Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
101/17.6T8MTR.G1.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO (CÍVEL)
Relator: RIJO FERREIRA
Descritores: COLISÃO DE DIREITOS
DIREITOS DE PERSONALIDADE
DIREITO AO REPOUSO
DIREITO À QUALIDADE DE VIDA
DEFESA DO AMBIENTE
INICIATIVA PRIVADA
ATIVIDADE DE EXPLORAÇÃO LUCRATIVA
EXPLORAÇÃO AGRÍCOLA
PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE
ABUSO DO DIREITO
NULIDADE DE ACÓRDÃO
EXCESSO DE PRONÚNCIA
FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO
OPOSIÇÃO ENTRE OS FUNDAMENTOS E A DECISÃO
Data do Acordão: 11/26/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Sumário :
I. Sendo frequentes as colisões entre direitos fundamentais, tais conflitos hão-de ser resolvidos mediante a ponderação e harmonização, em concreto, à luz do princípio da proporcionalidade, evitando o sacrifício total de uns em relação aos outros e realizando, se necessário, uma redução proporcional do âmbito do âmbito de alcance de cada qual;

II. Nesse juízo de proporcionalidade haverá de atender-se às concretas circunstâncias e necessidades da convivência comunitária, que implicam ex rerum natura a verificação de algumas contraditoriedades ou incomodidades, que em abstracto se poderiam considerar como infracções, mas que em homenagem àquelas necessidades e aos valores preponderantes na interacção comunitária em dado momento histórico são comummente suportadas como toleráveis;

III. Não tendo ficado demonstrado que os inconvenientes decorrentes da exploração pecuária dos Réus excedesse os limites da tolerância social a que os demais membros da comunidade estão adstritos, ainda que se entenda que, em função de uma maior consciência social e maior exigência a nível de salubridade e ambiente, está em curso uma evolução dos limites dessa tolerância social, a pretensão dos Autores de cessação dessa actividade mostra-se, por ora, improcedente.

Decisão Texto Integral:
ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
NO RECURSO DE REVISTA

INTERPOSTO NOS AUTOS DE ACÇÃO DECLARATIVA

ENTRE

AA

e consorte

BB

(aqui patrocinados por EE, adv.)

Autores / Apelados / Recorrentes

CONTRA

CC

e consorte

DD

(aqui patrocinados por FF, adv.)

Réus / Apelantes / Recorridos



I – Relatório

     Os Autores intentaram, em 2017, acção declarativa contra os Réus pedindo a condenação destes a retirarem o gado bovino de sua pertença do armazém que construíram junto à residência dos Autores e a limparem o dito armazém, bem como a pagarem-lhes a quantia de 10.000 euros a título de danos não patrimoniais, e juros.

    Alegam que os Réus em 2006 passaram a utilizar o que construíram e licenciaram como armazém em 1993, dentro do perímetro urbano da aldeia (solo urbano destinado a edificação urbana com função residencial, terciária e outros usos compatíveis com o uso habitacional) e a cerca de 45 metros da que é a casa de morada de família dos Autores há mais de 36 anos, para aí guardarem uma manada de 30 vacas que exploram, dando azo a que os sons, cheiros e dejectos advindos dos referidos animais ponham em causa o descanso, a saúde e o bem estar dos Autores, que têm vindo a sofrer os correspondentes incómodos, sem que a autoridade municipal, a quem a situação foi denunciada e que notificou os Réus para retirarem os animais, tome qualquer atitude.

     Os Réus contestaram alegando que na área em que se inserem – Região do ..... – a economia é baseada na agricultura e na pecuária, sendo comum a existência desses animais junto das residências (só na sua aldeia existem 31 cortes e 7 armazéns com animais bovinos), sendo tal situação considerada um uso compatível com o uso habitacional. Que nunca tal actividade foi considerada um perigo para a saúde o bem-estar ou a qualidade de vida dos residentes. Os sons emitidos pelas suas vacas (e por todas as demais existentes na aldeia) fazem parte do normal meio ambiente e não se produzem durante o período nocturno; ao passo que os dejectos são tratados segundo o método imemorial e tradicional para produzir  adubo natural, não produzindo cheiros ou atraindo insectos. Se cheiros ou insectos afectam a casa dos Autores são os advenientes da sua corte situada por baixo da sua casa, onde têm 10 a 12 porcos com esgotos em rego a cair para o caminho público. Que o PDM só entrou em vigor em 1995, data em que já tinha instalada a sua exploração tendo sido declarado o interesse público municipal na regularização da sua actividade pecuária no âmbito do Regime Excepcional de Regularização das Actividades Económicas.

