Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 2.ª SECÇÃO | ||
Relator: | CATARINA SERRA | ||
Descritores: | TESTAMENTO HOLÓGRAFO FORMA DO TESTAMENTO INEFICÁCIA DO TESTAMENTO LEI APLICÁVEL APLICAÇÃO DE LEI ESTRANGEIRA FORMA ESCRITA FORMA LEGAL | ||
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Data do Acordão: | 05/28/2024 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Referência de Publicação: | RAMOS, RUI MANUEL MOURA - TESTAMENTO OLÓGRAFO DE NACIONAL PORTUGUÊS REDIGIDO NO ESTADO DA RESIDÊNCIA HABITUAL DO AUTOR DA HERANÇA IN REVISTA DE LEGISLAÇÃO E DE JURISPRUDÊNCIA, A. 153, N.º 4048 (SET.-OUT. 2024), P. 81-107 | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | REVISTA | ||
Decisão: | NEGADA | ||
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Sumário : | I. O n.º 1 do artigo 65.º do CC consagra uma solução de grande flexibilidade, tributária do favor negotii / favor testamenti, através da “técnica da conexão múltipla alternativa”. II. Esta regra sofre uma restrição por força do disposto no seu n.º 2, segundo o qual quando a lei pessoal do testador exija, no momento da declaração, sob pena de invalidade / ineficácia, determinada forma, ainda que o acto seja praticado no estrangeiro, não pode esta forma deixar de ser observada. III. Independentemente do significado que se dê à exigência de “forma solene” prevista no artigo 2223.º do CC, decorre do regime português que a intervenção de notário ou autoridade pública equiparada é uma formalidade do tipo exigido pelo n.º 2 do artigo 65.º do CC, sem a qual “um testamento não é um testamento”; daí que o testamento hológrafo, feito por pessoa de nacionalidade portuguesa na Suíça, sem intervenção de um oficial daquele tipo, deva ser considerado inválido à luz da lei portuguesa (lei pessoal da testadora). IV. Não obstante isto, prevendo o artigo 31.º, n.º 2, do CC uma atenuação à regra da coincidência entre a lei pessoal e a lei da nacionalidade consagrada por via da atribuição de relevância subsidiária à lei do domicílio habitual e provados que estão, in casu, os seus requisitos de aplicabilidade, designadamente que aquele testamento foi celebrado na Suíça em conformidade com a lei suíça (lei do domicílio habitual da testadora), é possível, ao abrigo desta norma, o seu reconhecimento em Portugal. | ||
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Decisão Texto Integral: | ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA I. RELATÓRIO Recorrente: AA Recorrido: BB 1. AA intentou acção sob a forma de processo comum contra BB peticionando que seja declarada a nulidade e a incapacidade de produzir quaisquer efeitos na ordem jurídica nacional do testamento identificado nos autos e atribuído à falecida CC, cidadã portuguesa, lavrado na Suíça. Para tanto invocou, em resumo, que a referida CC faleceu na Suíça, no dia ........2013, no estado de solteira, deixando como seus herdeiros legais o seu irmão, o autor, e a sua sobrinha. Mais alegou ter tido conhecimento da existência de um documento cuja autoria é atribuída à falecida, redigido em língua alemã, escrito esse que configurará uma disposição de ultima vontade, pelo qual terá instituído como seu único e universal herdeiro o aqui réu, que igualmente instituiu como seu testamenteiro. Alega desconhecer se de facto tal documento foi redigido / assinado pela falecida, bem como a categoria profissional da pessoa perante a qual terá sido redigido, bem como se foi, ou não, lido este testamento à falecida, o local onde foi elaborado e quem o elaborou. Por último, alega que os testamentos feitos por portugueses no estrangeiro só produzem efeitos se tiver sido observada a forma solene na sua feitura ou aprovação, o que não se verificou na situação ajuizada, sendo este testamento inválido na ordem jurídica portuguesa por não revestir as exigências de forma impostas quer pela lei nacional quer as impostas pelo instrumento de direito internacional pelo qual se devem reger os testamentos de cidadãos nacionais residentes no estrangeiro. 2. Citado, veio o réu contestar, alegando que vivia com a falecida em união de facto desde 2011, em ..., comuna de ..., onde residiram até à data do seu óbito, tendo sido instituído como herdeiro universal da de cujus por testamento realizado pelo cartório notarial de ..., entidade com competência legal e funcional para aquele acto na Suíça. Pugna pela aplicação da lei estrangeira – lei suíça – mais afirmando que as formalidades a observar são as previstas na lei suíça e que foram respeitadas no testamento dos autos, decorrendo na Suíça, processo sucessório, no âmbito do qual foi considerado o legitimo herdeiro da falecida, beneficiário de todos os seus bens e responsável pelo pagamento de todos os impostos e encargos devidos pela sucessão e pelo processo. 3. Na sentença pode ler-se: “o Tribunal julga a presente acção totalmente procedente e, em consequência, decide declarar a nulidade do documento denominado “testamento” e referido em 8. dos factos provados e a incapacidade do mesmo produzir qualquer efeito na ordem jurídica nacional”. 4. Não conformado com esta decisão, interpôs o réu recurso para o Tribunal da Relação de Coimbra que, em Acórdão, decidiu: “considerar procedente o recurso interposto e revogar a decisão recorrida, substituindo-a por outra que julga a acção interposta por AA contra BB, totalmente improcedente”. 5. Desta vez é o autor quem interpõe recurso de revista. Conclui as suas alegações nos seguintes termos: “1. O Recorrente não pode concordar com o acórdão proferido em 23.01.2024, na medida em que o mesmo considera que um testamento considerado inválido, pode produzir efeitos no ordenamento jurídico português. 2. Na verdade, a questão que se coloca é a de interpretação da lei a aplicar, quanto à validade do testamento. 3. Afigura-se ao Recorrente que a lei não suscita dúvidas e que se deve aplicar, no que concerne ao domínio das sucessões, a lei pessoal, ou seja, a lei da nacionalidade. 4. Na verdade, o documento denominado de “testamento” foi redigido na Suíça e a falecida tinha nacionalidade portuguesa. 5. A sucessão por morte é regulada pela lei pessoal do autor da sucessão ao tempo do falecimento, conforme artigo 62º/Código Civil. 6. A lei pessoal é a da nacionalidade do individuo, de acordo com o preceituado no artigo 31º/1/Código Civil. 7. Não colhe o argumento defendido no acórdão, quando refere que no artigo 31º/2/Código Civil, tem uma limitação à regra de que a lei pessoal é a da nacionalidade do indivíduo. 8. Preceitua o artigo 31º/2/Código Civil: “São porém reconhecidos em Portugal os negócios jurídicos celebrados no país da residência habitual do declarante, em conformidade com a lei desse país, desde que esta se considere competente.” 9. Na opinião do Recorrente, da leitura deste ponto, não se vislumbra excepção ao critério da lei pessoal ser a lei da nacionalidade, no que toca às sucessões. 10. O artigo 31º/2/ Código Civil, reconhece os negócios jurídicos celebrados no país da residência habitual, tal não significa aceitar que documentos inválidos conduzam à produção de efeitos no ordenamento jurídico português. 11. Além de que, preceitua o artigo 65º/Código Civil que, se a lei pessoal do autor da herança no momento da declaração exigir, sob pena de nulidade, a observância de determinada forma, ainda que o acto seja praticado no estrangeiro, a exigência deve ser respeitada. 12. Assim, o testamento feito por cidadão português em pais estrangeiro, só produz efeitos em Portugal, se tiver sido observada uma forma solene na sua feitura ou aprovação, cfr. artigo 2223º/ Código Civil. 13. Quando se refere a necessidade de observar uma forma solene na feitura ou aprovação do testamento, cfr. artigo 2223º/ Código Civil, significa que se exige a intervenção de uma entidade dotada de fé pública na sua elaboração ou na sua aprovação e bem assim a presença de duas testemunhas. 14. Além de que, o testamento está sujeito à disciplina prevista na Convenção Relativa à Lei Uniforme sobre a Forma de Um Testamento Internacional, visto ter sido redigido por um cidadão português no estrangeiro. 