Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
27557/22.2T8LSB.L1.S1
Nº Convencional: 4ª SECÇÃO
Relator: ALBERTINA PEREIRA
Descritores: CONTRATO DE TRABALHO
TRABALHO SUPLEMENTAR
ABUSO DE DIREITO
Data do Acordão: 02/12/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA DA RÉ
CONCEDIDA PARCIALMENTE A REVISTA DO AUTOR
Sumário :
I - Desconhecendo-se o circunstancialismo que esteve na origem do pagamento pela Ré ao Autor do salário completo, uma vez que o Autor prestou trabalho suplementar no período em causa, pese embora se tenha provado que não trabalhou em todos os dias dos meses em questão, assiste-lhe direito ao recebimento da correspondente retribuição, sendo certo que as diferentes prestações retributivas não se compensam entre si.

II - Nas apontadas circunstâncias, não se vislumbra que o Autor tenha excedido manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito, ao reclamar judicialmente, àquele título, o seu direito de crédito

III - Não ocorre erro na apreciação da prova, sindicável em sede de recurso de revista nos termos dos artigos 674.º n.º 3 e 682.º n.º 2, do CPC quando o Tribunal da Relação ao abrigo do disposto no art.º 662.º n.º 1 e 607 .º 4, do Código de Processo Civil altera a decisão da matéria de facto, aditando à factualidade provada os factos de admitidos por acordo em sede de articulados nos termos do art.º 574.º n.º 2 do mesmo diploma legal.

Decisão Texto Integral:
Proc. 27557/22.2T8 LSB.L1.S1

Revista – 4.ª Secção

Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça

1. Relatório

1.1. AA intentou ação emergente de contrato individual de trabalho, sob a forma do processo comum contra Blackelit Security Unipessoal, Lda., pedindo que esta seja condenada a pagar-lhe:

a) € 1.028,21 (mil e vinte e oito euros e vinte e um cêntimos) a título de retribuição base devida ao trabalhador;

b) € 909,06 (novecentos e nove euros e seis cêntimos) a título de acréscimo pelo trabalho noturno realizado dentro de período normal de trabalho;

c) € 19.943,24 (dezanove mil, novecentos e quarenta e três euros e vinte e quatro cêntimos) a título de horas de trabalho suplementar realizado no período diurno;

d) € 3.000,30 (três mil euros e trinta cêntimos) a título de horas de trabalho suplementar realizado no período noturno;

e) € 415,48 (quatrocentos e quinze euros e quarenta e oito cêntimos) a título de acréscimo por trabalho prestado a um feriado;

f) Condenar a Ré ao pagamento de € 705,45 (setecentos e cinco euros e quarenta e cinco cêntimos) a título de subsídio de Natal não pago;

g) € 705,45 (setecentos e cinco euros e quarenta e cinco cêntimos) a título de subsídio de férias não pago;

h) € 3.074,08 (três mil setenta e quatro euros e oito cêntimos) a título de retribuição por férias não gozadas;

i) € 394,46 (trezentos e noventa e quatro euros e quarenta e seis cêntimos) a título de subsídio de alimentação;

j) € 9.520,00 (nove mil quinhentos e vinte euros) a título de subsídio de desemprego a que o Autor não teve acesso por culpa da Ré;

k) € 3.600,77 (três mil e seiscentos euros e setenta e sete cêntimos) a título de indemnização pela resolução do contrato de trabalho com justa causa por parte do Autor.

l) € 90.527,19 (noventa mil, quinhentos e vinte e sete euros e dezanove cêntimos) a título de indemnização por danos causados ao trabalhador.

m) Condenar a Ré ao pagamento de todos juros de mora calculados à taxa legal desde o vencimento até integral e efetivo pagamento

Frustrada conciliação em audiência de partes, a Ré contestou excecionando a sua ilegitimidade e a caducidade do direito de o autor invocar a justa causa de resolução do contrato. Concluiu, pedindo a improcedência da ação e a condenação do autor como litigante de má-fé.

Dispensou-se a realização de audiência prévia, bem como a enunciação dos factos assentes e dos temas de prova.

Proferido despacho saneador foi julgada procedente a exceção da caducidade do direito de resolver o contrato de trabalho com invocação de justa causa.

Procedeu-se a julgamento, na sequência do qual foi proferida sentença que julgou a ação parcialmente procedente e em consequência condenou a R. a:

a) Pagar as horas de trabalho noturno efetuadas pelo A., de dezembro de 2020 a novembro de 2021, considerando os dias e horários dados por assentes nos autos e que constam dos relatórios de ocorrência da Mota Engil, em valor a apurar em sede de liquidação de sentença;

b) Pagar ao A. 6 dias de trabalho em dia feriado com o acréscimo de 50% de retribuição referente a dezembro de 2020 a outubro de 2021;

c) Pagar ao A. as férias não gozadas de 2018, 2019, 2020 e 2021.

