Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
51/10.7YFLSB.S1
Nº Convencional: 5ª SECÇÃO
Relator: ISABEL PAIS MARTINS
Descritores: PRINCÍPIO DA VINCULAÇÃO TEMÁTICA
REJEIÇÃO
DESPACHO QUE DESIGNA DIA PARA A AUDIÊNCIA
NULIDADE SANÁVEL
DIFAMAÇÃO
INJÚRIA
BEM JURÍDICO PROTEGIDO
DIREITO DE CRÍTICA
DIREITO À HONRA
Data do Acordão: 11/17/2010
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário :

I -O objecto do recurso centra-se em saber se o despacho de rejeição da acusação (particular, que rejeitou considerando-a manifestamente infundada, por os factos imputados ao arguido não constituírem crime), se contém nos limites do controlo dos vícios estruturais da acusação.
II - A acusação, sendo uma condição indispensável do julgamento, por ser pela acusação que se fixa o objecto do processo, há-de conter os factos que são imputados ao arguido e esses factos hão-de integrar a prática, pelo arguido, do ilícito penal pelo qual é requerido o seu julgamento; não havendo lugar à fase da instrução, a legalidade da acusação está sujeita a fiscalização judicial, por via do despacho a que se refere o art. 311.º do CPP, no âmbito do qual se terá de aferir da ocorrência dos pressupostos legais para que a acusação possa ser admitida.
III - O art. 311.º, n.º 2, al. a), dispõe que se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, o presidente despacha no sentido de rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada, devendo entender-se como tal aquela que não contenha a identificação do arguido, a narração dos factos, as disposições legais aplicáveis ou as provas que a fundamentam, ou se os factos não constituírem crime (n.º 3 dessa norma).
IV - Já foi notado, e com razão, que os vícios elencados no n.º 3 do art. 311.º se sobrepõem às nulidades sanáveis do art. 283.º, n.º 3, als. a), b), e c), pelo que as ditas nulidades se convertem em matéria de conhecimento oficioso do tribunal.
V - A tutela penal do direito constitucional “ao bom-nome e reputação” – art. 26.º, n.º 1, da CRP –, é assegurada, em primeira linha, pelos arts. 180.º e 181.º do CP que, na descrição típica, utilizam a expressão “ofensivos da honra e consideração”, não se podendo prescindir de definir o conceito de “honra”.
VI - A doutrina dominante adopta uma concepção dual da honra: esta é vista como um bem jurídico complexo que inclui, quer o valor pessoal ou interior de cada indivíduo, radicado na sua dignidade, quer a própria reputação ou consideração exterior. O que o bem jurídico protege é a honra interior inerente à pessoa enquanto portadora de valores espirituais e morais e, para além disso, a valência deles decorrente, a sua reputação no seio da comunidade.
VII - Esta é a doutrina compatível com a nossa própria lei, já que o nosso ordenamento jurídico-penal, em consonância com a ordem constitucional, alarga o conceito da honra também à consideração ou reputação exteriores.
VIII - A jurisprudência e a doutrina jurídico-penais portuguesas têm correctamente recusado sempre qualquer tendência para uma interpretação restritiva do bem jurídico “honra”, que o faça contrastar como o conceito de “consideração” ou com os conceitos jurídico-constitucionais de “bom-nome” e de “reputação”, nunca tendo tido entre nós aceitação a restrição da “honra” ao conjunto de qualidades relativas à personalidade moral, ficando de fora a valoração social dessa mesma personalidade; ou a distinção entre opinião subjectiva e opinião objectiva sobre o conjunto das qualidades morais e sociais da pessoa; ou a defesa de um conceito puramente fáctico, quer – no outro extremo – estritamente normativo da honra. Por isso se pode concluir seguramente pela total congruência entre a tutela jurídico-penal e a protecção jurídico-constitucional dos valores da honra das pessoas – cf. Figueiredo Dias, RLJ, Ano 115.º, pág. 105.
IX - Segundo o entendimento hoje dominante, os juízos de apreciação e valoração vertidos sobre realizações ou prestações, na medida em que não seja ultrapassado o âmbito da crítica objectiva, caem já fora da tipicidade de incriminações como a difamação – cf. Costa Andrade, Liberdade de Imprensa e Inviolabilidade Pessoal, Coimbra Editora, 1996, págs. 232 a 240.
X - E no sentido da atipicidade da crítica objectiva afastam-se, hoje, as exigências de proporcionalidade e da necessidade objectiva, do bem-fundado ou da “verdade”, bem como o pressuposto do meio menos gravoso.
XI -Ou seja, a tese da atipicidade da crítica objectiva não depende do acerto, da adequação material ou da “verdade” das apreciações subscritas. Por outro lado, o direito de crítica com este sentido não conhece limites quanto ao teor, à carga depreciativa e mesmo à violência das expressões utilizadas.
XII - É hoje igualmente pacífico o entendimento que submete a actuação das instâncias públicas ao escrutínio do direito de crítica objectiva.
XIII - São ainda de levar à conta da atipicidade os juízos que, como reflexo necessário da crítica objectiva, acabam por atingir a honra do autor da obra ou prestação em exame: nesta linha, o crítico que estigmatizar uma acusação como “persecutória” ou “iníqua” pode igualmente assumir que o seu agente teve, naquele processo, uma conduta “persecutória” ou “iníqua” ou que ele foi, em concreto, “persecutório” ou “iníquo”. Aqui, está já presente uma irredutível afronta à exigência de consideração e respeito da pessoa, mas trata-se de sacrifício ainda coberto pela liberdade de crítica objectiva, não devendo ser levado à conta de lesão típica.
XIV - Já o mesmo não se poderá sustentar para os juízos que atingem a honra e consideração pessoal perdendo todo e qualquer ponto de conexão com a prestação ou obra que, em princípio, legitimaria a crítica objectiva.

Decisão Texto Integral:

Acordam, em conferência, no Supremo Tribunal de Justiça

I


1. No termo do inquérito n.º 1/2008, dos serviços do Ministério Público deste Supremo Tribunal de Justiça, os assistentes AA, BB e CC, todos devidamente identificados nos autos, notificados nos termos e para os efeitos do artigo 285.º, n.º 1, do Código de Processo Penal (CPP), deduziram acusação particular e, ao abrigo do disposto no artigo 77.º, n.º 1, do mesmo diploma, pedidos de indemnização civil contra DD, Juiz Conselheiro do Supremo Tribunal Administrativo, no mais também devidamente identificado nos autos.

1.1. Os assistente imputaram ao arguido a prática, em concurso efectivo, ideal e homogéneo, de:

– três crimes de difamação agravados, previstos e puníveis nos termos das disposições conjugadas dos artigos 180.º, n.º 1, 182.º e 183.º, n.º 1, alíneas a) e b), todos do Código Penal; e de

– três crimes de injúria agravados, previstos e puníveis nos termos das disposições conjugadas dos artigos 181.º, 182.º e 183.º, n.º 1, alínea b), todos do Código Penal.

Porquanto tiveram por suficientemente indiciado nos autos que (segue-se reprodução ipsis verbis da peça, então, produzida, incluindo os destaques que dela constam):

«1. Os Assistentes pertencem à direcção da Cooperativa "A... -Cooperativa de Habitação e Construção, CRL, em liquidação", doravante designada abreviadamente por "Cooperativa".

«2. O Arguido é cooperador da referida cooperativa.

«3. Em 20 de Junho de 2007, o Arguido, juntamente com outros cooperadores, enviou por correio, dirigida ao Presidente da Mesa da Assembleia Geral da Cooperativa, Sr. EE, uma missiva na qual, sob o pretexto de exercerem o seu direito de voto por correspondência sobre proposta constante da ordem de trabalhos de Assembleia Geral Extraordinária da Cooperativa marcada para o dia 30 do mesmo mês, fizeram constar diversas afirmações de carácter ofensivo da honra e consideração dos ora Assistentes (cfr. cópia da carta, que encontra junta como doc. n.º 1 à queixa-crime).

«4. Com efeito, a respeito da proposta constante da ordem de trabalhos, afirma o Arguido na mencionada carta:

"(...) Mas sem razão, e mais uma vez com grossa má-fé — inclusivamente dos advogados, que não deixaremos de responsabilizar, e que subscrevem e dão a subscrever aos membros dos corpos sociais escritos e palavras de objectiva violentação psicológica de cooperadores da nossa Cooperativa (…)”.

«5. Para além da citada passagem pode ainda ler-se na referida carta:

"Por estas sucintas razões (e muito mais se disse e há-de dizer em Tribunal, onde correm processos de natureza criminal e cível contra os membros dos corpos sociais), estamos a votar contra os pontos propostos (...)".

«6. Essas afirmações são susceptíveis de atingir os Assistentes no seu bom-nome, na sua honra e na sua reputação.

Senão vejamos,

«7. Conforme se pode constatar da análise do primeiro excerto supra transcrito, o Arguido, para além de alegar que os Assistentes agiam "mais uma vez com grossa má-fé” afirmam que os mesmos recebem dos seus advogados e que subscrevem "escritos e palavras de objectiva violentação psicológica de cooperadores".

«8. Assim, apesar de estar em causa não mais do que o exercício legítimo de um direito dos Assistentes, o Arguido não se coibiu de classificar a actuação daqueles como sendo eticamente muito reprovável, acusando-os mesmo de praticarem actos de violentação psicológica dos cooperadores.

«9. Ora, os Assistentes sempre pautaram a sua conduta pessoal e profissional, designadamente enquanto membros da direcção da Cooperativa, por elevados padrões de honestidade e rectidão moral, cumprindo com zelo os deveres que lhe incumbem e não tendo feito qualquer uso abusivo dos direitos que lhes assistem, muito menos tendo exercido qualquer espécie de violentação sobre o Arguido ou quaisquer outros cooperadores.

«10. Tais afirmações retratam os Assistentes de forma manifestamente depreciativa, uma vez que ali se lhes imputa a prática de condutas eticamente reprováveis, de violentação psicológica de cooperadores, qualificando-se o comportamento daqueles como de "grossa má-fé".