    A final foi proferida sentença que, considerando assistir aos Autores, enquanto titulares dos direitos fundamentais à saúde, ambiente e tutela da personalidade, a faculdade de exigir o respeito pelo seu bem estar e qualidade de vida, que esse direito não está a ser respeitado pela conduta dos Réus ao levarem a cabo exploração pecuária dentro do perímetro urbano cuja regulamentação não consente essa utilização a qual emite cheiros e ruídos que perturbam o sono, o descanso, o bem estar e a saúde dos Autores, não afastando a ilicitude a existência de autorização administrativa para o exercício dessa actividade, e prevalecendo os direitos de personalidade sobre os direitos de iniciativa económica e de propriedade, condenou os Réus a retirarem o gado bovino do prédio que utilizam como estábulo, não mais o utilizando como tal, a limparem o referido prédio retirando o estrume aí existente, bem como a pagarem a quantia de 1.000 euros a cada um dos Autores.

   Inconformados, apelaram os Réus tendo a Relação, depois de proceder à alteração do elenco factual, considerado que, não obstante também os Réus com a emissão de ruídos e cheiros pela sua exploração violarem o direito à integridade física, ao repouso e à qualidade de vida dos Autores, os Autores não podiam prevalecer-se desse direito uma vez possuem, em similitude de tempo e espaço, uma exploração de suínos, com maior carga poluente que a exploração dos Réus, que igualmente emitem ruídos e maus cheiros, por tal constituir abuso de direito na modalidade de ‘tu quoque’; em consequência revogou a sentença recorrida, julgando a acção totalmente improcedente.

     Os Autores, agora irresignados, vieram interpor recurso de revista concluindo, em síntese, por:

a) Nulidade por excesso de pronúncia e falta de fundamentação (a alteração dos factos 7, 8 e 16 no sentido de que há na aldeia outros estábulos para além do dos Réus não está no âmbito dos temas de prova, é facto essencial não alegado, não foi possível exercer o contraditório e o acórdão não refere em que prova se baseou);

b) Nulidade por contradição entre a fundamentação e a decisão (a fundamentação, embora fundada circunstâncias não demonstradas, vai no sentido da não ilicitude da conduta dos Réus mas conclui-se em sentido contrário);

c) Violação de lei substantiva (ao alterar o facto 24);

d) Erro de julgamento (não há abuso de direito porquanto não há qualquer confiança a tutelar nem identidade de comportamentos – a exploração dos Autores é legal, os suínos não emitem ruídos e estes não são mais poluentes, enquanto a exploração dos Réus é ilegal e os seus animais emitem ruídos e cheiros).

Houve contra-alegação onde se propugnou pela manutenção do decidido.

A Relação pronunciou-se no sentido de não ocorrerem as invocadas nulidades


II – Da admissibilidade e Objecto do Recurso

A situação tributária mostra-se regularizada.

   O requerimento de interposição do recurso mostra-se tempestivo (artigos 638º e 139º do CPC) e foi apresentado por quem tem legitimidade para o efeito (art.º 631º do CPC) e se mostra devidamente patrocinado (art.º 40º do CPC).

    Tal requerimento mostra-se devidamente instruído com alegação e conclusões (art.º 639º do CPC).

     O acórdão impugnado é, pela sua natureza, pelo seu conteúdo, pelo valor da causa e da respectiva sucumbência, recorrível (artigos 629º e 671º  do CPC).

     Mostra-se, em função do disposto nos artigos 675º e 676º do CPC, correctamente fixado o seu modo de subida (nos próprios autos) e o seu efeito (meramente devolutivo).

      Destarte, o recurso merece conhecimento.

      Vejamos se merece provimento.           


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Consabidamente, a delimitação objectiva do recurso emerge do teor das conclusões do recorrente, enquanto constituam corolário lógico-jurídico correspectivo da fundamentação expressa na alegação, sem embargo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer ex officio.