Inconformado com esta decisão dela recorreu o Autor para o Tribunal da Relação de Lisboa, tendo este proferido acórdão nos seguintes termos:

“Por todo o exposto acorda-se:

I - julgar parcialmente procedente a impugnação da matéria de facto e em consequência:

a) alterar a redação dos factos não provados 7. e 9. nos termos acima consignados;

b) alterar a redação dos factos provados 1. e 16, nos termos acima consignados;

c) aditar os factos provados 3A. a 3J, nos termos acima consignados.

II – aditar oficiosamente os factos provados 1A., 19. a 28., nos termos supra consignados.

III– revogar parcialmente a sentença, condenando a recorrida a pagar ao recorrente:

a) a quantia de € 1 022,54 (mil e vinte e dois euros e cinquenta e quatro cêntimos) a título de diferenças de retribuição base;

b) a quantia de € 114,58 (cento e catorze euros e cinquenta e oito cêntimos) a título de diferenças de subsídio de alimentação;

c) a quantia, a apurar em incidente de liquidação, relativa a subsídios de férias e de Natal calculados com base no valor da retribuição base devida e na média do trabalho noturno prestado, deduzida das quantias que a ré pagou mensalmente ao recorrente a esse título;

d) indemnização correspondente ao triplo dos valores devidos (diferenças de retribuição base, diferenças de subsídio de alimentação, subsídio de férias e de natal, retribuição de férias não gozadas, trabalho noturno, retribuição por dias feriado), a apurar em incidente de liquidação.

IV – confirmar no mais a sentença recorrida.

V – condenar o recorrente como litigante de má-fé na multa de 2 UC.

(…)”.

1.2. Inconformado com esta decisão dela recorre de revista o Autor, rematando as suas conclusões no sentido de se julgar como procedente o presente Recurso ordinário de revista do Recorrente e consequentemente:

a. Reconhecer a existência de um erro na interpretação e aplicação da lei substantiva por parte do Tribunal a quo, devendo assim determinar a revogação da decisão de verificar um abuso de direito no pedido de trabalho suplementar realizado pelo Recorrente e consequentemente:

i. Revogar a condenação em multa por litigância de má fé dependente desse entendimento;

ii. Condenar a Recorrida ao pagamento do Trabalho Suplementar e noturno reconhecido e à indemnização por danos sofridos calculada nos termos do contrato colectivo trabalho.

1.3. Também inconformado com o acórdão da Relação dele recorre a Ré, pugnando pela revogação do acórdão recorrido, visto este ter feito errada apreciação da lei processual; ter errado na aplicação do direito quanto à aplicação do CCT, devendo ser reduzida por manifesta desproporcionalidade e excessiva oneração a indemnização prevista no art.º 45 do CCT.

1.4. Os recursos foram admitidos na espécie efeito e regime de subida adequados.

1.5. Remetidos os autos a este Supremo Tribunal de Justiça deles teve vista o Exmo. Procurador-Geral Adjunto, tendo emitido parecer no sentido de

I – Do recurso do autor:

A 1.ª questão – abuso de direito pelo autor. Deverá o recurso ser julgado procedente, sendo a ré recorrida condenada a pagar ao autor a retribuição por trabalho suplementar, eventualmente a liquidar em execução de sentença.

A 2.ª questão – litigância de má-fé pelo autor. Deverá o recurso ser julgado improcedente, mantendo-se a decisão recorrida.

II – Do recurso da ré:

A 1.ª questão – Erro de julgamento relativamente à reapreciação da matéria de facto feita no acórdão recorrido no que respeita à decisão de alterar e de aditar factos. Deverá o recurso ser julgado improcedente, mantendo-se decisão recorrida.

A 2.ª questão - o direito à indemnização prevista na cláusula 45.º do CCT. Deverá o recurso ser julgado improcedente, mantendo-se a decisão recorrida. 3.ª questão – redução da indemnização, nos termos do artigo 812.º do Código Civil. A apreciação dessa questão deverá ser remetida para o incidente de liquidação, no qual se apurará o montante da indemnização.

