Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
30657/23.8T8LSB-B.S1
Nº Convencional: 3.ª SECÇÃO
Relator: MARIA DO CARMO SILVA DIAS
Descritores: HABEAS CORPUS
FUNDAMENTO
PROMOÇÃO
PROTEÇÃO DA CRIANÇA
ACOLHIMENTO RESIDENCIAL
INDEFERIMENTO
Data do Acordão: 06/26/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: HABEAS CORPUS
Decisão: IMPROCEDÊNCIA / NÃO DECRETAMENTO
Sumário :
I. De acordo com a maior parte da jurisprudência do STJ é admissível alargar a providência do habeas corpus à medida de promoção e proteção de crianças e jovens de “acolhimento residencial”, atenta a sua natureza e finalidade, uma vez que não deixa de ser uma medida limitativa da liberdade e de direitos fundamentais (ainda que não tenha uma finalidade punitiva, como a medida tutelar educativa), tanto mais que (como se esclarece no ac. do STJ de 2.06.2021) constitui também uma medida que origina uma “compressão do direito à unidade familiar”.

II. Vistos os elementos constantes deste habeas corpus, verifica-se que o processo de promoção e proteção onde foi aplicada a medida de acolhimento residencial à menor tem sido tramitado de forma urgente e de acordo com os preceitos legais aplicáveis, tendo em atenção o superior interesse da criança, não se mostrando ultrapassados os prazos ali fixados.

III. A medida de acolhimento residencial encontra-se legalmente prevista (arts. 35.º, n.º 1, al. f) e 49.º da LPCJP), foi aplicada por decisão judicial e pelo tribunal competente, não se mostrando excedido qualquer prazo legal, pelo que não se pode concluir que a menor esteja “presa” ou “detida” ilegalmente.

IV. O habeas corpus não serve para discutir decisões proferidas noutros tribunais, como seja, as do juízo de família e menores (as quais, verificando-se os respetivos pressupostos deverão ser impugnadas pelos meios próprios - art. 123.º, da LPCJP).

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


I. Relatório

1. AA e BB, progenitores da menor CC, nascida em ........2007, vieram conjuntamente, através de Mandatária, em 19.06.2024 apresentar providência de habeas corpus, nos termos do art. 222.º, n.º 1 e n.º 2, al. c), do CPP, invocando os seguintes fundamentos (transcrição sem negritos, nem sublinhados, nem itálicos):

I) - Por decisão do Tribunal a quo, procedeu-se em 18.12.2023 à aplicação de medida provisória de medida de Acolhimento residencial da menor CC pelo período de 3 meses.

II) Por despacho datado de 18.03.2024, notificado aos progenitores em 20.03.2024 o Tribunal proferiu o seguinte despacho: “Pese embora não se disponha de informação atualizada, na presente data, tudo indica que se mantêm inalterados os pressupostos, de facto e direito, que determinaram a aplicação, a título cautelar e provisório, da medida de acolhimento residencial em benefício da jovem CC, única que, por ora e à míngua de ulteriores informações, acautela e promove a sua segurança, saúde, formação e íntegro desenvolvimento, pelo que decide-se prorrogar a sua execução pelo período de 3 (três) meses”

III) Prorrogando assim por mais três meses a medida provisoriamente decretada.

IV) Tendo tal medida provisória atingido o seu limite legalmente admissível ( 6 meses) em 18.06.2024 , inexistindo qualquer despacho persistindo o acolhimento residencial da menor para além do prazo estipulado por lei, art.37.º, n.º3 da LPCJP

V) Mantendo-se a menor com aplicação de medida cautelar mais gravosa, para além do legalmente admissível , em franco prejuízo da menor e dos progenitores! Mostrando-se assim violados os princípios da proporcionalidade e da prevalência da família, que pressupõem, o segundo, a existência duma família capacitada para assegurar o bem-estar dos menores e mantê-los afastados dos perigos que os possam afectar e, o primeiro, uma intervenção adequada à situação real verificada.

VI) Pelo que se entende, sendo jurisprudência maioritário do STJ que se aplica ao presente caso o instituto jurídico de Habeas Corpus visando a imediata restituição da menor à liberdade (artigos 4.º. alínea h), 34.º, alíneas a) e b), 35.º, n.º1, alínea f), da Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo (LPCJP) e 13.º e 31.º da Constituição da República Portuguesa).

VII) Em consonância com o disposto art.31.º da Constituição da República Portuguesa, e bem assim o disposto no art.222.º, n.º2, do Código de Processo Penal, estabelece como pressupostos de habeas corpus, em virtude de prisão ilegal: a) Ter sido efetuada ou ordenada por entidade incompetente; b) Ser motivada por facto pelo qual a lei a não permite; ou c) Manter-se para além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial.».

