Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 2.ª SECÇÃO | ||
Relator: | MARIA DA GRAÇA TRIGO | ||
Descritores: | ERRO DE JULGAMENTO PRIVAÇÃO DO USO PRÉDIO URBANO DIREITO DE PROPRIEDADE OCUPAÇÃO DE IMÓVEL DIREITO À INDEMNIZAÇÃO ILICITUDE DANO ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA IMPROCEDÊNCIA | ||
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Data do Acordão: | 05/15/2025 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | REVISTA | ||
Decisão: | NEGADA | ||
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Sumário : | Para se responsabilizar os réus pela privação do uso do imóvel dos autos não basta a prova da ilicitude da sua conduta, sendo também necessário que se prove a existência de dano para a autora. | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam no Supremo Tribunal de Justiça I – Relatório 1. M... Lda. instaurou a presente acção declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra AA e BB, alegando, em síntese, ser proprietária de um prédio urbano, estando o 1.º réu, sócio da autora, e a 2.ª ré, cônjuge do mesmo, a ocupar o referido imóvel desde meados de 2017, pedindo que: - Sejam os réus condenados a reconhecer e respeitar o seu direito de propriedade sobre o prédio urbano sito na Rua ..., ..., ..., inscrito na matriz predial da União das Freguesias de ... (...) sob o artigo n.º ..68 e descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º ..95 da referida freguesia; - Seja declarada como única dona e exclusiva proprietária do identificado prédio; - Sejam os réus condenados a entregar devoluto de pessoas e de bens o imóvel descrito; - Sejam os réus condenados a pagar, a título de indemnização já líquida, a quantia de €49.200,00 (quarenta e nove mil e duzentos euros), calculada até à data da entrada da presente acção, a que acresce a quantia mensal de €1.200,00 até à entrega do imóvel, acrescida dos juros de mora vencidos e vincendos; - Sejam os réus condenados no pagamento de sanção pecuniária compulsória não inferior a €100 diários a contar da notificação da sentença proferida nestes autos e até à entrega do imóvel objecto da presente acção livre de pessoas e bens; - Sejam os réus condenados no pagamento de indemnização, a liquidar em execução de sentença, correspondente ao valor necessário para que o imóvel fique no estado em que estava antes da ocupação, isto é, novo e a estrear; - Sejam os réus condenados a proceder à substituição dos equipamentos do imóvel, incluindo o motor da piscina, por novos equipamentos da mesma gama. 2. Devidamente citados, os réus contestaram, pugnando pela improcedência da acção, alegando, em síntese, que nunca foi colocada em questão a titularidade da propriedade da autora relativamente ao imóvel que ocupam legitimamente, com base em acordo estabelecido entre os sócios da autora, ou seja o 1.º réu, o seu pai (entretanto falecido) e o seu irmão (presentemente gerente da sociedade autora), tendo ficado acordado, após a construção das duas moradias, que, se o réu e o seu irmão (CC) quisessem, poderiam habitar em cada um dos imóveis construídos; tendo sido arrendada pela autora a moradia que o seu actual gerente não quis habitar e tendo a moradia objecto destes autos sido colocada à venda, não tendo sido vendida durante vários anos e passando a ser utilizada pelo 1.º réu a partir do ano de 2017, na sequência da frustração de um negócio de venda da moradia, por falta de vontade de CC para o efeito; tendo o 1.º réu passado a habitar a moradia com a sua família, tal como tinha sido combinado com os outros dois sócios da autora, pai e irmão do réu, respectivamente, nunca tendo existido intenção de arrendar este imóvel. Acrescentaram ainda os réus que, quanto ao estado do imóvel, nada foi danificado nem nada há a reparar pelo que o peticionado a esse título não tem qualquer fundamento. Mais requereram os réus a sustação da presente acção até ao termo da acção de anulação de deliberações sociais instaurada pelos réus contra a sociedade aqui autora. Concluíram pela improcedência da acção. 3. A sociedade autora pronunciou-se no sentido da improcedência das excepções invocadas pelos réus, alegando não ter existido qualquer acordo entre os seus então três sócios a autorizar o 1.º réu a habitar o imóvel em causa, acrescentando existir já autoridade de caso julgado quanto à decisão de inexistência de qualquer autorização por parte da autora e dos gerentes desta para que o 1.