1.6. Notificadas as partes do parecer não foi apresentada qualquer resposta.

1.7. Teve lugar a conferência.

Cumpre apreciar e decidir

2. Objecto do recurso

O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das respetivas alegações, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso - artigos 635.º, n.ºs 3 e 4, 639.º, n.º 1, 608.º, n.º 2, do Código de Processo Civil (CPC), que não tenham sido apreciadas com trânsito em julgado. Assim, as questões que se colocam à apreciação deste tribunal consistem em saber se:

Recurso do Autor

- O Autor não agiu em abuso de direito, sendo-lhe devido o pagamento pelo trabalho suplementar que realizou;

- O Autor não deve ser condenado como litigante de má-fé.

Recurso da Ré

- Se verifica erro na apreciação da prova por parte do Acórdão recorrido;

- Não se verificam os pressupostos de que depende a fixação da indemnização a que alude a Cláusula 45.ª do CTT;

- Essa indemnização deve ser reduzida.

3. Fundamentação de facto

3.1. Encontram-se provados os seguintes factos:

1. A. e R. assinaram um documento que designaram de contrato de trabalho a tempo inteiro, no qual acordaram que o A. prestaria as suas funções de vigilante para a R. a partir de 6/6/2017, compreendendo um período mínimo de 90 horas mensais, em turnos fixos ou rotativos, em que de acordo com as horas trabalhadas seria paga a retribuição com base na retribuição ilíquida mensal de €651,56, tudo em termos e condições que constam do documento 1 junto com a pi e cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

1. A. A ré dedica-se a atividade de segurança, a que corresponde o CAE ...00.

2. A relação laboral durou 4 (quatro) anos e 6 (seis) meses, tendo a mesma cessado no dia 29 de novembro de 2021, mediante a resolução do contrato de trabalho com invocação de justa causa pelo Autor, nos termos da carta que consta de fls. 83 dos autos e cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

3. Do registo da segurança social consta declarados rendimentos do trabalho do A. para a R. e para outra empresa de vigilância até abril de 2008, em termos que constam do documento 3 junto com a pi e cujo teor se dá por integralmente reproduzido.

3A. No mês de dezembro de 2017 o autor trabalhou 20 dias.

3B. No mês de janeiro de 2018 o autor trabalhou 20 dias.

3C. No mês de fevereiro de 2018 o autor trabalhou 10 dias.

3D. No mês de março de 2018 o autor trabalhou 10 dias.

3E. No mês de abril de 2018 o autor trabalhou 1 dia.

3F. No mês de maio de 2018 o autor trabalhou 1 dia.

3G. Em cada um dos meses de junho a dezembro de 2018 o autor trabalhou 20 dias.

3H. No mês de janeiro de 2019 o autor trabalhou 16 dias.

3I. Em cada um dos meses de fevereiro a outubro de 2019 o autor trabalhou 20 dias.

3J. Em cada um dos meses de novembro de 2019 a novembro de 2020 o autor trabalhou 22 dias.

4. De dezembro de 2020 a outubro de 2021 o A. trabalhou em turnos rotativos de 12h, das 7h às 19h, ou das 19h às 7h.

5. No período de dezembro de 2020 a outubro de 2021 o A. almoçava no local de trabalho e no máximo podia ir ao café beber um café enquanto outro vigilante de outra obra ficava de vigia, posto que a obra tinha segurança 24h.;

6. Em dezembro de 2020 o A. trabalhou 8 dias, nos dias 10, 13, 14, 19, 20, 25, 26, 31, com os turnos supra mencionados;

7. Em janeiro de 2021 o A. trabalhou nos dias 1, 6 ,7, 8, 11, 12, 14, 15, 17 e 18, 20, 21, 24, 26,27,30 e 31(corrige-se o manifesto lapso de escrita quanto ao dia 17, que constava da sentença como 7, sendo evidente pela consideração anterior do dia 7 e pela sua inserção cronológica que se pretendia dizer 17).

