Acordam na 3ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça:
I - RELATÓRIO
I.1. AA, preso à ordem do processo nº 9/12...., do Juízo Central Criminal ..., Juiz ..., em cumprimento da pena de dois anos e seis meses de prisão, desde 20/03/2021, a que foi condenado por acórdão de 22/02/2016, pela prática de crime de tráfico de estupefacientes p. p. no artigo 25, nº 1, al. a), do DL 15/93, de 22/01, vem peticionar habeas corpus.
Em 9º assinala o Requerente que a sua pretensão se funda, em síntese, (transcrição sem negritos e sem sublinhados),:
“A) Na ausência de aplicação da Lei nº 9/2020, de 10 de Abril, atentas particularmente, as aberrantes inconstitucionalidades que dela constam;
B) No tratamento arbitrário e discriminatório que vem sendo conferido ao requerente, já que este cumpre pena de prisão por crime com relação ao qual outros condenados, com dosimetria de pena até mais grave, viram as suas penas de prisão perdoadas e deixaram de estar em reclusão;
C) Na violação mais ostensiva dos seus direitos no que concerne ao facto de lhe não ter sido feito cúmulo jurídico das várias penas em que foi condenado.”
E, a final, na síntese conclusiva das suas próprias palavras, (sem negritos ou sublinhados),:
“213. Verificados que se encontram os pressupostos gerais de admissibilidade da presente providencia de concessão de “Habeas Corpus” do requerente e da sua restituição à liberdade (cfr. supra Parte I) e, bem assim, expostos os fundamentos em razão dos quais a providência deverá ser concedida (cfr. supra Partes II e III), encontra-se, todavia, ainda omisso o enquadramento legal daquela pretensão, face aos termos em que o artigo 31.º, da CRP, admite a sua concessão, os quais se encontram concretizados no artigo 222.º, do Código do Processo Penal – CPP);
ASSIM,
214.º – Conforme o exposto quanto aos fundamentos deste pedido, reportam-se os mesmos à manutenção da prisão ilegal e ilegítima do cidadão AA que cumpre sucessivas penas de prisão, atentos os seguintes abusos do poder judicial:
A) Foi omitida decisão jurisdicional quanto à concessão perdão parcial da sua pena, consagrado na Lei n.º 9/2020, de 10 de Abril, sendo que esta contém disposições aberrantes e manifestamente inconstitucionais (Artigos 1.º, n.º 2, 2.º, n.º 4 e n.º 6, proémio e conjugação destas disposições com o artigo 2.º, n.º 4, da mesma Lei);
A.1) Sendo o Legislador livre para definir, em razão dos crimes praticados e por forma geral e abstracta, aqueles cujas penas deverão beneficiar de perdão, não pode todavia tratar arbitrariamente os condenados pelos mesmos crimes para os quais está prevista tal medida de clemência, mantendo uns em prisão e outros sendo libertados, ao ponto dessa descriminação se estender a pessoas a cumprir pena pelos mesmos ilícitos nos mesmos processos;
A.2) Da aplicação do perdão parcial da pena em caso de cumprimento sucessivo por parte do ora requerente, e estando extinta pelo cumprimento a excluída (Processo nº 265/18....) resultaria, face ao que dispõe o n.º 4 do artigo 2.º, da Lei n.º 9/2020, de 10 de Abril, que desde 20 de Setembro de 2021 o requerente deveria estar em liberdade já que, naquela data, somadas todas as penas de prisão efectiva que tinha a cumprir (5 anos e 6 meses), se iriam perfazer dois anos de cumprimento de prisão;
A.3) Viola a situação de prisão do requerente o disposto nos artigos 1.º, n.º 1, alínea a) e 2.º, n.º 4, da Lei n.º 9/2020, de 10 Abril, em conjugação com as inconstitucionalidades, já referidas e fundamentadas neste pedido, dos artigos 1.º, n.º2 e 2.º, n.º6, proémio, quando feitas reportar, inclusive, a penas sucessivas por crimes excluídos do perdão cujo cumprimento foi extinto face ao n.º 4 do artigo 2.º, da citada Lei, atento os princípios constitucionais da proporcionalidade, da igualdade e da legalidade na aplicação da lei criminal (artigos 13.º, 18.º, n.º2 e 29.º, todos da CRP);
A.4) Enquadram-se os fundamentos ora invocados para a libertação imediata do requerente, no artigo 222.º, alínea c), do CPP;
SEM CONCEDER,
B) O requerente apenas se encontra preso em razão da insólita e grosseira - e espera-se que também inédita - omissão da realização do cúmulo jurídico, que é obrigatório e àquele era devida em tempo útil, sendo aquela falta, nesta data, um facto consumado contra o Direito, como já o era em 24 de Março de 2022 (Ref.ª ...05 - Processo nº 265/18....), porque apenas restava uma pena a cumprir, a qual nesta data se mantém (no Processo n.º 9/12...., do Juízo Central Criminal ... – Juiz ...);
B.1) A omissão da realização de cúmulo jurídico, em apreço, foi o culminar de um mais que deficiente funcionamento no sistema de justiça em que duas datas chegaram a encontrar-se designadas para o respectivo julgamento, mas acabaram por ser adiadas (Processo nº 265/18.... - Ref.ªs ...08 e ...62), respectivamente, por omissão de notificação do Acórdão da Relação de ... ao Ilustre Defensor Nomeado com prejuízo para a fixação do trânsito em julgado daquela decisão e, posteriormente, em razão de haver sido decretado Estado de Emergência (Processo nº 265/18.... - Ref.ª ...42);
