Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
756/20.4T8SXL.L1.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: VIEIRA E CUNHA
Descritores: CASA DE MORADA DE FAMÍLIA
DIREITO A ALIMENTOS
EX-CÔNJUGE
COMPENSAÇÃO MONETÁRIA
PARTILHA DOS BENS DO CASAL
CRITÉRIOS DE CONVENIÊNCIA E OPORTUNIDADE
EQUIDADE
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
DECISÃO PROVISÓRIA
PROCESSO DE JURISDIÇÃO VOLUNTÁRIA
Data do Acordão: 03/31/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I – Se o que está em causa na acção é a atribuição provisória da casa de morada da família até à partilha dos bens comuns do casal, cujo divórcio está decretado, então esta situação tem enquadramento no disposto nos art.ºs 931.º n.º7 CPCiv e 1778.º-A n.º3 e 1779.º n.º2 parte final CCiv, como incidente, com processo especialíssimo, e que não tem a ver com o processo de constituição de arrendamento da casa de morada de família regulado, como processo de jurisdição voluntária, nos art.ºs 1413.º CPCiv, 1793.º e 1105.º CCiv.

II – Se decorre da decisão recorrida que, no juízo necessário à atribuição da casa de morada da família, não foram usados critérios de legalidade estrita, mas antes foi adoptada apenas a solução que foi julgada mais conveniente e oportuna, em estrito juízo de equidade, encontra-se excluída a possibilidade de recurso de revista – cf. art.º 674.º n.º1 CPCiv, nas suas diversas alíneas.

III - Apesar da atribuição provisória da casa de morada da família não estar directamente regulada nos art.ºs 1793.º CCiv e 990.º CPCiv, estas normas podem aplicar-se indirectamente à atribuição provisória da casa, na medida em que prevejam “compensação” (independentemente das noções de “renda” ou de “arrendamento”) ao cônjuge não beneficiado com a atribuição do bem, posto que o bem atribuído é comum e que se verifica, de facto, uma verdadeira situação de necessidade da habitação para ambos os ex-cônjuges.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça  


                  

Referências

   A presente acção com processo de declaração e forma especial de divórcio sem consentimento do outro cônjuge foi intentada, em 24/3/2020, por AA contra BB, pedindo que fosse decretado o divórcio entre ambos.

Alegou o Autor que casaram, ele Autor e a Ré, em 1 de Setembro de 2001, e que a Ré abandonou o lar conjugal a 6 de Fevereiro de 2020, apesar de fazerem vidas separadas desde 19 de Fevereiro de 2019, altura em que a Ré abandonou o leito conjugal. Por isso, estão separados de facto há mais de um ano e não se verifica a possibilidade de reatamento da vida em comum, o que, aliás, não pretende que aconteça.

Na tentativa de conciliação, Autor e Ré manifestaram o propósito comum de se divorciarem.

Declararam não ter filhos comuns e indicaram os bens comuns. Porém, não chegaram a acordo quanto à atribuição do direito de utilização da casa morada de família, porquanto ambos pretendem utilizá-la até à partilha, nem quanto a alimentos, que a Ré pretende receber por parte do Autor, nem quanto ao destino do animal de companhia.

A Ré requereu a respectiva atribuição, a ela Ré, da casa de morada de família, até à venda ou à partilha do bem; que o animal de estimação comum, um bulldog francês, fosse atribuído ao autor e à ré, de forma repartida, e que se fixasse o valor mensal da quantia de alimentos em benefício da Ré em € 300,00, a suportar mensalmente pelo Autor.

Mais invocou que se viu forçada a abandonar o lar conjugal, em 6/3/2020, por recomendação da P.S.P., no seguimento de queixa crime, por ela Ré apresentada, tendo sido acolhida em casa de seu filho e nora, em situação transitória.

Concluiu a respectiva alegação, pedindo:

- que a casa de morada de família lhe fosse atribuída à ré, até à venda ou à partilha do bem;

- que o animal de estimação comum, um bulldog francês, fosse atribuído ao Autor e à Ré, de forma repartida, passando cada um, quinze dias com o animal; e,

- que se fixasse o valor mensal da quantia de alimentos em benefício da Ré em €300,00, a suportar mensalmente pelo Autor.