«11. Note-se que, apesar de os advogados que aconselhavam os Assistentes serem também eles visados pelas afirmações do Arguido, é manifesto que as referidas afirmações não se restringem a estes.

«12. De facto, a utilização do advérbio de modo "inclusivamente” demonstra que (de acordo com o Arguido) também os advogados, para além dos Assistentes, actuavam repetidamente com "grossa má-fé".

«13. Por outro lado, os alegados "escritos e palavras de objectiva violentação psicológica de cooperadores", ainda que preparados pelos advogados, seriam subscritos também (pelo menos) pelos Assistentes, pelo que não restam dúvidas de que estes seriam agentes de tal conduta.

«14. Ademais, o Arguido afirmou estarem pendentes "processos de natureza criminal e cível contra os membros dos corpos sociais”, quando bem sabia que nenhum processo criminal corria contra aqueles.

«15. Efectivamente, apesar de ter sido apresentada pelo Arguido, juntamente com outros, queixa-crime contra os Assistentes, cumpre sublinhar que o respectivo inquérito foi arquivado em 31/03/2006, tendo o Digno Magistrado do Ministério Público considerado: "Por todo o exposto, entende-se que não existem indícios suficientes da prática, pelos denunciados, dos crimes que lhe são imputados na participação, ou de quaisquer outros" (cfr. cópia do despacho de arquivamento, que se encontra junto à queixa-crime como doc. n.º 2).

«16. Não estando então pendente, à data em que foi redigida e expedida a carta supra referida no ponto 3 (20/06/2007), qualquer processo criminal contra os Assistentes.

«17. Note-se, a este propósito, que o despacho de arquivamento terá sido notificado ao Arguido em data anterior à elaboração e envio da referida carta, pelo que se presume que este teria perfeito conhecimento do arquivamento do processo.

«18. Bem assim como saberia o Arguido que, no âmbito do mencionado inquérito, os ora Assistentes nem sequer chegaram a ser constituídos arguidos, tal a falta de fundamento da queixa-crime em questão.

«19. Ora, é sabido que apesar de vigorar no ordenamento jurídico português o princípio in dubio pro reo, não deixa também de ser pacificamente reconhecido que a condição de arguido em processo penal acarreta uma forte carga negativa, recaindo sobre aqueles que se encontram nessa condição um anátema que muitas vezes destrói em pouco tempo a reputação mantida incólume durante toda uma vida.

«20. Acresce que tais considerações não foram propaladas entre desconhecidos, mas sim num meio em que os Assistentes são pessoas conhecidas, afectando de imediato a sua credibilidade e honorabilidade perante vizinhos e cooperadores.

«21. Por outro lado – e com o devido respeito, que é muito – não poderá deixar de se sublinhar que o ora Arguido é um alto magistrado judicial – Juiz Conselheiro do Supremo Tribunal Administrativo - cargo prestigiado e que inspira o maior respeito e consideração no seio da comunidade.

«22. Nessa medida, qualquer apreciação que o Arguido faça a respeito da legalidade ou da correcção da conduta de outrem reveste-se, a justo título, da maior credibilidade junto do círculo dos destinatários daquelas afirmações – aliás conhecedores do cargo desempenhado pelo Arguido.

«23. Assim, seria previsível que a sua afirmação de que os Assistentes se encontrariam a responder criminalmente fosse entendida pela generalidade dos cooperadores como significando que os Assistentes, efectivamente, haviam praticado crimes enquanto membros da Direcção da Cooperativa.

«24. Sublinhe-se que não se deverá vislumbrar no que vem de se escrever uma exacerbada sensibilidade dos ora Assistentes, no sentido de que estes se indignariam com qualquer comentário menos próprio proferido a seu respeito.

«25. A verdade é que as afirmações em causa se revestem de gravidade, sendo objectivamente susceptíveis de causar – como efectivamente causaram – severo dano à reputação e à honra dos Assistentes.

«26. Em suma, o Arguido imputa a cada um dos Assistentes um comportamento eticamente muito reprovável e de violentação psicológica sobre os cooperadores, afirmando ainda que estes estariam a responder em tribunal pela prática de crimes.

«27. Não podia o Arguido ignorar o carácter objectivamente grave e infamante das afirmações que proferiu e dos juízos e suspeições que as mesmas encerram quanto à personalidade dos ora Assistentes.

«28. Assim como não podia ignorar que, com tais afirmações, juízos e suspeições, atingia os Assistentes na sua honra, no seu bom-nome e na sua reputação, propósito que ou visou alcançar ou, ao menos, previu como consequência necessária da sua conduta e com a qual se conformou.

«29. Ao incluir tais ofensas em carta que se destinava a ser lida em Assembleia Geral, como veio efectivamente a suceder, e que expressamente requereu que fosse anexada à respectiva acta, o Arguido pretendeu e conseguiu difundir publicamente as suas afirmações (cfr. cópia da acta da Assembleia Geral, que se encontra junta à queixa-crime como doc. n.º 3).

«30. Ainda que com a pretensa justificação de se enquadrarem no exercício do direito de voto do Arguido, as afirmações, juízos e suspeições por este propalados nada têm que ver com o exercício legítimo desse direito (exorbitando, igualmente, o direito de crítica à actuação dos ora Assistentes), relevando, outrossim, no plano da ofensa pessoal e institucional dos visados.

«31. O Arguido bem sabia que o seu comportamento era previsto e punível por lei penal.

«32. Para além do mencionado crime de difamação, cumpre ainda referir que, em resposta às cartas enviada pela Direcção da Cooperativa ao Arguido, entre outros, nas quais se pedia a prestação de informações sobre os processos criminais que alegadamente correriam contra os membros da Direcção, o Sr. FF enviou nova carta dirigida àquela (cfr. cópias das cartas enviadas em 27/7/2007 pela Direcção da Cooperativa e cópia da resposta a essa carta, de 13/8/2007, enviada pelo Sr. FF à Direcção da Cooperativa, que se encontram juntas à queixa-crime como docs. nrs. 4 e 5, respectivamente).

«33.Nessa carta, enviada e subscrita pelo Sr. FF, voltam a produzir-se afirmações ofensivas da honra e consideração dos Assistentes.

«34. Com efeito, aí se escreve que: "Em relação à V/ carta de 27-07-2007, venho dizer que a informação solicitada (sem qualquer base legal, aliás) releva manifestamente de métodos de chantagem característicos de um aconselhamento «jurídico» sem dignidade". «35. Ali se podendo ler, ainda: "Assim sendo, como é, para além dos já propostos, outros processos eventualmente se justificarão, não só contra os membros dos órgãos sociais, mas também contra outros indivíduos ("cooperadores" ou não, incluindo advogados) que possibilitam o giro de uma "cooperativa" à revelia do reconhecimento do Instituto António Sérgio";

«36. E: "Requere-se que desta carta seja dado conhecimento a todos os elementos membros cooperadores desta Cooperativa, e também aos advogados que têm prestado serviço e levado dinheiro aos membros dos órgãos sociais "(destaques nossos).

«37. Verifica-se então que, em lugar de uma retratação, ocorreram novas ofensas, sendo de novo propalada a tese de que os membros da Direcção seriam objecto de manipulação por terceiros, que estariam a gerir a Cooperativa de forma ilegítima e que existiam processos pendentes contra os mesmos.

«38. Sublinhe-se, novamente, que apesar de também os advogados que aconselhavam os Assistentes serem visados pelas afirmações em causa, não são estes os únicos atingidos pelas mesmas.

«39. De facto, os alegados "métodos de chantagem" resultariam de aconselhamento jurídico, mas seriam exercidos pelos Assistentes.

«40. Resulta ainda óbvia a intenção não só de novamente atingir os Assistentes na sua honra e consideração, como, também, de publicitar junto de terceiros tais afirmações, já que se requeria a divulgação do teor daquela carta junto dos demais cooperadores e dos advogados que os patrocinavam.

«41. Cumpre ainda ter em consideração que, nesta carta, refere o subscritor estar a agir: "em representação de GG, cooperadora, Antero Santos, cooperador, DD, sócio cooperador fundador e presidente da assembleia-geral resignatário”.

«42. Instado a pronunciar-se sobre o teor desta última carta e sobre a existência de poderes de representação do seu subscritor (cfr. cópias das cartas datadas de 23/8/2007 e respectivos registos e avisos de recepção, que se encontram juntos à queixa-crime como doc. n.º 6) o Arguido veio a responder, por carta datada de 28/8/2007, subscrevendo as afirmações naquela contidas sem fazer qualquer retratação, invocando "a defesa de interesses cooperativos julgados legítimos" e limitando-se a afirmar não ter tido intenção de ofender os ora Assistentes (cfr. cópia das carta de resposta, que se encontra junta à queixa-crime como doc. n.º 7).

«43. Porém, é manifesto que as afirmações acima reproduzidas são objectivamente ofensivas da honra e da dignidade dos Assistentes, exorbitando largamente o exercício legítimo de quaisquer direitos de defesa de interesses cooperativos ou de crítica.

«44. Ainda que não houvesse a directa intenção de ofender, é notório que tal resultado sempre seria consequência necessária de afirmações do teor das supra reproduzidas, circunstância de que o ora Arguido não poderia deixar de estar bem ciente e com a qual se conformou.

«45. Assinale-se que o tipo subjectivo dos crimes nos artigos 180° e 181° do Código Penal não comporta elementos subjectivos específicos que imponham a existência de dolo específico – o animus difamandi ou injuriandi – sendo ambos os crimes susceptíveis de serem preenchidos com qualquer das espécies de dolo, directo, necessário ou eventual.

«46. Assim, ainda que se aceite que o ora Arguido não teve intenção de ofender – ou seja, que não agiu com dolo directo, o que, aliás, dificilmente se compagina com o teor e a reiteração das suas afirmações – facto é que, sendo estas objectivamente ofensivas da honra, do bom-nome e da reputação de cada um dos ora Assistentes, sempre o Arguido terá representado tal resultado danoso como consequência necessária da sua conduta, conformando-se com a verificação deste resultado.