º réu utilizasse o imóvel, conforme sentença proferida na acção de anulação de deliberações sociais, que correu termos no âmbito do processo n.º 3264/20.0..., em que os réus haviam peticionado a anulação das deliberações tomadas na Assembleia Geral de 30 de Outubro de 2020. 4. Teve lugar a audiência prévia, procedendo-se à elaboração de despacho saneador, no qual foi apreciada a excepção de caso julgado, concluindo-se estar-se perante situação em que a questão invocada pelos réus se mostra já abrangida pela autoridade do caso julgado formada por sentença transitada em julgado no sentido de não ter existido decisão dos sócios ou da gerência da autora que permitisse a ocupação da moradia pelos ora réus, não havendo, assim, lugar a produção de prova quanto a essa matéria, mas tão só quanto ao valor de renda do imóvel e à necessidade de intervenção no imóvel de forma a repor o mesmo no estado em que se encontrava antes da ocupação pelos réus. 5. Após julgamento veio a ser proferida a seguinte decisão: “Por todo o exposto, julga-se parcialmente procedente o peticionado pela A e consequentemente a) - reconhece-se à A. o direito de propriedade sobre o prédio urbano, sito na Rua ..., ..., inscrito na matriz predial da união das freguesias de ... (......) sob o artigo n.º ..68 e descrito na Conservatória do Registo Predial de ..., sob o n.º ..95 da referida freguesia; b) - condena-se os RR. a restituir à Autora a posse do imóvel descrito em a), procedendo à sua desocupação imediata, integralmente livre de pessoas e de bens; c) - condena-se os RR. no pagamento de indemnização a liquidar em execução de sentença correspondente ao valor necessário para que o imóvel fique no estado que estava antes da ocupação pelos RR e com a reposição pelos RR. dos equipamentos do imóvel por novos equipamentos da mesma gama; d) - condena-se os RR. no pagamento à A., a título de sanção pecuniária compulsória, do valor de €100,00 diários, desde o trânsito da presente decisão até à entrega efectiva do imóvel à Autora; e) - absolve-se os RR. do demais peticionado; Custas a cargo da A. e dos RR. na medida do decaimento.”. 6. Desta decisão, recorreram ambas as partes para o Tribunal da Relação de Évora, o qual, por acórdão de 25 de Outubro de 2025, proferiu a seguinte decisão: “Face a todo o exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar improcedente o recurso de apelação independente interposto pela Autora/Apelante M..., Lda, bem como improcedente o recurso de apelação independente interposto pelos Réus/Apelantes AA e BB, decidindo-se o seguinte: 1- Confirmar a sentença recorrida; 2- Condenar a Apelante M..., Lda & Azevedo, Lda, nas custas relativas ao recurso independente que interpôs e em que decaiu totalmente e os Apelantes AA e BB nas custas relativas ao recurso independente que interpuseram e no qual também decaíram na totalidade – artigo 527.º, n.ºs 1 e 2 do CPC.”. 7. Deste acórdão veio a autora interpor recurso de revista, por via excepcional, para o Supremo Tribunal de Justiça. 8. Por acórdão de 06.03.2025, a Formação de juízes prevista no n.º 3 do art. 672.º do CPC admitiu o recurso. 9. Formulou a recorrente as seguintes conclusões: “[excluem-se as conclusões relativas à admissibilidade da revista] B) Andou mal o tribunal recorrido ao, deparado com o a questão de saber se é devida indemnização pelos danos provenientes da privação do uso decorrente de ocupação ilícita, ter decidido encará-la como se a questão estivesse aberta a várias soluções, todas igualmente plausíveis, quando, na verdade, a única interpretação que não viola directamente as normas previstas nos artigos 1305.º, 483.º e 564.º do CC é a interpretação que aqui se defende; C) A tese mista, adoptada pelo tribunal recorrido, assim como a tese dos prejuízos concretos, não encontram qualquer apoio na lei, por serem contrários aos regimes do direito de propriedade, da responsabilidade civil extracontratual e da obrigação de indemnização previstos nos artigos acima referidos; D) O entendimento do tribunal recorrido, ao impor ao proprietário o ónus de demonstrar a utilidade específica do bem, está a inovar sem que a lei permita ao criar uma barreira artificial ao direito de propriedade e ao regime da responsabilidade civil extracontratual, assim como está a ignorar a realidade objectiva e a natureza das coisas ao querer fazer depender de prova factos auto-evidentes como sendo as utilidades inerentes que todos os bens têm, contrariando as próprias regras da lógica; E) O entendimento do tribunal recorrido, de que é também ónus do proprietário lesado