VIII) Com o acórdão do S.T.J. de 18-01-2017 (proc. n.º 3/17.6YFLSB, in www.dgsi.pt), passou a admitir-se, também, a aplicação do regime penal de habeas corpus à medida de promoção e proteção de acolhimento residencial, podendo ler-se, nos primeiros pontos do sumário desta decisão: “I - Não obstante a medida de promoção e proteção prevista no art.35.º, n.º 1, al. f), da LPCJP, ter por finalidade o afastamento do perigo em que a criança se encontra e proporcionar-lhe as condições favoráveis ao seu bem-estar e desenvolvimento integral, ela não deixa de traduzir uma restrição de liberdade e, nessa medida, mesmo que não caiba nos conceitos de “detenção” e de “prisão” a que aludem os arts. 220.º e 222.º do CPP, configura uma privação da liberdade merecedora da proteção legal concedida pela providência extraordinária de “habeas corpus”, sob pena das ilegais situações de excesso da sua duração, por decurso do seu prazo máximo de duração (6 meses) ou por omissão de revisão (findos os 3 meses), ficarem desigualmente protegidas em relação aos casos de detenção ou prisão ilegais. II - Daí que, embora o CPP, nos seus arts. 220.º e 222.º, n.º 1, preveja apenas a medida de habeas corpus para a detenção e prisão ilegais, atenta a filosofia subjacente a estas normas, tem-se por adequado aplicar, ao abrigo do disposto no art.4.º do CPP e por analogia, o regime do “habeas corpus” previsto no citado art.222.º ao caso dos autos, ou seja, à medida de provisória de acolhimento residencial do menor, sob pena de situações análogas gozarem de tratamento injustificadamente dissemelhante, com a consequente violação do princípio da igualdade consagrado no art.13.º da CRP.”.

IX) assim , não obstante a finalidade da medida de acolhimento residencial constituir uma realidade distinta das situações específicas a que se reporta o instituto do habeas corpus, considerou o STJ que a medida é aplicável num caso de limitação ou restrição da garantia de liberdade, socorrendo-se de entre outros textos legais do citados artigos 27.º, n.º3 da C.R.P., que admite a privação da liberdade através da “sujeição do menor a medidas de proteção, assistência ou educação em estabelecimento adequado, decretadas pelo tribunal judicial competente”, do art.5.°, n.º1 da CEDH , que dispõe que “ninguém pode ser privado da sua liberdade, salvo nos casos seguintes e de acordo com o procedimento legal», incluindo o caso de «Se se tratar da detenção legal de um menor, feita com o propósito de o educar sob vigilância, ou da sua detenção legal com o fim de o fazer comparecer perante a autoridade competente” (alínea d)).

X) No mesmo sentido, pronunciaram-se, entre outros, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 09-06-2021 (proc. n.º 6/21.6T1PTG.S1) e de 23-07-2021 (proc. n.º 2943/20.6T8CBR-A.S1),[9] acrescentando como argumentos, designadamente, a definição ampla de privação da liberdade que resulta do ponto 11 do Anexo, relativo às Regras das Nações Unidas para a Proteção dos Jovens Privados de Liberdade, adotadas pela Assembleia Geral das Nações Unidas na sua Resolução 45/113, de 14.12.1990 - «privação de liberdade significa qualquer forma de detenção, de prisão ou a colocação de uma pessoa, por decisão de qualquer autoridade judicial, administrativa ou outra autoridade pública, num estabelecimento público ou privado do qual essa pessoa não pode sair pela sua própria vontade» - e o art.37.º, alínea d) da Convenção Sobre os Direitos da Criança, adotada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 20 de Novembro de 1989 e ratificada por Portugal em 21.9.1990, enquanto dispõe que «A criança privada de liberdade tem o direito de aceder rapidamente à assistência jurídica ou a outra assistência adequada e o direito de impugnar a legalidade da sua privação de liberdade perante um tribunal ou outra autoridade competente, independente e imparcial, bem como o direito a uma rápida decisão sobre a matéria.».

XI) Falando-se mesmo numa intolerável violação do princípio da igualdade, consagrado no art.13.º da Constituição da República Portuguesa, não admitir o regime de habeas corpus em situações de sujeição do menor a medidas de proteção, como a de acolhimento residencial.

XII) Pese embora a natureza e finalidades da medida de promoção e proteção de acolhimento residencial, entendemos, como cremos ser o entendimento da maioria da jurisprudência do STJ que originando esta medida uma compressão do direito da criança à unidade familiar, é equiparável, de algum modo à prisão e detenção ilegal para efeitos de aplicação do regime do “habeas corpus”.[10]

XIII) O art.36.º da Constituição da República Portuguesa, ao tutelar a família, o casamento e a filiação, no capítulo dos «Direitos, liberdades e garantias», impõe ao legislador um específico dever de proteger a família e as crianças, garantindo a estas o direito à proteção da sociedade e do Estado, com vista ao desenvolvimento da sua personalidade integral.

XIV) A Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo, que tem por objeto a promoção dos direitos e a proteção das crianças e dos jovens em perigo, por forma a garantir o seu bem-estar e desenvolvimento integral, estabelece sobre a legitimidade daquela intervenção, no seu art.3.º, com interesse para a decisão: «1 - A intervenção para promoção dos direitos e proteção da criança e do jovem em perigo tem lugar quando os pais, o representante legal ou quem tenha a guarda de facto ponham em perigo a sua segurança, saúde, formação, educação ou desenvolvimento, ou quando esse perigo resulte de ação ou omissão de terceiros ou da própria criança ou do jovem a que aqueles não se oponham de modo adequado a removê-lo. 2 - Considera-se que a criança ou o jovem está em perigo quando, designadamente, se encontra numa das seguintes situações: (…); c) Não recebe os cuidados ou a afeição adequada à sua idade e situação pessoal;».

XV) Os princípios orientadores da intervenção para a promoção dos direitos e proteção da criança e do jovem em perigo são, nos termos do seu art.4.º: o interesse superior da criança; o da intervenção mínima; o das responsabilidades parentais; do primado da continuidade das relações psicológicas profundas; e da prevalência da família.