«47. O ora Arguido não podia ignorar que o seu comportamento era merecedor de censura penal.»

1.2. Os assistentes pediram a condenação do arguido a pagar, a título de indemnização por danos não patrimoniais:

– € 5000,00, ao assistente AA,

– € 5000,00, ao assistente BB, e

– € 3000,00, à assistente CC.

Dizendo, neste ponto (segue-se transcrição ipsis verbis):

«48. Dão-se por integralmente reproduzidos, nesta sede, os factos supra alegados na acusação particular.

«49. As afirmações constantes da carta que se encontra junta como doc. n.º 1 à queixa-crime atingiram os ora Assistentes no seu bom-nome, na sua honra e na sua reputação.

«50. Efectivamente, o Arguido classificou a actuação dos Assistentes como sendo eticamente muito reprovável, acusando-os mesmo de praticarem actos de violentação psicológica dos cooperadores.

«51. Ora, os Assistentes sempre pautaram a sua conduta pessoal e profissional, designadamente enquanto membros da direcção da Cooperativa, por elevados padrões de honestidade e rectidão moral, cumprindo com zelo os deveres que lhe[s] incumbem e não tendo feito qualquer uso abusivo dos direitos que lhes assistem, muito menos tendo exercido qualquer espécie de violentação sobre o Arguido ou outros cooperadores.

«52. Tais afirmações retratam os Assistentes de forma depreciativa e humilhante, já que para além de aos mesmos ser imputada uma conduta eticamente reprovável, é-lhes igualmente atribuída a prática de actos criminalmente ilícitos, cuja responsabilidade estaria a ser judicialmente apreciada.

«53. Apesar de vigorar no ordenamento jurídico português o princípio in dubio pro reo, não deixa também de ser pacificamente reconhecido que a condição de arguido em processo penal acarreta uma forte carga negativa, recaindo sobre aqueles que se encontram nessa condição um anátema que muitas vezes destrói em pouco tempo uma reputação mantida incólume durante uma vida.

«54. A afirmação de que os Assistentes se encontrariam a responder criminalmente em tribunal – cuja consciência da falsidade por parte do Arguido há razão para presumir – reveste assim a maior gravidade, tendo dado causa a severo dano ao bom-nome e à reputação daqueles.

«55. Em suma, o Arguido imputa aos Assistentes um comportamento eticamente muito reprovável e de violentação psicológica sobre os cooperadores, afirmando ainda que estariam a responder em tribunal pela prática de crimes.

«56. Para além disto, o Arguido veio ainda, em momento posterior, e através da carta de 13/8/2007 (que se encontra junta como doc. n.º 5 à queixa-crime), a atingir novamente os Assistentes na sua honra e consideração, manifestando inclusivamente a intenção de publicitar junto de terceiros tais afirmações, já que se requeria a divulgação do teor daquela carta junto dos demais cooperadores e dos advogados que os patrocinavam.

«57. Os factos supra descritos causaram aos ora Assistentes uma grave humilhações, uma vez que viram a sua imagem de pessoas honradas e cumpridoras da lei ser posta em questão e severamente denegrida, junto de um círculo de pessoas que bem os conhecem e com os quais mantém relações institucionais e de vizinhança.

«58. Nestes termos, incorre o Arguido, perante os Assistentes, em responsabilidade civil, ex vi do disposto nos artigos 70.º, n.º 1, 483.º, n.º 1, 490.º, 496.º, nrs. 1 e 3 e 497.º, n.º 1, todos do Código Civil, encontrando-se obrigado a ressarcir os danos que ilícita e culposamente causou aos ora Assistentes.

«59. A respeito dos danos causados aos Assistentes, cumpre ainda sublinhar que os Assistentes AA e BB residem no lote 3.16.01 da Alameda dos Oceanos, em Lisboa;

«60. Tal como a generalidade dos restantes cooperadores e o próprio Arguido.

«61. As afirmações do Arguido sobre a conduta e a personalidade dos Assistentes, tornadas públicas na referida Assembleia Geral da Cooperativa por desejo expresso daquele, afectaram a credibilidade e a reputação dos Assistentes perante os seus vizinhos e cooperadores.

«62. Diga-se, aliás, que os dois referidos Assistentes sentiram necessidade de esclarecer, junto dos cooperadores, que não se encontravam pendentes contra si quaisquer processos crimes e que a Cooperativa não estava a ser gerida de forma irregular;

«63. E, para esse efeito, mantiveram conversas com vários cooperadores nas quais, designadamente através da exibição de documentos, tentaram demonstrar o carácter calunioso dos juízos propalados, entre outros, pelo ora Arguido;

«64. Abdicando de tempo que de outra forma dedicariam a outras actividades, designadamente às suas profissões.

«65. Assinale-se aqui que o facto de a carta lida na Assembleia Geral (cfr. o doc. n.º 1 junto à queixa-crime) ter sido assinada pelo Arguido conferiu à mesma uma aura de acrescida credibilidade, designadamente no que respeita às afirmações de que estariam pendentes processos crimes contra os Assistentes.

«66. Pese embora o esforço dos Assistentes para limpar a sua imagem, a realidade é que nada garante que as referidas calúnias não tenham instalado no seio dos seus vizinhos e cooperadores, e eventualmente terceiros a quem as considerações supra aludidas tenham sido relatadas, sérias dúvidas quanto à sua honorabilidade e rectidão.

«67. Importa ainda reter que os Assistentes AA e BB desempenham cargos de elevada responsabilidade e exposição pública, que lhes exigem reputações de homens especialmente sérios e capazes. «68. Efectivamente, o Assistente AA é Gerente Executivo de uma empresa Farmacêutica (TEVA Pharma - Produtos Farmacêuticos, Lda.) e preside à Câmara de Comércio Portugal-Israel;

«69. E o Assistente BB é consultor e Managing Partner da representação portuguesa de uma multi-nacional de consultoria (Leadership Management International, Inc.).

«70. Cumpre ainda dizer que a Assistente CC, empresária na área da restauração e pessoa conhecida entre os cooperadores, sofreu também, com os factos acima enunciados, um ataque à sua probidade e à reputação que durante muitos anos manteve preservada.

«71. Atentos os critérios genericamente estatuídos no artigo 496° do Código Civil, as circunstâncias concretas do cometimento dos ilícitos e a extensão dos danos sofridos, no caso dos Assistentes AA e BB, entendem estes computar o valor das indemnizações pelos danos não patrimoniais que lhes foram causados pelo Arguido no montante de € 5.000,00 (cinco mil euros) para cada um deles.

«72. E no montante de € 3.000,00 (três mil euros) no que respeita ao valor da indemnização pelos danos não patrimoniais que foram causados pelo Arguido à Assistente CC.

2. O Ministério Público não acompanhou a acusação particular.

3. Após vicissitudes processuais que já não importa destacar, em 10/03/2010, foi proferido despacho que, nos termos e ao abrigo do disposto no artigo 311.º, n.º 2, alínea a), e n.º 3, alínea d), do CPP, rejeitou a acusação particular deduzida pelos assistentes, por manifestamente infundada, ficando, por força do princípio da adesão, prejudicado o conhecimento do pedido de indemnização civil deduzido pelos assistentes.

A fundamentação dessa decisão passa, designadamente, pelo que passaremos a destacar:

«(…)

«Como resulta da acusação, ao arguido é imputada a prática de 3 crimes de difamação e de 3 crimes de injúria, crimes esses agravados.

«Relativamente aos crimes de difamação:

«Comete o crime de difamação "Quem, dirigindo-se a terceiro, imputar a outra pessoa, mesmo sob a forma de suspeita, um facto, ou formular sobre ela um juízo, ofensivos da honra ou consideração, ou reproduzir uma tal imputação ou juízo, ...".

«E no artigo 183° do mesmo CP prevê-se uma agravação da moldura penal se a ofensa for praticada através de meios ou em circunstâncias que facilitem a sua divulgação ou tratando-se da imputação de factos se averiguar que o agente conhecia já a falsidade da imputação

«Daqui resulta que o crime de difamação pode ser cometido por imputação a outrem de um facto ofensivo (ainda que meramente suspeito); pela formulação de juízo de desvalor; ou pela reprodução de uma imputação ou de um juízo (cfr. Código Penal, 2º vol., Simas Santos e Leal Henriques, pág. 317).

«Protege-se, neste crime, a honra e consideração dos cidadãos.

«Importa, portanto, definir o que é a honra e consideração, sendo certo que existem vários critérios ou concepções, para esse efeito, pois a honra é considerada um bem jurídico complexo que abrange quer o valor pessoal ou interior da pessoa, quer a sua reputação ou consideração exterior.

«Seguindo de perto o Prof. José de Faria Costa, in Comentário Conimbricense, I, 603 e segs, que distingue o conceito de honra nas vertentes fáctica, normativa, normativa-social e normativa-pessoal, para, depois, acolher uma concepção (dominante) que tempera a concepção normativa com uma dimensão fáctíca (concepção dual).

«A respeito da concepção fáctica, aquele Professor conclui pela necessidade de se estabelecer um equilíbrio entre a concepção objectiva ou exterior (equivalente á representação que os outros têm sobre o valor de uma pessoa, o mesmo é dizer, a consideração, o bom nome, a reputação de que uma pessoa goza no contexto social envolvente) e a concepção subjectiva ou interior (que consistiria no juízo valorativo que cada pessoa faz de si mesmo - no fim de contas estaremos, aqui, mergulhados no domínio do "apreço de cada um por si, á auto-avaliação no sentido de não ser um valor negativo, particularmente do ponto de vista moral" - Beleza dos Santos, RLJ 92°, 168).

«Considera o mesmo autor, ser de afastar um conceito meramente fáctico da honra."