B.2) A situação de excepção constitucional, em razão da qual foi adiada a segunda das datas acima indicadas – 17 de Abril de 2021 –, nunca foi devidamente acautelada pelo Legislador e pelos Órgãos a quem Constitucionalmente compete regular o funcionamento da Administração da Justiça, a saber, o Exm.º Conselho Superior da Magistratura e o Exm.º Conselho Superior do Ministério Público, os quais não curaram, com a diligência exigível, o Legislativo e o Judicial, por uma definição suficientemente densificada do serviço que se impunha dever ser realizado pelos Tribunais e pelo Ministério Público e cuja omissão poderia causar, como está a provocar no caso do requerente, danos irreparáveis aos cidadãos que são condenados presos;
B.3) É intolerável que se mantenha a situação de prisão do requerente, o cidadão AA, em razão de uma situação de falta de cúmulo jurídico para qual o mesmo em nada contribuiu e que única e exclusivamente é devido ao Sistema de Justiça – Legislador, Tribunais, Ministério Público, Conselho Superior da Magistratura e Conselho Superior do Ministério Público;
B.4) Atentas as quatro penas parcelares de prisão em que foi condenado o requerente -2 anos e 8 meses e 1 ano e 8 meses (Processo nº 265/18.... anos em cúmulo jurídico); 2 anos e 6 meses (Processo n.º 9/12....); e 18 meses de prisão suspensa na execução (Processo 1/18....) - num somatório de 8 anos e 2 meses de prisão, não se podendo determinar, de forma necessária e automática, uma data a partir da qual o requerente deveria ter sido libertado se houvesse sido realizado o cúmulo jurídico devido, ocorre, porém, que a sua situação de prisão actual é manifestamente ilegal, cumpridos que já estão mais de 5 anos de prisão em cumprimento sucessivo de penas sem qualquer factor de compressão que sempre resulta da lei (cfr. artigo 77.º, do Código Penal);
B.5) De igual modo se enquadram os fundamentos, ora invocados, para a libertação imediata do requerente, no artigo 222.º, alínea c), do CPP.”
E, na procedência do habeas corpus, acaba a peticionar a sua imediata restituição à liberdade.
I.2. Depois de solicitada, veio a informação a que alude o artigo 223º, nº 1, do CPP. Assim:
“O recluso AA iniciou, em 20/03/2018, o cumprimento da pena de 3 anos de prisão aplicada no processo n.º 265/18.... do Juiz ... do juízo Central Criminal ..., pela prática, designadamente, de um crime de homicídio simples, na forma tentada.
Tal crime encontrava-se elencado no art. 2.º n.º 6 al. a) da lei n.º 9/2020, de 10 de abril, e, como tal, o recluso não podia ser beneficiário do perdão previsto na lei em questão. Efetivamente, a referida lei excluía a possibilidade de perdão em caso da condenação pela prática do crime de homicídio, ainda que os reclusos se mostrassem condenados pela prática de outros crimes, que não elencados nas várias alíneas do aludido preceito.
Em 16/09/2020 foi realizado cômputo de penas, porquanto o recluso passou a estar em cumprimento sucessivo da pena sobremencionada e da pena de 2 anos e 6 meses de prisão aplicada no processo n.º 9/12.... do Juiz ... do juízo Central Criminal ....
Em 09/12/2020 e 19/10/2021 o recluso viu apreciada a liberdade condicional, tendo o tribunal de execução das penas (TEP) de ... decidido não conceder ao recluso tal medida de flexibilização da pena.
Decisão idêntica foi proferida pelo TEP de ... em 15/11/2022, pelo que os autos aguardam a data do termo das penas. Este situa-se em 16/09/2023, pelo que não se mostra ultrapassado.
Muito embora em requerimento de 01/02/2023 o recluso pugnasse pela aplicação da lei n.º 9/2020, tal pretensão foi indeferida, por a referida lei entretanto já se mostrar revogada.
Invoca, ainda, o recluso que, caso tivesse sido efetuado cúmulo jurídico de penas, estaria já em liberdade.
Segundo o próprio recluso, o tribunal da condenação – competente para realização do cúmulo jurídico de penas – pronunciou-se no sentido de não estarem reunidos os pressupostos para a realização de tal cúmulo, decisão que não é sindicável por este TEP.
Pelo acima exposto, entendo que é de manter a prisão do recluso AA.”
I.3. O processo encontra-se instruído, além do mais, com os seguintes elementos:
- Certidão das decisões condenatórias, com notas de trânsito;
- Certidão das Liquidações das respetivas penas e dos subsequentes despachos de homologação;
- Certidão do despacho de 24/03/2022, no proc. nº 265/18...., que indefere o pedido do arguido de efetivação do cúmulo jurídico;
- Certidão da decisão de extinção pelo cumprimento da pena aplicada no proc. nº 265/18....;
- Certidão do despacho de 09/01/2023 no proc. nº 100/18.0TXCBR-B que indefere o requerimento do arguido de aplicação do perdão da Lei 9/2020, de 10/04;
- Certidão da decisão das sentenças de apreciação e negação de liberdade condicional.