XVI) De acordo com o disposto no art.34.º, da LPCJP, «As medidas de promoção dos direitos e de proteção das crianças e dos jovens em perigo visam: a) Afastar o perigo em que estes se encontram; b) Proporcionar-lhes as condições que permitam proteger e promover a sua segurança, saúde, formação, educação, bem-estar e desenvolvimento integral; c) Garantir a recuperação física e psicológica das crianças e jovens vítimas de qualquer forma de exploração ou abuso.».

XVII) Estas medidas de promoção e proteção encontram-se elencadas nas alíneas a) a g) do n.º 1 do art.35.º da LPCJP, constando a medida de «acolhimento residencial» da alínea f).

XVIII) A medida de «acolhimento residencial» consiste, nos termos do art.49.º da LPCJP, «..na colocação da criança ou jovem aos cuidados de uma entidade que disponha de instalações, equipamento de acolhimento e recursos humanos permanentes, devidamente dimensionados e habilitados, que lhes garantam os cuidados adequados (n.º1), e tem como finalidade «…contribuir para a criação de condições que garantam a adequada satisfação de necessidades físicas, psíquicas, emocionais e sociais das crianças e jovens e o efetivo exercício dos seus direitos, favorecendo a sua integração em contexto sociofamiliar seguro e promovendo a sua educação, bem-estar e desenvolvimento integral» (n.º2).

XIX) O «acolhimento residencial» tem lugar em casa de acolhimento e obedece a modelos de intervenção socioeducativos adequados às crianças e jovens nela acolhidos (art.50.º, n.º1), ou seja, esta medida retira o exercício das responsabilidades (e guarda da criança) a quem não se encontra em condições de as exercer, entregando-as a uma instituição terceira.

XX) À exceção da medida de «confiança a pessoa selecionada para a adoção a família de acolhimento ou a instituição com vista a adoção», a que alude a g) do n.º 1 do art.35.º da LPCJP, todas as medidas de promoção e proteção podem ser decididas a título cautelar.X esta medida uma compressão do direito da criança à unidade familiar, é equiparável, de algum modo à prisão e detenção ilegal para efeitos de aplicação do regime do “habeas corpus”.[10]

XXI) É o que resulta do art.35.º, n.º 2 da LPCJP, ao dispor que «As medidas de promoção e de proteção são executadas no meio natural de vida ou em regime de colocação, consoante a sua natureza, e podem ser decididas a título cautelar, com exceção da medida prevista na alínea g) do número anterior.».

XXII) Sobre as circunstâncias em que podem ser aplicadas medidas cautelares estabelece o art.37.º, n.º1 da LPCJP: «A título cautelar, o tribunal pode aplicar as medidas previstas nas alíneas a) a f) do n.º 1 do artigo 35.º, nos termos previstos no n.º 1 do artigo 92.º, ou enquanto se procede ao diagnóstico da situação da criança e à definição do seu encaminhamento subsequente.».

XXIII) O art.92.º, n.º1 da LPCJP, a que alude o art.37.º, n.º1 da mesma Lei, dispõe, designadamente, que o tribunal, a requerimento do Ministério Público, quando lhe sejam comunicadas situações de existência de perigo atual ou iminente para a vida, ou de grave comprometimento da integridade física ou psíquica da criança ou jovem e na falta de consentimento, designadamente dos detentores das responsabilidades parentais, profere decisão provisória, no prazo de quarenta e oito horas, confirmando as providências tomadas para a imediata proteção da criança ou do jovem, aplicando qualquer uma das medidas previstas no artigo 35.º ou determinando o que tiver por conveniente relativamente ao destino da criança ou do jovem.

XXIV) Por fim, quanto à duração das medidas cautelares, dispõe o art.37.º, n.º3 da LPCJP, que «As medidas aplicadas nos termos dos números anteriores têm a duração máxima de seis meses e devem ser revistas no prazo máximo de três meses.».

XXV) Ora, se atentarmos no supra exposto constatamos que à menor foi aplicada medida provisória de acolhimento em residência, pelo prazo de 3 meses, em 18.12.2023, sendo que decorrido tal prazo veio a medida a ser prorrogada em 18.03.2024 por mais três meses, atingindo a sua duração máxima em 18.06.2024, sendo que , os prazos máximos legalmente admissíveis foram atingidos e nada mais foi dito pelo tribunal, o que configura uma situação de privação ilegal da liberdade da menor sua filha, ao abrigo do art.222.º, n.º2, al. c), do C.P.P.,

XXVI) Porquanto, se encontram ultrapassados os prazos legais.

XXVII) Em face do regime legal exposto, conclui-se que a menor, que se encontra sujeita à medida provisória de acolhimento em residência se encontra numa situação análoga à de quem se encontra ilegalmente preso, fundada no facto de se manter a medida aplicada para além do prazo fixado por lei, art. 37º nº 3 da LPCJP art. 222º nºs 1 e 2 al. c) do CPP.

Termina, pedindo a junção aos autos de Cópia da decisão que aplicou a medida provisória de acolhimento residencial de 18.12.2023, de Cópia do despacho datado de 18.03.2024 que determinou a prorrogação da medida provisória de acolhimento residencial e a procedência do presente Habeas Corpus, sendo determinada a ilegalidade da medida de acolhimento residencial aplicada à menor desde 18.06.2024.

2. A Srª. Juiz prestou a informação a que se refere o art. 223.º, n.º 1, do CPP, nos seguintes termos (transcrição sem negritos, nem sublinhados, nem itálicos):

Junte aos autos cópia da douta promoção de 20.06.2024 e do despacho proferido hoje nos autos principais.


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I.