15. O artigo 5º da referida Convenção refere que: “O testador deverá assinar o testamento na presença das testemunhas e da pessoa habilitada ou, se já o houver previamente assinado, reconhecer como sua a assinatura.” 16. Preceituando o artigo 1º da Convenção que, o testamento só será válido se respeitar as formalidades previstas na mesma. 17. Uma vez que Portugal aderiu à Convenção, em 09.02.1978, aprovada pelo Decreto nº 252/75, de 23.05, as regras definidas nesse documento de aplicação internacional, devem ser respeitadas. 18. Assim, o testamento para ser válido deveria em Portugal ter a intervenção de uma entidade dotada de fé pública e mencionar a identificação das testemunhas e ser assinado pelas mesmas. Tal não resulta da prova produzida nos autos. 19. Acresce que, refere-se no acórdão aqui em crise, que estamos perante um testamento holográfico e que o mesmo está previsto e é permitido pelo artigo 505º/Código Civil Suíço. 20. O testamento holográfico é um documento totalmente manuscrito e assinado pelo testador, sem necessidade de intervenção de um notário. 21. O testamento holográfico não é permitido em Portugal. 22. Acontece que, no caso em apreço, verificaram-se duas situações distintas, que leva a colocar sérias dúvidas sobre que tipo de testamento existiu. 23. Na verdade, consta do ponto 10 dos factos provados, que: “No dia 06/12/2013 foi realizado, pelo Cartório Notarial de ... e a pedido de CC, um esboço de testamento, aí tendo estado presentes, além da falecida e do Sr. Notário, mais duas pessoas.” 24. Se a testadora se dirigiu a um Notário, presume-se que quisesse fazer um testamento público, um documento formal e nesse caso, teriam de ser respeitadas formalidades legais, nomeadamente a assinatura de testemunhas, cfr. artigo 499º a 501º/ Código Civil Suíço. 25. Assim, não se compreende a razão de ter sido feito um esboço de testamento, na presença de um Notário e de testemunhas e posteriormente ter feito um manuscrito. 26. Acresce que é desconhecido o teor do esboço realizado no Notário, pelo que não se sabe se o documento junto aos autos, expressa a real vontade da testadora. 27. Até porque, a testadora encontrava-se em fase terminal, de uma doença oncológica, pelo que o grau de consciência e compreensão da testadora, estava comprometido. 28. Estranha-se ainda que, uma das testemunhas tenha referido ter feito a tradução, palavra por palavra, do testamento, visto ter sido referido pelas testemunhas, que a testadora, vivia há mais de 30 anos na Suíça e que conhecia perfeitamente a língua alemã. 29. Nessa medida, tratando-se o testamento de um documento com disposições para o futuro, sem possibilidades de se confrontar a testadora sobre a sua real vontade, dúvidas não deviam existir sobre o que foi pretendido pela testadora e qual o tipo de testamento que pretendia outorgar. 30. E bem assim, se a testadora estaria com capacidade de entender o sentido da sua declaração, pois a mesma faleceu sete (07) dias após outorgar o testamento, encontrando-se nos cuidados paliativos. 31. Os doentes em fase terminal, encontram-se debilitados, muitas vezes sem capacidade de falar, de escrever e têm a parte cognitiva afectada, não têm a consciência plena do que fazem. 32. Aliás, isso mesmo foi confirmado pelo irmão da falecida, que a visitou no dia 12.12.2013, três dias após a assinatura do testamento e que afirmou que a irmã quase não falava e nem sequer conseguia pegar na caneta. 33. Pelo que, sempre deveria ser considerado inválido o testamento, pois existia incapacidade acidental da testadora. Nesse sentido, o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, proferido no processo nº 4331/16.0...-7, de 20.12.2018: “Deve ser anulado, por incapacidade acidental, o testamento outorgado por quem, no momento e devido a doença, estava incapaz de entender o sentido da sua declaração e carecia do livre exercício da sua vontade para poder dispor dos seus bens para depois da morte.” 34. Conforme bem refere o acórdão aqui em crise, o testamento é inválido segundo a lei pessoal, neste caso a lei portuguesa, 35. Existem quatros princípios que norteiam o registo predial português: Princípio da obrigatoriedade, princípio da legalidade do conservador, princípio da prioridade e princípio da legitimação. 36. Foquemo-nos no princípio da legalidade do conservador, porque é o que nos interessa no caso em apreço, o qual se encontra previsto no artigo 68º/Código do Registo Predial, e preceitua que: “A viabilidade do pedido de registo deve ser apreciada em face das disposições legais aplicáveis, dos documentos apresentados e dos registos anteriores, verificando-se especialmente a identidade do prédio, a legitimidade dos interessados, a regularidade formal dos títulos e a validade dos actos neles contidos.” (sublinhado e negrito nosso). 37. O Conservador tem o poder dever de apreciar os pedidos de registo e analisar os documentos, apenas registando o que é conforme a lei. 38. No mesmo sentido, o artigo 69º/Código Registo Predial, refere que o registo deve ser recusado, quando for manifesta a nulidade do facto ou quando for manifesto que o facto não está titulado nos documentos apresentados. 39. Assim, tratando-se o testamento de um documento inválido, pois na sua elaboração e outorga, não foram respeitadas as formalidades exigidas no ordenamento jurídico português, nunca poderia produzir efeitos em Portugal. 40. Encontrando-se os bens imóveis, propriedade da falecida, em Portugal, o testamento sendo inválido, não poderia servir de base ao registo dos bens na Conservatória. 41. Assim, bem andou o Tribunal de primeira instância ao declarar a nulidade do documento denominado de “testamento” e a incapacidade do mesmo produzir efeitos no ordenamento jurídico português. 42. Em súmula, a lei a aplicar, em regime de sucessões, é a lei pessoal – lei da nacionalidade - logo a lei portuguesa, não se verificando qualquer excepção. 43. Ao aplicarmos a lei portuguesa, o testamento é nulo, porque não respeita as formalidades legais previstas na lei, desde logo, a existência de duas testemunhas, as quais disseram estar presentes, mas não foram identificadas no documento identificado como o “testamento”. 44. Finalmente, atendendo aos princípios que norteiam o Registo Predial, o Conservador está sujeito ao princípio da legalidade, pelo que nunca poderia permitir o registo de bens imóveis, com base num documento nulo, face à lei portuguesa”. 6. O réu contra-alegou, concluindo: “I. O Tribunal Recorrido decidiu, e bem, julgar procedente o recurso interposto pelo Réu e revogou a decisão recorrida, substituindo-a por outra que julga a ação interposta por AA contra BB, totalmente improcedente, resultando do sumário do acórdão recorrido que: “I - Ocorrendo uma situação jurídica plurilocalizada, com elementos de conexão com duas ordens jurídicas – o ordenamento jurídico português e o ordenamento jurídico suíço – decorrente de a de cujus, de nacionalidade portuguesa, ter a sua última residência habitual na Suíça, local onde ocorreu o seu óbito em 2013 e onde foi celebrado o documento denominado “testamento”, não sendo aplicável aos autos o Regulamento (UE) nº 650/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 4 de julho de 2012, atenta data do óbito do testador, nem existindo Convenção que vincule o Estado português sobre esta matéria, há que recorrer às normas de direito internacional privado, previstas nos artºs 25 e 62 a 65 do nosso C.C. II - Resulta do disposto no artº 65, nº1 do C.C. quanto à forma das disposições por morte, como regra geral, uma pluralidade de leis potencialmente aplicáveis (conexão múltipla alternativa): a lei do lugar onde o acto foi celebrado; a lei pessoal do autor da herança, quer no momento da declaração, quer no momento da morte; as prescrições da lei do estado para que remete a norma de conflitos da lei do lugar da celebração do negócio jurídico. III - Esta conexão múltipla alternativa, é limitada pelo nº2 daquele