demonstrar um estado subjectivo como sendo a intenção de uso do bem, comete o mesmo pecado, ao inovar sem permissão legal, criando uma barreira artificial ao direito de propriedade e ao regime da responsabilidade civil extracontratual e uma situação de pura injustiça ao fazer depender o direito de indemnização a um estado subjectivo do próprio lesado; F) O entendimento do tribunal recorrido, de que o dano de privação do uso não é autónomo e passível de ser indemnizado, ignora que a própria ocupação de um bem por um terceiro é, automaticamente, uma violação do direito de propriedade sobre o bem e que, por isso, se consubstancia num dano, resultando a tese sob crítica num esvaziamento de uma parte considerável do conteúdo essencial do direito de propriedade e na diminuição dos poderes de uso, fruição e disposição; G) O entendimento do tribunal recorrido viola a norma prevista no art.º 562.º do CC, que contém o princípio de que os danos são para serem reparados – pelo violador – ao não atribuir indemnização, que é o modo de reparação, pelo dano sofrido de privação do uso; H) O entendimento do tribunal recorrido viola o n.º 1 do art.º 564.º do CC, que prevê que a obrigação de indemnização inclui, não só os danos emergentes, mas também os lucros cessantes, ao negar reconhecer o lucro cessante de privação do uso como um dano e a atribuir indemnização pela sua violação; I) O entendimento do tribunal recorrido viola o art.º 1305.º do CC, que prevê que o proprietário exerce, de modo pleno e exclusivo, os direito de uso, fruição e disposição do bem, ao não reconhecer que assim que o bem é ocupado por terceiro, que o proprietário deixa de ter o domínio sobre o bem e, por isso, fica logo impedido de exercer os seus poderes, independentemente de quaisquer estados subjectivos ou intenções; J) O entendimento do tribunal recorrido viola o n.º 1 do art.º 483.º, que prevê a responsabilidade do violador de direitos de terceiros, ao não reconhecer que a privação do uso é uma violação do direito de propriedade e que, por isso, o lesante tem de ser responsabilizado, através da obrigação de indemnização; K) Por outro lado, a tese da indemnização como dano autónomo, aqui preconizada e que se tem como a única possível, resulta da interpretação literal e teleológica das normas já referidas, sem necessidade de quaisquer interpretações extensivas ou restritivas, ou de criação de quaisquer ficções ou artificialidades e, crê-se, está totalmente enquadrada na coerência e sistematização do nosso ordenamento jurídico. L) Pelo que, decidindo pela interpretação aqui defendida, deverá ser reconhecido que da ocupação ilícita resultaram danos de privação do uso, os quais terão de ser indemnizados pelo valor peticionado, ou, não sendo por esse, por outro doutamente determinado mediante recurso à equidade.”. Não foi apresentada resposta. II – Objecto do recurso Tendo em conta o disposto no n.º 4 do art. 635.º do Código de Processo Civil, o objecto do recurso delimita-se pelo conteúdo da decisão recorrida e pelas conclusões das alegações de recurso, sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso. Deste modo, o recurso tem como objecto unicamente a seguinte questão: • Erro de julgamento do acórdão recorrido ao não atribuir à autora indemnização pela privação do uso do imóvel dos autos. III – Fundamentação de facto Foram dados como provados os seguintes factos 1- A A. adquiriu em 16.07.2007 o prédio urbano, sito na Rua ..., ..., inscrito na matriz predial da união das freguesias de ... (... e ...) sob o artigo n.º ..68 e descrito na Conservatória do Registo Predial de ..., sob o n.º ..95 da referida freguesia, construindo no terreno edifício de rés do chão e primeiro andar para habitação, anexo de garagem , piscina e logradouro, tipologia T4, com a área total do terreno de 479,5000 m2, área de implantação de edifício de 137,6900 m2 e área bruta de construção de 249,1700 m2; 2- O 1º R. é sócio da A.; 3- Até ao dia 30 de Outubro de 2020 era igualmente um dos dois gerentes da sociedade; 4- A 2ª R. é casada com o 1º R.; 5- A sociedade A. tinha inicialmente 3 sócios, todos com idênticas participações sociais; 6- CC, irmão do 1º R., também é um dos sócios da A.; 7- AA, pai dos dois sócios já referidos, também era sócio; 8- AA faleceu em ... de ... de 2015; 9- A sociedade A. dedica-se à atividade de construção civil e venda ou arrendamento do edificado; 10- O imóvel identificado em 1) foi construído pela A., no âmbito da sua atividade comercial, tendo sido atribuído o alvará de autorização de utilização em 18/12/2009; 11- A A. construiu igualmente e em local contíguo, outro imóvel, sito na Rua ..., ..., inscrito na matriz predial da união das freguesias de ... (...) sob o artigo n.