Os progenitores da jovem CC, nascida a ........2007 (16 anos de idade), fundamentam a presente providência de habeas corpus no disposto no artigo 222º, ns.º 1 e 2, alínea c), do Código de Processo Penal, invocando que a medida cautelar de acolhimento residencial aplicada em benefício da jovem alcançou o seu prazo máximo, 6 meses.

Afigura-se-nos, contudo, que o fundamento improcede.

Vejamos melhor:


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II.

Da documentação junta aos autos e declarações prestadas pela jovem (a que foi atribuída confidencialidade, por ora) e pelos progenitores, que se mostram gravadas, indicia-se a seguinte factualidade:

1. A ação de promoção e proteção foi instaurada no dia 18.12.2023, em benefício da jovem CC, de etnia ....

2. Sinalizou-se à data, que os pais da jovem, à guarda e cuidados de quem esta última se encontrava, pretendiam casá-la com um noivo “destinado” e que não a queriam deixar prosseguir os estudos, o que lhe terá causado tristeza.

3. Em consequência do descrito em 2), a jovem terá ingerido comprimidos paracetamol, seguindo-se uma queda no domicílio, de 10 degraus.

4. Em consequência direta e necessária da queda, a jovem terá sofrido um traumatismo parieto occipital e outro na região lombo sagrada, obrigando-a a internamento hospitalar.

5. Por decisão datada de 18.12.2023, foi aplicada, em benefício da jovem, a medida de acolhimento residencial a título cautelar, pelo período de três meses, por se indiciarem os factos acima descritos.

6. A jovem manteve-se internada no serviço de Pediatria do Hospital ... até 11.01.2024.

7. No dia 11.01.2024, a jovem foi acolhida na Casal ..., Associação do ....

8. A jovem adaptou-se à Casa de Acolhimento, retomou a frequência escolar e recebe visitas dos progenitores e da família alargada, havendo manifestações de afeto.

9. A medida de acolhimento residencial foi revista por despacho datado de 18.03.2024 e prorrogada a sua execução pelo período de 3 (três) meses, por se manterem os pressupostos, de facto e direito, que determinaram a sua aplicação.

10. O despacho datado de 18.03.2024 foi notificado aos progenitores por ofício expedido a 20.03.2024.

11. Junto, no dia 28.03.2024, o relatório intercalar de acompanhamento da execução da medida pelo NATT-PP e informação da CA, os técnicos do NATT-PP, da CA e a jovem foram ouvidas em juízo no dia 29.04.2024.

12. Por despacho datado de 02.05.2024 foi ordenado oficiar ao estabelecimento de ensino frequentado pela jovem a remessa de cópia da última avaliação de desempenho, informação sobre o desempenho atual, assiduidade, pontualidade, relação da jovem com os pares e adultos e data prevista para o termo do ano letivo.

13. A informação escolar foi junta aos autos no dia 10.05.2024.

14. Os progenitores foram ouvidos em juízo no dia 20.05.2024.

15. No dia 20.05.2024, foi junta aos autos a nota da alta de fls. 142, donde consta, entre o mais, o seguinte: “No dia anterior foi trazida ao SU pelos pais porque queriam saber se ainda era virgem (não chegou a ser observada).”

16. Por despacho datado de 20.05.2024 foi ordenado que se oficiasse ao Hospital ... a remessa da documentação clínica da jovem e se aguardasse a junção, pelo NATT-PP, da conclusão da avaliação psicológica da jovem.

17. No dia 22.05.2024, a CA juntou aos autos a informação de fls. 146-147, a que foi atribuída confidencialidade.

18. No dia 05.06.2024, o Serviço de Neurologia Pediátrica juntou aos autos a informação solicitada.

19. Por despacho datado de 21.06.2024, foi prorrogada a execução da medida de acolhimento residencial aplicada em benefício da jovem por mais 6 (seis) meses, a rever em 3 (três) meses.

20. Foi ainda ordenado que se oficiassem informações à Escola e ao Hospital ..., que o NATT-PP juntasse, em 10 dias, o relatório intercalar de acompanhamento da execução da medida em curso e o relatório de avaliação psicológica, e ainda, determinada a realização de perícia psicológica aos progenitores e à jovem.

21. O despacho a que se alude em 19) não foi notificado aos progenitores.


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III.

Nos termos do disposto no artigo 34º da Lei de Proteção de Crianças e Jovens em Perigo: “As medidas de promoção dos direitos e de proteção das crianças e dos jovens em perigo, adiante designadas por medidas de promoção e proteção, visam: a) Afastar o perigo em que estes se encontram; b) Proporcionar-lhes as condições que permitam proteger e promover a sua segurança, saúde, formação, educação, bem-estar e desenvolvimento integral; c) Garantir a recuperação física e psicológica das crianças e jovens vítimas de qualquer forma de exploração ou abuso.”

De acordo com o artigo 37º, ns.º 1 e 3, do mesmo diploma: “1 - A título cautelar, o tribunal pode aplicar as medidas previstas nas alíneas a) a f) do n.º 1 do artigo 35.º, nos termos previstos no n.º 1 do artigo 92.º, ou enquanto se procede ao diagnóstico da situação da criança e à definição do seu encaminhamento subsequente. (…) 3 - As medidas aplicadas nos termos dos números anteriores têm a duração máxima de seis meses e devem ser revistas no prazo máximo de três meses.”.