- Certidão do despacho de 20/09/2022, no proc. nº 1/18.... que declara extinta a pena de 18 meses de prisão, com execução suspensa por igual período, ao abrigo do artigo 457, nº 1, do CP.
I.4. Convocada a Secção Criminal e notificados o Ministério Público e o Defensor, realizou-se audiência, em conformidade com o disposto no n.º 3 do artigo 223.º do CPP.
Após o que o Tribunal reuniu para deliberar, (artigo 223.º, n.º 3, 2.ª parte, do CPP), fazendo-o nos termos que se seguem.
II. FUNDAMENTAÇÃO
Factos
II.1. O recluso AA, a partir de 20/03/2018, cumpriu a pena única de 3 anos aplicada no processo n.º 265/18...., do Juízo Central Criminal ..., Juiz ..., e está, desde 20/03/2021, a cumprir a pena de 2 anos e 6 meses aplicada no processo n.º 9/12...., do Juízo Central Criminal ..., Juiz ....
A pena conjunta de 3 anos de prisão foi aplicada no processo nº 265/18...., em recurso decidido pelo acórdão da Relação de Coimbra de 09/10/2019, resultado das penas parcelares de dois anos e oito meses pela prática de um crime de homicídio simples, na forma tentada, e de um ano e seis meses pela prática de um crime de resistência e coação sobre funcionário. O ac. da RC revogou o decidido em 14/11/2019 pelo Juízo Criminal ... que tinha condenado em 3 anos e seis meses pela prática de homicídio qualificado na forma tentada, e em um ano e seis meses por um crime de resistência e coação sobre funcionário e na pena conjunta de quatro anos de prisão. Esta sentença condenatória transitou em julgado em 20/02/2020 (cfr certidão de 03/03/2020).
Esta pena de três anos começou a ser cumprida em 20/03/2018 e terminou em 20/03/2021 (cfr despacho de homologação da liquidação da pena de 10/12/2019).
Por despacho de 19/10/2021 foi declarada extinta pelo cumprimento a sobredita pena de três anos.
Já no processo nº 9/12.... foi o arguido condenado pelo Tribunal Criminal ... por acórdão de 22/02/2016 na pena de dois anos e seis meses de prisão por crime de tráfico de estupefacientes p. e p. no artigo 25º, al. a), do DL 15/93, de 22/01, com trânsito em julgado em 04/10/2018.
No processo nº 100/18.0TXCBR-B do TEP foi emitido mandado de desligamento com data de 27/05/2021 para que o arguido detido à ordem do processo nº 265/18.... do Juízo Central Criminal ... - Juiz ..., fosse desligado do mesmo com efeitos reportados a 20-03-2021 e colocado à ordem do processo n.º 9/12.... do Juízo Central Criminal ... - Juiz ..., para cumprimento da pena de 2 Anos e 6 Meses de prisão em que aí foi condenado.
E, dada como cumprida a pena do 265/18...., iniciou-se o cumprimento da seguinte, de dois anos e seis meses, em 20/03/21 e fez-se a liquidação da pena (no somatório de cinco anos e seis meses menos os quatro dias de detenção) nos seguintes termos:
“De acordo com os elementos disponíveis, estando privado de liberdade desde 20-03-2018, tendo sofrido 4 dias de detenção no processo 9/12.... procede-se ao seguinte cálculo:
1/2 das penas: 16/dez/2020
2/3 das penas: 16/nov/2021
Fim das penas: 16/set/2023.” (cfr despacho de homologação de 18/09/2020 e decisão de indeferimento de concessão da liberdade condicional de 19/10/2021).
Foi apreciada a liberdade condicional, para o meio da pena, em 09/12/2020, e para os dois terços, em 19/10/2021, decisões de não concessão, com as quais o condenado se conformou.
E, em renovação da instância, em 15/11/2022 voltou a ser-lhe recusada a liberdade condicional, por inverificação dos respetivos pressupostos.
No proc. nº 1/18...., em conformidade com o disposto no art. 57º, n.º 1, do Código Penal, foi declarada extinta a pena, por despacho de 20/09/2022.
Por despacho de 19/10/2021, foi recusada a “aplicação ao caso da Lei nº 9/2020, de 10.04, uma vez que esta Lei foi, entretanto, revogada pela entrada em vigor da Lei nº 86/2021, de 15 de dezembro.”
Não vem indicado despacho de apreciação e decisão sobre a aplicação do perdão proferido logo após a entrada em vigor da Lei 9/2020. Mas, diz a “informação”, que o TEP não concedeu o perdão previsto na L. 9/2020, de 10/04, porque “Tal crime encontrava-se elencado no art. 2.º n.º 6 al. a) da lei n.º 9/2020, de 10 de abril, e, como tal, o recluso não podia ser beneficiário do perdão previsto na lei em questão. Efetivamente, a referida lei excluía a possibilidade de perdão em caso da condenação pela prática do crime de homicídio, ainda que os reclusos se mostrassem condenados pela prática de outros crimes, que não elencados nas várias alíneas do aludido preceito.”