    De outra via, como meio impugnatório de decisões judiciais, o recurso visa tão só suscitar a reapreciação do decidido, não comportando, assim, ius novarum, i.e., a criação de decisão sobre matéria nova não submetida à apreciação do tribunal a quo.

Por outro lado, ainda, o recurso não é uma reapreciação ‘ex novo’ do litígio (uma “segunda opinião” sobre o litígio), mas uma ponderação sobre a correcção da decisão que dirimiu esse litígio (se padece de vícios procedimentais, se procedeu a ilegal fixação dos factos, se fez incorrecta determinação ou aplicação do direito). Daí que não baste ao recorrente afirmar o seu descontentamento com a decisão recorrida e pedir a reapreciação do litígio (limitando-se a repetir o que já alegara nas instâncias), mas se lhe imponha o ónus de alegar, de indicar as razões porque entende que a decisão recorrida deve ser revertida ou modificada, de especificar as falhas ou incorrecções de que em seu entender ela padece.

   Ademais, também o tribunal de recurso não está adstrito à apreciação de todos os argumentos produzidos em alegação, mas apenas – e com liberdade no respeitante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito – de todas as “questões” suscitadas, e que, por respeitarem aos elementos da causa, definidos em função das pretensões e causa de pedir aduzidas, se configurem como relevantes para conhecimento do respectivo objecto, exceptuadas as que resultem prejudicadas pela solução dada a outras.

   Em face do que se acaba de expor e das conclusões apresentadas, são as seguintes as questões a resolver por este Tribunal:

 - da nulidade por excesso de pronúncia e falta de fundamentação:

 - da nulidade por contradição entre a fundamentação e a decisão;

 - da violação da lei substantiva;

- da violação do direito ao repouso, ao sono e à tranquilidade dos Autores.


III – Os Factos

   A Relação, analisando a correspondente impugnação deduzida na apelação, foi procedendo à alteração da matéria de facto omitindo, no entanto, especificar a final a integralidade do elenco factual definitivamente fixado com a sua intervenção.

Suprindo essa omissão, é a seguinte a factualidade fixada nas instâncias (assinalando-se a negrito as alterações introduzidas pela Relação e entre parêntesis rectos e em itálico a anterior redacção):

            Factos provados

1. Os autores residem no imóvel urbano de que são donos e legítimos possuidores, constituído por casa de habitação, sito em Rua.... , n.º ..., ..., ... ..., ... inscrito na respectiva matriz predial urbana sob o artigo ... .

2. Aí moram permanentemente, confeccionam alimentos, dormem, descansam, recebem amigos e familiares, sendo a sua casa de morada de família há mais de 36 anos.

3. Os réus são agricultores de profissão e, no exercício desta sua actividade, exploram uma manada de vacas.

4. No ano de 1993 o réu licenciou através do alvará n.º .../93 e construiu um armazém com a finalidade de arrumação de alfaias agrícolas, na rua da ..., em ..., a cerca de 45 metros.

5. Este armazém localiza-se dentro do perímetro urbano da aldeia, solo urbano destinado a edificação urbana com a função residencial, terciária e outros usos compatíveis com o uso habitacional.

6. Provado que os réus guardam no estábulo referido, e durante o inverno essa manada, sendo que, entre Maio a Setembro, o gado bovino vai para o monte, aí pastando e dormindo, permanecendo no estábulo apenas as vacas paridas e os seus vitelos.

7. Provado que os animais bovinos emitem ruídos, perturbando os que permanecem no interior do perímetro da aldeia durante a noite, o bem-estar, descanso e sono dos autores.

[Provado que os animais bovinos pertencentes aos réus emitem ruídos que perturbam durante a noite o bem-estar, descanso e sono dos autores].

8. Provado que os animais bovinos emitem maus cheiros e dejectos.

[Provado que os animais bovinos pertencentes aos réus emitem cheiros nauseabundos e dejectos].

9. Provado que os animais bovinos que passam na rua frente à casa dos autores deixam-na pontualmente estrumada de excrementos, provocando maus cheiros e falta de asseio e limpeza desses acessos.

[Provado que os animais bovinos que passam na rua frente à casa dos autores deixam-na estrumada de excrementos, provocando maus cheiros e falta de asseio e limpeza desses acessos].