«Depois, aprecia as várias implicações do conceito de honra nas vertentes normativa (só pelo facto de se ser pessoa se tem uma merecida pretensão de respeito), normativa-social (a honra é vista numa dimensão comunitária ou social) e normativa-pessoal (a honra é um aspecto da personalidade de cada pessoa, é a dignidade pessoal, igual para toas as pessoas, o que não permite identificar as diferentes densidades normativas que sempre urge detectar em qualquer bem jurídico)

«E conclui adoptando a concepção dual (supra referida) em que a honra é vista como um bem jurídico complexo que inclui, quer o valor pessoal ou interior de cada indivíduo, radicado na sua dignidade, quer a própria reputação ou consideração exterior.

«Definido o conceito de honra e sabido que a Constituição da República Portuguesa (CRP) consagra e reconhece no seu artigo 26°, o direito ao bom nome e reputação, como um dos direitos de personalidade que emana de outro valor fundamental que é a dignidade da pessoa humana, há que ter em atenção que nos termos do artigo 37º-1 da CRP "a todos é garantido o direito de exprimir e divulgar livremente o seu pensamento pela palavra, pela imagem ou por qualquer outro meio, bem como o direito de informar e de se informar, sem impedimentos nem discriminações.

«Daqui se vê que os direitos fundamentais não são absolutos nem ilimitados.

«A propósito da eventual colisão da honra e da liberdade de expressão, refere Costa Andrade in Liberdade de Imprensa e Inviolabilidade Pessoal - Uma perspectiva Jurídico-Criminal, 1966:

«"(...) Como limite da moldura da ponderação está sempre a crítica caluniosa: por força dela hão-de valorar-se como ilícitas as ofensas exclusivamente motivadas pelo propósito de caluniar, rebaixar e humilhar o ofendido. ...

«A Lei Fundamental reserva um significado prevalecente á garantia jurídica da liberdade de expressão da opinião, o que tem subjacente a representação de que o cidadão adulto e chamado a tomar posição no debate de ideias numa democracia livre é, ele próprio, capaz de reconhecer o que é de reter de uma crítica que renuncia á fundamentação e se limita a tocar a opinião contrária de chocarreira ou irónica maliciosa. Face a esta ousadia da liberdade compreende-se que o direito não assegure ao ofendido a protecção contra todas as opiniões desmesuradamente agrestes. Não será assim arriscado concluir que, postas entre parênteses as hipóteses de crítica caluniosa, dificilmente se excogitarão constelações típicas de formulações críticas cuja ilicitude possa escapar á eficácia dirimente do exercício de um direito (...)".

«Dito isto, importa agora saber se as expressões ou afirmações (supra transcritas), imputadas ao arguido e constantes da acusação, são ou não ofensivas da honra ou consideração devidas aos assistentes.

«Para responder a esta questão há - nesta fase processual - que considerar apenas a acusação (como acima se referiu).

«Mas, é óbvio que tal apreciação tem de ser feita tendo em conta o circunstancialismo ou contexto em que as ditas expressões foram proferidas e descrito naquela acusação.

«Ora, da análise da acusação - considerada por si só - resulta claro que tais afirmações foram proferidas mercê do entendimento divergente (sobre a dissolução da Cooperativa A... - Cooperativa de Habitação e Construção, CRL) entre um grupo de cooperadores (em que se insere o arguido) e os órgãos sociais daquela cooperativa.

«Assim, perante a convocatória da Assembleia Geral para deliberar a dissolução da Cooperativa com fundamento no esgotamento do seu objecto, o arguido cooperador (integrando um grupo de cooperadores), entendendo que o objecto da cooperativa não estava esgotado, subscreveu a carta referida na acusação, assim exercendo - por correspondência - o seu direito de voto naquela Assembleia Geral.

«Da acusação constam apenas "partes" ou "excertos" daquela carta (e não o seu teor integral), designadamente as expressões:

«"Mas sem razão e mais uma vez com grossa má fé, inclusivamente dos advogados que não deixaremos de responsabilizar e que subscrevem e dão a subscrever aos membros dos corpos sociais, escritos e palavras de objectiva violentação psicológica de cooperadores da nossa Cooperativa"; e

«"Por estas sucintas razões (e muito mais se disse e há-de dizer em tribunal onde correm processos de natureza criminal e cível contra os membros dos corpos sociais, estamos a votar contra os pontos propostas".

«Ora, como se disse, para saber se as expressões ou afirmações (transcritas), imputadas ao arguido e constantes da acusação, são ou não ofensivas da honra ou consideração devidas aos assistentes, há - nesta fase processual - que considerar apenas a acusação, mas tendo em conta o circunstancialismo ou contexto em que as ditas expressões foram proferidas.

«Esse contexto é o que resulta da carta em questão, a carta onde constam as expressões ou afirmações do arguido.

«Sendo assim, há que ter em conta o teor dessa carta, o seu conteúdo integral, não podendo apreciar-se apenas certas expressões por si sós, descontextualizadas, desinseridas do restante teor da carta.

«Só assim se pode apreender o circunstancialismo em que a carta e as expressões nela contidas tiveram lugar, a quem foram dirigidas e qual a intenção do subscritor(es) da mesma.

«Por isso, em bom rigor, da acusação deveria constar o teor integral daquela carta e não apenas algumas expressões constantes da mesma, designadamente as supra transcritas.

«Há, pois, que analisar as expressões/afirmações constantes da carta, integrando-as ou inserindo-as no contexto em que foram proferidas.

«No caso, considerando o teor integral da carta.

«E isto, não é exorbitar da acusação na medida em que, por um lado, a acusação refere que as expressões/afirmações em causa, foram proferidas na carta em apreço e, por outro lado, tem de entender-se que, apenas por uma questão de simplificação e de síntese dos factos, é que a acusação transcreve somente extractos daquela carta e não -como se impunha - o teor integral da mesma.

«Sendo assim, como entendemos que deve ser, analisemos o teor das expressões proferidas pelo arguido na carta em questão e que os assistentes verteram na acusação e consideram ofensivas da sua honra por, no seu entendimento, traduzirem a imputação de "um comportamento eticamente muito reprovável e de violentação psicológica sobre os cooperadores, afirmando ainda que estes estariam a responder em tribunal pela prática de crimes ".

«Da análise da referida carta decorre com suficiente clareza que a alegada imputação de "comportamento eticamente muito reprovável" traduzido na actuação com "grossa má fé" resulta do facto de o arguido (e os outros subscritores da carta) considerarem que o objecto da cooperativa não estava esgotado, pelo que não se justificava a dissolução da mesma.

«Por isso, discorda(m) da convocatória da Assembleia Geral para dissolução da cooperativa com o fundamento na extinção ou esgotamento do seu objecto.

«Na verdade, refere-se na dita carta;

«"Pretende-se que a assembleia geral delibere a dissolução da Cooperativa nos termos, nomeadamente, do artº 29 dos Estatutos. Ou seja, pretende-se a aprovação da dissolução voluntária da cooperativa, com previsão na alínea i) do artigo 49° do Código Cooperativo. Mas sem razão e mais uma vez com grossa má fé inclusivamente dos advogados, que não deixaremos de responsabilizar e que subscrevem e dão a subscrever aos membros dos corpos sociais escritos e palavras de objectiva violentação psicológica de cooperadores da nossa cooperativa. Com efeito, os membros dos órgãos sociais da Cooperativa (e os advogados que os acompanham) não podem alegar ignorância, nomeadamente, (...)".

«Depois, os subscritores prosseguem, com a (sua) análise do objecto da Cooperativa, procurando demonstrar que, no seu entendimento, o mesmo se mantém ainda actual e alcançável quanto a algumas das actividades nele contidas e expõem – nas alíneas a) a f) – as razões pelas quais, no seu entendimento, aquela dissolução não deve ter lugar (referindo p.ex que "Uma coisa é os membros dos corpos sociais (e outras pessoas) não quererem continuar na Cooperativa por razões que só eles sabem (mas para isso há solução legal); outra coisa é a "impossibilidade insuperável" ou o "esgotamento " do objecto da Cooperativa, que evidentemente não ocorre".

«Depois de referirem as razões pelas quais, no seu entendimento, a dissolução da Cooperativa não deve ter lugar, surge a outra passagem ou excerto constante da acusação, do teor seguinte:

«"Por estas sucintas razões (e muito mais se disse e há-de dizer em tribunal onde correm processos de natureza criminal e cível contra os membros dos corpos sociais, estamos a votar contra os pontos propostas".

«Os assistentes consideram estas afirmações também ofensivas da sua honra na medida em que referem factos falsos ou seja o correr contra eles um processo criminal que existira, mas que, naquela data, já tinha sido arquivado.

«Contextualizadas assim as afirmações do arguido, logo se vê que os factos imputados aos assistentes são, por um lado, a proposta de dissolução da cooperativa e, por outro lado, a subscrição de escritos fornecidos pelos seus advogados.

«Tais factos são de todo irrelevantes no que concerne á alegada violação da honra dos assistentes. São perfeitamente inócuos.

«Não se vê em nenhuma daquelas afirmações supra transcritas e constantes da acusação, que exista qualquer imputação de factos aos assistentes que deva considerar-se ofensiva da (sua) honra – no sentido atrás considerado (a não ser na dimensão meramente subjectiva e extrema de protecção de um excessivo sentimento de auto-estima que não pode acolher-se).

«Na verdade, no primeiro caso, estamos perante uma opinião ou juízo sobre a interpretação da lei e dos estatutos (da cooperativa) apresentada para justificar a dissolução da Cooperativa; e uma opinião ou juízo sobre os "escritos" e "palavras" a esse respeito que, no entendimento/opinião do arguido constituiriam uma "objectiva violentação psicológicas dos cooperadores".

«Sendo este o contexto daquelas afirmações, estas apenas significam que o subscritor/arguido considera que tais escritos e palavras condicionam a decisão e voto dos cooperadores que, perante eles, podem ser levados a pensar que não existe outra solução que não seja a dissolução da cooperativa.