II.2. Constatando-se concurso superveniente de crimes no 265/18...., por despacho de 27/01/2020, a efetivação de cúmulo jurídico foi agendada para 30/01/2020. E, depois, por despacho de 12/03/2020, reagendou-se para 16/04/2020. A seguir, “Considerando que foi decretado o Estado de Emergência, até ao dia 17.4.2020 (inclusive), adia-se Sine Die a realização da audiência a que alude o art. 472.º, n.º 1, do Código de Processo Penal que e encontrava agendada para o próximo dia 16.4.2020, pelas 9h15m.”
Dos elementos constantes dos autos não se retira nem que o cúmulo, apesar de agendado por duas vezes tenha sido efetuado ou que, agendado ou não agendado, a sua confeção tenha sido recusada por alguma razão. É certo que, no despacho de 24/03/2022 proferido no 265/18...., se invoca que “como resulta do teor do Ofício do Tribunal de Execução de Penas ..., de 21-09-2020, no âmbito do Processo de Execução de Penas do arguido (Processo nº 100/18....), bem como do teor do ofício do mesmo Tribunal, de 10/12/2020, aí refere-se que “o recluso AA cumpre, sucessivamente, as seguintes penas: única de 3 anos imposta no proc. 265/18...., de 2 anos e 6 meses imposta no proc. 9/12...., pelos crimes de homnicídio qualificado tentado e resistência e coação de funcionário, e tráfico de estupefacientes de menor gravidade” (sublinhado nosso); ou seja, entendeu esse Tribunal que o arguido estava em cumprimento sucessivo de penas de prisão, aplicadas num e noutro processo.”
Já na informação prestada ao abrigo do artigo 223, nº 1, do CPP, se afirma que “Segundo o próprio recluso, o tribunal da condenação – competente para a realização do cúmulo jurídico de penas – pronunciou-se no sentido de não estarem reunidos os pressupostos para a realização de tal cúmulo, decisão que não é sindicável por este TEP.”
Não detetámos, contudo, nos elementos que nos foram enviados qualquer despacho do tribunal de condenação em pronúncia nesse sentido.
Dos elementos enviados com pertinência para a (eventual) efetivação do cúmulo extrai-se que no proc. nº 265/18...., o acórdão condenatório é de 09/10/2019, o trânsito ocorreu em 20/02/2020, e os factos são de 09/03/2018. Já no proc. nº 9/12.... o acórdão foi publicado em 12/07/2017, transitou em julgado em 04/10/2018 e os factos ocorreram entre Janeiro de 2012 e Junho de 2013.
A pena do 1/18...., tendo sido suspensa, acabou extinta por despacho de 20/09/2022 ao abrigo do artigo 57, nº 1, do CP.
Direito
II.4. A CRP no seu artigo 27º estabelece que todos têm direito à liberdade, em “exigência ôntica” na expressão do acórdão do Tribunal Constitucional nº 607/03. Mas não absolutiza tal direito, porque, admite que seja restringido em expressos casos, além do mais, em caso de aplicação de medida de segurança de internamento (nº 2).
Mas prevendo que na concretização de tais restrições, pode ocorrer abuso de poder a CRP no seu artigo 31º dando corpo ao primado da liberdade consagrou a providência de habeas corpus e tal importância lhe atribuiu que fixou mesmo o prazo célere e urgente de oito dias para a sua decisão, em audiência contraditória, e permitiu que um terceiro requeresse o habeas corpus. Na sequência o CPP conformou-a em providência simples e expedita dirigida diretamente ao Presidente do STJ.
Nos termos do artigo 31, nº 1, da CRP, na redação da revisão constitucional de 1997, “Haverá habeas corpus contra o abuso de poder, por virtude de prisão ou detenção ilegal, a requerer perante o tribunal competente.” Na definição constitucional, é, pois, “forma de insurgimento jurisdicionalmente tutelado contra abuso de poder, manifesto em detenção ou prisão ilegal.” (in “Do habeas corpus Breves notas, sobretudo jurisprudenciais”, Paulo Ferreira da Cunha, “RPCC”, 2020).
“Na estrutura com que a Constituição o consagrou, o habeas corpus caracteriza-se pela sua natureza de “providência” judicial (nº 2), que tem como objeto imediato “o abuso de poder, por virtude de prisão ou detenção ilegal”, visando, por isso, a tutela da liberdade física ou de locomoção.” (in, “Constituição Portuguesa Anotada”, Jorge Miranda, Rui Medeiros, nota ao artigo 31)
Não é um recurso, não é um substitutivo ou sucedâneo do recurso, muito menos o recurso dos recursos, é um instituto a manter distinto dos recursos (cfr “Curso de Direito Processual Penal”, II, Germano Marques da Silva). É uma “providência” que não se confundindo com o recurso, pode até correr termos lado a lado e simultaneamente (219, nº 2, do CPP).
Como o vem entendendo a jurisprudência deste STJ, o habeas corpus é uma providência excepcional e expedita destinada a responder a situações de gravidade extrema visando reagir, de modo imediato, contra a privação arbitrária da liberdade ou contra a manutenção de uma prisão manifestamente ilegal, ilegalidade essa que se deve configurar como violação directa, imediata, patente e grosseira dos seus pressupostos e das condições da sua aplicação, de “abuso de poder” na expressão constitucional. Não constitui um recurso sobre actos de um processo através dos quais é ordenada ou mantida a privação da liberdade do arguido, nem um sucedâneo dos recursos admissíveis, que são os meios adequados de impugnação das decisões judiciais. Pese embora possam ser interpostos, com objetos diferentes é bom de ver, em paralelo (artigo 219, nº 2, do CPP). E não se destina a apreciar erros de direito nem a formular juízos de mérito sobre decisões judiciais determinantes da privação da liberdade.