Com efeito, verificada uma situação de perigo, cabe removê-la por meio da aplicação de medidas de promoção e proteção adequadas e necessárias, orientando-se a intervenção protetiva de acordo com os princípios orientadores a que alude o artigo 4º do mesmo diploma e de molde a afastar a criança e/ou o jovem do perigo em que se encontra, proporcionar-lhe condições que protejam e promovam a sua segurança, saúde, formação, educação, bem-estar e desenvolvimento integral e garantam a sua recuperação física e psicológica.

No caso em apreço, ponderada a factualidade indiciada temos que a medida cautelar de acolhimento residencial foi aplicada em benefício da jovem CC por despacho datado de 18.12.2023.

Todavia, a medida só iniciou a sua execução no dia 11.01.2024, cfr. fls. 79 e 81-82, após alta clínica da jovem e na sequência de mandados de condução da jovem do estabelecimento hospitalar onde estava internada à Casa de Acolhimento.

Donde, porque o prazo de 6 (seis) meses posto em crise pelos progenitores ainda não se alcançou, fica afastada a conclusão de que o prazo de duração da medida foi atingido.

Seja como for, o escopo da intervenção, os fins que a legitimam e os bens que com ela se protegem e promovem, não se coaduna com a interpretação de que tais prazos são de duração máxima e/ou de natureza perentória, antes se compatibilizando com a orientação de que estão em causa prazos indicativos, orientadores, que impõem uma avaliação célere da situação de vida da criança e da família, tanto mais que os autos têm natureza urgente, por forma a que, debelando e acautelando a situação de perigo, se defina um seguro encaminhamento e projeto de vida em defesa do seu superior interesse.

Acresce, estarmos em presença de processos de jurisdição voluntária, relativamente aos quais o Tribunal não está sujeito a critérios de legalidade estrita, antes devendo orientar-se e adotar em cada caso a solução que julgue mais conveniente e oportuna – cfr. artigos 100º da Lei de Promoção e Proteção de Crianças e Jovens em perigo e 987º do Código de Processo Civil.

Como doutamente se sumariou no recente Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 06.02.2024, processo n.º 4417/22.1 T8LRA-A.C1: “I – No âmbito do processo de promoção e proteção, com aplicação da medida de acolhimento residencial, o prazo a que se refere o art.º 37.º, n.º 3, da LPCJP (prazo máximo de 6 meses) é meramente indicativo – não imperativo –, não impondo, por isso, o seu esgotamento a imediata declaração de cessação da medida aplicada. II – Também é meramente indicativo o prazo previsto no art.º 109.º, da LPCJP (prazo máximo de 4 meses de duração da instrução), não impondo o seu esgotamento o imediato encerramento da fase da instrução. III – Em tais situações, prevalece sempre o superior interesse do menor, importando aferir se está justificado o motivo da prorrogação de prazo, como no caso de estar em curso a recolha de elementos probatórios relevantes para a decisão.”.

Também ali se explicou: “os interesses das crianças ou jovens em perigo podem (e amiúde o são) ser conflituosos e distintos dos interesses da própria família natural, que deles não soube ou não quis cuidar em termos de salvaguardar o interesse das crianças ou jovens em risco, havendo, pois, em tais casos, de dar prevalência aos interesses das crianças ou jovens em risco e procurar fora dos laços de família natural, o que esta não lhe proporcionou, designadamente, encontrar fora da família natural uma solução ou alternativa que permita que as crianças ou jovens em risco possam vir a obter o que não lhes foi propiciado por quem a tal estava adstrito.

Se o interesse do menor passar por postergar a sua permanência no seio da família natural, deve ser o interesse desta em que tal aconteça sacrificado aos legítimos interesses dos menores em risco que têm direito, fora dela, a que lhes sejam criadas condições para minimizar ou neutralizar tal risco a fim de os mesmos passarem a ter condições para o seu desenvolvimento são, livre e harmonioso.

O interesse dos menores, nos moldes atrás expostos não pode ceder perante interesses de “posse” da família natural relativamente às crianças ou jovens em risco, sob pena de subversão dos princípios que regem a protecção dos menores e crianças que se encontrem numa situação de perigo.”

No mesmo sentido, também o douto Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 13.09.2022, processo n.º 1276/21.5 T8CLD-C.C1, sumariou: “I - A LPCJP tem por objeto a promoção dos direitos e a proteção das crianças e dos jovens em perigo, por forma a garantir o seu bem-estar e desenvolvimento integral, sendo esse o seu escopo, na defesa do superior interesse da criança e do jovem, sujeitos débeis na relação familiar complexa e conflitual. II - O decurso do prazo a que alude o art.º art.º 37.º, n.º 3, da LPCJP (Lei n.º 147/99, de 01-09, com as alterações posteriores) não implica, apesar da natureza urgente dos autos, a cessação automática da medida provisória aplicada, perante situação de emergência, por quadro de grave risco de pessoa menor. III - Não sendo a celeridade um valor absoluto, em termos de se superiorizar ao interesse da criança ou do jovem – a que está funcionalizada –, pode, excecionalmente, em casos devidamente justificados, a mediada provisória ser prorrogada pelo tempo mínimo que se mostre indispensável IV- Do mesmo modo, também o prazo da instrução do processo de promoção e proteção – com um máximo de quatro meses (art.º 109.º da LPCJP) – poderá ser, excecionalmente e em casos devidamente justificados, prolongado pelo tempo estritamente necessário para se obter prova essencial à decisão final dos autos, designadamente prova técnica/pericial, sem a qual poderia ficar em causa a justa composição do diferendo e o superior interesse da criança ou do jovem. V - Não pode o tribunal, na impossibilidade prática de observância desse prazo, atentas as vicissitudes probatórias e circunstanciais do caso, tomar uma posição que tenha como resultado a exposição da criança ou do jovem ao perigo que se pretende evitar.”