As Decisões Judiciais

Após julgamento, a sentença proferida em 1.ª instância decidiu:

1. Homologar o acordo celebrados entre as partes, em sede de tentativa de conciliação, relativo à indicação de bens comuns.

2. Atribuir o direito de utilização da casa de morada de família à Ré BB, devendo o Autor deixá-la livre dos seus bens pessoais no prazo de 10 dias a contar da notificação da sentença.

3. Absolver o Autor do pedido de fixação de alimentos a favor da Ré, por esta apresentado.

4. Atribuir o animal de companhia comum, de nome “V.....”, ao Autor.

5. Decretar o divórcio entre o Autor e a Ré.

Tendo Autor e Ré recorrido de apelação, o Autor em via independente, a Ré em via subordinada, o Tribunal da Relação decidiu revogar parcialmente a decisão, nos seguintes termos:

- os efeitos do divórcio retroagem-se a 6/3/2020 (seis de Março de 2020), data da separação de facto;

- o R. foi condenado a prestar alimentos à A., fixados numa prestação mensal de € 90 (noventa euros);

- atribuiu o direito de utilização da casa de morada de família à Ré, devendo o Autor deixá-la livre dos seus bens pessoais no prazo de 20 dias a contar do trânsito em julgado da decisão.

Em tudo o mais, foi a decisão confirmada.


Inconformado agora o Autor, vem recorrer de revista, formulando as seguintes conclusões:

A. Decidiu o Tribunal a quo nos presentes autos: (…)

B. Inconformado com a decisão, vem agora o Autor à presença de Vossas Excelências clamar por justiça, fundamentando o seu desacordo com base nas razões que se passa a aduzir.

C. (…)

D. (…)

E. Deveria o Venerando Tribunal da Relação ter fixado a responsabilidade a título de custas na proporção do respetivo decaimento.

F. Ao assim proceder violou o Venerando Tribunal recorrido o disposto no n.º3, do art.º 528.º do CPC e o Regulamento das Custas Processuais.

G. Pelo que desde já se pugna pela reforma do douto acórdão, quanto a custas.

H. Sem prescindir, veja-se que o A. em sede de recurso de apelação alegou que não podendo as partes suportar as despesas de um arrendamento, se entendia que a decisão mais justa seria a atribuição do imóvel ao A., que desde a separação tem vindo a suportar os custos da mesma,

I. Que face aos parcos rendimentos da Ré, o imóvel poderá ser dado de arrendamento ao A., mediante o pagamento por parte deste àquela de um valor monetário a título de renda, nos termos do disposto no art.º 1793.º do CC.

J. Possibilitando assim um acréscimo de rendimento para a Ré, e evitando agravar de forma crítica a subsistência do A., dado os valores de mercado em sede de arrendamento, mesmo para um andar da Tipologia T1.

K. Finalizando que, em última instância, a casa de morada de família deveria ser atribuída ao A. mediante o pagamento de uma renda a favor da Ré.

L. Já em sede conclusões aduziu que “atento aos factos provados que se impugnaram, quando muito deveria ter-se decidido pela atribuição da mesma ao A., pagando este à Ré uma renda nos termos do disposto no n.º2 do art.º1793.º do CC, ficando esta com outra fonte de rendimento até à partilha, não agravando de forma crítica e dramática o modo de subsistência do Autor, critério esse que se entende que teria sido mais justo e equitativo.”

M. Que não tendo assim decidido violou o Tribunal de 1ª Instância o preceituado na norma supramencionada, pugnando em sede de apelação que a utilização da casa de morada de família deveria ser atribuída ao A.

N. Ou em alternativa pagar este em contrapartida uma renda à Ré, pela utilização da referida casa, nos termos do disposto no art.º 1793.º do CC.

O. Facto é que o Venerando Tribunal da Relação não se pronunciou quanto ao pedido vertido na linha antecedente, resultando numa clara omissão de pronúncia.