preceito legal, ao remeter expressamente, no que se reporta à observância de formalidades legais exigidas para o acto, no momento da celebração, para a lei pessoal do autor da herança. IV- A lei pessoal do autor da herança é, de acordo com o princípio geral contido no artº 31, nº1, do C.C., a lei da sua nacionalidade, que exige no seu artº 2223 do C.C. a forma solene para a feitura ou aprovação dos testamentos, que exige a intervenção de oficial dotado de fé pública. V - Este princípio geral da nacionalidade é, no entanto, limitado pelo disposto no nº2 do artº 31 do C.C., que confere relevância à lei da residência habitual, limitado aos negócios jurídicos do domínio do estatuto pessoal, celebrados por cidadão português no estrangeiro, de acordo com o critério da residência habitual, por forma a salvaguardar o princípio do favor negotii, da confiança e da estabilidade das situações jurídicas, que seriam consideradas inválidas de acordo com a lei da nacionalidade. VI - A consideração da lei da residência habitual, demanda a verificação cumulativa dos seguintes pressupostos: -que tenha sido celebrado um negócio jurídico inválido segundo a lei pessoal; -que este negócio tenha sido celebrado no país estrangeiro que seja o lugar da residência habitual do declarante; -que este negócio seja considerado válido pela lei do país da residência habitual; -que esta lei se considere competente. VII - Ao testamento manuscrito celebrado por cidadão nacional, na Suíça, local onde tinha a sua residência habitual e onde veio a falecer, é aplicável a lei do seu domicílio, por via do disposto no artº 32, nº2, do C.C., aceite a competência por via dos artºs 33, 86, nº1, 90, nº1 e 93, nº1 das disposições sobre direito internacional privado Suíça, sendo assim, válido de acordo com o artº 505 do seu Código Civil”. II. O Recorrente por não concordar com a decisão recorrida alegou, por um lado, a incapacidade acidental da testadora e, por outro lado, a aplicação lei da nacionalidade da autora da sucessão, de nacionalidade Portuguesa, nos termos dos artigos 31.º, n.º 1, 62.º, 65.º, 2223.º do Código Civil, ser aplicável a Convenção Relativa à Lei Uniforme Sobre a Forma de Um Testamento Internacional e outros, o que não se pode aceitar. III. É inadmissível o Recorrente colocar em causa no Supremo Tribunal de Justiça matéria de facto assente. IV. Ao contrário do alegado pelo Recorrente em momento algum resultou como provado que a autora da sucessão estaria com incapacidade de entender o sentido da sua declaração, que existia incapacidade acidental da testadora. V. O testamento junto aos autos de fls. 485, conjugado com o facto não provado n.º 8, com os factos provados n.ºs 4, 8 a 14, supra transcritos, com o relatório pericial de fls. 491 e 500, e com as declarações das testemunhas DD e EE são demonstrativos e comprovativos da sua capacidade, da vontade real da testadora, que de forma livre e esclarecida, efetuou o testamento pelo seu punho, quis nomear o seu companheiro, aqui Réu/Recorrido como seu herdeiro (cfr., decorre da motivação da sentença proferida em primeira instância), carecendo, assim, de fundamento e de prova o alegado pelo Réu, atento ao facto de inexistir incapacidade acidental da autora, sendo o testamento válido. VI. Por outro lado, na situação em apreço está em causa uma situação jurídica plurilocalizada, com elementos de conexão com duas ordens jurídicas - o ordenamento jurídico português e o ordenamento jurídico suíço – decorrente do facto de a autora da sucessão, de nacionalidade portuguesa, ter a sua última residência habitual na Suíça (onde residia há mais de trinta anos – facto provado n.º 3), local onde ocorreu o seu óbito e local onde foi celebrado o testamento. VII. Ao contrário do alegado pelo Recorrente a lei aplicável é a lei do lugar onde o testamento foi celebrado, ou seja, a lei do lugar onde o ato foi celebrado – Lei Suíça -, atenta a conexão alternativa estabelecida no artigo 65.º n.º 1 do Código Civil conjugado com o n.º 2 do artigo 31.º do Código Civil, como bem decidiu o Tribunal recorrido. VIII. Em matéria de disposições por morte o n.º 1 do artigo 65.º do Código Civil estabelece uma conexão alternativa, nos termos do qual o testamento será formalmente válido se corresponder às prescrições de uma qualquer das quatro leis aí indicadas: a) lei do lugar ondo o ato for celebrado; b) lei pessoal do autor da herança no momento da declaração; c) lei pessoal do autor da herança no momento da morte; d) lei para que remeta a norma de conflitos da lei local, isto é, da lei indicada em a), se, por hipótese, ela se não considerar competente e tratando-se de uma conexão alternativa a lei aplicável pode ser a do lugar onde o ato foi celebrado, ou seja, a lei Suíça (cfr., nesse sentido, Marques Santos, Parecer publicado na CJ, STJ, Ano III, Tomo II, pág. 7, Maria Helena Brito, in Ana Prata, Código Civil Anotado, Vol. I, Almedina, pág. 96). IX. O n.º 1 do artigo 65.º do Código Civil conjugado com o n.º 2 do artigo 31.º do Código Civil permite-nos o reconhecimento em Portugal do testamento celebrado na Suíça, como muito bem decidiu o Tribunal Recorrido. X. O n.º 2 do artigo 31.º do Código Civil estabelece um desvio à regra contemplada no n.º 1 dessa disposição legal, e cujo nº 2 dessa disposição legal tem efetivamente aplicabilidade na situação em concreto, salientando-se que no acórdão recorrido muito bem foi referido com referência ao artigo 31.º do Código Civil que “Constituindo a regra geral, este princípio da nacionalidade é, no entanto, limitado aos negócios jurídicos celebrados em conformidade com a lei do país da residência habitual. Permite-nos por via desta norma, que elege como lei pessoal a do domicílio, o reconhecimento em território nacional dos negócios jurídicos celebrados no país da residência habitual do declarante, em conformidade com essa lei, ou seja, obedecendo aos ditames formais e materiais previstos na lei desse país e desde que esta se considere competente. Trata-se de uma norma de remissão condicionada que opera apenas quando verificados todos os requisitos nela contidos: negócio jurídico caia no âmbito do estatuto pessoal; o local da celebração seja o da residência habitual do declarante; a lei desse país considere esta negócio válido; a lei desse país se considere competente para dirimir a questão”. [sublinhado nosso] XI. Constando, ainda, do acórdão recorrido que, “a solução gravosa dos artigos 65.º, n.º 2 e 2223 do Código Civil é mitigada pela possibilidade de aplicação do disposto no artigo 31.º, n.º 2 do Código Civil para os casos em que o testamento, não sendo celebrado pela forma solene é, ainda assim, válido pela lei do local onde foi celebrado” e ao não ser assim estaríamos perante uma violação dos artigos 65.º, n.º 1 e 31.º, n.º 2 do Código Civil. XII. O n.º 2 do artigo 31.º do Código Civil estabelece um desvio à regra contemplada no n.º 1 dessa disposição legal, pois CC era solteira, vivia há mais de 30 anos na Suíça, no Cantão ..., dominava a língua alemã, aí utilizava habitualmente, a mesma juntamente com o Réu/Recorrente tiveram como última morada e desde 01/03/2011, a cidade de ..., na Comuna de ..., onde residiam numa casa arrendada, no n.º 55 da Rua de ... (conforme assento de óbito de fls. 12 a 14, factos provados n.ºs 2, 3, 5) e no país de residência habitual (Suíça) efetuou testamento por escrito, datado e assinado pelo seu punho, a instituir único e legítimo herdeiro o seu companheiro, aqui Recorrido, (cfr., facto provados nºs 8, 9, 10, testamento original de fls. 485, exame de escrita de fls. 491 a 500 e declarações de testemunhas), cujo testamento foi aprovado pelo tribunal no âmbito do processo sucessório e foi emitido certificado sucessório a favor do Réu, há conexão entre o testamento e a lei suíça e o testamento é válido à luz da lei da Suíça. XIII. Ao contrário do alegado pelo Recorrente não lhe assiste razão com os princípios de registo português alegados no recurso, nem é aplicável o artigo 69.