Ora, no caso em apreço, os autos de promoção e proteção ainda se encontram na fase de instrução e nele estão em curso diligências instrutórias destinadas à comprovação do perigo indiciado, nesta data já reforçado, e à definição do encaminhamento e do projeto de vida da jovem.

Termos em que se considera que está justificada a prorrogação da medida por mais seis meses, a rever em três, sem prejuízo da sua oportuna cessação e/ou substituição, nomeadamente por outra medida protetiva menos ingerente e restritiva dos direitos da criança e da família, maxime de apoio junto dos pais, logo que se possa concluir que a família não constitui a fonte de perigo da jovem, mas antes o seu amparo e conforto.

Pelo exposto, e em cumprimento do artigo 223º, n.º 1, do Código de Processo Penal, afigura-se-nos que soçobra fundamento que legitime a providência de habeas corpus, sendo de manter a medida de promoção e proteção de acolhimento residencial aplicada por só assim se promover e proteger a jovem CC.

V. Exas., Colendos Conselheiros, farão, contudo, Justiça.


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Remeta os autos, de imediato, a Sua Excelência, o Excelentíssimo Senhor Conselheiro, Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, e disponibilize o acesso eletrónico a todos os apensos.

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3. Realizada a audiência aludida no art. 223.º, n.º 3, do CPP, cumpre conhecer e decidir.

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II. Fundamentação

4. Factos

Extrai-se da consulta do Citius relativa a este habeas corpus, articulada com a petição junta a esta providência, o seguinte com interesse para esta decisão:

a) - no procedimento judicial urgente n.º 30657/23.8T8LSB do Juízo de Família e Menores de ..., Juiz..., da comarca de ..., foi proferido em 18.12.2023 o seguinte despacho judicial:

I Aplicação de medida provisória

Relatório

1. O Ministério Público requereu:

a) a aplicação imediata da medida de acolhimento residencial da jovem, CC, nascida em ........2007, filha de AA e de BB, residente na Rua ..., ..., em instituição a indicar,

b) que o processo siga os seus termos como processo judicial de promoção e proteção;

c) se declare aberta a instrução ordenando-se a realização de relatório social e se designe data para audição da jovem e do Diretor da Casa de Acolhimento onde venha a ser acolhida,

Como fundamento dos requerimentos alegou: que a jovem caiu das escadas, tendo ingerido comprimidos em quantidade não apurada; que se encontra hospitalizada, mas com alta clínica, não tendo condições para regressar a casa dos pais, onde vivia, porquanto é de etnia ... e os progenitores pretendem casá-la, não sendo essa a sua vontade.

Que a CPCJ determinou o arquivamento do processo, por falta de adesão dos pais à intervenção, e a remessa a este tribunal com vista à aplicação de medida cautelar de acolhimento de urgência.

2. Apreciação Jurídica

2.1. Confirmação de decisão provisória de proteção da jovem

Atendendo à pretensão formulada e seus fundamentos, em confronto com os factos indiciariamente apurados a que se aludiu supra, no relatório, verifica-se que importa decidir se deve ou não confirmar-se a providência tomada para a imediata proteção da jovem (vide arts.91° e 92.º/ 1, da LCPJP, aprovada pela Lei n° 147/99, de 1 de Setembro, com as alterações introduzidas pela Lei n.°142/2015, de 8 de setembro).

Assim, em face da matéria indiciada, de onde resulta um perigo atual e iminente para a segurança e bem-estar da jovem CC, porquanto os seus progenitores desvalorizam o seu sofrimento e vontade de seguir uma vida diferente daquela que por eles é imposta, querendo casá-la com noivo que já está destinado, sendo o regresso a casa dos pais uma solução com graves riscos para a sua saúde e forte impacto no bem estar emocional, desconhecendo-se neste momento outros familiares que se possam constituir como alternativa, haverá que confirmar a medida aplicada pela CPCJ, por ser a única que salvaguarda os interesses da jovem.

Por conseguinte, decido aplicar a favor da jovem CC, a título provisório e cautelar, a medida de acolhimento residencial de curta duração, devendo esta ficar acolhida na Casa de Acolhimento que vier a ser indicada, enquanto se procede ao diagnóstico da sua situação vivencial (vide arts. 34°, 35°/l- f) e n° 2, 37.º/1, 49°, 50°, 51.º/4 e 5 e 92° da LPCJP).

Mais deverá a jovem permanecer no Hospital ... até indicação da casa de acolhimento para onde ser transferida.

Como entidade adequada para acompanhar a execução da medida designar-se-á o NATT-PP da SCML (vide art.° 5973 da LPCJP).

2.2. Abertura de instrução em processo judicial de promoção e protecção

Proferida decisão provisória de confirmação da medida aplicada à menor, o presente processo segue como processo judicial de promoção e protecção, com a realização das diligências instrutórias pertinentes (vide arts.92.º/3,100° ss, 106° e ss da LPCJP).

III. Decisão

Pelo exposto:

1. confirmo a providência tomada para a imediata proteção da jovem CC, na sequência do que,

1.2. Aplico à jovem CC a medida de promoção e proteção provisória de acolhimento residencial, pelo prazo de 3 meses;

1.3. Oficie à equipa de gestão de vagas solicitando a indicação muito urgente de Casa de Acolhimento para a integração da jovem, devendo esta aguardar no estabelecimento hospitalar - Hospital ... - a indicação da CA onde será acolhida.