P. Dispõe o art.º 615.º, n.º 1, al. d) do CPC que é nula a sentença quando o Juiz deixe de se pronunciar, sobre questões que devesse apreciar (como é o caso) e que foram expressamente invocadas pelo A., sendo que, é aplicável à 2ª Instância o disposto nos art.ºs 613.º a 617.º do CPC, por remissão do art.º 666.º também do CPC.

Q. Tendo o Tribunal Recorrido violado as normas acima mencionadas, deve em consequência o acórdão de que se recorre ser declarado nulo e de nenhum efeito.

R. Ainda sem prescindir do acima pugnado, não se conforma o A. com a decisão de atribuição do direito de utilização da casa de morada de família à Ré, por diversas razões, que a seguir se aduzem.

S. Quer a casa do filho da Ré, quer a casa da mãe do A. são da mesma tipologia.

T. Ao invés do A., a Ré dispõe de um quarto para si, ainda que provisoriamente o possa partilhar com a neta de tenra idade, ou não (uma vez que é uma decisão dos pais), já o primeiro não dispõe de um quarto na casa de sua mãe, uma vez que ambos são ocupados respetivamente pela mãe de 90 anos e a sua irmã mais velha, ambas doentes, pelo que lhe restava dormir no chão da sala (atente-se aliás ao depoimento da testemunha CC ao minuto 12.20 e 12.30 20201119110107 199880102-2871180, transcritos em sede de apelação).

U. Esquecendo ainda o Venerando Tribunal recorrido que o A. teria que levar o seu animal de estimação que é de grande porte para o reduzido espaço com 3 adultos e dois deles doentes e fragilizados, podendo o canídeo inadvertidamente provocar a queda das mulheres, com as consequências graves que daí pudessem advir.

V. Esqueceu que o filho da Ré está disponível para ajudar a mãe, já o A. não conta com a ajuda de ninguém, sendo este sim quem presta ajuda à mãe e irmã.

W. Não foi relevado o facto de a Ré ter reduzida mobilidade para aceder ao 1.º andar da casa de morada de família, tal como nas duas primeiras instâncias se alegou que teria dificuldades para aceder ao 1º andar da casa do filho, o que se mostra incoerente.

X. Esqueceu igualmente o Venerando Tribunal de valorar a circunstância de a Ré ser considerada uma pessoa dinâmica e inclusive que sempre fez toda a lide da casa, antes de abandonar o lar.

Y. Aliás, volta a reforçar-se que a decisão inicial de atribuição do direito de utilização da casa à Ré, teve por fator preponderante e quase que exclusivo, um modo de proporcionar uma melhor qualidade de vida à, entretanto, falecida mãe desta.

Z. Ora, face a estes considerandos, apenas resta ao A. a possibilidade de arrendar um pequeno apartamento para si e o cão de companhia.

AA. Ora qualquer arrendamento, importa sempre para o A. uma despesa acrescida, acima dos 400,00€, sem incluir as despesas com água, luz, gás e comunicações e alimentação e cuidados de saúde do canídeo “V.....”.

BB. Ora, acrescentando a estas despesas um futuro pagamento de pensão de alimentos à Ré, ficariam ambos com rendimentos para sobreviver de igual montante, só que o Autor não tem a ajuda de ninguém, já a Ré tem a ajuda do seu filho.

CC. Ou seja, a decisão de atribuir o direito de utilização da casa de morada de família à Ré deixa o A. numa situação extremamente penalizadora, bem como impossibilitará que este de continue a ajudar a sua mãe e irmã que da mesma carecem.

DD. Razão pela qual, se entende que o Venerando Tribunal recorrido não ponderou a totalidade dos critérios atendíveis para decidir sobre a atribuição do direito de utilização da casa de morada de família, conforme é entendimento doutrinal e jurisprudencial.

EE. Devendo assim essa mesma decisão ser substituída por outra em que se atribua esse mesmo direito ao A.

FF. Ainda que assim se não entenda na totalidade, deverá ainda assim, em alternativa, atribuir-se o direito de utilização da casa ao A. nos termos do disposto no art.º 1793.º, não se violando assim critérios de equidade e justiça.