8. Em fevereiro de 2021 o A. trabalhou nos dias 1, 2, 6, 7, 8, 13, 14, 19, 20, 25 e 26.

9. Em março de 2021 o A. trabalhou nos dias 3, 4, 7, 9, 10, 13, 14, 15, 16, 20, 21, 22, 27 e 28.

10. Em abril de 2021 o A trabalhou nos dias 2, 3, 8, 9, 14, 15, 18, 20, 21, 24, 25, 26 e 27.

11. Em maio de 2021 o A. trabalhou nos dias 1, 2, 3, 8, 9, 14, 15, 20, 21, 26, 27 e 30.

12. Em junho de 2021 o A. trabalhou nos dias 1, 2, 5, 7, 8, 12, 13, 14, 19, 20, 25 e 26.

13. Em julho de 2021 o A. trabalhou nos dias 1, 2, 7, 8, 11, 13, 14, 17, 18, 19, 20, 24, 25, 26 e 31.

14. Em agosto de 2021 o A. trabalhou nos dias, 6, 7, 12, 13, 18, 19, 22, 24, 25, 28, 29, 30 e 31.

15. Em setembro de 2021 o A. trabalhou nos dias 1, 4, 5, 11, 12, 17, 18, 23, 24, 29 e 30.

16. Em outubro de 2021 o A. trabalhou nos dias 3, 5, 6, 8, 10, 11, 12, 16, 18, 23, 24, 29 e 30.

17. Em novembro de 2021 o A. trabalhou nos dias 5, 6, 10, 11, 14, 16, 17, 20, 21, 22, 23, 24, 27, 28 e 29.

18. Em 2018, 2019, 2020 e 2021 o A. não gozou férias.

19. Nos meses de agosto, setembro e outubro de 2017 a retribuição base do autor foi de € 325,78.

20. Nos meses de janeiro a março de 2018 a retribuição base do autor foi de € 651,56.

21. Nos meses de janeiro a junho de 2021 a retribuição base do autor foi de € 796,19.

22. A ré pagou ao autor a título de retribuição base, subsídio de alimentação, subsídio de férias e de Natal, no período de junho de 2017 a novembro de 2021 as quantias a cada um desses títulos discriminadas nos recibos de vencimento juntos com a petição inicial e a contestação, cujo teor se dá por reproduzido.

23. Nos meses de junho a setembro de 2017 a ré pagou ao autor o subsídio de alimentação no valor diário de € 4,52.

24. Nos meses de outubro a dezembro de 2017 a ré pagou ao autor o subsídio de alimentação no valor diário de € 4,52.

25. Nos meses de janeiro a março de 2018 a ré pagou ao autor o subsídio de alimentação no valor diário de € 4,77.

26. Nos meses de janeiro a dezembro de 2020 a ré pagou ao autor o subsídio de alimentação no valor diário de € 6,06.

27. Nos meses de janeiro a julho de 2021 a ré pagou ao autor o subsídio de alimentação diário de € 6,06.

28. Nos meses de agosto a novembro de 2021 a ré pagou ao autor o subsídio de alimentação diário de € 6,10.»

3.2. Factos não provados

Não se provou que:

1. Desde o início da sua relação laboral o A. trabalhou todos os meses até ao final do contrato;

2. No período de dezembro de 2020 a outubro de 2021 o A. dispunha de 1 hora de almoço no seu horário;

3. Em dezembro de 2020 o A. trabalhou 22 dias, 14 dias, com a 56 [cinquenta e seis) horas suplementares em período diurno, e 6 (seis) horas de trabalho noturno;

4. O A. trabalhou nos dias 13 e 19 de janeiro de 2021;

5. O A. trabalhou nos dias 2, 3, 4, 5, 9, 10, 11, 16, 17, 20, 23, 26 de agosto de 2021;

6. O A. trabalhou nos dias 2, 3, 8, 9, 10, 15, 16, 19, 21, 22, 25, 28 de setembro de 2021;

7. O A. trabalhou nos dias 1, 2, 7, 13, 15, 16, 19, 20, 21, 22, 25, 26, 27, 28 e 31 de outubro de 2021;

8. O A. trabalhou nos dias 2, 3,4, 8,9,15, 26 de novembro de 2021;

9. De junho de 2017 a novembro de 2017 o autor trabalhou os dias e horas que afirma na sua petição inicial;

10. A R. propôs ao A. a partir de dezembro de 2020 horário continuo, concentrado diurno e noturno, e o A. aceitou compensar o trabalho noturno com dias de descanso;

11. O autor gozava dois dias em cada mês de trabalho de férias de 2018 a dezembro de 2020;

12. A partir de dezembro de 2020 e até novembro de 2021, o autor gozava mensalmente as férias a que tinha direito, designadamente só em novembro de 2021 gozou 21 dias de férias e os restantes dias foram gozados entre Dezembro/20 a outubro de 2021.

4. Fundamentação de Direito

4.1. De o Autor não ter agido abuso de direito, sendo-lhe devido o pagamento pelo trabalho suplementar que realizou

Como resulta da matéria de facto provada e foi assinalado no acórdão recorrido, ficou demonstrado que o Autor no período de dezembro de 2020 a outubro de 2021, trabalhou em turnos rotativos de 12 horas, das 7h às 19h ou das 19h às 7h. Uma vez que nos termos do citado art.º 203.º e das cláusulas 12.ª do CCT de 2014 e 19.ª dos CCT posteriores, o período normal de trabalho diário não pode exceder 8horas, em cada um dos dias em que prestou trabalho naqueles meses, o autor prestou 4h de trabalho suplementar, que deveria ser remunerado com acréscimo (art.º 268.º do Código do Trabalho, cláusula 30.ª do CCT de 2014 e cláusula 38.ª dos CCT posteriores).