º ..69 e descrito na Conservatória do Registo Predial de ..., sob o n.º ..96 da referida freguesia, edifício de rés do chão e primeiro andar para habitação, anexo de garagem , piscina e logradouro, tipologia T4 com a área total do terreno de 475,8000 m2, área de implantação de edifício de 136,8200 m2 e área bruta de construção de 249,1700 m2; 12- A A. arrendou, em 16 de Abril de 2016, o imóvel identificado em 11); 13- Recebendo a renda de 1.200,00€ (mil e duzentos euros) mensais; 14- E colocou em venda o imóvel descrito em 1); 15- O imóvel descrito em 1) é ocupado desde Agosto de 2017, até ao presente pelos RR. e sua família; 16- No âmbito da acção de anulação de deliberações sociais intentada pelos ora RR contra a ora A. e que correu termos no Juízo de Comércio de ..., J... da Comarca de Lisboa Norte, sob o n.º de processo 3264/20.0... foi proferida sentença transitada em julgado, de onde consta: 17- «7. Na data da constituição da sociedade, foram designados gerentes os três sócios, pai e dois filhos; 18- 8. Registou-se a cessação da gerência do pai com o óbito; 19- 9. A sociedade é titular do rendimento tributável de três bens imóveis, duas moradias e um terreno; 20- 10. O A. e cônjuge ocupam uma das moradias; 21- 11. Inexiste decisão da gerência ou dos sócios nesse sentido. 22- 12. No dia 30 de Outubro de 2020, na sequência da convocatória remetida pelo sócio CC – documento 2 junto com a petição inicial -, ocorreu uma Assembleia Geral Extraordinária da sociedade R.. 23- 13. A Assembleia Geral Extraordinária teve lugar nas instalações de sociedade de advogados que representa o sócio CC – documento 3 junto com a petição inicial. 24- 14. Foi deliberado: a) destituir o sócio AA do cargo de gerente da sociedade, “com efeitos imediatos e por justa causa”, “por violação grave dos seus deveres de gerente. Com efeito, o aludido Senhor AA, sem autorização ou qualquer título, ocupou e ocupa gratuita e abusivamente um imóvel propriedade da sociedade (…) inscrito na matriz sob o número 9868 (…). Tal ocupação impede o arrendamento a terceiro ou a venda, o que tem ocasionado avultados prejuízos à sociedade pois este imóvel, um outro idêntico e ainda um lote de terreno para construção são os únicos bens desta sociedade, a qual neste momento e em face da atuação do gerente ora destituído, gera prejuízos anuais. (…)” ; 25- b) eleger como nova gerente da sociedade a Sra. D. DD; 26- c) excluir judicialmente de sócio AA, “em virtude do seu comportamento de gratuita e não consentida, recusando-se a entregar devoluto de pessoas e bens tal imóvel apesar de bem saber que a sociedade tem prejuízos com a sua atividade, só passíveis de serem invertidos se a sociedade conseguisse arrendar este imóvel ocupado ou, no limite, vender o mesmo”; 27- d) instaurar acção contra o sócio AA destinada a ressarcir os danos por este provocados e a restituição da posse do património da sociedade. ocupação e utilização de um imóvel propriedade da sociedade, (…)»; 28- Foi proferida decisão final na acção de anulação de deliberações sociais julgando a acção totalmente improcedente 29- Foi deduzido recurso sendo proferido Acórdão que revogou parcialmente a sentença recorrida e em consequência declarou «nula a deliberação aprovada em Assembleia Geral da R. realizada em 30 de Outubro de 2020 que excluiu o apelante de sócio»; 30- Os RR., em 29/05/2017, contrataram com a empresa “Águas....” o fornecimento de água para o imóvel descrito em 1), conforme Contrato de Abastecimento de Água e Drenagem de Águas Residuais assinado pelo 1.º R; 31- Quando CC, gerente da A. descobriu que os RR. tinham celebrado um contrato de fornecimento de água sem autorização da A., solicitou junto das “Águas....” que cancelasse esse contrato, invocando que a A. só se obriga com a assinatura de dois gerentes e, neste caso, o Sr. CC não havia assinado qualquer tipo de contrato de fornecimento de água; 32- A “Águas....”, em 6 de Março de 2019 atendeu ao pedido e cancelou o contrato de fornecimento de água; 33- Os RR. conseguiram celebrar novamente um contrato de fornecimento de água com a “Águas....”, porém agora em nome da 2.ª R.; 34- O imóvel descrito em 1) é uma vivenda com 2 pisos, é de tipologia t4, tem três casas de banho, uma cozinha, jardim, uma piscina e respectivo motor e acessórios, garagem, lareira e painéis solares; 35- A vivenda era nova, a estrear e equipada com material novo antes de os RR. a habitarem. 