º do Código do Registo Predial, pois o testamento é válido, está reconhecido em Portugal e produz efeitos jurídicos em Portugal (cfr., resulta das certidões fiscais, cadernetas prediais juntas com a petição inicial). XIV. O Réu/Recorrido como único e universal herdeiro através do testamento adquiriu direitos, direito esses e qualidade que foram reconhecidos em Portugal, uma vez que efetuou habilitação de herdeiros em Portugal, pagou os impostos junto da Administração Tributária, nomeadamente o Imposto de selo, pagou e paga os impostos municipais de imóveis e tem averbados os bens imóveis em seu nome, tendo sido respeitado o princípio da legalidade estabelecido no artigo 68.º do Código de Registo Predial. XV. Está, assim, em causa além da vontade da autora de sucessão corresponder à que está no testamento, de a mesma ser respeitada, de o testamento ser válido, e no que ao Réu/Recorrido diz respeito de se evitar a frustração de expectativas criadas, de direito adquiridos, da confiança e da estabilidade das situações jurídicas. XVI. Sendo que, in casu encontram-se preenchidos todos os requisitos cumulativos consagrados no n.º 2 do artigo 31.º do Código civil, referidos na motivação do acórdão recorrido, concretamente: “-o testamento não é válido à face da lei da nacionalidade do autor da sucessão; - foi celebrado na Suíça, local da última residência habitual da declarante; - o testamento, conforme reconhecido na decisão recorrida, é válido de acordo com a lei suíça; - a lei da residência habitual considera-se competente, o que aliás resulta dos pontos 10 a 14 dos factos provados e resulta bem assim da competente norma de conflitos da lei Suíça, nomeadamente dos artigos 33.º, 86.º, 90.º, n.º 1, por referência à Convenção de Haia de 5 de outubro de 1961, sobre os conflitos em matéria de forma das disposições testamentárias”. XVII. Verifica-se que o testamento efetuado pela falecida na Suíça é válido e eficaz em Portugal, devendo o seu enquadramento ser dado pela lei estrangeira – Suíça- e não pela lei portuguesa (cfr., nesse sentido Ac. do STJ, de 12 de maio de 2012, processo n.º 081219, in www.dgsi.pt cujo sumário está transcrito na motivação do recurso e de onde se salienta que -Se a ordem jurídica portuguesa reconhece eficácia e relevância em Portugal, a testamento feito por cidadão português em país estrangeiro, com observância da lei estrangeira, observados que sejam certos requisitos de forma, o enquadramento legal de um testamento feito por português em país estrangeiro, deve ser dado pela lei estrangeira e não pela lei portuguesa.”. [sublinhado nosso]”. XVIII. Não assiste razão ao Recorrente com o por si alegado no recurso, pois na situação em apreço deve ser tido em conta a lei do domicílio da autora da sucessão e tendo em conta a lei de residência habitual, o testamento manuscrito pela mesma configura um testamento holográfico, previsto e permitido pelo artigo 505.º do Código Civil Suíço e cujo reconhecimento se impõe em território nacional por força do estabelecido no artigo 31.º, n.º 2 do Código Civil. XIX. Acresce que, ao contrário do alegado pelo Recorrente a Convenção Relativa à Lei Uniforme sobre a Forma de Um Testamento Internacional não é aplicável na situação em apreço, atento o já referido de ser aplicável a Lei Suíça, mas também ao facto de a Suíça não ter aderido à referida Convenção. XX. Pelo exposto, a douta decisão proferida pelo Tribunal da Relação de Coimbra terá de se manter, pois in casu não é aplicável a lei da nacionalidade, mas antes a lei Suíça, ou seja, a lei do domicílio da autora da sucessão, por força do estabelecido no artigo 31.º, n.º 2 do Código Civil, sendo o testamento válido. XXI. Por tudo acima exposto, deve o presente recurso ser julgado improcedente e manter-se o acórdão recorrido”. 7. A Exma. Senhora Relatora do Tribunal da Relação de Coimbra proferiu despacho com o seguinte teor: “Por legal, tempestivo, ter sido interposto por quem tem legitimidade para tal e a decisão o admitir (artºs 629, nº1, 631, nº1, 638, nº1 e 671, nº1 do C.P.C.), admite-se o presente recurso de revista a subir nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo (artºs 675, nº1 e 676, nº1 do C.P.C.). Notifique e oportunamente subam os autos ao Supremo Tribunal de Justiça”. * Sendo o objecto do recurso delimitado pelas conclusões do recorrente (cfr. artigos 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do CPC), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (cfr. artigos 608.º, n.º 2, ex vi do artigo 663.º, n.º 2, do CPC), a questão a decidir, in casu, é a de saber se o testamento redigido por CC deve ser considerado válido no ordenamento jurídico português. * II. FUNDAMENTAÇÃO OS FACTOS São os seguintes os factos que vêm provados no Acórdão recorrido: 1. No dia ... de ... de 2013 faleceu CC, natural da freguesia de ..., concelho de ..., filha de FF e de GG. 2. CC faleceu no estado de solteira e na Suíça. 3. CC vivia na Suíça, no Cantão Alemão, há cerca de 30 anos e dominava a língua alemã, que aí utilizava habitualmente. 4. Antes do seu falecimento CC vivia, há mais de 10 anos, em condições análogas às dos cônjuges com o aqui réu. 5. CC e o réu tiveram como última morada do casal e desde .../.../2011, a cidade de ..., na Comuna de ..., onde residiram, em casa arrendada, no n.º 55 da Rua de .... 6. O A. é irmão de CC (alterado pelo Tribunal da Relação) 7. Pende junto do Cartório Notarial de HH, sito em ..., o inventário para partilha dos bens deixados por óbito de CC, com o n.º 5441/14, no qual figura como cabeça de casal o aqui autor, aí se mostrando relacionados os dois prédios urbanos sitos no concelho de ... e ..., respectivamente, e mais bem identificados a fls. 23 dos autos, cujo teor se considera aqui reproduzido para todos os efeitos. 8. CC subscreveu e assinou o documento denominado “Testament”, constante de fls. 485 dos autos, que se mostra redigido em língua alemã, com o seguinte teor: “Testamento – Eu CC, nascida a ........1961, de nacionalidade portuguesa, solteira, residente em ... 55, ... declaro por minha vontade expressa: Declaro como meu único e legitimo herdeiro o meu companheiro desde ........2008, BB, nascido a ........1957, de nacionalidade portuguesa, divorciado, residente em ... 55, .... Nomeio como meu testamenteiro o meu companheiro BB. ..., .../12/2013 CC.” 9. O documento acima identificado foi redigido na Suíça, na língua alemã. 10. No dia .../12/2013 foi realizado, pelo Cartório Notarial de ... e a pedido de CC, um esboço de testamento, aí tendo estado presentes, além da falecida e do Sr. Notário, mais duas pessoas. 11. Tendo em vista o processo sucessório e abertura de testamento o aqui réu apresentou, em ... de ... de 2013, o documento mencionado em 8. no Tribunal da Comarca de ..., na Suíça, processo sucessório este que correu termos sob o n.º EL 130314-C/U. 12. Neste processo sucessório foram declarados e mencionados o aqui autor e a sobrinha acima identificados em 6, nesse âmbito tendo sido notificados para os termos do processo, da sucessão testamentária e do documento referido em 8., com o esclarecimento que o aqui autor aí deduziu oposição. 13. No âmbito do referido processo sucessório foi emitido, por sentença datada de 16/03/2016, certificado sucessório a favor do aqui réu, conforme documento de fls. 111 e 112 e respectiva tradução de fls. 108 e 109, que aqui se considera integralmente reproduzido para todos os efeitos. 