10. No dia 02/11/2016, o Autor marido apresentou na Câmara Municipal de ..... pedido no sentido de serem retirados os animais existentes no local id. em 4.º.

11. Por ofício datado de 19/12/2016, a Câmara Municipal de ..... informou o autor de que notificou o réu marido para, no prazo de sessenta dias, “retirar os animais do armazém, devendo ainda proceder à legalização de parte da construção ilegal.”

12. Porém, os réus não removeram os animais do alegado estábulo.

13. Por ofício de 12/07/2017, foi o autor marido informado de que o processo por si instaurado encontrava-se com efeito suspensivo, decorrente da entrada em vigor do DL 165/2014, de 05/112014.

14. A 19 de Abril de 2017 o autor marido dirigiu-se à CM..., pedindo informação sobre o seu requerimento.

15. Foi-lhe respondido que a CM... aguarda uma alteração legislativa.

16. Em consequência dos ruídos e dos cheiros dos animais bovinos (…) os autores têm-se sentido incomodados, cansados e ansiosos.

[Em consequência dos ruídos e dos cheiros dos animais bovinos pertencentes aos réus (…) os autores têm-se sentido incomodados, cansados e ansiosos].

17. O autor sofre de doença arterial crónica oclusiva dos membros inferiores com claudicação intermitente, tem problemas cardíacos graves, e deve evitar situações de stresse psicológico.

18.  A autora é hipertensa e depressiva.

19. Na aldeia de ..... existe um número não determinado de cortes e armazéns com, um número não apurado de animais bovinos cada, para além de cortes de cabras e ovelhas.

20. Os RR. já guardam o seu gado bovino no estábulo em causa desde finais de 1994.

21. Os dejectos dos animais são usados para fazer estrume, com a colocação de giestas, tojos, palha e carquejas no solo do armazém.

22. Este estrume serve como adubo natural, para estercar os terrenos agrícolas.

23. Provado que os autores fazem criação de 10 a 12 suínos numa corte existente na sua propriedade, cuja distância da casa deles é similar ao do estábulo dos RR., sendo que os esgotos decorrentes da sua lavagem escorriam, até há cerca de um ano, por um rego a céu aberto, dispondo, actualmente de fossa sanitária.

[Provado que os autores fazem criação de 10 a 12 suínos numa corte existente na sua propriedade, sendo que, os esgotos decorrentes da sua lavagem escorriam por um rego aberto].

24. Os suínos emitem cheiros nauseabundos, atraem insectos, podem mesmo provocar doenças e produzem uma carga poluente 3 a 4 vezes superior à do gado bovino.

[Os suínos emitem cheiros nauseabundos, atraem insectos e podem mesmo provocar doenças].

25. Além disso, os dejectos dos suínos contaminam os solos e produzem um gás – metano – que é tóxico.

26. Provado que a fachada sul da residência dos RR. confina com a rua da ....., uma das principais de ....., pela qual desfilam, diariamente, um número não concretamente apurado de cabeças de gado bovino, pertencentes a outros proprietários, que não os RR..

27. E naquela fachada sul, a residência dos AA. é servida por um portão e pela janela do quarto onde estes dormem.

[E, naquela fachada sul, a residência dos AA. é servida por um portão e por uma janela].

28. Os RR. conseguiram da Câmara e da Assembleia Municipais de ....., a declaração de que é de interesse público municipal a regularização da sua actividade pecuária.

29. Os RR. vêm procedendo a esta regularização desde 2013.

30. AA. e RR sempre foram vizinhos e sempre se deram bem, até recentemente, devido a um conflito de águas.

            Factos não provados

a) Os réus aí guardam, desde pelo menos 2006, durante a noite e a maior parte das vezes também durante o dia essa sua manada, ocasionando, como consequência directa, necessária e adequada, perigo para a saúde, ambiente e qualidade de vida dos autores e dos seus vizinhos da aldeia de ....., onde todos residem.

c) [inexiste al. b)]Os animais dos réus emitem permanentemente ruídos severamente incómodos.

d) O gado bovino dos réus emite cheiros nauseabundos próprios dos bovinos, agravados pela circunstância de aí não existir qualquer instalação sanitária para onde possam ser canalizados esses dejetos, os quais ficam a descoberto no  estábulo, provocando a poluição do ar e a concentração de insectos, nomeadamente, moscas e mosquitos, que invadem, pela proximidade, a residência dos autores e da população vizinha.