36- As casas de banho estavam equipadas com sanitas, bidés, banheiras, lavatórios, duches/chuveiros, coluna de hidromassagem, móveis e espelhos, com todos os acabamentos finais realizados; 37- A cozinha estava equipada com exaustor, lava louça, móveis, balde de lixo ecológico, separador de talheres e sistema de aspiração central; 38- Os quartos estavam equipados com roupeiros; 39- A piscina construída era assegurada pela casa das máquinas onde se encontrava o respectivo motor e era completada por um duche exterior; 40- O imóvel tinha sido logo equipado com portas de segurança, portas interiores, portas de vidro, portão a motor, sistema de aquecimento solar, aparelhos de ar condicionado, estores com rolos elétricos e lareira de dupla face; 41- O imóvel descrito em 1) teve proposta de compra em junho de 2016 que não se concretizou por falta de acordo do sócio gerente da sociedade A. CC; 42- Até 30 de Outubro de 2020 a A. vinculava-se com a assinatura de dois gerentes sendo uma delas a do R. AA; Factos dados como não provados: - A A. teve de se abster de promover a venda ou mesmo arrendamento do imóvel descrito em 1) pela ocupação dos RR; - Desde a construção dos imóveis descritos em 1) e 11) ficou acordado entre o R., o seu pai e o seu irmão CC que se o R. e o seu irmão quisessem tais imoveis seriam para cada um deles morar. IV – Fundamentação de direito 1. Recorde-se que a única questão objecto do presente recurso consiste em saber se o acórdão recorrido padece de erro de julgamento ao não ter atribuído à autora indemnização pela privação do uso do imóvel dos autos. Convém começar por referir que, em virtude da invocada ocupação irregular do imóvel dos autos pelos réus, a sociedade autora formulou os seguintes pedidos: - Que os réus fossem condenados a reconhecer e respeitar o seu direito de propriedade sobre o imóvel dos autos, bem como condenados a entregá-lo à autora devoluto de pessoas e bens; - Que os réus fossem condenados a pagar, a título de indemnização pelo dano de privação de uso do imóvel, a quantia de € 49.200,00, a que deve acrescer a quantia mensal de € 1.200,00 até à entrega do imóvel, acrescida dos juros de mora vencidos e vincendos; - Que os réus fossem condenados no pagamento de sanção pecuniária compulsória não inferior a € 100 diários a contar da notificação da sentença e até à entrega do imóvel livre de pessoas e bens; - Que os réus fossem condenados a pagar uma indemnização, a liquidar em execução de sentença, correspondente ao valor necessário para que o imóvel fique no estado em que estava antes da ocupação, assim como a proceder à substituição dos equipamentos do imóvel, incluindo o motor da piscina, por novos equipamentos da mesma gama. O Tribunal da 1.ª instância proferiu sentença decidindo: “a) Reconhecer o direito de propriedade da autora sobre o imóvel em causa; b) Condenar os réus a restituir à autora a posse do imóvel descrito em a), procedendo à sua desocupação imediata, integralmente livre de pessoas e de bens; c) Condenar os réus no pagamento de indemnização a liquidar em execução de sentença correspondente ao valor necessário para que o imóvel fique no estado que estava antes da ocupação pelos réus e com a reposição pelos RR. dos equipamentos do imóvel por novos equipamentos da mesma gama; d) Condena-se os réus no pagamento à autora, a título de sanção pecuniária compulsória, do valor de €100,00 diários, desde o trânsito da decisão até à entrega efectiva do imóvel à autora; e) Absolver os réus do demais peticionado”. Significa, assim, que a sentença condenou os réus nos pedidos da autora inerentes ao reconhecimento do direito de propriedade do imóvel e, declarando a ilicitude da ocupação do imóvel pelos réus, condenou-os a entregá-lo à autora; condenou-os também no pedido de indemnização (a liquidar) pelos danos e deterioração causados pela ocupação do imóvel, mas absolveu-os do pedido de indemnização pela invocada privação do uso do dito imóvel. Tendo ambas as partes apelado da decisão da 1.ª instância – a autora, no que se refere à absolvição do pedido indemnizatório pela privação do uso, e os réus, no que se refere à condenação no pagamento de indemnização pelos danos e deterioração causados pela ocupação do imóvel pelos réus –, o Tribunal da Relação julgou ambos os recursos improcedentes, confirmando a decisão recorrida. Do acórdão da Relação apenas a autora veio interpor recurso de revista na parte em que os réus foram absolvidos do pedido de indemnização pela privação do uso do imóvel. Importa, pois, reapreciar esta questão. 