GG. Finalmente e também sem prescindir, não pode o Autor deixar de se insurgir quanto à decisão de se fixar o pagamento de uma pensão de alimentos a pagar à Ré, no montante de 90,00€, ao arrepio das normas substantivas em vigor, no que à sua interpretação diz respeito.

HH. Desde já, dá-se aqui por integralmente reproduzidos as conclusões mencionadas supra em S a CC e 36º das motivações, por uma questão de economia processual, uma vez que as mesmas são de elevada relevância para a não aplicabilidade da obrigação de que se recorre, uma vez que o referido acórdão se afastou em muito do critério da possibilidade de quem deva prestar alimentos e da necessidade do cônjuge.

II. A decisão, e salvo o devido respeito por melhor entendimento, parece apenas refletir a diferença de rendimentos dos cônjuges, olvidando todo o restante.

JJ. Nem sequer tem como critério o da colaboração prestada pela Ré à economia do casal, durante a vigência do matrimónio.

KK. Será imoral pretender que o A. arrende um imóvel em zona longínqua da residência de sua mãe (a quem presta auxílio) onde o mercado imobiliário não se encontra inflacionado como o da área de residência deste e sua mãe, impossibilitando-o de a assistir diariamente, como também aumentaria os seus encargos em deslocações.

LL. Com tal decisão o Venerando Tribunal da Relação, penaliza duplamente o A., a favor da Ré, quando deveria tentar encontrar uma solução de equilíbrio para ambas as partes.

MM. A decisão de fixar alimentos devidos à Ré a pagar pelo A., viola assim o critério da proporcionalidade, atentas as circunstâncias do caso e por conseguinte viola do disposto nos art.ºs 2004.º, n.º1, 2016.º, n.º1 e 3 e o n.º 1 do art.º 2016.º-A, todos do CC.

NN. Razão pela qual se requer que a mesma seja agora revogada.

OO. Ainda que assim se não entenda, o que apenas se admite como hipótese, caso este Tribunal Superior se decida manter a decisão recorrida, deverá em última instância decidir que a referida pensão tenha caráter temporário, no máximo até à partilha do imóvel, propriedade do casal e que se encontra integralmente pago.

São os seguintes os Factos Apurados no processo:

1. O Autor AA casou com a Ré BB a 1 de Setembro de 2001, sem convenção antenupcial.

2. Até ao dia 6 de Março de 2020, Autor e Ré viveram numa moradia, sita na Rua ..., ..., em ..., adquirida por ambos na constância do matrimónio e que se encontra integralmente paga.

3. A moradia atrás referida é composta por rés-do-chão (com uma sala, cozinha e casa de banho), primeiro andar (com três quartos) e sótão.

4. Nos últimos dois anos, a mãe da Ré viveu com o casal, tendo este efetuado obras numa garagem existente na referida moradia que transformaram em quarto, para aí a instalarem, tendo em conta as suas dificuldades de locomoção.

5. Na data referida em 2., a Ré apresentou queixa contra o Autor na Esquadra da PSP ..., alegando que o mesmo a acusou de roubar bens de casa e que a empurrou, fazendo com que embatesse contra o sofá da sala, magoando-se; referiu ainda que sentia medo e inquietação, por o Autor ser possuidor de arma de fogo, embora nunca a tenha ameaçado com a mesma.

6. Por sua vez, no dia 9 de Março do mesmo ano, o Autor apresentou queixa contra a Ré na Esquadra da PSP ..., alegando que naquele dia 6 de Março confrontou a esposa com o desaparecimento de vários bens de casa e que, quando se preparava para abandonar a sala, foi empurrado pela mesma, embatendo com a perna na mesa de centro, o que lhe provocou dores; acto contínuo, empurrou a Ré, com o intuito de abandonar a sala e se dirigir ao quarto.

7. No dia 6 de Março de 2020, na sequência da situação descrita em 5. e 6., a Ré foi viver para casa do seu filho, um apartamento situado num primeiro andar, composto por dois quartos, uma sala, uma casa de banho e uma cozinha, levando consigo a sua mãe.