e) A permanência dos aludidos bovinos nesse estábulo é proporcionadora de doenças que podem atingir os autores e seus vizinhos, colocando em risco a saúde, bem-estar e qualidade de vida de todos.

f) Os autores são pessoas que sofrem de doenças várias que se vêm agravando nos últimos anos.

g) Os autores com mais facilidade se tornam vulneráveis à transmissão e agravação daquelas doenças inerentes ao contacto diário com esta situação que não podem evitar.

h) Os autores são forçados a manter as portas e janelas da sua residência fechadas, para atenuar a intensidade daqueles maus cheiros e ruídos que aí se fazem sentir, que mesmo assim não conseguem de todo evitar, situação que se agrava nos meses de Verão, uma vez que, se faz sentir, sendo também nesse período do ano que os maus cheiros se intensificam ainda mais devido à menor circulação de ar.

i) Em virtude da factualidade descrita, os autores não têm condições de habitabilidade na sua residência e com vista a pôr-lhe termo dela deram conhecimento à Câmara Municipal de ....... .

j) Em consequência dos ruídos, dos cheiros, riscos de transmissão de doenças e falta de habitabilidade na sua residência, os autores têm-se sentido sob “stress” permanente.

k) Agravados pela circunstância de nada poderem fazer, face à teimosia dos réus de ali permanecem com as vacas, não obstante terem informado as autoridades públicas locais dos riscos e perigos que tal situação lhes proporciona.

l) E face à inercia do Município que perante a denunciada actividade ilegal, o que faz é alterar os regulamentos para a legalizar.

m) Os RR. nunca tiveram, naquele seu estábulo, mais de 22 cabeças de gado bovino presas e mais duas soltas, com alguns vitelos;

n) Os sons emitidos pelos animais, durante o dia, são perfeitamente normais e nada incómodos e, durante a noite, não existem quaisquer ruídos que incomodem o bem-estar, o descanso ou o sono dos AA. e seus vizinhos.

o) A prática descrita em 21.º e 22.º dos factos provados evita os cheiros para o exterior e a concentração de insectos.

p) O estábulo dos RR. tem todas as condições para a actividade a que actualmente se destina.

q) A “bosta” que os animais vão deixando pelas ruas constitui uma característica milenar da vida comunitária nas nossas aldeias e nunca o seu cheiro incomodou os seus moradores.

r) O material descrito em q) sempre foi usada para “fazer” as eiras e para estrumar os campos.

s) A permanência dos animais bovinos no estábulo não provoca doenças em ninguém, nem coloca em risco a saúde, o bem estar ou a qualidade de vida de quem quer que seja, designadamente, dos AA..            


IV – O Direito

    Com a alteração da factualidade constante dos factos 7, 8 e 16 (no sentido de que os ruídos, cheiros e dejectos provêm da generalidade dos bovinos da aldeia e não apenas dos bovinos dos Réus) não ocorre excesso de pronúncia porquanto a Relação conheceu de factualidade alegada na contestação (cf. pontos 1 a 4) e como resulta do resumo dos depoimentos prestados na audiência de julgamento constantes da fundamentação de facto da sentença esse circunstancialismo foi abordado em diversos depoimentos, pelo que os Autores tiveram oportunidade de exercer o contraditório. E igualmente não ocorre falta de fundamentação porquanto a Relação dedica no seu acórdão duas páginas (25 e 26) a explicitar como formou a sua convicção na matéria (entendimento diferente do que das regras de experiência comum se extrairia em termos de normalidade em função das concretas circunstâncias do caso).

     O que verdadeiramente os Autores entendem, como ressalta da sua alegação, é que a Relação errou na apreciação de tais factos; mas o erro de julgamento em matéria de facto, não só é coisa diferente de nulidade do julgamento, como não é susceptível de apreciação pelo Supremo Tribunal de Justiça, salvo em casos excepcionais, que na espécie não ocorrem nem foram sequer invocados.