2. O Tribunal da 1.ª instância, admitindo, em tese geral, a ressarcibilidade do dano de privação de uso, considerou, porém, que, no caso dos autos, a existência de dano efectivo não se encontra provada, razão pela qual, nesta parte, absolveu os réus do pedido. No que respeita à problemática doutrinal e jurisprudencial em torno do critério probatório exigível neste domínio, o Tribunal da 1.ª instância enunciou – de forma essencialmente correcta – as seguintes diferentes posições: i. Posição segundo a qual “a privação do direito de uso e fruição integrado no direito de propriedade configura, por si só, um dano indemnizável, independentemente da utilização que se faça, ou não, do bem em causa durante o período da privação”; ii. Posição segundo a qual “a atribuição de uma tal indemnização depende da prova do dano concreto, ou seja, para a determinação do dano deve o lesado concretizar e demonstrar a situação hipotética que existiria se não fosse a lesão (ocupação ou privação do uso)”; iii. Posição segundo a qual, “apesar de não chegar a prova da privação da coisa, pura e simples, também não é de exigir a prova efetiva do dano concreto, bastando, antes, que o lesado demonstre que pretende usar a coisa, ou seja, que dela pretende retirar as utilidades (ou alguma delas) que a coisa normalmente lhe proporcionaria se não estivesse dela privado pela atuação ilícita do lesante”. Em seguida, pronunciou-se o Tribunal da 1.ª instância no sentido do acolhimento desta última orientação, considerou que, no caso dos autos – não obstante ter sido dado como provado que a autora é proprietária do imóvel (facto 1), que desde Agosto de 2017 os réus ocupam esse imóvel ilicitamente (facto 15) e que a autora colocou à venda o mesmo imóvel (facto 14) –, tal não basta para dar como provado um dano efectivo pela privação do uso do imóvel, uma vez que, por um lado, não foi provado que “[a] A. teve de se abster de promover a venda ou mesmo arrendamento do imóvel (…) pela ocupação dos RR.”; e, por outro lado, ficou provado que teve lugar uma “proposta de compra em junho de 2016 que não se concretizou por falta de acordo do [actual] sócio gerente da sociedade A. CC” (facto 41) Por outras palavras, o Tribunal da 1.ª instância deu como verificada a ilicitude da ocupação, mas não a existência de dano pela privação do uso causado por tal ocupação, na medida em que a sociedade autora não logrou fazer prova de que a dita ocupação a tivesse impedido de concretizar a finalidade (venda) a que destinava o imóvel, nem tampouco que o 1.º réu (sócio gerente da sociedade autora até 2020) tivesse impedido a realização de tal finalidade; tendo sido antes provado que a oportunidade de venda do imóvel, surgida no ano 2016, não foi concretizada em virtude da oposição do outro sócio da sociedade autora (o irmão do 1.º réu, CC) que é o actual gerente da sociedade. Por sua vez, o Tribunal da Relação sufragou na íntegra o juízo do Tribunal da 1.ª instância, julgando improcedente o recurso de apelação da autora e confirmando a decisão da 1.ª instância. 3. Insurge-se a autora, ora recorrente, contra esta decisão, alegando essencialmente o seguinte: - O entendimento do tribunal recorrido, de que o dano de privação do uso não é autónomo e passível de ser indemnizado, ignora que a própria ocupação de um bem por um terceiro é, automaticamente, uma violação do direito de propriedade sobre o bem e que, por isso, se consubstancia num dano, resultando a tese sob crítica num esvaziamento de uma parte considerável do conteúdo essencial do direito de propriedade e na diminuição dos poderes de uso, fruição e disposição; - O entendimento do tribunal recorrido viola a norma prevista no art. 562.º do CC, que contém o princípio de que os danos são para serem reparados, ao não atribuir indemnização, que é o modo de reparação, pelo dano sofrido de privação do uso; - O entendimento do tribunal recorrido viola o n.º 1 do art. 564.º do CC, que prevê que a obrigação de indemnização inclui, não só os danos emergentes, mas também os lucros cessantes, ao negar reconhecer o lucro cessante de privação do uso como um dano e a atribuir indemnização pela sua violação; - O entendimento do tribunal recorrido viola o art. 1305.