14. O réu liquidou os impostos e encargos agora mencionados. E são seguintes os factos considerados não provados no Acórdão recorrido: a) O corpo do texto do documento denominado testamento e referido em 8. dos factos provados corresponde ao corpo do esboço do testamento referido em 10. dos factos provados. b) O documento denominado testamento e referido em 8. dos factos provados não corresponde à livre vontade da falecida. c) O documento denominado testamento e referido em 8. dos factos provados foi realizado pelo Cartório Notarial de ..., no mesmo tendo intervindo 2 testemunhas. d) Em Dezembro de 2013 CC comunicou ao aqui autor, seu irmão, ter feito o testamento acima indicado a favor do réu, transmitindo-lhe esta sua última vontade. O DIREITO Recorrendo à doutrina e citando diversa jurisprudência, o Tribunal recorrido deu razão ao réu, decidindo que o testamento devia produzir efeitos em Portugal. Foi o seguinte o essencial da sua fundamentação: “Como considerou a decisão sob recurso, está em causa uma situação jurídica plurilocalizada, com elementos de conexão com duas ordens jurídicas – o ordenamento jurídico português e o ordenamento jurídico suíço – decorrente do facto de a autora da sucessão, de nacionalidade portuguesa, ter a sua última residência habitual na Suíça, local onde ocorreu o seu óbito e foi celebrado o documento denominado “testamento”. Nestes casos, em que uma determinada relação jurídica se acha em contacto com mais do que um ordenamento jurídico, coloca-se o problema da determinação da lei aplicável, a ser dirimida pelas normas de conflitos de leis, de acordo com os princípios do direito internacional privado, com o fim de definir a lei aplicável para decidir, desde logo, a questão da validade formal do testamento. Não oferece dúvida que ao caso em apreço não é aplicável o Regulamento (UE) nº 650/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 4 de julho de 2012, tendo em conta que este Regulamento entrou em vigor em 17 de agosto de 2015 e aplica-se às sucessões abertas nessa data ou em data posterior, ocorrendo a morte da de cujus em 2013. Não sendo aplicável legislação comunitária, nem existindo a respeito das sucessões convenção internacional que vincule os Estados português e suíço1, há que recorrer ao disposto nas normas de conflitos internas, em especial as previstas nos artºs 25 e 62 a 65 do C.C (…). (…) perante a lei da nacionalidade (artº 65, nº2 e 2223 do C.C.), este testamento haveria de se considerar como inválido e sem efeitos na ordem jurídica interna. Ocorre, no entanto, que, conforme refere o recorrente, a autora da sucessão tinha a sua residência habitual na Suíça, há mais de 30 anos, cfr. resulta dos pontos 2 a 5 da matéria de facto, local onde veio a falecer e onde foi celebrado o testamento em causa. Ora, a solução gravosa constante dos artsº 65, nº2 e 2223 do C.C. é mitigada pela possibilidade de aplicação do disposto no artº 31, nº2 do C.C., para os casos em que o testamento, não sendo celebrado pela forma solene é, ainda assim, válido pela aplicação da lei do local onde foi celebrado (…). Ora, nos presentes autos, verificam-se todos os pressupostos cumulativos contidos neste nº2, do artº 31 do C.C., demandando a aplicabilidade da lei da residência habitual. Vejamos: -o testamento não é válido à face da lei da nacionalidade do autor da sucessão; -foi celebrado na Suíça, local da última residência habitual da declarante; -o testamento, conforme reconhecido na decisão recorrida, é válido de acordo com a lei Suíça; -a lei da residência habitual considera-se competente, o que aliás resulta dos pontos 10 a 14 dos factos provados e resulta bem assim da competente norma de conflitos da lei Suíça2, nomeadamente os seus artºs 33, 86, nº1, 90, nº1, 93, nº1, por referência à Convenção de Haia de 5 de Outubro de 1961, sobre os conflitos de leis em matéria de forma das disposições testamentárias (artº 1)3. Acresce que a autora da sucessão terá equacionado a aplicabilidade da lei Suíça e procurado acautelar a validade das suas últimas disposições por morte, só assim se compreendendo que, em data anterior à feitura deste testamento manuscrito, tenha consultado um notário e que este tenha lavrado um esboço ou minuta do testamento. Desconhecendo-se o teor desta minuta ou esboço, o que para o caso pouco importa por não se poder considerar que esta consulta equivale à intervenção de um oficial dotado de fé pública na elaboração do testamento (manuscrito três dias depois), há que considerar que a autora da sucessão confiou na sua validade e procurou informar-se sobre a validade do acto segundo as leis do seu domicílio habitual. Não podemos, assim, concordar com a posição expressa na sentença recorrida, segundo a qual “o art. 31º n.º 2 do Código Civil configura uma norma geral e que, no confronto com norma especial de conflitos sobre a validade de negócios jurídicos em matéria sucessória, no caso a prevista no art. 65º do Código de Processo Civil, cede.” A lei pessoal define-se nos termos dos artºs 31 e segs. do C.C., integrando-se no estatuto pessoal, quer a lei da nacionalidade, quer a do domicílio habitual. Se é certo que a regra geral é a da lei da nacionalidade como lei pessoal, esta regra sofre um desvio nas situações delimitadas pelo nº2, do artº 31, do C.C., pela aplicação da lei da residência habitual do autor da sucessão aos negócios jurídicos do domínio do estatuto pessoal. Conforme assinala BAPTISTA MACHADO4 no “domínio do estatuto pessoal há duas conexões igualmente significativas: a da nacionalidade e a do domínio (residência habitual). Face à necessidade inarredável de optar por uma delas (…) o nosso legislador optou pela primeira”, o que não significa que tenha sido afastada ou destituída de toda a relevância, a da residência habitual. Simplesmente, nestes casos, perante situações jurídicas já constituídas do domínio do estatuto pessoal do declarante, o legislador optou por atribuir relevância à lei do domicílio, “reconhecendo validade aos actos e negócios jurídicos do estatuto pessoal que tenham sido validamente celebrados à luz da lex domicilii, quando esta se repute competente.” Ora, de acordo com a lei da residência habitual, o testamento manuscrito pela de cujus, configura um testamento holográfico, previsto e permitido pelo artº 505 do C.C. Suíço5, cujo reconhecimento se impõe em território nacional por via do disposto no artº 31, nº2, do C.C.”. O recorrente discorda, naturalmente, desta visão. Defende que é aplicável a lei portuguesa e que, à luz da lei portuguesa, o testamento deve ser considerado inválido. Sugere ainda que CC padecia de incapacidade acidental no momento da feitura do testamento pelo que há razões para suspeitar de que este reflicta a sua genuína vontade (cfr. conclusões 24 a 33). Não se ocupará tempo com esta última alegação, sendo claro que a decisão sobre a matéria de facto não a suporta. A questão a analisar prende-se, assim, como se viu, com a determinação da lei aplicável e dos seus resultados. Comece-se por elencar as premissas em que é possível assentar e que já haviam sido identificadas, a seu tempo, pelo Tribunal recorrido: 1.ª) o caso em apreço configura aquilo que se chama uma “situação plurilocalizada”, pois, tendo a falecida CC nacionalidade portuguesa e residindo na Suíça há cerca de trinta anos, onde faleceu e redigiu o testamento em causa nos autos (cfr. factos provados 1 a 3, 5 e 9), o caso tem “elementos de conexão”6 com mais do que um ordenamento jurídico; 2.ª) é inaplicável ao caso o Regulamento (UE) n.º 650/2012 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 4 de Julho de 2012, relativo à competência, à lei aplicável, ao reconhecimento e execução das decisões, e à aceitação e execução dos actos autênticos em matéria de sucessões e à criação de um Certificado Sucessório Europeu, uma vez que ele é aplicável apenas a partir de 17 de Agosto de 2015 (cfr. artigo 84.º do Regulamento) e a sucessão dos autos foi aberta antes, mais precisamente em 2013 (cfr. facto provado 1); 3.ª) tão-pouco existe convenção aplicável ao caso (os documentos em que se pensa de imediato são a Convenção de Haia de 5 de Outubro de 1961 sobre os conflitos de leis quanto à forma de disposições testamentárias e a Convenção de Haia de 1 de Agosto de 1989 sobre a lei aplicável às sucessões por morte, mas a primeira não foi ratificada por Portugal e a segunda não entrou em vigor7; a Convenção de que fala o recorrente – Convenção de Washington de 26 de Outubro de 1973 relativa à lei uniforme sobre a forma de um testamento internacional, aprovada para adesão de Portugal através do Decreto n.º 252/75, de 23 de Maio – também não tem utilidade, já que entre os Estados-parte não se encontra a Suíça)8; e 4.