8. No referido apartamento vivem, desde então, a Ré e a sua mãe, o filho, a companheira deste e a filha do casal, com cerca de um ano e meio.

9. O Autor não trabalha e recebe uma pensão por velhice no montante ilíquido de € 958,18 mensais e, líquido, de € 872,18.

10. No mês de Abril de 2020, o Autor pagou € 94,89 de gás e no mês de maio pagou € 11,76 de água, € 44,20 de luz e € 57,98 de telecomunicações.

11. No último ano, o Autor suportou o pagamento do seguro anual da casa, no valor de € 195,28, o seguro automóvel no valor de € 220,08 e o IMI, no valor de € 249,12.

12. A Ré não trabalha e recebe uma pensão por invalidez no montante de € 308,03 mensais.

13. A Ré tem o 4º ano de escolaridade, vários problemas de saúde e já efetuou três cirurgias à coluna.

14. A mãe da Ré aufere uma pensão de reforma no valor de cerca de € 800 mensais, sofre de vários problemas de saúde e tem uma prótese na anca, que lhe limita a locomoção.

15. A Ré e a sua mãe têm despesas de saúde, em valores não concretizados, e participam nas despesas de alimentação do atual agregado familiar, com valores igualmente não concretizados.

16. O filho da Ré mostra-se disponível para apoiar a mãe nas despesas desta e nas suas despesas domésticas, caso a mesma deixe de habitar consigo.

17. Autor e Ré são proprietários de um animal de companhia – um canídeo de nome V....., nascido a 7 de Janeiro de 2016, de raça buldogue francês.

18. Enquanto viveram juntos, Autor e Ré cuidavam do animal e acarinhavam-no mas apenas o primeiro lhe dava banho e o passeava na rua, pois a condição física da Ré não lho permitia fazê-lo.

19. Desde 6 de Março de 2020, o V..... tem vivido apenas com o Autor na casa onde antes também habitava a Ré e é por ele cuidado.

20. Nos meses de Agosto e Setembro de 2020, o Autor levou o V..... por diversas vezes ao veterinário, por episódios variados de doença, recebendo o animal alta clínica a 26 de Setembro.

21. Nesse período, em consultas, medicamentos, exames e internamentos com o animal, o Autor despendeu € 1.387,16.

22. A mãe do Autor vive num apartamento de sua propriedade, na Aldeia ..., composto por dois quartos e uma sala, juntamente com uma filha.

23. O Autor convive com regularidade com a mãe e a irmã e costuma prestar apoio à primeira, preparando-lhe refeições ou levando-a ao médico.

24. Autor e Ré pretendem vender a casa onde ambos habitavam.

Conhecendo:


I


Vem impugnada a decisão do Tribunal da Relação que, em acção de divórcio sem consentimento, determinou o destino da casa de morada de família e também a atribuição de uma prestação alimentar, a cargo do Autor, em benefício da Ré e no montante de € 90,00 mensais.

Vale a pena sublinhar que a questão do divórcio se encontra decidida e transitada, por não ter sido impugnada por via de recurso.

Ora, a matéria da “casa de morada” procede do pedido da Ré para que lhe fosse atribuída tal casa, a ela Ré, até à venda ou à partilha do bem.

Nessa sequência, as instâncias deram procedência ao pedido, tendo atribuído o direito de utilização da casa de morada de família à peticionante Ré (apenas divergindo quanto ao prazo concedido ao Autor para retirar os respectivos bens pessoais dessa referida casa).

O Autor entende agora, como já entendera na apelação, que existe omissão de pronúncia (art.º 615.º n.º1 al.d) CPCiv), quando as instâncias se não pronunciaram quanto à alternativa posta pelo Autor, de à Ré poder ser atribuída a casa (em alternativa à utilização do Autor), mas mediante o pagamento de uma renda, nos termos do disposto no art. 1793.º CCiv.

Cumpre porém distinguir.

O que estava em causa na presente acção era a atribuição da casa de morada da família até à partilha dos bens comuns do casal, cujo divórcio se decidiu e, neste momento, se encontra definitivamente decretado.