Apesar de assim ter sucedido o acórdão recorrido considerou não ser devido ao Autor qualquer importância a esse título, visto que não tendo o mesmo trabalhado durante todo mês e tendo-lhe sido paga a retribuição completa, tal equivaleria a abuso de direito.

Nos termos do art.º 334.º do Código Civil é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito. Pretende-se, por este meio, evitar que no exercício de um qualquer direito sejam intoleravelmente ultrapassados os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.

Segundo Pires de Lima e Antunes Varela, in “Código Civil Anotado”, Coimbra Editora, Vol. IV, pág. 300, o “abuso do direito traduz-se “na utilização do poder contido na estrutura do direito para a prossecução de um interesse que exorbita do fim próprio do direito ou do contexto em que ele deve ser exercido.” Parte-se do entendimento de que “o exercício de uma faculdade juridicamente tutelada não se finda em si mesmo, antes pressupõe uma actuação vinculada aos fins (sejam eles imanentes, sistémicos ou de qualquer outra natureza) que fundamentam o reconhecimento e a tutela jurídica de tal posição”.

Para Menezes Cordeiro, in “Tratado de Direito Civil Português”, I – “Parte Geral”, Tomo IV, 2005, Almedina, págs. 349, «Abuso do direito» constitui uma mera designação tradicional que contempla o que denomina de “exercício disfuncional de posições jurídicas”, porquanto situações existem que devem estar abrangidas pela figura do abuso do direito, citando, a título exemplificativo, os casos de desequilíbrio ou desproporção no seu exercício: casos em que há “uma desconexão – ou se se quiser, uma desproporção – entre as situações sociais típicas prefiguradas pelas normas jurídicas que atribuem direitos e o resultado prático desses direitos. Concluindo que o abuso de direito “se pode reportar ao exercício de quaisquer situações jurídicas e não, apenas, ao de direitos subjectivos”.

São vários os arestos que se têm pronunciado sobre esta temática, realçando, no seu essencial, que o exercício do direito não deve exceder manifestamente os limites impostos pela boa-fé, por a todos se impor uma conduta de acordo com os padrões da diligência, da honestidade e da lealdade exigíveis no comércio jurídico, pelo que os sujeitos de determinada relação jurídica devem agir como pessoas de bem, com correcção e probidade, de modo a contribuírem, de acordo com o critério normativo do comportamento, para a realização dos interesses legítimos que se pretendam atingir com a mesma relação jurídica. Consagra-se, deste modo, um princípio fundamental da ordem jurídica através do qual o exercício dos direitos está limitado pela boa-fé e pelos bons costumes, bem como pelas finalidades de natureza económica e social subjacentes à conformação desse direito (Vd. entre outros, os Acórdãos do STJ de 15.12.2011, proc. 2/08.9TTLMG.P1.S1 e de 06.12. 2017, proc. 1519/14.1TTLSB.L1.S1).

No caso em apreço, está demonstrado, como se viu, que o Autor no período assinalado prestou trabalho suplementar, constituindo direitos do trabalhador receber a retribuição normal e bem como a retribuição por trabalho suplementar, quando o tiver prestado (artigos 11.º e 268.º do Código do Trabalho).

Não se demonstrou, contudo, que tenha trabalhado nos demais dias e ignora-se o motivo pelo qual a Ré lhe pagou o salário por completo.

Como refere o Exmo. Procurador-Geral Adjunto no seu parecer, “Não se conhece a razão pela qual o trabalhador recorrente não trabalhou em todos os dias do mês naquele período temporal, dado que nenhum facto a refere. As partes podem ter acordado, nesses meses, que o trabalhador só prestaria trabalho nalguns dias ou o trabalhador faltou ao trabalho, de forma justificada ou injustificada.

Pode, designadamente, o trabalhador ter faltado ao trabalho com autorização do empregador, o que constitui falta justificada, que pode determinar perda de retribuição, nos termos previstos na al. k), do n.º 2, do art.º 249.º e al. e), do n.º 2, do art.º 255.º ambos do CT (na sua redação atual, resultante da L 13/2023, de 3 de abril) e o empregador não ter querido proceder ao desconto na retribuição, não obstante ter o direto de o fazer, como se disse.