ª) resta, por conseguinte, recorrer às normas de conflitos do Direito português, designadamente, os artigos 62.º a 65.º do CC, que compõem a subsecção relativa à lei reguladora das sucessões. Dispõe-se no artigo 62.º do CC em matéria de lei competente: “A sucessão por morte é regulada pela lei pessoal do autor da sucessão ao tempo do falecimento deste, competindo-lhe também definir os poderes do administrador da herança e do executor testamentário”. Comentando as disposições contidas na norma do artigo 62.º do CC, dizem Pires de Lima e Antunes Varela: “Estas são, pois, as disposições aplicáveis aos portugueses, mesmo que residam ou faleçam em país estrangeiro, e mesmo em relação aos bem sitos no estrangeiro”9. Acrescentam os autores que a lei pessoal é a da nacionalidade do autor do testamento, o que significa, in casu, a lei portuguesa e tornando-se irrelevante o local da residência, o local da morte ou o local onde o testamento foi redigido seja a Suíça. Esta conclusão pressupõe a conjugação do disposto no artigo 62.º com o disposto no artigo 25.º do CC (âmbito da lei pessoal) e no artigo 31.º, n.º 1, do CC (determinação da lei pessoal), das quais resulta que as sucessões por morte são reguladas pela lei pessoal dos sujeitos e que a lei pessoal dos sujeitos é a da sua nacionalidade. Mas, regressando à lei reguladora das sucessões, deve atentar-se no artigo 65.º do CC, sobre a validade do testamento quanto à forma: “1. As disposições por morte, bem como a sua revogação ou modificação, serão válidas, quanto à forma, se corresponderem às prescrições da lei do lugar onde o acto for celebrado, ou às da lei pessoal do autor da herança, quer no momento da declaração, quer no momento da morte, ou ainda às prescrições da lei para que remeta a norma de conflitos da lei local. 2. Se, porém, a lei pessoal do autor da herança no momento da declaração exigir, sob pena de nulidade ou ineficácia, a observância de determinada forma, ainda que o acto seja praticado no estrangeiro, será a exigência respeitada”. Como é visível, consagra-se nesta norma uma solução de grande flexibilidade, tributária do favor negotii / favor testamenti, através da “técnica da conexão múltipla alternativa”10 11: o acto é válido, segundo o n.º 1 do artigo 65.º do CC, desde que observe a forma da lei do lugar onde o acto é praticado, a lei pessoal do testador no momento da declaração, a lei pessoal do testador no momento da morte ou a lei remetida pela norma de conflitos da lei local. A grande flexibilidade assegurada pela conexão alternativa sofre uma restrição por força do disposto no n.º 2 do artigo 65.º do CC, prevendo que quando a lei pessoal do testador exija, no momento da declaração, sob pena de invalidade / ineficácia, determinada forma ainda que o acto seja praticado no estrangeiro, não pode esta forma deixar de ser observada12. Segundo Baptista Machado, esta disposição, “ao mesmo tempo que é, sem dúvida, uma prescrição de forma, pretende também acautelar um adequado processo de formação da vontade que deve valer como a última”13. Trata-se, por outras palavras, de salvaguardar formalidades intrínsecas ao acto testamento, que, compreensivelmente, não podem ser preteridas ainda que o acto seja praticado no estrangeiro. Exige a lei portuguesa – que é, recorde-se, a lei pessoal de CC – a observância de alguma formalidade nestes termos? Como é sabido, a forma do testamento está regulada nos artigos 2204.º a 2223.º do CC. As formas exigidas variam consoante os tipos de testamento (comuns ou especiais). Os tipos comuns são o testamento público e o testamento cerrado (cfr. artigo 2204.º do CC). Tratando-se de um testamento público, ele deve ser escrito pelo notário no seu livro de notas (cfr. artigo 2205.º do CC); tratando-se de um testamento cerrado, ele é, em princípio, escrito e assinado pelo testador mas deve ser aprovado por notário nos termos da lei do notariado, sob pena de nulidade do testamento (cfr. artigo 2206.º, n.ºs 1, 4 e 5, do CC). Os tipos especiais respeitam ao testamento de militares e pessoas equiparadas, ao testamento feito a bordo de navio e outras situações (cfr. artigos 2210.º e s. do CC) e não relevam para o caso. Mas não são estas as formalidades visadas pelo n.º 2 do artigo 65.º do CC quando se refere a “determinada forma, ainda que o acto seja praticado no estrangeiro”. A norma visa, sim, a formalidade prevista no artigo 2223.º do CC, que regula, justamente, a hipótese de testamento feito por português em país estrangeiro, dispondo: “[o] testamento feito por cidadão português em país estrangeiro com observância da lei estrangeira competente só produz efeitos em Portugal se tiver sido observada uma forma solene na sua feitura ou aprovação”. Com interesse para a associação que deve fazer-se entre o artigo 65.º, n.º 2, do CC e o artigo 2223.º do CC veja-se o recente Acórdão do Supremo do Tribunal de Justiça de 27.02.2024 (Proc. 6431/13.9TBOER.L1.S3), onde se aprecia uma situação “simétrica” da dos autos (um sujeito espanhol que fez o seu testamento em Portugal) e em cujo sumário se afirma: “I - Para os efeitos do n.º 2 do art. 65.º do CC não é toda e qualquer exigência relativa à forma, que se contenha na lei pessoal do autor da herança, que deve ser respeitada no momento da declaração, mas apenas aquelas que a lei pessoal do autor manda aplicar ainda que o acto seja praticado no estrangeiro; II - Assim, para o caso de um espanhol que faça o testamento em Portugal, só terá relevância, nos termos do referido n.º 2 do art. 65.º do CC, uma norma do ordenamento jurídico espanhol que, à semelhança do art. 2223.º do CC português, afirme a sua vontade de aplicação ainda que o acto seja praticado no estrangeiro”. Na doutrina, Dário Moura Vicente confirma esta relação entre as normas, dizendo de forma lapidar: “Encontra-se no 2223.º uma norma do tipo das que são visadas pelo 65.º/2”14. Mas que “forma solene” é aquela de que se fala no artigo 2223.º do CC? No Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12 de Maio de 1992 (Proc. 081219) entendeu-se que para cumprir o artigo 2223.º do CC basta que seja utilizada a forma escrita. Diz-se aí: “esta expressão ["forma solene" na feitura do testamento] deve significar o mesmo que forma escrita, ficando apenas excluída a eficácia do testamento puramente nuncupativo, ou seja oral (…)”. O testamento de CC é aquilo que se chama um “testamento hológrafo” (integralmente escrito e assinado pelo testador) (cfr. facto provado 8), pelo que, se fosse esta a tese a seguir, seria válido em Portugal, ao abrigo do artigo 65.º, n.º 1, do CC. A verdade é que esta não é uma questão pacífica15. Em Acórdãos posteriores, designadamente, os Acórdãos de 9.01.1996 (Proc. 087703), de 12.10.2006 (Proc. 06B325), de 18.06.2013 (Proc. 832/07.9TBVVD.L2.S2), de 27.06.2019 (Proc. 2430/11.3TBBCLG1.S2), o Supremo Tribunal de Justiça parece adoptar uma posição diferente, no sentido de que é preciso algo mais do que a forma escrita para o testamento ser válido em Portugal, associando-se a “forma solene” do artigo 2223.º do CC à necessidade de intervenção de uma autoridade dotada de fé pública. Aplicando esta segunda tese ao caso em apreço, seria de concluir, prima facie, que o testamento não era válido em Portugal16. Qual é posição que deve adoptar-se, afinal? Em comentário ao Acórdão de 12 de Maio de 1992, Guilherme de Oliveira criticou a tese da suficiência da redução a escrito, com fundamentos convincentes, relacionados com a letra, o espírito e a história do preceito e socorrendo-se ainda do argumento do Direito comparado. Diz, precisamente, o autor: 1. Dos problemas considerados pelo presente acórdão, o mais difícil de resolver era o da interpretação do artigo 2223.º do Código Civil. Ainda não se encontrou uma solução, inequívoca para a questão de saber quais são as exigências formais que a lei impõe aos cidadãos portugueses que queiram fazer testamento no estrangeiro, de acordo com a lei local. O artigo 1961.