Ou seja, a providência excepcional de habeas corpus não se substitui nem pode substituir‑se aos recursos ordinários, ou seja, não é nem pode ser meio adequado de pôr termo a todas as situações de ilegalidade da prisão. “Está reservada, quanto mais não fosse por implicar uma decisão verdadeiramente célere — mais precisamente «nos oito dias subsequentes» ut art. 223.º, n.º 2, do Código de Processo Penal — aos casos de ilegalidade grosseira, porque manifesta, indiscutível, sem margem para dúvidas, como o são os casos de prisão «ordenada por entidade incompetente», «mantida para além dos prazos fixados na lei ou decisão judicial», e como o tem de ser o «facto pela qual a lei a não permite». Não se esgotando no expediente de excepção os procedimentos processuais disponíveis contra a ilegalidade da prisão e a correspondente ofensa ilegítima à liberdade individual, o lançar mão daquele expediente só em casos contados deverá interferir com o normal regime dos recursos ordinários: justamente, os casos indiscutíveis ou de flagrante ilegalidade, que, por serem‑no, permitem e impõem uma decisão tomada com imposta celeridade. Sob pena de, a não ser assim, haver o real perigo de tal decisão, apressada por imperativo legal, se volver, ela mesma, em fonte de ilegalidades grosseiras, porventura de sinal contrário, com a agravante de serem portadoras da chancela do Mais Alto Tribunal, e, por isso, sem remédio” (in ac. STJ de 1/2/2007, proc. 07P353). (V. também acs. STJ de 01/02/2007, proc. nº 07P353, de 23/07/2021, proc. nº 52/19, de 22/9/2021, proc. 3825/21, de 14/4/2021, proc. nº 292/21, de 03/01/22, proc. nº 2184/21 e de 15/12/2021, 1420/11, entre muitos outros).
Tais limitações de função, com chancela constitucional, não lhe retiram, porém, o papel e instrumento de garantia privilegiada do direito à liberdade. O habeas corpus “testemunha a especial importância constitucional do direito à liberdade”. (in “CRP Anotada”, Gomes Canotilho e Vital Moreira).
“No habeas corpus discute-se exclusivamente a legalidade da prisão à luz das normas que estabelecem o regime da sua admissibilidade”.
“Procede-se necessariamente a uma avaliação essencialmente formal da situação, confrontando os factos apurados no âmbito da providência com a lei, em ordem a determinar se esta foi infringida. Não se avalia, pois, se a privação da liberdade é ou não justificada, mas sim e apenas se ela é inadmissível. Só essa é ilegal”.
“De fora do âmbito da providência ficam todas as situações enquadráveis nas nulidades e noutros vícios processuais das decisões que decretaram a prisão”
“Para essas situações estão reservados os recursos penais, (…). O habeas corpus não pode ser reconvertido num “recurso abreviado”, (…) O processamento acelerado do habeas corpus não se coaduna, aliás, com a análise de questões com alguma complexidade jurídica ou factual, antes se adequa apenas à apreciação de situações de evidente ilegalidade, diretamente constatáveis pelo confronto entre os factos sumariamente recolhidos e a lei” (in “Habeas Corpus: passado presente e futuro”, “Julgar” on line, nº 29, 2016, Maia Costa)..
De resto, quando se aprecia a providência de habeas corpus não se vai analisar o mérito da decisão que determina a prisão ou a privação da liberdade, nem tão pouco erros procedimentais (cometidos pelo tribunal ou pelos sujeitos processuais) já que esses devem ser apreciados em sede de recurso, mas tão só incumbe decidir se ocorrem quaisquer dos fundamentos indicados no art. 222.º, n.º 2, do CPP.
Não se destina a sindicar decisões judiciais, nomeadamente a impugnar nulidades ou irregularidades processuais, que só em recurso ordinário devem ser apreciadas.
E não é também o meio próprio de discutir o acervo das “aberrantes inconstitucionalidades” dos artigos 1º, nº 2, e 2º, nº 6, proémio da Lei 9/2020, de 10/04, invocadas neste caso pelo Peticionante.
Aqui recuperando o ac. do STJ de 24/07/2018, proc. n.º 4057/10.8TXLSB-K.S1, Vinício Ribeiro,:
“O STJ tem um entendimento consolidado relativamente à figura da providência de Habeas Corpus (...), como ressalta da sua jurisprudência (cfr., a título de exemplo, Acs. STJ de 20 de Dezembro de 2006, Proc. 06P4705, Rel. Sousa Fonte, de 1 de Fevereiro de 2007, Proc. 07P353, Rel. Pereira Madeira, de 31 de Julho de 2008, Proc. 2536/08‑3.ª, Rel. Armindo Monteiro, de 8 de Janeiro de 2015, Proc. 130/14.1YFLSB.S1, Rel. Raul Borges, de 11 de Fevereiro de 2015, Proc. 18/15.9YFLSB.S1, Rel. Pires da Graça, de 17/3/2016, Proc. 289/16.3JABRG, Rel. Manuel A. Matos, de 30 de Março de 2016, Proc. 37/15.5GOBVR.S1, Rel. Oliveira Mendes).