Esta situação tem enquadramento no disposto nos art.ºs 1778.º-A n.º3 e 1779.º n.º2 parte final CCiv, actual redacção proveniente da Lei n.º61/2008 de 31/10.

Citando o Ac.S.T.J. 26/4/2012, pº 33/08.9TMBRG.G1.S1 (Serra Baptista), “trata-se de um processo especialíssimo, norteado por critérios de conveniência, que apenas tem em vista a fixação de um regime provisório – in casu, (…) atribuído ao ex-cônjuge mulher, até à partilha dos bens comuns (nos quais se integra a casa em apreço) – quanto à sequela do divórcio relacionada com a casa de morada de família (cfr. citado art. 1407.º, no seu nº 2) e que, em princípio, não tem a ver com o processo de constituição de arrendamento da casa de morada de família regulado, como processo de jurisdição voluntária, no art. 1413.º do CPC, previsto, como efeito do divórcio, nos art.ºs 1793.º e 1105.º do CC”.

Portanto, aquilo de que se tratou no processo não foi a atribuição definitiva da casa de morada de família a um dos ex-cônjuges por efeito do divórcio – caso se tivesse tratado de atribuição definitiva, pressuporia que o ex-cônjuge que dela lançasse mão formulasse expressamente o pedido de arrendamento da casa de morada da família, quer se tratasse de bem comum do casal, quer se tratasse de bem próprio do outro ex-cônjuge, nos termos das normas dos art.ºs 1793.º CCiv e 990.º CPCiv.

Aliás, nada mais foi pedido no processo e, como é sabido, o tribunal não pode decidir extra vel ultra petitumart.º 615.º n.º1 al.e) CPCiv.

Guilherme de Oliveira (in Lex Familiae, ano 7.º, 2010, A Nova Lei do Divórcio) entende que a Lei n.º 61/2008 de 31/10 ficou omissa quanto à forma processual que devem seguir as diligências atribuídas ao juiz, “como se se tratasse de um divórcio sem consentimento de um dos cônjuges”, conforme o disposto no art.º 1778.º-A n.º3 CCiv.

Conclui assim que se deve estabelecer que estes procedimentos seguem a forma da jurisdição voluntária, como esteve na intenção original, não explicitada, da reforma da lei e como parece mais apropriado.



II

Já a atribuição da casa de morada de família à Autora, até ao momento da partilha do bem, não cabe ser sindicado por este Supremo Tribunal de Justiça.

Na verdade, decorre linearmente da decisão recorrida, como decorria já da sentença de 1.ª instância, que, no juízo necessário à atribuição da casa, não foram usados critérios de legalidade estrita, mas antes foi adoptada a solução que foi julgada mais conveniente e oportuna, em estrito juízo de equidade.

Este juízo de equidade de que se socorrem as instâncias na fixação de indemnização, alicerçado, não na aplicação de um estrito critério normativo, mas na ponderação das particularidades e especificidades do caso concreto, não integra, em rigor, a resolução de uma questão de direito, pelo que tal juízo prudencial e casuístico deverá, em princípio, ser mantido, salvo se o critério adoptado se afastar, de modo substancial e injustificado, dos padrões que, generalizadamente, se entende deverem ser adoptados numa jurisprudência evolutiva e actualística, abalando a segurança na aplicação do direito e o princípio da igualdade (art.ºs 566.º n.º 3 CCiv, 674.º e 682.º CPCiv) – cf. Ac.S.T.J. 17/5/2018, pº 952/12.8TVPRT.P1.S1 – Távora Victor.

Em suma:

“A aplicação de puros juízos de equidade não traduz, em bom rigor, a resolução de uma «questão de direito», mas tão somente a verificação acerca dos limites e pressupostos dentro dos quais se situou o referido juízo equitativo, formulado pelas instâncias face à ponderação casuística da individualidade do caso concreto sub juditio” – Ac.S.T.J. 28/10/2010, pº 272/06.7TBMTR.P1.S1 – Lopes do Rego.