° do Código de Seabra aceitava que os testamentos feitos no âmbito de uma lei estrangeira tivessem validade no reino português se tivessem sido «formulados autenticamente». Esta expressão foi discutida, entre outros, por José Tavares, J. Alberto dos Reis, Cunha Gonçalves e Ferrer Correia, sem que houvesse entendimento pacífico. Era sobretudo difícil saber se os requisitos que caracterizavam a observância de uma «forma autêntica» deviam ser definidos pela lei do lugar da celebração do. acto ou pela lei portuguesa. O Código de 1966 ocupou-se do problema nos artigos 65.° e 2223.°, mas sem ter logrado terminar toda a discussão. -O artigo 2223.° condiciona a eficácia do testamento feito por um português no estrangeiro; e de acordo com a lei estrangeira, à circunstância de ter sido observada uma forma solene na sua feitura ou aprovação». O que é uma «forma solene»? Como é que se cumpre uma forma solene na feitura do testamento ou na sua aprovação? Tentando esclarecer o sentido do preceito, Baptista Machado, afirmou: — «Não é líquido o conceito de «forma solene», mas parece que deve significar o mesmo que forma escrita; pelo que só ficaria excluída, portanto, a eficácia do testamento puramente nuncupativo». Foi atribuída uma opinião semelhante, embora acompanhada das maiores dúvidas, a Isabel Magalhães Collaço). 2. Os termos da discussão no direito anterior e as dúvidas que ainda se manifestam autorizam-me a supor que a solução pode ser diversa; Talvez não baste reduzir o testamento a escrito, para que se, respeite a exigência do artigo 2223.°. O nosso direito afastou-se do regime espanhol, francês e italiano, no ponto em que se excluiu o testamento ológrafo, que é simplesmente escrito e assinado pelo testador; esta particularidade mostra um empenho excepcional do nosso direito na garantia de que o testamento se elabore de um modo mais controlado pelo-notário, seguindo um formalismo mais exigente, com as garantias que dal resultam. Também pode ser verdade que, ao aceitar a aplicação de uma lei estrangeira, podia ser razoável diminuir a exigência que se aplica internamente, aceitando um formalismo menos pesado, como a simples forma: escrita. Mas, tendo esta intenção, seria natural dizer-se claramente que se impunha uma forma escrita; porque se insistiu na exigência obscura de uma «forma solene»? Por outro lado, ao dizer-se que a «forma solene» equivale a forma escrita acaba por nem se garantir que o testamento seja reduzido a escrito; de facto, como a regra do artigo 2223.° fica igualmente respeitada com o uso de «forma solene» ou na «feitura» ou na «aprovação», teria de admitir-se que a vontade fosse expressa oralmente perante uma entidade (publica?) que fizesse uma aprovação relatada num simples escrito —mas não creio que está aplicação da doutrina que referi fosse aceite pelos seus defensores. Por fim, não terá valor a substituição da fórmula de Seabra («formulados autenticamente») pela expressão actual que menciona separadamente a «feitura» e a «aprovação» ? Não significará esta mudança que o legislador quis manter, embora com adaptações resultantes da aplicação da lei estrangeira, a exigência do respeito cie uma das nossas formas comuns de testar? Inclino-me para pensar que o legislador ditou o artigo 2223.° não apenas para evitar a eficácia de algum raro testamento oral, mas sim para impor sistematicamente a exigência portuguesa da utilização de forma escrita com a intervenção de um notário ou oficial equivalente. O que teria o resultado de limitar a eficácia dos testamentos àqueles que tivessem sido «feitos» por um oficial público ou «aprovados» por ele. Certamente que esta «feitura» ou esta «aprovação» seguiriam os trâmites concretos definidos pela lei estrangeira aplicável -— a lei do lugar. Mas sempre poderia reconhecer-se, no testamento cuja eficácia se reconhecia, o cumprimento dos requisitos básicos cuja observância se pode esperar num testamento público ou num testamento cerrado. Pode retorquir-se que esta maneira de entender o artigo 2223.° vai inutilizar, por exemplo, testamentos ológrafos feitos em países vizinhos, onde os cidadãos portugueses se encontram radicados, sendo certo que a ineficácia dós testamentos pode ser compreensivelmente ignorada pelo testador; e assim se vai beneficiar os sucessores legítimos contra uma expressão da vontade que pode, em cada caso, não oferecer qualquer dúvida, Em contrário, poderá dizer-se que esta exigência não é maior do que a que se faz, tradicionalmente, aos nacionais residentes em Portugal”17. Ponderados todos argumentos, torna-se difícil aceitar que a exigência de “forma solene” signifique “forma escrita”. Dir-se-á que não é seguro que o termo “solene” se preste a tal interpretação e que não é facilmente concebível que o fim da norma seja tão irrisório (a exclusão dos testamentos nuncupativos ou orais). A exigência de “forma solene” impõe, em suma, um mínimo de solenidade, o que não parece satisfazer-se com a mera redução a escrito do testamento. Mas ainda que, aderindo à visão de Baptista Machado, se reconduzisse a “forma solene” referida no artigo 2223.º do CC, a uma redução a escrito do testamento18, haveria que reconhecer que perpassa claramente do regime português a exigência de determinada formalidade / de determinado procedimento sem o qual “um testamento não é um testamento”. Não se trata de impor os procedimentos específicos previstos nos artigos 2205.º e 2206.º do CC (no caso contrário, o artigo 65.º do CC deixaria de contemplar uma alternativa à aplicação da lei portuguesa), mas de exigir um controlo mínimo por parte de uma autoridade pública (notário ou de autoridade equiparada) com vista a garantir a autenticidade do testamento. Assim, mesmo que se recuse que a intervenção do notário ou de autoridade equiparada na elaboração ou na aprovação do testamento consubstancia a forma solene exigida nos termos do artigo 2223.º do CC e se veja nisso uma verdadeira formalidade ad substantiam que se impõe, em última análise, por força do artigo 65.º, n.º 2, do CC19, o testamento de CC deve ser considerado inválido à luz da lei portuguesa. Chegando a esta mesma conclusão, o Tribunal recorrido convoca, todavia, o artigo 31.º, n.º 2, do CC e, em contraste com o Tribunal de 1.ª instância (que concluiu que, sendo uma norma de conflitos geral, ele não podia prevalecer sobre a norma especial prevista no artigo 65.º do CC), fundou nele a possibilidade de reconhecimento do testamento em Portugal. A norma em causa é do seguinte teor: “São, porém, reconhecidos em Portugal os negócios jurídicos celebrados no país da residência habitual do declarante, em conformidade com a lei desse país, desde que esta se considere competente”. O artigo 31.º, n.º 2, do CC atenua as consequências do preceituado no n.º 1, ou seja, as consequências da regra da coincidência entre a lei pessoal e a lei da nacionalidade, estabelecendo, como diz Guilherme de Oliveira, “uma conexão relevante suplementar, para garantir a validade dos negócios jurídicos; é um recurso mais que o nosso direito estabelece para salvar da invalidade um negócio jurídico, que não possa subsistir de outro modo” 20, assim “abrindo a porta” a que negócios celebrados na residência habitual do declarante possam, apesar de tudo, vir a ser reconhecidos em Portugal. O reconhecimento é útil, evidentemente, nos casos em que o acto em causa seja inválido segundo a lei portuguesa, o que converte a invalidade do acto segundo a lei portuguesa numa espécie de pressuposto geral da norma e a norma num recurso subsidiário em hipóteses do tipo. A aplicação da norma depende de três requisitos: (1) que o país da celebração do negócio seja o país de residência habitual do declarante; (2) que o negócio seja celebrado em conformidade com a lei material desse país; e (3) que a lei desse país se considere competente. Manifestamente, a ratio legis do n.º 2 do artigo 31.