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   Não se vislumbra, também, qualquer contradição entre a fundamentação e a decisão, pois que, a consideração de que os ruídos, cheiros e dejectos não provêm exclusivamente dos animais dos Réus não exclui a ilicitude da sua conduta; de tal forma que se continuou a concluir que (também) ocorria por parte dos Réus violação dos direitos de personalidade dos Autores.

   E porque a decisão recorrida reconhece ocorrer a violação dos direitos de personalidade invocada pelos Autores coloca-se, até, a questão da falta de legitimidade dos mesmos Autores para invocarem as referidas nulidades, pois que os seus interesses não foram por elas afectados.


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    Não se descortina, por outro lado, qualquer violação de lei expressa (designadamente as equivalências em cabeças normais constante do Anexo II  do DL 81/2013, 14JUN) quando se acrescenta ao ponto 24 dos factos provados que os suínos produzem uma carga poluente 3 a 4 vezes superior à do gado bovino; não só porque a unidade – cabeça normal (CN) – se alcança por uma variedade de critérios ( a espécie, a idade, o peso vivo, a vocação produtiva relativamente às necessidades alimentares e à produção de efluentes pecuários, conforme a al. e) do art.º 2º do citado diploma) diferenciados do conceito de carga poluente, mas também, porque tal unidade tem como função agregar números de animais de diferentes espécies ou categorias para classificação das actividades pecuárias (conforme o art.º 3º e o Anexo I do referido diploma). Além de que fundada em depoimento de testemunha especialmente qualificada – médico veterinário.

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   Está em causa no presente recurso a questão de saber se a pretensão dos Autores de que os Réus sejam compelidos a retirar o gado do local onde o vêm explorando, por com isso porem em causa a sua saúde, repouso, bem-estar e qualidade de vida, deve ser rejeitada, por a isso obstaculizar a ordem jurídica, designadamente por abuso de direito.

   Decorre do estatuído no art.º 334º do CCiv que existirá abuso de direito quando alguém, detentor embora de um determinado direito, válido em princípio, o exercita, todavia, no caso concreto, fora do seu objectivo natural e da razão justificativa da sua existência e em termos apoditicamente ofensivos da justiça e do sentimento jurídico dominante, por exceder manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou o fim social e económico desse direito; dito de outra forma: quando o exercício do direito, embora consentâneo com as normas jurídicas, contraria o sistema (cf. acórdão do STJ de 03OUT2019, proc. 3722/16.0T8BG.G1.S1).

   Não se nos afigura, no entanto, que se verifique esse circunstancialismo relativamente ao exercício por banda dos Réus dos seus direitos (fundamentais) de personalidade (artigos 25º, 26º, 64º e 66º da Constituição), na sua vertente de direito à saúde, repouso, bem-estar e qualidade de vida. É que, desde logo, o facto de os Réus adoptarem um comportamento que contende da mesma forma com os direitos de personalidade invocados (naquilo que será uma auto-limitação legítima – art.º 81º do CCiv) não implica, dada a natureza pessoalíssima desses direitos e de ordem pública, que tenham de suportar idêntico comportamento por banda de terceiro.

   Todavia, uma das características dos direitos fundamentais é a sua relatividade pois que são limitados interna (para assegurar os mesmos direitos a todas as outras pessoas) e externamente (para assegurar outros direitos fundamentais ou interesses legalmente protegidos). E são frequentes as colisões entre direitos fundamentais; os conflitos entre o direito fundamental de um sujeito e o mesmo ou outro direito fundamental ou interesse legalmente protegido de outro sujeito. Tais conflitos hão-de ser resolvidos mediante a ponderação e harmonização, em concreto, à luz do princípio da proporcionalidade, evitando o sacrifício total de uns em relação aos outros e realizando, se necessário, uma redução proporcional do âmbito do âmbito de alcance de cada qual (cf. acórdãos do STJ de 29NOV2016, proc. 7613/09.3TBCSC.L1.S1, e 07NOV2019, proc. 1386/15.8T8PVZ.P1.S1).