º do CC, que prevê que o proprietário exerce, de modo pleno e exclusivo, o direito de uso, fruição e disposição do bem, ao não reconhecer que assim que o bem é ocupado por terceiro, que o proprietário deixa de ter o domínio sobre o bem e, por isso, fica logo impedido de exercer os seus poderes, independentemente de quaisquer estados subjectivos ou intenções; - O entendimento do tribunal recorrido viola o n.º 1 do art. 483.º, que prevê a responsabilidade do violador de direitos de terceiros, ao não reconhecer que a privação do uso é uma violação do direito de propriedade e que, por isso, o lesante tem de ser responsabilizado; - Em síntese, a tese da indemnização como dano autónomo preconizada pelas instâncias, e que se tem como a única possível, resulta da interpretação literal e teleológica das normas já referidas, sem necessidade de quaisquer interpretações extensivas ou restritivas, ou de criação de quaisquer ficções ou artificialidades e, crê-se, está totalmente enquadrada na coerência e sistematização do nosso ordenamento jurídico. Pugnam os recorridos pela manutenção de decisão recorrida. Quid iuris? 4. Com o devido respeito, afigura-se que labora a recorrente num equívoco ao pretender que “a tese da indemnização como dano autónomo” é “a única possível”, sendo a que “resulta da interpretação literal e teleológica das normas (…) referidas, sem necessidade de quaisquer interpretações extensivas ou restritivas”. Se assim fosse, não se compreenderia que a ressarcibilidade do dano de privação de uso tivesse tido um acolhimento tão tardio na doutrina e jurisprudência nacionais. Com efeito, sendo o Código Civil vigente do ano 1966, foi preciso esperar-se pelo século XXI para que, de uma forma geral, a comunidade jurídica nacional se manifestasse em sentido favorável a tal admissibilidade. Diversamente do alegado pela recorrente, foi precisamente o método próprio da interpretação e aplicação do direito – designadamente, o recurso à interpretação teleológica e à interpretação extensiva – que conduziu a uma alteração de paradigma em matéria de ressarcibilidade das consequências da privação de uso de um bem. Deste modo, e de forma sintética, considera-se que, diversamente do invocado pela recorrente: - O princípio geral da responsabilidade civil extracontratual (art. 483.º, n.º 1, do CC) não permite, por si só, dar como provado um dano efectivo de privação do uso, antes se limita a prever, entre os requisitos da responsabilidade, a existência de dano, sem dispensar a prova do mesmo; - A norma do art. 562.º do CC (“Quem estiver obrigado a reparar um dano deve reconstituir a situação que existiria, se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação”) pressupõe a existência de um dano, não dispensando a sua prova; - A norma do n.º 1 do art. 564.º do CC (“O dever de indemnizar compreende não só o prejuízo causado, como os benefícios que o lesado deixou de obter em consequência da lesão”) consagra a tradicional dicotomia entre danos emergentes e lucros cessantes, mas não dispensa a prova do dano; aliás, a qualificação invocada pela recorrente, segundo a qual o dano de privação de uso se enquadraria nos lucros cessantes, poderá fazer sentido em função do caso dos autos em que, na perspectiva da recorrente, o dano consistiria na perda de uma quantia pecuniária a título de preço de venda do imóvel em causa, mas já não o faria se acaso a autora tivesse, hipoteticamente, invocado que pretendia utilizar o imóvel como sede da sociedade e que a impossibilidade de o fazer lhe tinha acarretado custos acrescidos com o arrendamento de outro imóvel, hipótese em que o dano seria configurável como dano emergente; - Por fim, a norma do art. 1305.º do CC (“O proprietário goza de modo pleno e exclusivo dos direitos de uso, fruição e disposição das coisas que lhe pertencem, dentro dos limites da lei e com observância das restrições por ela impostas”), ao descrever o conteúdo essencial do direito de propriedade, permite aferir da verificação da ilicitude da conduta de quem, como o 1.