Na verdade, não estão em causa na revista, como já não estavam na apelação, os requisitos legais imperativos, quanto à atribuição da casa de morada da família, mas antes uma intervenção do julgador a jusante, integrando um puro juízo de oportunidade quanto à pessoa daquele dos ex-cônjuges que mais necessita da atribuição provisória da casa.

E o recurso de revista exclui-se sempre que não possa realizar qualquer função que harmonize a aplicação da lei – veja-se, finalmente, a norma do art.º 674.º n.º1 CPCiv, nas suas diversas alíneas.

Note-se que o entretanto ocorrido falecimento da mãe da Ré, com ela convivente, não altera de forma significativa a ponderação da respectiva necessidade de habitação, posto que a Ré ainda se encontra hoje obrigada a partilhar um cómodo com a neta, em casa de seu filho e nora, como aliás se ponderou adequadamente já no acórdão recorrido.


III


Conforme já foi adequadamente sublinhado nas instâncias, o princípio vigente na prestação de alimentos entre ex-cônjuges é o da auto-suficiência de cada um deles – art.º 2016.º n.º1 CCiv: “Cada cônjuge deve prover à sua subsistência, depois do divórcio”.

Este princípio, porém, não se afirma de forma absoluta, pois cada cônjuge mantém o direito a alimentos (n.º2 do art.º 2016.º-A CCiv).

Poderá dizer-se assim que, no regime de alimentos entre ex-cônjuges, vigora o respectivo carácter excepcional, limitado e de natureza subsidiária – cf. Ac.S.T.J. 20/2/2014, pº 141/10.6TMSTB.E1.S1 (Granja da Fonseca), por via da transição, já efectuada na nossa lei, para um divórcio “pura constatação de ruptura”, com a correspondente opção legislativa de permitir a livre saída do casamento de par com o princípio da auto-subsistência, visando por tal meio evitar que muitos casamentos se mantivessem pela razão simples de que um dos cônjuges não tinha possibilidades de se auto-sustentar.

Este carácter “excepcional” cabe ser ponderado quando os alimentos são pedidos, e não antes.

O direito a alimentos pode nascer de se dever ter em consideração que provavelmente os cônjuges acordaram entre si a divisão da obtenção de rendimentos para o casal, na vigência do casamento, podendo ter acontecido que as tarefas de casa se encontrassem mais entregues a um dos membros do casal, e as tarefas exteriores, designadamente relacionadas com a obtenção de rendimentos, entregues ao outro membro do casal, podendo revelar-se difícil para o primeiro, dissolvido o casamento, ingressar ou reingressar condignamente no mercado de trabalho.

Autor e Ré estiveram unidos pelo casamento durante cerca de 19 anos. Nesta altura, ambos em situação de aposentação, o Autor aufere uma pensão que supera em mais do dobro a pensão que a Ré aufere (mais de 800 euros líquidos, contra cerca de 300 euros líquidos).

De acordo com o anteriormente decidido e que neste momento se impôs aceitar, o direito à atribuição da casa de morada da família, até à partilha do bem, caberá à Ré.

Esta casa de morada – uma moradia composta, para além do mais, por sala e três quartos – conferirá, ao menos temporariamente, à Ré uma situação existencial mais confortável que ao Autor, acolhido numa habitação com dois quartos e sala e na qual já vivem a mãe do Autor e uma irmã do mesmo Autor.

Neste sentido, pode concluir-se que, apesar de a atribuição provisória da casa de morada da família não estar directamente regulada nos art.ºs 1793.º CCiv e 990.º CPCiv, estas normas podem aplicar-se indirectamente à atribuição da casa até à partilha, na medida em que prevejam “compensação” (independentemente das noções de “renda” ou de “arrendamento”) ao cônjuge não beneficiado com a atribuição do bem, posto que o bem atribuído é comum e que se verifica, de facto, uma verdadeira situação de necessidade da habitação para ambos os ex-cônjuges, ponderada aliás na decisão recorrida.

Para além de que é incerto, e poderá até ser longo, o tempo a decorrer até à partilha do bem.