«Não vemos que o arguido ao expressar aquelas opiniões tenha emitido qualquer juízo de desvalor em relação aos assistentes e á personalidade destes.

«Nem vemos que aquelas opiniões do arguido atinjam a personalidade dos assistentes, o que necessariamente se verificaria se houvesse intenção de os humilhar ou rebaixar.

«Antes concluímos que o arguido se limitou a criticar uma proposta dos órgãos sociais da Cooperativa e os termos dessa proposta.

«E considera-se que tais opiniões/juízos do arguido estão dentro dos limites da crítica legítima à actividade dos órgãos sociais da cooperativa.

«No segundo caso, "muito mais se disse e há-de dizer em tribunal onde correm processos de natureza criminal e cível contra os membros dos corpos sociais " há que ter em atenção que, como os próprios assistentes reconhecem na acusação, existiu um processo criminal contra os assistentes com base numa queixa crime apresentada pelo arguido (relacionada com a actividade e desempenho dos assistentes nos corpos sociais da Cooperativa, como resulta do despacho de arquivamento citado no n° 15 da acusação e junto aos autos o qual não é transcrito na íntegra obviamente por simplificação e síntese dos factos).

«E, como resulta da acusação, tal processo foi arquivado pelo M°P° tendo o despacho de arquivamento sido notificado aos denunciantes (no caso ao arguido) em data anterior ao envio da carta em questão.

«Sendo assim, é evidente que a afirmação do arguido supra referida, de que naquela data corriam processos criminais não é verdadeira.

«Só que, trata-se, desde logo, de uma afirmação genérica e abstracta.

«Depois, não se trata nem contém uma imputação concreta e pessoal a cada um dos assistentes, da prática de factos criminosos que possa fundamentar um qualquer juízo negativo ou difamatório.

«Tal juízo poderia resultar da imputação dos factos concretos a que respeitava a participação que deu causa ao mencionado processo crime, mas não decorre daquela simples afirmação de que em tribunal correm termos processos de natureza criminal e cível.

«Por outro lado, há que ter ainda em conta que aquela afirmação foi feita apenas na carta em apreço, dirigida ao Presidente da Assembleia Geral da Cooperativa, pedindo a sua anexação á acta daquela Assembleia. Portanto, é fácil de ver que se destinava a ser divulgada a um número muito limitado de pessoas: apenas aos cooperadores presentes naquela Assembleia os quais, naquela situação, não podiam desconhecer a divergência que existia entre os órgãos dos corpos sociais da cooperativa e o arguido (e demais subscritores da carta em questão).

«Ou seja, os cooperadores presentes naquela Assembleia conheciam o contexto que estava subjacente á carta.

«Daqui resulta que, a nosso ver, a afirmação supra referida não pode ser entendida, quer objectivamente, quer subjectivamente, como a imputação de factos ofensivos da honra e consideração dos assistentes pois de tal afirmação resulta somente que o arguido recorreu ao tribunal e tem intenção de continuar a fazê-lo com vista a fazer prevalecer o seu entendimento.

«Finalmente a afirmação do arguido de que vai apresentar queixa ou propor acções em tribunal é tão só um aviso ou anúncio do exercício de um direito, o que, obviamente, não constitui qualquer ilícito.

Relativamente aos crimes de injúrias:

«Está em causa a carta de 13.08.2007, subscrita por FF em representação do arguido (e de outros).

«Como decorre da própria acusação, essa carta é resposta a uma carta escrita pela Direcção da Cooperativa, datada de 27.Julho.2007, nas quais se pedia a prestação de informações sobre os processos criminais que alegadamente correriam contra os membros da Direcção (interpelava os subscritores da carta de 13.08.2007 a fornecerem os números dos processos bem como o tribunal onde decorrerem, informando que, na falta de resposta no prazo de 15 dias não deixaria de actuar em conformidade e que, dada a gravidade da afirmação, não deixariam de recorrer aos meios legais).

«Naquela carta, além das partes/excertos constantes da acusação, consta ainda o seguinte (que se transcreve a fim de que possa, também neste segmento, contextualizar-se as afirmações do arguido, constantes da acusação que, tal como relativamente á outra carta, não a transcreve na íntegra, como devia):

«"Em relação á V/carta de 27.07.2007 venho dizer que a informação solicitada (sem qualquer base legal, aliás) revela manifestamente de métodos de chantagem característicos de um aconselhamento jurídico sem dignidade.

«A informação solicitada, como é óbvio, pode ser satisfeita pelos advogados ao V/serviço, os quais saberão as entidades oficiais a quem devem dirigir-se para obterem o que pretendem. (...) Nomeadamente devem dirigir-se ao Instituto António Sérgio, o qual parece não reconhecer legitimidade cooperativa aos figurantes que fazem circular afirma "A..., Cooperativa".

«Assim sendo, como é, para além dos já propostos, outros processos eventualmente se justificarão não só contra membros dos órgãos sociais mas também contra indivíduos (cooperadores ou não, incluindo advogados) que possibilitam o giro de uma cooperativa á revelia do reconhecimento do Instituto António Sérgio ".

«Mais refere a acusação que, instado a pronunciar-se sobre o teor desta última carta e sobre a existência de poderes de representação do seu subscritor, o arguido veio a responder, por carta datada de 28.08.2007, subscrevendo as afirmações nela contidas sem fazer qualquer retratação, invocando a defesa de interesses cooperativos julgados legítimos e limitando-se a afirmar não ter tido intenção de ofender os assistentes.

«Nessa carta de 28.08.2007 o arguido refere - além do mais - o seguinte:

«"Peço desculpa por alguma palavra menos própria atirada ao papel, em vista unicamente da defesa de interesses cooperativos julgados legítimos e nunca com intenção de ofender as honoráveis pessoas que têm responsabilidade na circulação da firma "A... - Cooperativa da Habitação e Construção CRL".

«Como resulta da acusação, os assistentes entendem que o conteúdo dessa carta integra "novas ofensa" pois "propalava a tese de que os assistentes estariam a ser manipulados por terceiros que estariam a gerir a Cooperativa de forma ilegítima e que existiam processos pendentes contra os mesmos" e embora refira que os "métodos de chantagem" resultam de aconselhamento jurídico, não deixa de afirmar que os mesmos são exercidos pelos assistentes.

«Ora, há que ter em consideração desde logo que, ao contrário do referido na acusação, o arguido na referida carta de 28.08.207 demarca-se dos termos da carta de 13.08.2007, quer pedindo desculpa por alguma palavra menos própria quer afirmando que não teve qualquer intenção de ofender, quer ainda reafirmando a honorabilidade das pessoas.que têm a responsabilidade na circulação da firma "A... - Cooperativa da Habitação e Construção CRL", ou seja, a honorabilidade dos membros da Direcção da Cooperativa.

«E, não tendo a carta em questão (de 13.08.2008) sido escrita pelo arguido – como não foi e é referido na acusação - não pode afirmar-se que as palavras nela apostas tivessem sido escolhidas pelo arguido.

«E, ao apresentar desculpas por alguma palavra menos própria dessa carta, tal significa que o arguido não assumiu a escolha das palavras daquela carta.

«Inexiste, pois, nexo de imputação objectiva de tais palavras ao arguido, quer e sobretudo, nexo de imputação subjectiva.

«Aquele pedido de desculpa do arguido por alguma palavra menos própria constitui, claramente, uma retractação daquele quanto a eventuais palavras cujo conteúdo possa ser considerado ofensivo.

«Mas, mesmo que assim se não entenda, a verdade é que as expressões constantes da carta subscrita pelo arguido, referindo que a informação solicitada (pelos assistentes, na carta que expediram) revela manifestamente de métodos de chantagem característicos de um aconselhamento jurídico sem dignidade mais não é do que uma mera opinião sobre a qualidade do aconselhamento jurídico e não uma opinião sobre o comportamento dos assistentes.

«E revela a interpretação do arguido sobre a interpelação que lhe é feita na carta que tinha recebido (interpelava os subscritores da carta de 13.08.2007 a fornecerem os números dos processos que corriam termos, bem como a indicação do tribunal onde se encontravam, informando que, na falta de resposta no prazo de 15 dias não deixaria de actuar em conformidade e que, dada a gravidade da afirmação, não deixariam de recorrer aos meios legais para defender o bom nome dos visados).

«Assim, face ao contexto em que a expressão foi escrita, a referência a "métodos de chantagem" só pode interpretada como uma valoração sobre o conteúdo da carta que o arguido recebera e na medida em que nessa carta é pedida uma informação sob a intimação de se recorrer aos meios legais.

«Mas, ao atribuir tais "métodos" ao aconselhamento jurídico, torna-se claro que estabelece uma separação nítida entre esses métodos e as pessoas dos assistentes.

«Por isso, não pode interpretar-se aquela expressão como sendo um juízo de desvalor sobre os assistentes, ou sobre as qualidades pessoais destes, ou sobre a sua personalidade ou mesmo sobre o seu carácter.

«Antes pelo contrário, pois estando implícito que o conteúdo da carta a que responde tem por base um aconselhamento jurídico errado, está obviamente também implícito que a opinião que o arguido tem sobre a personalidade, o carácter, e a pessoa dos assistentes, não corresponde nem coincide com a actuação em causa.

«Concluímos, portanto, que as condutas do arguido traduzem a manifestação de opiniões ou juízos de valor quer sobre a proposta de dissolução da cooperativa, quer sobre o conteúdo da carta dos assistentes com pedido de informações sob cominações.

«Tais condutas constituem a manifestação de opiniões sobre o teor de actos concretos e não se dirigem directamente á pessoa dos assistentes, de modo a revelar qualquer intenção de os humilhar ou rebaixar ou mesmo de os desconsiderar pessoalmente.