O trabalhador pode ter faltado ao trabalho de forma justificada, com base em qualquer uma das circunstâncias previstas no n.º 2 do art.º 249.º do CT, ou, até, ter dado faltas injustificadas. Na falta de factos onde se expressem os motivos, como se disse, não se sabe quais foram”.

Destarte, desconhecendo-se o circunstancialismo que esteve na base do pagamento pela Ré ao Autor do salário completo, tendo o Autor prestado trabalho suplementar no período em causa, assiste-lhe direito ao seu recebimento, impondo-se assinalar que as diferentes prestações remuneratórias não se compensam entre si.

Nas apontadas circunstâncias, não se vislumbra que o Autor tenha excedido manifestamente os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito, ao reclamar judicialmente o seu direito de crédito pelo trabalho suplementar que efectivamente prestou.

É-lhe por isso devido o pagamento da pertinente quantia cujo montante, por falta de elementos, se relega para incidente de liquidação.

Procede, assim, a presente questão.

4.2. De não ser devida indemnização por litigância de má-fé do Autor

Pretende o Autor que se revogue a sua condenação em multa por litigância de má- -fé, dependente do entendimento, vertido no acórdão recorrido de que o Autor agiu em abuso de direito ao reclamar o pagamento do trabalho suplementar que prestou quando recebeu o salário por inteiro não tendo trabalhado todos os dias dos meses.

Ao analisarmos o acórdão recorrido verifica-se, contudo, ao contrário do que é pressuposto pelo Autor, que a condenação deste como litigante de má-fé não assentou naquele entendimento.

O acórdão é claro no sentido de que o instituto do abuso de direito não se confunde com o da má-fé, tendo analisado esta figura separadamente e concluído que “não se pode ignorar que a alegação do autor quanto aos dias em que prestou trabalho, baseou-se nos recibos de vencimento, pretendendo que sejam considerados como dias de trabalho efetivo os dias quantificados em cada mês para efeito de pagamento do subsídio de alimentação.

Ora, o autor não podia desconhecer se existia real coincidência entre o número de dias em que trabalhou e o número de dias de subsídio de alimentação que recebeu e resulta dos autos que tal coincidência não existia, tendo sido pago subsídio de alimentação relativamente a dias em que não houve prestação efetiva de trabalho. De resto, é de salientar que provindo aquela alegação da petição inicial o autor nela persistiu em sede de recurso.

Por isso, nessa medida e só nela, o autor atuou de forma, pelo menos grosseiramente negligente, litigando de má-fé nos termos do art.º 542.º, n.º 1 e 2, al. b) do Código de Processo Civil, impondo-se a sua condenação em multa que, atendendo ao disposto pelo art.º 27.º, n.º 1 do Regulamento das Custas Processuais, se fixa em 2 UC”.

Assim, uma vez que estão em causa situações diferentes e porque nada de concreto foi invocado pelo Autor a respeito da presente questão, apenas resta nos concluir pela sua improcedência.

4.3. Do erro na apreciação da prova por parte do Acórdão recorrido

Pretende a Ré que o Tribunal “a quo” fez errada apreciação da prova ao dar o facto 9 como provado e ao aditar os pontos 3A a 3J e o ponto 19 aos factos provados, verificando-se, em seu dizer, errada apreciação da lei processual e violação do princípio da livre apreciação da prova.

Vejamos,

Como é sabido, e tem sido reiteradamente afirmado por este Supremo Tribunal de Justiça, de acordo com as regras processuais vigentes os poderes deste Supremo Tribunal em sede de apreciação/alteração da matéria de facto, são muito restritos, limitando-se ao controlo que emerge dos artigos 674.º, n.º 3 (O erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objeto de recurso de revista, salvo havendo ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova) e 682.º, n.º 2 (A decisão proferida pelo tribunal recorrido quanto à matéria de facto não pode ser alterada, salvo o caso excecional previsto no n.º 3 do artigo 674.º), ambos do CPC.

Trata-se do controlo da aplicação da lei adjectiva em qualquer das tarefas destinadas à enunciação da matéria de facto provada e não provada – art.º 674.º n.º 1, alínea b), com a limitação que emerge do disposto no art.º 662.º, n.º 4, que exclui a sindicabilidade do juízo de apreciação da prova efectuado pelo Tribunal da Relação e a aferição da formação da convicção desse Tribunal a partir de meios de prova sujeitos ao princípio da livre apreciação.