2. Determino o prosseguimento do presente processo como processo judicial de promoção e proteção, em fase de instrução, na sequência do que:

2.1. Designo o NATT-PP para acompanhar a execução desta medida.

2.2. Solicite ao NATT-PP a realização de relatório social que avalie as alternativas de promoção e proteção para esta jovem.

Relega-se para momento ulterior à junção do relatório a designação de data para proceder à audição da jovem, dos progenitores e técnicos, nos termos do art.° 107° da LPCJP.

Notifique o M.°P.°, os progenitores, o NATT-PP.

b) A jovem manteve-se internada no serviço de Pediatria do Hospital ... até 11.01.2024.

c) Em 11.01.2024, a jovem foi acolhida na Casal ..., Associação ....

d) Na Casa de Acolhimento, retomou a frequência escolar e recebeu visitas dos progenitores e da família alargada, havendo manifestações de afeto.

e) A medida de acolhimento residencial foi revista por despacho datado de 18.03.2024 e prorrogada a sua execução pelo período de 3 (três) meses, por se manterem os pressupostos, de facto e direito, que determinaram a sua aplicação.

f) Esse despacho de 18.03.2024 foi notificado aos progenitores por ofício expedido a 20.03.2024.

g) No dia 20.05.2024, foi junta aos autos a nota da alta de fls. 142, donde consta, entre o mais, o seguinte: “No dia anterior foi trazida ao SU pelos pais porque queriam saber se ainda era virgem (não chegou a ser observada).”

h) Por despacho datado de 20.05.2024 foi ordenado que se oficiasse ao Hospital ... a remessa da documentação clínica da jovem e se aguardasse a junção, pelo NATT-PP, da conclusão da avaliação psicológica da jovem.

i) No dia 22.05.2024, a CA juntou aos autos a informação de fls. 146-147, a que foi atribuída confidencialidade.

j) No dia 05.06.2024, o Serviço de Neurologia Pediátrica juntou aos autos a informação solicitada.

l) Entretanto, por despacho datado de 21.06.2024, foi prorrogada a execução da medida de acolhimento residencial aplicada em benefício da jovem por mais 6 (seis) meses, a rever em 3 (três) meses.

m) Esse despacho de 21.06.2024 não foi notificado aos progenitores da jovem, apenas foi notificado à sua Ilustre Mandatária.


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Direito

Invocam os peticionantes deste habeas corpus, progenitores da jovem que se encontra provisoriamente em acolhimento residencial, que deve ser declarada de imediato a ilegalidade dessa medida de acolhimento aplicada à sua filha menor, por se ter esgotado em 18.06.2024, o prazo máximo legalmente admissível dessa medida provisória, nada mais tendo sido dito pelo tribunal, o que configura uma situação de privação ilegal da liberdade da menor, ao abrigo do art. 222.º, n.º 2, al. c), do CPP, aplicável, também, neste caso, visto estar ultrapassado o prazo estabelecido no art. 37.º, n.º 3, da LPCJP.

Vejamos então.

6. Dispõe o artigo 222.º (habeas corpus em virtude de prisão ilegal) do CPP:

1 - A qualquer pessoa que se encontrar ilegalmente presa o Supremo Tribunal de Justiça concede, sob petição, a providência de habeas corpus.

2 - A petição é formulada pelo preso ou por qualquer cidadão no gozo dos seus direitos políticos, é dirigida, em duplicado, ao Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, apresentada à autoridade à ordem da qual aquele se mantenha preso e deve fundar-se em ilegalidade da prisão proveniente de:

a) Ter sido efetuada ou ordenada por entidade incompetente;

b) Ser motivada por facto pelo qual a lei a não permite; ou

c) Manter-se para além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial.

São taxativos os pressupostos do habeas corpus (que também tem assento no art. 31.º da CRP), o qual não se confunde com o recurso, nem com os fundamentos deste.

Aliás, como diz Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, vol. II, Lisboa: Editorial Verbo, 1993, p. 260, o habeas corpus “não é um recurso, é uma providência extraordinária com a natureza de acção autónoma com fim cautelar, destinada a pôr termo em muito curto espaço de tempo a uma situação de ilegal privação de liberdade”.

Convém ter presente, como se refere no art. 31.º, n.º 1 CRP, que “Haverá habeas corpus contra o abuso de poder, por virtude de prisão ou detenção ilegal, a requerer perante o tribunal competente.” Ou seja, esta providência, que inclusivamente pode ser interposta por qualquer cidadão no gozo dos seus direitos políticos (art. 31.º, n.º 2 CRP), tem apenas por finalidade libertar quem está preso ou detido ilegalmente e, por isso, é uma medida excecional e muito célere.

De resto, quando se aprecia a providência de habeas corpus não se vai analisar o mérito da decisão que determina a prisão, nem tão pouco erros procedimentais (cometidos pelo tribunal ou pelos sujeitos processuais) já que esses devem ser apreciados em sede de recurso, mas tão só incumbe decidir se ocorrem quaisquer dos fundamentos indicados no art. 222.º, n.º 2, do CPP.

Neste caso concreto, acompanhamos a maior parte da jurisprudência do STJ que considera ser admissível alargar a providência do habeas corpus quando estão em causa medidas de promoção e proteção de crianças e jovens como a de “acolhimento residencial”, atenta a sua natureza e finalidade, uma vez que não deixa de ser uma medida limitativa da liberdade e de direitos fundamentais (ainda que não tenha uma finalidade punitiva, como a medida tutelar educativa), tanto mais que (como se esclarece no ac. do STJ de 2.06.2021) constitui também uma medida que origina uma “compressão do direito à unidade familiar”.