«Estamos, portanto, perante juízos de valor do arguido (sobre o teor de actos concretos), sem qualquer intenção de desconsideração pessoal dos assistentes e que, a nosso ver, podem e devem considerar-se a coberto da livre expressão de pensamento e dentro dos limites toleráveis do direito de crítica sobre a actuação de outrem, constituindo condutas atípicas (no dizer da doutrina mais recente (cfr. Costa Andrade in Liberdade de Imprensa e Inviolabilidade Pessoal, 1966, pág. 232 e segs) e, por isso, "inidóneas para integrarem a área da tutela penal".

«Não cabem na crítica caluniosa.

«Estamos perante uma crítica objectiva do arguido, a certos actos concretos da Direcção da Cooperativa, no exercício legítimo de um direito social enquanto cooperante e que não visou ofender – nem ofende – a honra e consideração dos assistentes.

«Finalmente, como já atrás se referiu, a afirmação de que correm termos processos cíveis e criminais, é uma afirmação, genérica e abstracta.

«Não se trata nem contém uma imputação concreta e pessoal a cada um dos assistentes, da prática de factos criminosos pelos quais sejam pessoalmente responsáveis e que possa fundamentar um qualquer juízo negativo ou difamatóno.

«Tal juízo poderia resultar da imputação dos factos concretos a que respeitava a participação que deu causa ao mencionado processo crime, mas não decorre daquela simples afirmação de que em tribunal correm termos processos de natureza criminal e cível.

«Por isso, tal afirmação não constitui qualquer juízo de desvalor sobre a personalidade ou conduta dos assistentes.

«Em face do exposto, conclui-se que os factos imputados ao arguido na acusação – mesmo a provarem-se – não integram a prática de crimes, designadamente os de difamação e/ou injúrias, ali referidos.

«(…)»

4. É deste despacho de rejeição da acusação que os recorrentes interpuseram o presente recurso, no qual formularam as seguintes conclusões:

«1. O teor dos juízos expressos no despacho recorrido, ao abrigo dos quais se rejeita a acusação, por manifestamente infundada, excede largamente os poderes de cognição e os meios de convicção permitidos ao juiz de julgamento em fase de saneamento, para efeitos da prolação de um despacho liminar ao abrigo do art.º 311.º, n.º 2, al. a) do CPP, violando-se, por essa via, o princípio constitucional do acusatório, previsto no art.º 32.º, n.º 6 da CRP.

«2. Com efeito, a tese sufragada no despacho recorrido parte: (i) de uma análise, ainda que perfunctória, da prova indiciária e não da mera confrontação do texto da acusação com a letra da lei; (ii) de presunções e conjecturas sobre circunstancialismos externos que, em fase de saneamento, não se pode presumir conhecidos e adquiridos para o processo; e (iii) da indagação da existência dos nexos de imputação objectiva e subjectiva da conduta ao agente, bem como da sua justificação penal, e não, ao invés do que seria legalmente admissível, o mero controlo jurisdicional dos vícios intrínsecos da acusação;

«3. Pelo que encerra, assim, um verdadeiro pré-julgamento dos factos e da responsabilidade penal do seu autor.

«4. Apreciado o texto da acusação nos seus termos, resulta que aí alegaram os ora Recorrentes que, no dia 20 de Junho de 2007, o Arguido enviou por correio uma missiva, dirigida ao presidente da mesa da assembleia geral da cooperativa COOPERATIVA A..., na qual, a pretexto de exercer o seu direito de voto por correspondência sobre uma proposta constante da ordem de trabalhos, proferiu um conjunto de afirmações, que os Recorrentes, enquanto visados, entendem ser de carácter ofensivo da sua honra e consideração.

«5. O Arguido, referindo-se expressamente aos ora Recorrentes, ali fez constar que a deliberação em causa representava uma iniciativa que aqueles pretendiam levar a cabo "(...) mais uma vez com grossa má-fé (...) inclusivamente dos advogados, que não deixaremos de responsabilizar, e que subscrevem e dão a subscrever aos membros dos corpos sociais escritos e palavras de objectiva violentação psicológica de cooperadores da nossa Cooperativa".

«6. Mais adiante referindo que "(...) por estas sucintas razões (e muito mais se disse e há-de dizer em Tribunal, onde correm processos de natureza criminal e cível contra os membros dos corpos sociais), estamos a votar contra os pontos propostos (...)".

«7. Não se vislumbra que o exercício dos direitos de voto e de crítica reconhecidos como legítimos ao Arguido compreenda a possibilidade de este formular juízos de valor acerca da conduta e da personalidade dos Recorrentes, assim como a alusão a que sobre os mesmos penderiam processos judiciais, inclusive no foro criminal (o que o Arguido bem sabia ser falso).

«8. Na verdade, sendo certo que ao Arguido assistia o direito de se pronunciar no âmbito de uma votação que versava sobre a aprovação da dissolução da COOPERATIVA A..., certo é que, sob esse pretexto, perdendo toda a conexão com a matéria em discussão, não se inibiu aquele de retratar os Recorrentes de forma depreciativa e humilhante, o que em muito extravasa o escopo do direito que exercia.

«9. Relativamente ao facto de afirmar que os Recorrentes, pela sua conduta, estavam a responder em processos crimes, "onde muito se disse e há-de dizer", tal é absolutamente falso.

«10. O carácter calunioso desta afirmação não pode ser ignorado, porquanto o propósito que dela objectivamente decorre só pode ser o de lançar sob a pessoa dos ora Recorrentes a suspeita da prática de actos criminalmente ilícitos, tanto mais quando, previamente, se lhes imputa uma conduta eticamente reprovável, transmitindo assim a ideia que: (i) ambos os factos se encontram relacionados; e que (ii) os Recorrentes, pela sua conduta, desonesta, e independentemente do resultado da votação em assembleia geral, se encontram já a responder em processos criminais.

«11. E tendo incluído tais afirmações em carta que se destinava a ser lida em assembleia geral, como efectivamente o veio a ser, e que expressamente requereu que fosse anexada à respectiva acta, o Arguido quis e conseguiu difundir publicamente os juízos ali vertidos.

«12. Assim, o Arguido não se limitou à exteriorização de juízos de valor ofensivos sobre os Recorrentes, tendo ainda emitido um juízo de facto, susceptível, também, de ser ofensivo, e cuja verdade não é de pressupor nem se encontra demonstrada.

«13. O Arguido bem sabia que as suas insinuações não tinham qualquer suporte factual, mas, ainda assim, não se coibiu de as manifestar, com o objectivo de rebaixar e ferir gravemente a reputação dos Recorrentes perante os destinatários das mesmas.

«14. Pelo que vem de se expor, dúvidas não restam de que na acusação se alega circunstanciadamente os elementos objectivos e subjectivos constitutivos do ilícito p. e p. pelo art.º 180.º, n.º 1, em conjugação com os arts 182.º e 183.º, n.º 1 als. a) e b), todos do CP.

«15. Relativamente ao crime de injúria agravado, segundo se afirma na acusação particular, resulta que, em resposta a carta enviada pela direcção da COOPERATIVA A... ao Arguido, no sentido de que se pronunciasse sobre os processos criminais que, alegadamente, estariam pendentes contra os membros da direcção, o Sr. FF, agindo em alegada representação do Arguido, afirmou, por escrito, o seguinte: "Em relação à V/ carta de 27/07/2007 venho dizer que a informação solicitada (sem qualquer base legal, aliás) revela manifestamente de métodos de chantagem característicos de um aconselhamento jurídico sem dignidade. Assim sendo, como é, para além dos já propostos, outros processos eventualmente se justificarão não só contra membros dos órgãos sociais mas também contra indivíduos (cooperadores ou não incluindo advogados) que possibilitam o giro de uma cooperativa à revelia do reconhecimento do Instituto António Sérgio. Requer-se que desta carta seja dado conhecimento a todos os elementos membros cooperadores desta Cooperativa e também aos advogados que têm prestado serviço e levado dinheiro aos membros dos órgãos sociais ".

«16. Afigura-se inteiramente legítimo concluir que o Arguido, enquanto cooperador e destinatário da carta que lhes havia sido remetida pela direcção da COOPERATIVA A..., terá dado causa a que o Sr. FF, agindo em seu nome, enviasse uma resposta à mesma direcção com o teor acima descrito.

«17. E que, portanto, a mesma tivesse sido elaborada e enviada a pedido e com o conhecimento do Arguido que, de resto, instado a pronunciar-se sobre o seu teor, limitou-se tão-somente a referir que as afirmações naquela contidas – cuja autoria não refuta – não tinham sido proferidas com intenção de ofender.

«18. Estas questões – e como resulta do teor do despacho recorrido – conquanto relevem para efeitos de se estabelecer nexos de imputação objectiva e subjectiva, não podem nem devem ser apreciadas para a prolação de decisão que, nos termos do art.º 311.º, n.º 2, al. a) do CPP, se deve limitar ao controlo jurisdicional da descrição de "factos que não constituem crime".

«19. Termos em que se conclui que a acusação particular também quanto ao este crime se encontra devidamente fundamentada, aí se alegando os elementos objectivos e subjectivos do ilícito p. e p. pelos arts. 181.º, 182.º e 183.º, n.º 1 al. b), todos do CP, pelo que não haveria fundamento para o Tribunal a quo a rejeitar liminarmente a montante, da fase de julgamento, e antes de se produzir prova sobre a matéria controvertida.

«20. Por conseguinte, ao rejeitar liminarmente a acusação particular deduzida pelos ora Recorrentes a decisão recorrida violou o disposto nos art.º 311.º, nrs..2 al. a) e 3 al. d) do CPP.

«21. O caso sub judicio está longe de configurar uma situação de manifesta falta de fundamento, factual ou jurídico, da acusação, em termos tais que permitam que liminarmente se anteveja como de todo inviável a condenação do Arguido.

«22. Com efeito, e como acima se evidenciou, a darem-se como provados em julgamento os factos descritos na acusação particular deduzida pelos Recorrentes, efectivamente serão os mesmos passíveis de configurar os crimes pelos quais o Arguido vem acusado, razão pela qual se impõe a submissão deste a julgamento.

