo, embora cometido sob a ameaça de uma «seringa usada». Não, porém, porque esta não valesse, se eventualmente «não infectada», como «instrumento, ainda que de aplicação definida, que pudesse ser utilizado como meio de agressão» e, como tal, como «arma para efeitos do disposto no Código Penal» (art. 4.º do DL 48/95). Mas, simplesmente, porque, no caso, a «ameaça com perigo iminente para a integridade física, pondo [a pessoa ameaçada] na impossibilidade de resistir», característica do próprio «roubo» (art. 210.1 do CP), se circunscreveu à exibição de «uma seringa usada, embrulhada em prata, que deixava ver a ponta de uma agulha». Daí que, no caso, o uso da «arma» tenha esgotado a «violência» característica do roubo, não tendo, realmente, constituído um requisito «adicional» susceptível de merecer um tratamento específico”). Cons Pereira Madeira .Votei vencido. Daria provimento ao recurso porquanto teria como arma a seringa com agulha apontada à ofendida nas circunstâncias dos autos, porquanto tenho como seguro que o acto do arguido, ao exibir como ameaça tal objecto, levou implícita, como em regra acontece em casos destes, a «mensagem» - certa ou errada, pouco importa – de que se tratava de objecto infectado, não fazendo sentido que fosse de outro modo. Residindo a razão de ser da agravação correspondente no potencial de superioridade de ataque e, como contrapartida, numa clara diminuição ou acréscimo de fragilidade da defesa, não se vê, de resto, grande diferença, quanto ao alcance de tais efeitos, entre o uso de tal objecto e uma arma (de fogo ou arma branca), apontada nas mesmas circunstâncias. Neste, contexto, afigura-se-me algo deslocada do alvo a crítica à posição assumida pelo Prof. Faria e Costa, que subscreveria. |