Assim, podemos ver os recortes do instituto no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10-08-2018, referente ao processo n.º 11/17.7GAMRA-A.S1 - 3.ª Secção, tendo como Relator o Conselheiro Pires da Graça:
“I - A providência de habeas corpus visa reagir, de modo imediato e urgente, contra a privação arbitrária da liberdade ou contra a manutenção de uma prisão manifestamente ilegal, ilegalidade essa que se deve configurar como violação directa, imediata, patente e grosseira dos seus pressupostos e das condições da sua aplicação. Atento o carácter extraordinário da providência, para que se desencadeie exame da situação de detenção ou prisão em sede de habeas corpus, há que deparar com abuso de poder, consubstanciador de atentado ilegítimo à liberdade individual – grave, grosseiro e rapidamente verificável – integrando uma das hipóteses previstas no art. 222.º, n.º 2, do CPP.
II - O habeas corpus não se destina a sindicar as decisões judiciais sobre crime verificados, penas aplicadas, nomeadamente a pena conjunta, nem sobre os pressupostos desta, ou sobre incidentes no cumprimento da pena, é assim e, apenas, um meio extraordinário de controlo da legalidade actual da prisão, estritamente vinculado aos pressupostos e limites determinados pela lei».
Veja-se também a lição do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 06-06-2019, proferido no Proc. n.º 146/19.1SELSB-A.S1 - 5.ª Secção, tendo como Relator o Conselheiro Nuno Gomes da Silva:
“I - A providência de “habeas corpus” tem uma natureza excepcional destinando-se a assegurar o direito à liberdade mas não é um recurso. É, por assim dizer, um remédio único, a ser usado quando falham as demais garantias do direito de liberdade mas não pode ser utilizado para impugnar quaisquer deficiências ou irregularidades processuais que têm no recurso a sua sede própria de apreciação. (...)”.
E como ainda bem recentemente, em ac. do STJ de 29/03/2023, proc. nº 80/19.5TXLSB-L.S1, Carmo Dias, se firmou,
“I. O habeas corpus não serve para decidir quais as decisões que podem ser objeto de cúmulo jurídico, nem o facto da requerente do habeas corpus ter penas separadas para cumprir ou, eventualmente penas em concurso, que ainda não tenham sido cumulados, significa que esteja em prisão ilegal.
II. Igualmente é errada a pretensão de, no habeas corpus, pedir que sejam decididos incidentes da competência/jurisdição do TEP (como é o caso do pedido de modificação da execução da pena de prisão ou do que se relaciona com a liberdade condicional).
III. Se a peticionante pretende impugnar decisões do TEP ou arguir eventuais irregularidades que entende terem sido ali cometidas terá de, atempadamente, nomeadamente através de advogado ou defensor oficioso, usar dos mecanismos próprios, junto do tribunal competente, o que não se confunde com a utilização da providencia de habeas corpus, cuja natureza excecional (distinta do recurso) se destina a assegurar o direito à liberdade, considerando os fundamentos aludidos no art. 222.º, n.º 2, do CPP.
IV. Ou seja, não é no habeas corpus que pode discutir as questões que coloca relacionadas com a decisão de indeferimento da concessão da liberdade condicional e indeferimento da modificação da execução da pena de prisão constante do apenso já decidido (sendo que o novo pedido de modificação da execução da pena de prisão a que se refere o apenso K, está a seguir a tramitação legal, não tendo sido ainda decidido por não ter chegado o momento próprio para o efeito).
E em ac. de 27/10/2022, 1491/17.6TXLSB-R.S1, Carmo Dias, se relatou que “A providência excecional de habeas corpus não serve, nem é o meio próprio para sindicar despachos dos Juízes do TEP e, muito menos, para arguir nulidades desses mesmos despachos (nem tão pouco para discutir o que se passa noutros processos).”
II.6. Na configuração que foi dada à petição a pretensão do Requerente acaba por ser a de uma reapreciação, senão mesmo sindicância, global da sua concreta e atual situação prisional a efetuar pelo mais Alto Tribunal.
Ora, a doutrina e a jurisprudência do STJ vêm nemine discrepante afirmando a taxatividade dos fundamentos expressos no artigo 222º do CPP, constituindo os mesmos a densificação pelo legislador ordinário do conceito de “prisão ilegal”, na decorrência do artigo 31º da CRP. (cfr Henriques Gaspar et alii, in “Código de Processo Penal Comentado”, 4ª edição, 2022 e António Gama et alii in “Comentário Judiciário do Código de Processo Penal”, II, 2ª edição, 2022).
Dispõe o artigo 222.º (habeas corpus em virtude de prisão ilegal) do CPP:
1 - A qualquer pessoa que se encontrar ilegalmente presa o Supremo Tribunal de Justiça concede, sob petição, a providência de habeas corpus.
2 - A petição é formulada pelo preso ou por qualquer cidadão no gozo dos seus direitos políticos, é dirigida, em duplicado, ao Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, apresentada à autoridade à ordem da qual aquele se mantenha preso e deve fundar-se em ilegalidade da prisão proveniente de:
a) Ter sido efetuada ou ordenada por entidade incompetente;
b) Ser motivada por facto pelo qual a lei a não permite; ou
c) Manter-se para além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial.