º réu, utilizou o imóvel sem autorização da sociedade proprietária, mas não permite, por si só, aferir da existência de um dano efectivo para esta última. Ora, é precisamente a distinção entre ilicitude e dano – estrutural no sistema de responsabilidade civil – que leva a concluir, como concluíram as instâncias, que, para além da prova da ilicitude da conduta dos réus, é exigível a prova do dano causado por essa conduta. Em síntese de índole doutrinal da autoria da relatora do presente acórdão (Temas de Responsabilidade Civil, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2015, pág. 60), afirma-se o seguinte (a respeito da privação de uso de veículo automóvel, mas em termos válidos para a privação de uso de qualquer outro bem): “[A] doutrina se encontra dividida. Menezes Leitão [Direito das Obrigações, Vol. I, 11ª ed., cit., p 301] defende a ressarcibilidade da simples privação de uso de um bem. Paulo Mota Pinto [Interesse contratual negativo e interesse contratual positivo, Vol. I, cit., pp 568-596] recusa-a, invocando que, se a afectação das faculdades de uso e fruição, integrantes do direito de propriedade, constitui um acto ilícito, uma vez que ilicitude e dano não se confundem, a verificação daquela não gera automaticamente obrigação de indemnizar. Entende assim que a afectação da possibilidade de uso não é em si mesma um dano. A divergência resulta de diferentes concepções de dano. Consoante se entenda ou não que o dano consiste na afectação do conteúdo de destinação do direito [Em sentido afirmativo, cfr. MENEZES LEITÃO, Direito das Obrigações, Vol. I, 11ª ed., cit., p 297; em sentido negativo, cfr. P. MOTA PINTO, Interesse contratual negativo e interesse contratual positivo, Vol. I, cit., 586-588] dar-se-á uma resposta diferente à questão de saber se a perturbação da faculdade de uso e fruição que integra o direito de propriedade configura por si só um dano.” A posição negativa e respectiva argumentação tem tido acolhimento jurisprudencial significativo. Por exemplo, no Acórdão do STJ de 04/05/2010 (“A mera privação do uso do automóvel, constituindo embora um ilícito por impedir o seu uso e fruição nos termos do art. 1305º do Código Civil, só funda a obrigação de indemnizar provados os danos efectivamente causados pela mesma privação”), bem como nos Acórdãos do STJ de 15/11/2011, de 10/01/2012 e de 12/01/2012”. Aqui chegados, e ainda que se reconheça que a jurisprudência deste Supremo Tribunal nem sempre adoptou uma posição uniforme, não pode senão concluir-se que, ao longo dos anos, se foi consolidando o entendimento segundo o qual a privação de uso, em si mesma considerada, correspondente à verificação do pressuposto da ilicitude mas não do pressuposto do dano, afastando-se, assim, da construção dogmática defendida pela ora recorrente. Cfr. neste sentido, a título exemplificativo, os acórdãos deste Supremo Tribunal de 18.09.2018 (proc. n.º 108/13.2TBPNH.C1.S1), de 04.07.2023 (proc. n.º 1290/20.8T8AVR.P1.S1) e de 12.12.2023 (proc. n.º 393/17.0T8PVZ.P1.S1), todos consultáveis em www.dgsi.pt. Deste modo, acompanha-se o juízo das instâncias no sentido de que, para se responsabilizar os réus pela privação do uso do imóvel dos autos, não basta a prova da ilicitude da sua conduta, sendo também necessário que se prove a existência de dano para a sociedade autora. Ora, no caso dos autos, não obstante ter sido feita prova de que a autora colocou à venda o imóvel (facto provado 14), tal não basta para dar como provado o dano de privação de uso, na medida em que, por um lado, não foi provado que “[a] A. teve de se abster de promover a venda ou mesmo arrendamento do imóvel (…) pela ocupação dos RR.”, e, por outro lado, foi provado que teve lugar uma “proposta de compra em junho de 2016 que não se concretizou por falta de acordo do [actual] sócio gerente da sociedade A. CC” (facto provado 41). Deste modo, sufraga-se a conclusão das instâncias de acordo com a qual a sociedade autora não logrou fazer prova de que a ocupação do imóvel a tivesse impedido de concretizar a finalidade (venda) a que destinava o imóvel, nem tampouco que o 1.º réu (sócio gerente da sociedade autora até 2020) tivesse impedido a realização de tal finalidade; antes tendo sido provado que a oportunidade de venda, surgida no ano 2016, não foi concretizada em virtude da oposição do outro sócio da autora (irmão do aqui 1.º réu) que é o actual gerente da mesma sociedade. A tutela da sociedade autora, proprietária do imóvel, em sede de responsabilidade civil, encontra-se assim restringida à indemnização pelos danos e deterioração que a utilização do imóvel causou ao imóvel e aos equipamentos, questão, porém, que se encontra fora do objecto do presente recurso de revista. Por não integrar o objecto da acção, tampouco pode ser equacionada a eventual possibilidade de tutela da sociedade autora ao abrigo do instituto do enriquecimento sem causa. V – Decisão Pelo exposto, julga-se o recurso improcedente, confirmando-se a decisão recorrida. Custas pela recorrente Lisboa, 15 de Maio de 2025 Maria da Graça Trigo (relator) Carlos Portela Catarina Serra |