Assim decidiu o já citado Ac.S.T.J. 26/4/2012:

“(…) Não disciplinando a lei, de forma específica, como efectuar a atribuição provisória, nada impede que nos socorramos, pelo menos como pano de fundo, do regime arrendatício fixado no citado art. 1793.º (está em causa um bem comum dos cônjuges e não um imóvel arrendado).”

“Regime esse, sujeito ao processo de jurisdição voluntária, com predomínio da equidade sobre a legalidade – art. 1410.º do CPC.
Fixando, assim, tal preceito (o art. 1793.º) os índices de referência quanto à atribuição provisória da casa de morada de família.”

“Não havendo, de qualquer modo, que fixar a compensação devida pelos valores do mercado, desconsiderando a situação económica do cônjuge que da casa mais necessitar.”



IV


Havendo necessariamente lugar, na nossa ponderação, à compensação em contrapartida da atribuição provisória da casa de morada da família, esta compensação deve equivaler ao montante fixado a título de alimentos a favor da Ré (90 euros mensais) e, dessa forma, isentar o Autor do pagamento de qualquer prestação de alimentos, a seu cargo e em benefício da Ré.

É verdade que esta Ré passará a ter despesas relacionadas com a utilização da casa de morada da família (água, luz, gás e outras), mas tem-se por provado que o filho da Ré se mostra disponível para apoiar a mãe nas despesas desta e nas suas despesas domésticas, caso a mesma deixe de habitar consigo (facto 16).

O valor atribuído em 2.ª instância, a título de alimentos, passará assim a ser necessário ao Autor, a fim de usufruir de um padrão habitacional equivalente àquele que a Ré passará a usufruir.

Esta matéria havia sido, aliás, ponderada na sentença proferida em 1.ª instância.

Confirmando-se, no acórdão recorrido, a matéria relativa ao direito de utilização da casa de morada da família, até à partilha (portanto, sem prejuízo do prazo de 20 dias concedido em 2.ª instância para a desocupação da casa, matéria não objecto de revista), já quanto ao pedido de condenação do Autor em prestação de alimentos a favor da Ré, deve repristinar-se o dispositivo de absolvição proveniente de 1.ª instância.

Em suma:

I – Se o que está em causa na acção é a atribuição provisória da casa de morada da família até à partilha dos bens comuns do casal, cujo divórcio está decretado, então esta situação tem enquadramento no disposto nos art.ºs 931.º n.º7 CPCiv e 1778.º-A n.º3 e 1779.º n.º2 parte final CCiv, como incidente, com processo especialíssimo, e que não tem a ver com o processo de constituição de arrendamento da casa de morada de família regulado, como processo de jurisdição voluntária, nos art.ºs 1413.º CPCiv, 1793.º e 1105.º CCiv.

II – Se decorre da decisão recorrida que, no juízo necessário à atribuição da casa de morada da família, não foram usados critérios de legalidade estrita, mas antes foi adoptada apenas a solução que foi julgada mais conveniente e oportuna, em estrito juízo de equidade, encontra-se excluída a possibilidade de recurso de revista – cf. art.º 674.º n.º1 CPCiv, nas suas diversas alíneas.

III - Apesar da atribuição provisória da casa de morada da família não estar directamente regulada nos art.ºs 1793.º CCiv e 990.º CPCiv, estas normas podem aplicar-se indirectamente à atribuição provisória da casa, na medida em que prevejam “compensação” (independentemente das noções de “renda” ou de “arrendamento”) ao cônjuge não beneficiado com a atribuição do bem, posto que o bem atribuído é comum e que se verifica, de facto, uma verdadeira situação de necessidade da habitação para ambos os ex-cônjuges.

Decisão:

Concede-se em parte a revista, repristinando a decisão proferida em 1.ª instância na matéria relativa à absolvição do Autor quanto ao pedido de prestação de alimentos a favor da Ré.

No mais, confirma-se o acórdão recorrido.

Custas a cargo do Autor e da Ré, na proporção 1/3 pelo primeiro e 2/3 pela segunda, ao igual do decidido em 1.ª instância.


STJ, 31/3/2022


Vieira e Cunha (relator)                                                        

Tomé Gomes

Maria da Graça Trigo