Nesse juízo de proporcionalidade haverá de atender-se, não a considerações e hierarquizações em abstracto, mas antes às concretas circunstâncias e necessidades da convivência comunitária, que implicam ex rerum natura a verificação de algumas contraditoriedades ou incomodidades, que em abstracto se poderiam considerar como infracções, mas que em homenagem àquelas necessidades e aos valores preponderantes na interacção comunitária em dado momento histórico são comummente suportadas como toleráveis. Em face do que certos comportamentos que interfiram com direitos de personalidade só são tidos como eivados de ilicitude quando aquela interferência ultrapasse os limites do socialmente tolerável (cf. acórdão do STJ de 17JAN2002, proc. 01B4140, 30SET2010, proc. 1229/05.0TVLSB.L1.S1, e 15DEZ2015, proc. 311/04.6TBENT.E1.S1).

            Atentemos agora no caso concreto.

    Autores e Réus vivem desde há longos anos no lugar de....., freguesia..... (com, segundo os censos de 2011, ..... habitantes - https://www.cm-.....) no concelho de ..... (que integra com o concelho de ..... a Região ..... , região agrícola, ....., dominada pela produção pecuária e pelas culturas típicas das regiões montanhosas, onde se mantêm as formas tradicionais de trabalhar a terra ou tratar os animais - https://pt.wikipedia.org/wiki/....), dedicando-se à actividade agro-pecuária (no exercício dos direitos fundamentais de propriedade e iniciativa económica privada – artigos 61º e 62º da Constituição); os Autores explorando uma vara de porcos numa ‘corte’ que tem nas imediações da sua residência e os Réus explorando uma manada de vacas que guardam num estábulo também nas imediações da residência dos Réus. Sempre se tendo dado bem até que, recentemente, tiveram uma disputa de águas (factos provados 1 a 6, 23 e 30).

   A existência de exploração de animais bovinos, ovinos e caprinos nas imediações das residências é comum na aldeia (facto provado 19).

   Os animais bovinos existentes na aldeia emitem ruídos, maus cheiros e dejectos (por vezes junto à casa dos Autores quando passam na rua à frente dessa casa) perturbando o sono e descanso dos Autores e causando-lhe incomodidade (factos provados 7 a 9 e 16).

  Resulta deste quadro factual que a convivência comunitária em que Autores e Réus se inserem se pauta pela exploração agro-pecuária nas imediações das residências, segundo os padrões rurais ancestrais, sendo socialmente tolerável os inconvenientes decorrentes dos ruídos, cheiros e dejectos próprios daquele tipo de exploração.

   Sendo que os Autores, não lograram demonstrar que os inconvenientes decorrentes da exploração dos Réus excedessem os limites daquela tolerância social. Desde logo porquanto em face das alterações introduzidas pela Relação aos pontos 7, 8, 9 e 16, não ficou demonstrado que esses inconvenientes proviessem directamente do gado dos Réus, antes sendo imputados à generalidade dos bovinos existentes na aldeia. Por outro lado, não ficou demonstrado que os ruídos fossem severamente incómodos (facto não provado c)), que os cheiros fossem nauseabundos (facto não provado d)), que houvesse perigo directo para a saúde dos Réus (factos não provados a) e e)).

   É certo que a evolução das preocupações sociais em matéria ambiental e de saúde pública tem vindo a pôr em causa a aceitabilidade de certas práticas ancestrais, em particular no concernente à gestão e valorização dos efluentes pecuários (cf. o Regime do Exercício da Actividade Pecuária). Daí que com o Plano Director Municipal de .... de 1995 (Resolução do Conselho de Ministros 19/95, DR, I-B, 08MAR) se determinasse que as instalações agro-pecuárias teriam de se situar a uma distância mínima de 200 metros dos perímetros urbanos (art.º 33º, al. a), do respectivo Regulamento). Tendo sido com base nesse normativo que, na sequência de queixa dos Autores, a Câmara Municipal de ..... notificou os Réus, em 2016, para retirarem os animais existentes do local (factos provados 10 e 11).

   Mas não é menos certo que na evolução das condições da convivência social não se pode deixar de ter em consideração os efeitos disruptivos que essas alterações implicam relativamente às situações pré-constituídas, de forma que essas alterações devem ser introduzidas de forma paulatina.