Assim, o erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa escapa ao âmbito dos poderes de cognição do Supremo Tribunal de Justiça, estando-lhe interdito sindicar a convicção das instâncias pautada pelas regras da experiência e resultante de um processo intelectual e racional sobre as provas submetidas à apreciação do julgador. Conforme assinala António Abrantes Geraldes, inRecursos no Novo Código de Processo Civil”, 2013, Almedina, pág. 325 e 326, o STJ apenas poderá sindicar “erros de apreciação da prova resultantes da violação de direito probatório material, podendo constituir fundamento da revista a violação de disposição legal expressa que exija certa espécie de prova ou que fixa a respectiva força probatória.”, dado que nestas situações estaremos perante “verdadeiros erros de direito

Só relativamente à designada prova vinculada, ou seja, aos casos em que a lei exige certa espécie de prova para a demonstração do facto ou fixa a força de determinado meio de prova, poderá aquele exercer os seus poderes de controlo em sede de recurso de revista, ou seja, quando está em causa um erro de direito (Vd., entre outros, os Acórdãos do STJ de 10-05-2023, proc. 2641/20.0T8BRG.G1.S1, de 23.06.2021, proc. 199/07.5TTVCT-E.G1.S1, 14.1.2021, proc. 644/12.8TBCTX.L1.S1, de 12.7.2018, proc. 701/14.6TVLSB.L1.S1 e de 12.2.2019, proc. 882/14.9TJVNF-H.G1.A1, www.dgsi.pt).

Revertendo ao caso subjudice, importa desde já referir que o facto 9 “De junho de 2017 a novembro de 2017 o autor trabalhou os dias e horas que afirma na sua petição inicial”, foi considerado não provado, ao invés de provado, como sustenta a Ré.

Sendo que os factos provados que foram aditados têm a seguinte redação:

3A. No mês de dezembro de 2017 o autor trabalhou 20 dias.

3B. No mês de janeiro de 2018 o autor trabalhou 20 dias.

3C. No mês de fevereiro de 2018 o autor trabalhou 10 dias.

3D. No mês de março de 2018 o autor trabalhou 10 dias.

3E. No mês de abril de 2018 o autor trabalhou 1 dia.

3F. No mês de maio de 2018 o autor trabalhou 1 dia.

3G. Em cada um dos meses de junho a dezembro de 2018 o autor trabalhou 20 dias.

3H. No mês de janeiro de 2019 o autor trabalhou 16 dias.

3I. Em cada um dos meses de fevereiro a outubro de 2019 o autor trabalhou 20 dias.

3J. Em cada um dos meses de novembro de 2019 a novembro de 2020 o autor trabalhou 22 dias.

19. Nos meses de agosto, setembro outubro de 2017 a retribuição base do autor foi de € 325,78.

Da leitura do acórdão da Relação, concatenado com o teor da petição e da contestação a que o mesmo faz referência, verifica-se que o Autor alegou na sua petição inicial (artigos 177.º a 295.º), que prestou vários dias de trabalho para a Ré e trabalho suplementar. Esta impugnou expressamente a verificação de trabalho suplementar (artigos 80.º a 85.º da contestação), mas aceitou parcialmente a versão dos factos apresentada pelo Autor, ao referir-se a dias concretos respeitantes aos meses de Dezembro 2017, Janeiro, Fevereiro e Março de 2018, Abril, Maio e Junho de 2018, Janeiro de 2019, Fevereiro, Outubro e Novembro de 2019, em que o Autor para si trabalhou (artigos 88.º a 99.º da contestação). Perante esta posição da Ré, ao abrigo do disposto nos artigos 574.º n.º 2 e 607.º n.º 4 do CPC, aditaram-se os factos provados 3-A a 3-J e, por razões lógicas, para evitar contradições factuais (face ao seu conteúdo negatório temporalmente mais abrangente), deu-se nova redacção ao ponto 9 dos factos não provados. No que concerne ao ponto 19 dos factos provados (valor da retribuição) como consta, e bem, do acórdão recorrido o mesmo resulta do acordo das partes, encontrando-se também documentado nos autos através dos recibos de vencimento juntos pelo Autor e pela Ré, que não foram objeto de impugnação.

Não se verifica, assim, qualquer ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova, tendo o tribunal “a quo” actuado, como se viu, ao abrigo do disposto do art.º 662.º n.º 1 do CPC e com respeito pelo disposto nos artigos 574.º n.º 2 e 607.º n.º 4 do mesmo diploma legal, não se vislumbrando, outrossim, qualquer violação do princípio da livre apreciação da prova que a Recorrente invocou, mas nem sequer explicitou em que termos ocorreria.

Improcede, por conseguinte, a presente questão.

4.4. De se não verificarem os pressupostos de que depende a fixação da indemnização a que alude a Cláusula 45.ª do CTT

Sustenta a Ré que não é devida ao Autor a indemnização a que alude a Cláusula 45.ª do CTT em causa.