Além da taxatividade, a jurisprudência do STJ exige, em aplicação do princípio da atualidade, que a ilegalidade consubstanciadora do pedido seja atual, isto é, há de tratar-se de prisão ilegal que persista no momento em que é apreciado o pedido. (ac. do STJ de 25.6.2020, proc. n.º 5553/19.7T8LSB-F.S1, Margarida Blasco, ac. do STJ de 19/07/2019, proc. nº 12/17, Raul Borges e muitos outros aí citados).
Donde, em sede de habeas corpus, cabe tão só ao STJ avaliar se, à data da decisão, está preenchida alguma das ilegalidades previstas no nº 2 do artigo 222º citado.
Aqui não se mostra questionada a competência da entidade que ordenou a prisão, por decisão judicial transitada em julgado, o tribunal criminal condenatório. (cfr artº 222º, nº 2, al. a) do CPP.
Como, de igual modo, é inegável que a sua privação de liberdade foi ditada por facto que a permite, a prática de crime em processo penal (222º, nº 2). “Facto pelo qual a lei a não permite” significa crime que na tipificação jurídico-criminal ou na lei substantiva não admite prisão e, quando se trata da privação cautelar da liberdade, o facto indiciado não pode, nos termos da lei do processo, justificar a imposição de prisão preventiva ou da obrigação de permanência na habitação.” (ac. de 21/04/2021, 149/20.3JASTB-A.S1, Nuno Gonçalves).
II.6. Mas estriba o Peticionante a sua pretensão na al. c) do nº 2 do artº 222º do CPP, por a privação de liberdade “Manter-se para além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial.”
Vejamos:
O Peticionante está em cumprimento da pena de dois anos e seis meses cujo termo está calculado para 16/09/2023. Mas, neste conspecto, o peticionante diverge e invoca o perdão da L. 9/2020, de 10/04, convoca o princípio da igualdade tendo em conta alegada aplicação dessa medida de graça a outros reclusos “com dosimetria de pena até mais grave”, e traz a omissão de realização de cúmulo jurídico para acabar a concluir pela “manutenção da prisão ilegal e ilegítima”, .
II.6.1. Quanto ao perdão alegadamente inaplicado:
O TEP, como se extrai da informação que nos fez chegar, justifica por que não aplicou o perdão. “Tal crime encontrava-se elencado no art. 2.º n.º 6 al. a) da lei n.º 9/2020, de 10 de abril, e, como tal, o recluso não podia ser beneficiário do perdão previsto na lei em questão. Efetivamente, a referida lei excluía a possibilidade de perdão em caso da condenação pela prática do crime de homicídio, ainda que os reclusos se mostrassem condenados pela prática de outros crimes, que não elencados nas várias alíneas do aludido preceito.”
E, mais tarde, sobre requerimento do Recluso, por despacho de 09/01/2023, ditou que “Não se pode proceder à aplicação ao caso da Lei nº 9/2020, de 10.04, uma vez que esta Lei foi, entretanto, revogada pela entrada em vigor da Lei nº 86/2021, de 15 de dezembro.”
Despacho que não foi impugnado.
No que toca à pretendida aplicação do perdão recuperamos o ac. do STJ de 31/12/2020, 206/15 .8TXPRT-I.S1, Eduardo Loureiro, cuja parte para aqui pertinente passamos a transcrever (sem notas de rodapé):
“Conforme a Exposição de Motivos do Proposta de Lei n.º 23/XIV, a Lei n.º 9/2020, de 10.4, em resposta à exortação da Alta Comissária das Nações Unidas para os Direitos Humanos, de 25.3, e à Recomendação da Provedora de Justiça n.º 4/B/2020, de 26.3, criou um «regime excecional de flexibilização da execução das penas e das medidas de graça, no âmbito da pandemia da doença COVID-19», em que prevê, nomeadamente, «um perdão parcial de penas de prisão» – art.º 1º, n.º 1 al.ª a).
Perdão esse regulado no art.º 2 respectivo e que, no que interessa in casu:
─ Beneficia (somente) os «reclusos cujas condenações tenham transitado em julgado em data anterior à da entrada em vigor» da lei – n.º 7 –, em 11.4.2020.
─ Contempla «as penas de prisão de reclusos condenados por decisão transitada em julgado, de duração igual ou inferior a dois anos» – n.º 1 – e «os períodos remanescentes das penas de prisão de reclusos condenados por decisão transitada em julgado, de duração superior à referida no número anterior, se o tempo que faltar para o seu cumprimento integral for igual ou inferior a dois anos, e o recluso tiver cumprido, pelo menos, metade da pena» – n.º 2.
─ «Em caso de cúmulo jurídico, incide sobre a pena única» – n.º 3.
─ «Em caso de condenação do mesmo recluso em penas sucessivas sem que haja cúmulo jurídico, […] incide apenas sobre o remanescente do somatório dessas penas, se o tempo que faltar para o seu cumprimento integral for igual ou inferior a dois anos.» – n.º 4.
─ Fica excluído se, mesmo havendo condenação por outros crimes, o recluso tiver sido condenado pelos ilícitos arrolados nas 14 alíneas do n.º 6, entre os quais não se contam os de falsificação de documento e de furto;
─ É concedido «sob a condição resolutiva de o beneficiário não praticar infração dolosa no ano subsequente, caso em que à pena aplicada à infração superveniente acresce a pena perdoada» – n.º 7; e
─ Cujo decretamento compete exclusivamente «aos tribunais de execução de penas territorialmente competentes» – n.º 8.