«23. Aos ora Recorrentes assiste o direito de demonstrar em juízo que o Arguido não só actuou com intenção de os ofender, como tinha conhecimento de que os factos que lhes imputava eram falsos, e, por último, que dada a objectiva gravidade dos mesmos, não poderiam deixar de se ter sentido ofendidos como efectivamente sentiram.»

Terminam pedindo que, no provimento do recurso, seja revogado o despacho de rejeição liminar da acusação particular recorrido, determinando--se a sua substituição por outro que, recebendo a acusação e os pedidos de indemnização civil deduzidos, determine o prosseguimento dos autos para julgamento, seguindo-se os ulteriores trâmites legais.

5. Ao recurso responderam o arguido e o Ministério Público, sendo ambas as respostas no sentido da confirmação da decisão recorrida.

6. O recurso foi admitido para as secções criminais e, seguindo-se a legal tramitação, foi o recurso julgado em conferência.


II

Do julgamento do recurso, em conferência, procede o presente acórdão, relatado pela adjunta por o relator ter ficado vencido.

1. O despacho recorrido rejeitou a acusação particular deduzida pelos assistentes, considerando-a manifestamente infundada, por os factos imputados ao arguido não constituírem crime (artigo 311.º, n.os 2, alínea a), e 3, alínea d), do CPP).

E é contra essa decisão que os recorrentes se insurgem, por via do recurso, na medida em que, na sua perspectiva, o despacho recorrido ultrapassou “largamente os poderes de cognição e os meios de convicção permitidos ao juiz de julgamento em fase de saneamento, para efeitos de prolação de um despacho liminar ao abrigo do artigo 311.º, n.º 2, alínea a), do CPP”, na medida em que, excedendo o controlo jurisdicional dos vícios intrínsecos da acusação, encerra um “verdadeiro pré-julgamento dos factos e da responsabilidade penal do seu autor”.

Centra-se, portanto, o objecto do recurso na questão de saber se o despacho de rejeição da acusação se contém nos limites do controlo dos vícios estruturais da acusação.

1.1. Segundo o artigo 283.º, n.º 3, alínea b), do CPP, a acusação contém sob pena de nulidade, entre outros requisitos, a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática e o grau de participação que o agente neles teve.

Ou seja, a acusação, sendo uma condição indispensável do julgamento, por ser pela acusação que se fixa o objecto do processo, há-de conter os factos que são imputados ao arguido e esses factos hão-de integrar a prática, pelo arguido, do ilícito penal pelo qual é requerido o seu julgamento.

Não havendo lugar à fase da instrução, a legalidade da acusação está sujeita a fiscalização judicial por via do despacho a que se refere o artigo 311.º do CPP, no âmbito do qual se terá de aferir da ocorrência dos pressupostos legais para que a acusação possa ser admitida (1) .

O artigo 311.º, n.º 2, alínea a), dispõe, com efeito, que se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, o presidente despacha no sentido de rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada.

A Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto, acrescentou o actual n.º 3 do artigo 311.º para clarificar o sentido da expressão “acusação manifestamente infundada”, do mesmo passo afastando a jurisprudência anteriormente fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça (acórdão de fixação de jurisprudência n.º 4/93, de 17/02/1993 (2) .

O n.º 3 do artigo 311.º dispõe, agora, o que deve entender-se por acusação manifestamente infundada: a) quando não contenha a identificação do arguido; b) quando não contenha a narração dos factos; c) se não indicar as disposições legais aplicáveis ou as provas que a fundamentam; ou d) se os factos não constituírem crime.

Já foi notado, e com razão, que os vícios elencados no n.º 3 do artigo 311.º se sobrepõem às nulidades sanáveis do artigo 283.º, n.º 3, alíneas a), b) e c), pelo que as ditas nulidades se convertem em matéria de conhecimento oficioso do tribunal (3).

1.2. A razão da rejeição da acusação deduzida pelos arguidos radica no fundamento da alínea d) do n.º 3 do artigo 311.º – os factos narrados não constituírem crime.

Com efeito, os factos narrados na acusação hão-de fundamentar a aplicação ao arguido de uma pena e só a podem fundamentar se constituírem crime.

Sendo, na acusação, imputados ao arguido crimes de difamação e injúria, mostra-se absolutamente justificado que a decisão recorrida procedesse, preliminarmente, à definição do bem jurídico tutelado pelos tipos de ilícito, em causa, e dos respectivos elementos típicos, no plano objectivo e subjectivo.

Só depois dessa prévia definição é que sustentadamente se poderia tomar posição sobre se os factos narrados na acusação eram, ou não, ofensivos da honra e consideração dos assistentes.

1.3. Quanto aos imputados crimes de difamação, a técnica seguida na acusação foi a de isolar expressões constantes da carta referida no ponto 3. da acusação e depois, longamente, aduzir razões para tentar demonstrar e convencer que tais expressões são objectivamente ofensivas da honra e consideração dos assistentes e que, ao produzi-las, o arguido agiu com dolo não estando a sua conduta, a qualquer título, justificada.

A acusação, quanto aos crimes de difamação, remete, portanto, para uma carta através da qual foi exercido o direito de voto por correspondência sobre proposta constante da ordem de trabalhos da assembleia geral extraordinária da cooperativa, a realizar no dia 30/06/2007.

Daí que o despacho recorrido tivesse convocado e analisado o contexto em que as expressões foram escritas – a dita carta – integrante da acusação, embora por remissão (“cfr. cópia da carta”, como se escreveu no ponto 3 da acusação). E há-de convir-se que, prescindindo-se dessa análise, nem sequer se perceberia, porque a acusação não o clarifica, que essas expressões visavam, directamente, os assistentes. Mas fê-lo na estrita medida em que tal era reclamado pelas deficiências intrínsecas da própria acusação e na justa medida em que a mesma se dispensou de referir a motivação da prática dos crimes, escolhendo o “método” de remeter para um documento.

Mas, de todo o modo, é na estrita ponderação das expressões constantes da acusação que, no despacho recorrido, se concluiu que não se vislumbrava na expressão das opiniões do arguido sobre a actuação dos assistentes, segundo a imputação constante da acusação (mais uma vez com grossa má fé – inclusivamente dos advogados, que não deixaremos de responsabilizar, e que subscrevem e dão a subscrever aos membros dos corpos sociais escritos e palavras de objectiva violentação psicológica de cooperadores da nossa Cooperativa), “qualquer juízo de desvalor dirigido à personalidade dos assistentes, ou que, pelo seu significado e gravidade não possa deixar de projectar-se sobre a mesma, como seria se aí se descortinasse uma intenção de humilhar ou rebaixar a pessoa dos assistentes”.

É, ainda, na rigorosa e exclusiva consideração de, na tal carta, se afirmar, a dado passo, “e muito mais se disse e há-de dizer em Tribunal onde correm processos de natureza criminal e cível contra os membros dos corpos sociais” que, no despacho recorrido, a mesma aparece referida como “uma afirmação genérica e abstracta” que ”não pode ser entendida, quer objectiva, quer subjectivamente, como a imputação de factos ofensivos da honra e consideração dos assistentes”.

1.4. Quanto ao crime de injúrias, a técnica seguida na acusação é igualmente a de fazer referência a documentos e para eles remeter, isolando as expressões que, na perspectiva dos assistentes, são adequadas a conformar o tipo objectivo de injúria.

Mais uma vez o despacho recorrido, no suprimento das deficiências da própria acusação, convocou, na medida do necessário à compreensão das circunstâncias da prática dos factos imputados, o conteúdo das cartas de 13/08/2007 e de 28/08/2007, mas, na ponderação da responsabilidade penal do arguido, ateve-se aos factos imputados e não a quaisquer outros.

Por isso é que, relativamente às expressões constantes da carta de 13/08/2008 – a que não foi escrita pelo arguido, como, aliás, se afirma na acusação –, o despacho recorrido concluiu que “não pode afirmar-se que as palavras nela apostas tivessem sido escolhidas pelo arguido”, e, por aí, negou quer o “nexo de imputação objectiva de tais palavras ao arguido, quer e sobretudo nexo de imputação subjectiva”.

Ainda assim, analisam-se as expressões contidas nessa carta para se afirmar que elas não podem interpretar-se “como sendo um juízo de desvalor sobre os assistentes, ou sobre as qualidades pessoais destes, ou sobre a sua personalidade ou mesmo sobre o seu carácter”.

1.5. Não há, portanto, razões que validamente fundamentem a censura que os assistentes dirigem ao despacho recorrido de, para chegar à conclusão de que os factos imputados ao arguido na acusação não integram a prática dos crimes de difamação e injúria, não se conter no estrito controlo da presença, no texto da acusação, dos elementos desses tipos de ilícitos (tipo objectivo e tipo subjectivo).

Pois do que se tratou foi de apreciar as expressões imputadas ao arguido, na acusação, segundo a sua tipicidade ou atipicidade e não de qualquer outra ponderação que passasse, nomeadamente, pela avaliação da suficiência da prova ou pela valoração da prova contida no inquérito na perspectiva da exclusão da ilicitude ou da culpa.

2. Encarando-se o recurso já não sob o ângulo de análise de a decisão recorrida ter excedido o controlo jurisdicional dos vícios intrínsecos da acusação mas no aspecto do mérito desse controlo, deve afirmar-se que nenhuma censura merece o despacho recorrido.

2.1. A tutela penal do direito constitucional “ao bom nome e reputação” (artigo 26.º, n.º 1, da Constituição) é assegurada, em primeira linha, pelos artigos 180.º e 181.º do CP que, na descrição típica, utilizam a expressão «ofensivos da honra e consideração».

No sentido de se apreender o bem jurídico tutelado, não se pode prescindir de definir o conceito de «honra».

E, tal como já foi destacado no despacho recorrido, a doutrina dominante adopta uma concepção dual da honra: a honra é vista como um bem jurídico complexo que inclui, quer o valor pessoal ou interior de cada indivíduo, radicado na sua dignidade, quer a própria reputação ou consideração exterior. O que o bem jurídico protege é a honra interior inerente à pessoa enquanto portadora de valores espirituais e morais e, para além disso, a valência deles decorrente, a sua reputação no seio da comunidade (4) .