   Isso mesmo foi reconhecido pelo legislador relativamente às novas condições ambientais e de salubridade impostas quer pelos Planos Directores Municipais, quer pelos Regulamentos relativos ao exercício de diversas actividades pelo que, ao constatar que a entrada em vigor daquela regulamentação inviabilizava uma parte significativa de unidades produtivas, em detrimento da economia local, dos rendimentos das famílias e do emprego, criou um regime excepcional de regularização desses estabelecimentos e explorações (cf. DL 214/2008, 10NOV, art.º 66º e seguintes; DL 81/2013, 14JUN, art.º 57º e seguintes; DL 165/2014, 05NOV, e Lei 21/2016, 19JUL).

    Com esse regime assegura-se a manutenção de explorações pré-existentes (suspendendo, relativamente a elas, a eficácia das maiores exigências da nova regulamentação), instituindo um regime transitório que permita uma adaptação paulatina às novas exigências ou de medidas mitigadoras dos impactes nocivos (sendo que os interessados têm de instruir o pedido de regularização com a caracterização de medidas de minimização, mitigação, eliminação e compensação de impactos a implementar (e.g., art.º 5º, nº 5, als. j) e l) do DL 165/2014) devendo as mesmas ser consideradas na decisão (art.º 10º, nº 3, al. b) do mesmo diploma). Por outro lado, determinava-se a suspensão e a adequação dos instrumentos de gestão territorial (cf. art.º 12º do DL 165/2014), bem como a suspensão dos procedimentos de tutela da legalidade urbanística (cf. art.º 7º do mesmo diploma).

   Foi tendo em consideração esse regime legal  e por se ter planeado alterar o PDM relativamente à exigência de que as explorações pecuárias se situassem a mais de 200 metros dos perímetros urbanos que o Presidente da Câmara Municipal determinou a suspensão dos procedimentos relativos à intimação feita aos Réus (cf. o ofício endereçado aos Autores por aquela entidade constante de fls. 11v e 12 da versão em papel dos autos).

  Os Réus aderiram ao apontado regime excepcional de regularização em 29JUL2011, tendo logrado obter em 13JUN2013 título de exploração provisório (cf. fls. 136v da versão em papel dos autos) e declaração pelo Município de....., em 2015, de ser do interesse público municipal a regularização da sua exploração (cf. certidão de fls. 29 da versão em papel dos autos).

     O PDM de ..... veio a ser alterado (Aviso 1069/2020, DR, 2ª Série, Parte H, 21JAN2020) no sentido de as operações urbanísticas que se enquadrem no regime extraordinário de regularização de actividades económicas e cujas actividades tenham obtido decisão favorável em sede de conferência decisória ficam dispensados do cumprimento das prescrições do PDM enquanto vigorar aquele regime excepcional.

   Por outro lado, o regime extraordinário de regularização de actividades económicas não dispensa os seus beneficiários de, findo o período transitório, virem a satisfazer todas as exigências legais estabelecidas nos regimes que regulam a respectiva actividade (cf. art.º 15º do DL 165/2014).

   De tudo o exposto resulta que não ficou demonstrado que os inconvenientes decorrentes da exploração pecuária dos Réus excedessem os limites da tolerância social a que os demais membros da comunidade estão adstritos, ainda que se entenda que, em função de uma maior consciência social e maior exigência a nível de salubridade e ambiente, está em curso uma evolução dos limites dessa tolerância social, pelo que a pretensão dos Autores se mostra, por ora, improcedente.

    Significando o regime transitório assinalado que, enquanto condição da viabilização e de existência da sua exploração pecuária no local em que se encontra, os Réus terão de implementar medidas de mitigação ou eliminação dos impactos negativos dessa exploração tendentes a beneficiar as condições ambientais e de salubridade do meio em que se insere a exploração, também não se pode dizer que os Autores fiquem totalmente desprotegidos e que a ponderação levada a cabo na concreta situação de colisão de direitos em causa tenha acabado por desconsiderar em absoluto os direitos dos Autores.


V – Decisão

  Termos em que se nega a revista e, embora com diferente fundamentação, se confirma o acórdão recorrido.

  Custas, aqui e nas instâncias, pelos Autores.

Lisboa, 26NOV2020

Rijo Ferreira (Relator)

[Com voto de conformidade dos Exmos. Juízes Conselheiros Adjuntos,

 conforme o disposto no art.º 15º-A do DL 10-A/2020, 13MAR, com

a redacção introduzida pelo DL 20/2020, 01MAI]

Abrantes Geraldes

Tomé Gomes