Sendo de concluir, como fez o acórdão recorrido, pela aplicação do CCT celebrado entre a AES - Associação de Empresas de Segurança e outra e a FETESE - Federação dos Sindicatos da Indústria e Serviços e outro e as revisões que compreendem o período de 5 de junho de 2017 a 29 de novembro de 2021 (atenta a atividade comercial da Ré, correspondente ao exercício de Atividades de Segurança, publicado no BTE n.º 32 de 29.08.2014, que de acordo com o n.º 1, da cláusula 1.ª se aplica a todo o território nacional e obriga, por um lado, as empresas representadas pela AES - Associação de Empresas de Segurança e a AESIRF – Associação Nacional das Empresas de Segurança e por outro, os trabalhadores ao seu serviço representados pelas organizações sindicais outorgantes, com o CAE ...00), tendo sido a sua aplicação alargada por força da Portaria de Extensão n.º 53/2015, publicada no BTE n.º 13 de 08/04/2015 “a) Às relações de trabalho entre empregadores não filiados nas associações de empregadores outorgantes que se dediquem às atividades de segurança privada e prevenção e trabalhadores ao seu serviço das profissões e categorias profissionais nele previstas;”, que produz efeitos a partir de 01/04/2015, a que sucederam os CCT publicados no BTE n.º 38 de 15/10/2017, que entrou em vigor em 01/10/2017, com Portaria de Extensão n.º 357/2017 de 16/11, publicada no DR, 1.ª série, de 16/11/2017, que produz efeitos a partir de 01/11/2017, no BTE n.º 48 de 29/12/2018 e no BTE n.º 20 de 29/05/2019, ambas com entrada em vigor em 01/01/2019, com Portaria de Extensão n.º 318/2019 de 16/09, publicada no BTE n.º 34 de 15/09/2019, com produção de efeitos a partir de 01/07/2019, no BTE n.º 22 de 15/06/2020, que entrou em vigor em 01/01/2020, com Portaria de Extensão n.º 186/2020 de 06/08, publicada no DR, Série I de 06/08/2020 que produz efeitos a partir de 01/07/2020; no BTE n.º 4 de 29/01/2021 que entrou em vigor em 01/01/2021, com Portaria de Extensão n.º 153/2021 de 16/07, publicada no DR, Série I de 16/07, que produz efeitos a partir de 01/03/2021), e porque se apurou que a Ré é devedora de quantias relativas a prestações pecuniárias referidas no acórdão recorrido, nos termos da Cláusula 45.ª do aludido CTT (“O empregador que incorra em mora superior a sessenta dias após o seu vencimento no pagamento das prestações pecuniárias efetivamente devidas e previstas no presente capítulo ou o faça através de meio diverso do estabelecido, será obrigado a indemnizar o trabalhador pelos danos causados, calculando-se os mesmos, para efeitos indemnizatórios, no valor mínimo de 3 vezes do montante em dívida”), nada a objectar à condenação da Ré em indemnização correspondente ao triplo dos valores devidos (diferenças de retribuição base, diferenças de subsídio de alimentação, subsídio de férias e de Natal, retribuição de férias não gozadas, trabalho noturno, retribuição por dias feriados), a apurar em incidente de liquidação, como se mencionou no acórdão recorrido, por não ser, ainda, possível determinar o valor total devido ao Autor.

Improcede, assim, também a presente questão.

4.5. De a indemnização fixada à Ré dever ser reduzida

Sustenta a Ré que a indemnização em causa deve ser reduzida, por ser excessiva, nos termos do art.º 812.º, do Código Civil. Uma vez que, como acima se referiu, se relega para liquidação o apuramento do seu montante não é possível aquilatar, para já, se a mesma é ou não excessiva.

5. Decisão

Em face do exposto:

Concede-se parcial provimento ao recurso do Autor, pelo que se revoga o acórdão recorrido na parte em que considerou que aquele agiu em abuso de direito e condena-se a Ré pagar-lhe o trabalho suplementar prestado, acima referido, cujo apuramento se relega para incidente de liquidação.

Mantém-se, no mais, o acórdão recorrido.

Nega-se provimento ao recurso da Ré, confirmando-se o acórdão recorrido.

Custas no recurso do Autor por ambas as partes, na proporção do decaimento.

Custas no recurso da Ré a suportar por esta.

Lisboa, 2025.02.12

Albertina Pereira (Relatora)

José Eduardo Sapateiro (1.º Adjunto)

Júlio Gomes (2.º Adjunto)