9. Assim esboçado o regime do perdão de pena previsto na Lei n.º 9/2020, a ideia fundamental a reter é a de se trata de medida de graça que não actua automaticamente ou ope legis, antes reclama a intervenção conformadora do juiz de execução das penas, a quem compete – e só a ele compete! – a aferição dos respectivos pressupostos, o seu decretamento e, até, o desencadeamento da sua execução, «emitindo os respetivos mandados com carácter urgente» – n.º 8 do art.º 2º sempre referido.
Intervenção essa norteada, naturalmente, pela objectividade das leges artis judiciárias do apuramento dos factos e da interpretação e aplicação do direito, mas que comporta, como qualquer acto judicativo, momentos de ineliminável subjectividade aliás, tanto mais determinantes quanto perante opções de fronteira, como, v. g., as em que, sobre a mesma temática, se perfilam visões doutrinárias e, ou, jurisprudenciais tão divergentes como ponderosas e respeitáveis!
(…)
É que há que não esquecer que, como se assinalou, o perdão sempre referido não actua por mera força da lei, antes (sempre) carece de decisão judicial que, mais do que simplesmente verificar ou certificar a sua operatividade, tem de, primeiro, averiguar o preenchimento dos respectivos pressupostos, factuais e jurídicos – e entre eles, e designadamente, se não obstante apenas encarcerada em momento posterior a 10.4.2020, ainda assim pode a Requerente beneficiar de tal perdão –, e tem de, depois, o decretar. Sendo que só depois disso se poderá falar da existência do perdão e sua operatividade e dos limites temporais que possa impor à duração e execução da pena.
E acontece que, como assinalado, nos termos do art.º 2º n.º 8 da Lei n.º 9/2020, tal decretamento compete, inarredável e exclusivamente, ao Juízo de Execução das Penas.
Estando fora de qualquer cogitação que este Supremo Tribunal se substitua a tal juízo na prolação desse acto, que não corporizando, como (também) já se disse, a presente providência um recurso, muito menos pode constituir um procedimento decisório primário em matéria de execução de penas.”
Com o que, tendo o TEP considerado não aplicável a mencionada medida de graça e não tendo sido tal decisão impugnada via recurso, não se vislumbra que, por aqui, a prisão, em abuso de poder, se mantenha ilegal. E também neste caso, a providência de habeas corpus não pode metamorfosear-se num procedimento decisório primário em matéria de perdão ou de execução de penas.
II.6.2. Quanto à invocada violação do princípio da igualdade por, como afirma, “outros condenados no mesmo processo, com dosimetria de pena até mais grave”, terem sido bafejados pela medida de graça, o Peticionante não nos traz elementos dos processos dos outros reclusos contemplados. Sem eles o imprescindível exercício de comparação mostra-se impossibilitado de fazer. De todo o modo não é a providência de habeas corpus o lugar processual adequado para tanto. No que seria certamente um exercício improdutivo face á singularidade de cada caso e à específica e individual situação de cada recluso e impossibilidade legal de analisar comparativamente todos esses processos. Essa apreciação, se apreciação houver a fazer nesses termos, sempre competiria à primária intervenção conformadora do juiz do TEP, como acima se citou.
Não pode, portanto, concluir-se por esta via pela ilegalidade da prisão.
II.6.3. No que toca à alegada omissão de cúmulo jurídico:
Impõe-se todavia aqui deixar enunciado que, a ter sido denegada a efetivação do cúmulo jurídico de penas, poderia o arguido interpor recurso ordinário. Ou, se por mera hipótese não foi feito por desleixo ou simples omissão, deveria o arguido dirigir-se ao tribunal da condenação, provocar decisão e reagir, impugnando a denegação. Em qualquer caso, o habeas corpus não é o meio processual de reagir contra uma ou outra dessas situações. E a denegação só por si não carrega a ilegalidade da prisão e, por isso, não obriga à imediata libertação do arguido, porque na efetivação do cúmulo tem o tribunal da sua confecção toda a liberdade para fixar a pena concreta dentro da moldura penal abstrata que vai da pena parcelar máxima ao somatório das penas em concurso, no caso entre dois anos e oito meses até seis anos e oito meses.
II.7. In casu inexiste, pois, qualquer abuso de poder ou ilegalidade na prisão.
II.8. Nesta conformidade, carece o pedido de fundamento bastante, devendo ser indeferido, ao abrigo do artigo 223.º, n.º 4, al. a), do CPP.
III. DECISÃO
III.1. Pelo exposto, acordam os juízes da 3.ª Secção Criminal em indeferir o pedido por falta de fundamento bastante.
III.2. Custas pelo peticionante, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC, nos termos do artigo 8.º, n.º 9, e da Tabela III do Regulamento das Custas Processuais.
Supremo Tribunal de Justiça, 19 de abril de 2023.
Ernesto Vaz Pereira (Juiz Conselheiro Relator)
José Luís Lopes da Mota (Juiz Conselheiro Adjunto)
Paulo Ferreira da Cunha (Juiz Conselheiro Adjunto)
Nuno António Gonçalves (Juiz Conselheiro Presidente da 3ª Secção Criminal)