E esta é a doutrina compatível com a nossa própria lei. Com efeito, o nosso ordenamento jurídico-penal, em consonância com a ordem constitucional, alarga o conceito da honra também à consideração ou reputação exteriores.

Quanto a este ponto, destaca Figueiredo Dias que a jurisprudência e a doutrina jurídico-penais portuguesas têm correctamente recusado sempre qualquer tendência para uma interpretação restritiva do bem jurídico «honra», que o faça contrastar com o conceito de «consideração» ou com os conceitos jurídico-constitucionais de «bom nome» e de «reputação». Nunca tendo tido entre nós aceitação a restrição da «honra» ao conjunto de qualidades relativas à personalidade moral, ficando de fora a valoração social dessa mesma personalidade; ou a distinção entre opinião subjectiva e opinião objectiva sobre o conjunto das qualidades morais e sociais da pessoa; ou a defesa de um conceito puramente fáctico, quer – no outro extremo – estritamente normativo da honra. Por isso se pode concluir seguramente pela total congruência entre a tutela jurídico-penal e a protecção jurídico-constitucional dos valores da honra das pessoas (5) .

2.2. Segundo a acusação, o tipo objectivo da difamação consubstancia-se nas seguintes expressões que o arguido fez constar da carta pela qual exerceu o seu direito de voto por correspondência sobre proposta constante da ordem de trabalhos:

– “mais uma vez com grossa má-fé”,

– “inclusivamente dos advogados, que não deixaremos de responsabilizar e que subscrevem e dão a subscrever aos membros dos corpos sociais escritos e palavras de objectiva violentação psicológica de cooperadores da nossa Cooperativa”,

- “e muito mais se disse e se há-de dizer em Tribunal onde correm processos de natureza criminal e cível contra os membros dos corpos sociais”.

Dando-se de barato que a expressão “mais uma vez com grossa má-fé” era dirigida a uma qualquer actuação dos assistentes (o que, na acusação, diga-se, não se mostra clarificado e que só no recurso houve o cuidado de precisar), temos a formulação de um juízo valorativo negativo de uma concreta actuação dos assistentes, que objectivamente, em si mesmo considerado, não é de molde a atingir a dignidade pessoal dos assistentes ou a sua reputação. Ela não exprime um juízo negativo sobre as qualidades pessoais dos assistentes susceptível de afectar a sua dignidade, nem sequer encerra qualquer reprovação ético-social que atinja a dignidade dos recorrentes como pessoas. Sem hipocrisia e atendo-nos ao sentido literal da expressão, do que se trata é de qualificar uma concreta actuação dos assistentes como grandemente incorrecta ou menos leal. O que não é o mesmo que dizer que os recorrentes são pessoas falsas e desleais.

Do que se trata, portanto, é de um juízo de apreciação e valoração crítica vertido sobre uma concreta actuação dos assistentes que não ultrapassa o âmbito da crítica objectiva pois se atém a uma específica actuação, não se dirigindo directamente às pessoas dos seus autores. Ora, segundo o entendimento hoje dominante, os juízos de apreciação e valoração vertidos sobre realizações ou sobre prestações, na medida em que não seja ultrapassado o âmbito da crítica objectiva, caem já fora da tipicidade de incriminações como a difamação (6) . E no sentido da atipicidade da crítica objectiva afastam-se, hoje, as exigências de proporcionalidade e da necessidade objectiva, do bem-fundado ou da “verdade”, bem como o pressuposto do meio menos gravoso. Ou seja, a tese da atipicidade da crítica objectiva não depende do acerto, da adequação material ou da “verdade” das apreciações subscritas. Por outro lado, o direito de crítica com este sentido não conhece limites quanto ao teor, à carga depreciativa e mesmo à violência das expressões utilizadas. Em terceiro lugar é hoje igualmente pacífico o entendimento que submete a actuação das instâncias públicas ao escrutínio do direito de crítica objectiva.

Como destaca o autor que estamos a seguir, são ainda de levar à conta da atipicidade os juízos que, como reflexo necessário da crítica objectiva, acabam por atingir a honra do autor da obra ou prestação em exame. Nesta linha, o crítico que estigmatizar uma acusação como “persecutória” ou “iníqua” pode igualmente assumir que o seu agente teve, naquele processo, uma conduta “persecutória” ou “iníqua” ou que ele foi, em concreto, “persecutório” ou “iníquo”. Aqui, está já presente uma irredutível afronta à exigência de consideração e respeito da pessoa, mas trata-se de sacrifício ainda coberto pela liberdade de crítica objectiva, não devendo ser levado á conta de lesão típica. Já o mesmo não se poderá sustentar para os juízos que atingem a honra e consideração pessoal perdendo todo e qualquer ponto de conexão com a prestação ou obra que, em princípio, legitimaria a crítica objectiva. Por isso, “refere-se Tenckhoff à atipicidade do juízo de um crítico de jurisprudência que qualifica a decisão de um tribunal superior como um «venerando disparate». A solução já seria outra, adverte o autor, se, a propósito do mesmo aresto jurisprudencial, o crítico falasse de uma trabalho «de remendão, produto da esterilidade senil dos seus autores»” (7).

Nesta compreensão, conexionando-se a frase “com grossa má-fé” a uma concreta actuação dos assistentes, dessa forma qualificada, nela não pode ver-se a expressão de uma desconsideração da honra e reputação dos assistentes.

A frase “inclusivamente dos advogados, que não deixaremos de responsabilizar e que subscrevem e dão a subscrever aos membros dos corpos sociais escritos e palavras de objectiva violentação psicológica de cooperadores da nossa Cooperativa” é manifestamente dirigida aos advogados e o “inclusivamente” reporta-se à má-fé (com grossa má fé, inclusivamente dos advogados que …). Não se trata, portanto, de uma expressão que vise directamente os assistentes tanto mais quanto a acusação não imputa ao arguido ter, em algum momento, chegado a afirmar que os assistentes subscreveram os tais escritos e palavras de objectiva violentação psicológica. Por outro lado, tal como foi redigida, essa frase não consente que dela se extraia que o arguido acusou os assistentes de praticarem actos de violentação psicológica dos cooperadores, como se pretende na acusação.

Finalmente, a frase “e muito mais se disse e se há-de dizer em Tribunal onde correm processos de natureza criminal e cível contra os membros dos corpos sociais”, independentemente de o arguido saber que já não estava pendente o processo crime instaurado contra os recorrentes (o que na acusação, mais do que afirmado aparece presumido) não comporta a imputação de um qualquer facto concreto desonroso. Daí que os assistentes, à falta de um facto objectivamente identificável que tivesse lesado a sua pretensão de respeito e consideração, tanto se tivessem esforçado por convencer das inferências potencialmente lesivas que da pendência de um processo crime, em atenção, ainda, à qualidade profissional do seu autor, se poderiam extrair. Só que, aí, já não estamos no domínio dos factos.

2.3. Segundo a acusação, os crimes de injúrias foram cometidos por escrito, sendo na carta de 13/08/2007 que estão contidas as expressões injuriosas. Carta que, como na acusação expressamente refere, foi enviada e subscrita por FF.

E tendo-o sido, resulta evidente que as frases contidas nessa carta, tidas por injuriosas, só podem ser imputadas a quem as escreveu e subscreveu a dita carta.

Não curaram os assistentes, na acusação, de sequer invocar a comparticipação do arguido, a qualquer título, na prática do crime cometido por escrito.

Bem pelo contrário. Uma vez que parecem querer afirmar a responsabilidade penal do arguido através de uma figura que, para efeitos de imputação subjectiva de um crime, não é reconhecida pela dogmática penal. Na verdade, na perspectiva da imputação de responsabilidade penal ao arguido, pelo conteúdo dessa carta, é absolutamente anódino que o seu autor tenha, nela, afirmado estar a agir em representação de outros cooperadores, incluindo o arguido. Pela óbvia razão de não ser admissível conferir poderes de representação para a prática de crimes ou responsabilizar o representado pelos crimes cometidos pelo representante, no quadro da responsabilidade penal de pessoas singulares (artigo 11.º, n.º 1, do CP).

E, por isso mesmo, ainda que na carta de 28/08/2007, o arguido não se tivesse retractado das afirmações contidas na carta escrita por FF, embora negando a intenção de ofender os assistentes, como se diz na acusação, esse facto não ganha qualquer relevância porque não pode ser tido como uma adesão retroactiva a um crime que, por via dela, fosse possível imputar-lhe.

Em suma, quanto aos crimes de injúrias a acusação não contém factos que permitam a responsabilização penal do arguido, porque omite qualquer narração que fundamentadamente sustente a comparticipação do arguido nos factos.

III




Termos em que, na confirmação do despacho recorrido, nega-se provimento ao recurso.

Por terem decaído, são os recorrentes condenados, cada um deles, em 10 UC, e nas custas (artigos 515.º, n.º 1, alínea b), e 518.º do CPP, e 87.º, n.os 1, alínea a), e 3, do CCJ).

Supremo Tribunal de Justiça, 17 de Novembro de 2010


Isabel Pais Martins (relatora)
Soares Ramos (com declaração de voto)
Santos Carvalho
______________________________________

(1) Assim, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, Editorial Verbo, 2000, pp. 126-127.
(2) Publicado no Diário da República, I Série-A, de 26 de Março de 1993.
(3) Germano Marques da Silva, ob. cit., pp. 207-208.
(4) José de Faria Costa, Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, Coimbra Editora, 1999, p. 607.
(5) Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 115.º, p. 105.
(6) Neste ponto, cfr. Manuel da Costa Andrade, Liberdade de Imprensa e Inviolabilidade Pessoal, Coimbra Editora, 1996, pp. 232-240 que seguiremos, de perto.
(7) Ibidem.