Assim, admitindo-se que a medida de promoção e proteção de “acolhimento residencial” aplicada à menor está abrangida na providência de habeas corpus, o que é que se passa neste caso concreto?

Ora, da análise do caso concreto, verifica-se que a menor foi colocada pelo período de 3 meses em instituição/casa de acolhimento desde 11.01.2024, na sequência da decisão judicial proferida em 18.12.2023, que simultaneamente determinou que, enquanto a jovem não fosse colocada na instituição, aguardava no estabelecimento hospitalar, Hospital ..., a indicação da Casa de Acolhimento onde seria acolhida.

Assim sendo, considerando que por despacho de 18.03.2024 foi prorrogada a execução da medida por mais 3 meses, sempre se concluía que o prazo de 6 meses (3 meses + 3 meses) de duração da medida contado desde 11.01.2024, ainda não se tinha completado.

De todo o modo, foi precisamente tendo sempre em atenção o superior interesse da jovem menor e necessidade de garantir a sua segurança, bem-estar e saúde, face ao episódio ocorrido ainda em 20.05.2024 (referido no ponto g) supra, visto igualmente todo o contexto que envolveu a jovem, face à atitude dos progenitores, que deu causa ao início do referido processo de promoção e proteção para a proteger e salvaguardar o seu livre desenvolvimento, que estava em perigo), que foi proferido o despacho de 21.06.2024, prorrogando por mais 6 meses, a rever em três meses, a medida de acolhimento aplicada, “sem prejuízo da sua oportuna cessação e/ou substituição, nomeadamente, por outra medida protetiva menos ingerente e restritiva dos direitos da criança e da família, maxime apoio junto dos pais, logo que se possa concluir que a família não constitui a fonte de perigo da jovem, mas antes o seu amparo e conforto.”

Ou seja, a situação de perigo da menor não está ultrapassada, como resulta claro do despacho de 21.06.2024, compreendendo-se, por isso, que tenha sido prorrogado o prazo de duração da medida de acolhimento residencial aplicada à jovem, ainda que simultaneamente estejam a fazer diversas diligências durante a fase da instrução (nomeadamente avaliações psicológicas aos progenitores e à jovem) para melhor habilitar o tribunal a tomar a melhor decisão.

Assim, tendo igualmente em atenção o princípio da atualidade, neste momento processual é manifesto, por um lado que se mostram cumpridos todos os prazos legais e, por outro lado, não se mostra excedido o prazo de duração máxima da medida provisória aplicada à jovem menor, pelo que não se verifica qualquer fundamento para o deferimento do presente pedido de habeas corpus (não ocorrendo qualquer dos pressupostos previstos no art. 222.º, n.º 2, do CPP).

Portanto, os elementos constantes desta providência mostram que o processo tem sido tramitado de forma urgente, com observância dos preceitos legais aplicáveis, tendo em atenção o superior interesse da jovem menor, não se mostrando ultrapassados os prazos ali fixados.

A medida de acolhimento residencial aplicada à menor encontra-se legalmente prevista (arts. 35.º, n.º 1, al. f) e 49.º da LPCJP), tendo sido aplicada por decisão judicial e pelo tribunal competente, não se mostrando excedido qualquer prazo legal.

Não se pode, assim, concluir que a menor esteja “presa” ou “detida” ilegalmente, sendo certo que há fundamento jurídico para a medida de acolhimento residencial em que se encontra colocada, a qual foi determinada pelo tribunal competente para o efeito, por facto que a lei permite.

De esclarecer que o habeas corpus não serve para discutir decisões proferidas noutros tribunais, como seja, as do juízo de família e menores (as quais, verificando-se os respetivos pressupostos deverão ser impugnadas pelos meios próprios - art. 123.º, da LPCJP).

No âmbito desta providência, ao STJ não incumbe, nem cabe nos seus poderes de cognição, analisar questões que extravasam os fundamentos previstos no art. 222.º, n.º 2, do CPP.

Por isso, tendo em atenção o alegado no requerimento em análise, visto o teor dos autos e atento o disposto no art. 222.º, n.º 2, do CPP, não ocorre qualquer fundamento para o deferimento deste habeas corpus, sendo legal e encontrando-se dentro do prazo o acolhimento residencial a que a menor se encontra sujeita neste momento.

Conclui-se, pois, pelo indeferimento desta providencia excecional, por carecer de fundamento que a justifique, sendo certo que não foram violados os princípios e normas invocados pelos peticionantes.


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III - Decisão

Pelo exposto, acordam nesta Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em indeferir a presente providência de habeas corpus, por falta de fundamento.

Custas pelos requerentes (progenitores), fixando-se em 4 UC`s a taxa de justiça devida por cada um deles.


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Processado em computador, elaborado e revisto integralmente pela Relatora (art. 94.º, n.º 2, do CPP), sendo assinado pela própria, pelos dois Senhores Juízes Conselheiros Adjuntos e pelo Senhor Juiz Conselheiro Presidente da Secção.

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Supremo Tribunal de Justiça, 26.06.2024

Maria do Carmo Silva Dias (Relatora)

Horácio Correia Pinto (Juiz Conselheiro Adjunto)

Antero Luís (Juiz Conselheiro Adjunto)

Nuno Gonçalves (Juiz Conselheiro Presidente)