º do CC é o aproveitamento dos actos (favor negotii)21, considerando o legislador português que tal aproveitamento se justifica quando estejam reunidas as circunstâncias atrás referidas, destacando-se a conformidade do acto com a lei da residência habitual. Compreende-se bem a função da norma através das considerações de Baptista Machado: “Há no nosso Código uma norma da qual se pode dizer que se inspira na ideia do reconhecimento dos direitos adquiridos ou, pelo menos, na ideia do favor negotii, em matéria de estatuto pessoal; é a do n.º 2 do art. 31.º (…). No domínio do estatuto pessoal, há duas conexões igualmente significativas e internacionalmente legítimas: a da nacionalidade e a do domicílio (residência habitual). Face à necessidade inadiável de optar por uma delas, para efeito da resolução dos conflitos (quando os haja), o nosso legislador optou pela primeira. Assim, a conexão da residência habitual, apesar de igualmente importante e legítima, foi deixada na sombra, apenas lhe sendo conferida relevância a título subsidiário em várias disposições do nosso Código. Mas, como já sabemos, o facto de, para efeito das regras de conflitos, se ter de optar por uma das conexões, não significa de modo algum que as outras, como ligações que são entre os factos a regular e a esfera de eficácia das leis interessadas e susceptíveis de juridicamente os «impregnarem», ficam destituídas de toda a relevância. Muito menos será assim quando a conexão preterida é uma conexão tão importante quanto a da residência habitual. Pois bem, o legislador terá pensado que, mesmo nos casos em que não é possível reconhecer a esta conexão uma relevância directa, dada a preferência pela nacionalidade, lhe poderia ainda assim conferir uma relevância indirecta – no plano das situações a reconhecer no Estado do foro (que não no plano das situações a constituir aí) -, reconhecendo validade aos actos e negócios jurídicos do estatuto pessoal que tenham sido validamente celebrados à sombra da lex domicilii, quando esta se repute competente Do exposto parece dever concluir-se que o nosso legislador, no referido plano das situações a reconhecer (já constituídas) e pelo que respeita à validade dos mencionados actos e negócios jurídicos, permite que, em certas circunstâncias (pelo menos se o acto ou negócio foi celebrado no Estado do domicílio), a conexão «residência habitual» funcione alternativamente com a conexão «nacionalidade»: o negócio será reconhecido por válido desde que seja conforme, quer à lei da nacionalidade, quer à lei da residência habitual”22. No caso em apreço, todos os requisitos do artigo 31.º, n.º 2, do CC se verificam. Se não veja-se. Primeiro, o país da celebração do negócio jurídico unilateral (a Suíça) é o país de residência habitual da testadora (cfr. factos provados 3, 5 e 9). Depois, a celebração do negócio é conforme à lei suíça. Como se viu, o testamento é hológrafo, ou seja, inteiramente escrito, datado e assinado por CC (cfr. facto provado 8), o que na Suíça é perfeitamente possível, ou seja, corresponde a uma maneira válida de fazer um testamento. O artigo 498.º do Code Civil suíço dispõe: “Les testaments peuvent être faits soit par acte public, soit dans la forme olographe, soit dans la forme orale (“Os testamentos podem ser feitos por escritura pública, em forma holográfica ou oralmente”). E o artigo 505.º, n.º 1, do Code Civil suíço tem o seguinte teor: “Le testament olographe est écrit en entier, daté et signé de la main du testateur; la date consiste dans la mention de l’année, du mois et du jour où l’acte a été dressé” (“O testamento hológrafo é integralmente escrito, datado e assinado pelo testador; a data consiste na indicação do ano, do mês e do dia em que o acto foi praticado”). Finalmente, a lei suíça considera-se competente. São especialmente relevantes os factos provados 11 a 13, dos quais decorre que foi instaurado e correu termos nos tribunais suíços um processo sucessório com base no testamento de CC, não havendo notícia de algum problema de competência, que desembocou na emissão, por sentença, de certificado sucessório a favor do réu. Veja-se ainda o que se dispõe na Loi fédérale sur le droit international privé23. De acordo com o seu artigo 1.º, n.º 1, esta lei regula, em matéria internacional, as competências dos tribunais e das autoridades administrativas suíças e a lei aplicável. Destacam-se o artigo 33.º, n.º 1 (princípio ou regra da competência dos tribunais suíços do domicílio em matéria do direito das pessoas) e o artigo 90.º, n.º 1 (princípio ou regra da aplicabilidade da lei suíça à sucessão das pessoas com último domicílio na Suíça). Em conclusão, o caso preenche as condições exigidas para a aplicação subsidiária da lei suíça, ao abrigo do artigo 31.º, n.º 2, do CC e, consequentemente, o testamento de CC pode e deve ser reconhecido em Portugal. Através da aplicação desta norma conseguem-se satisfazer as necessidades de tutela de quem agiu de acordo com a lei do domicílio, confiando que ela se aplicava, como claramente acontece no caso dos autos. São oportunas as palavras de Dário Moura Vicente: “Por força do 31.º/2, são reconhecidos em Portugal, em certas condições, negócios celebrados no país da residência habitual do declarante, em conformidade com a lei local, ainda que sejam inválidos ou ineficazes segundo a lei da nacionalidade. Visa-se deste modo tutelar a confiança do declarante nas suas validade e eficácia. Mais concretamente, teve-se em mente, como revelam os trabalhos preparatórios, conceder uma adequada proteção aos emigrante portugueses, relativamente aos quais se entendeu não ser razoável exigir, quando pratiquem um ato do estado civil ou uma disposição de última vontade no país estrangeiro onde se encontram radicados, o cumprimento do disposto no Direito português, nem ferir de nulidade esses atos quando sejam válidos perante a lei do domicílio”24. Este caso ilustra bem que a tutela assim concedida aos interesses do autor do acto não é imerecida. Como (bem) chama a atenção o Tribunal a quo, “a autora da sucessão terá equacionado a aplicabilidade da lei Suíça e procurado acautelar a validade das suas últimas disposições por morte, só assim se compreendendo que, em data anterior à feitura deste testamento manuscrito, tenha consultado um notário e que este tenha lavrado um esboço ou minuta do testamento. Desconhecendo-se o teor desta minuta ou esboço, o que para o caso pouco importa por não se poder considerar que esta consulta equivale à intervenção de um oficial dotado de fé pública na elaboração do testamento (manuscrito três dias depois), há que considerar que a autora da sucessão confiou na sua validade e procurou informar-se sobre a validade do acto segundo as leis do seu domicílio habitual”. Ao contrário do que possa parecer, a aplicação do n.º 2 do artigo 31.º do CC não importa um esvaziamento funcional do disposto no n.º 2 do artigo 65.º do CC. Este continua a ter aplicação quando não ocorram as circunstâncias impostas pelo artigo 31.º, n.º 2, do CC, caso em que já não se pode dizer que existem expectativas dignas de tutela jurídica ou que justifiquem o desvio à regra do n.º 1. * III. DECISÃO Pelo exposto, nega-se provimento à revista e confirma-se o Acórdão recorrido. * Custas pelo recorrente. * Lisboa, 28 de Maio de 2024 Catarina Serra (relatora) Maria da Graça Trigo Emídio Santos ______ 1. Nomeadamente a Convenção de Haia de 5 de Outubro de 1961, sobre os conflitos de leis em matéria de forma das disposições testamentárias, que apesar de assinada por Portugal não foi ratificada nem aprovada (artº 8, nº2 da Constituição), tendo-o sido pela Suíça. 2. Loi fédérale sur le droit international privé (LDIP) du 18 décembre 1987, disponível no endereço https://fedlex.data.admin.ch/filestore/fedlex.data.admin.ch/eli/cc/1988/1776_1776_1776/20220701/fr/pdf-a/fedlex-data-admin-ch-eli-cc-1988-1776_1776_1776-20220701-fr-pdf-a-3.pdf 3. Disponível in https://www.hcch.net/pt/instruments/conventions/full-text/?cid=40. 4. MACHADO, João Baptista, Liçoes de Direito Internacional Privado, ob. cit., págs. 175 e 176. 5. Disponível na sua versão inglesa em https://fedlex.data.admin.ch/filestore/fedlex.data.admin.ch/eli/cc/24/233_245_233/20220701/en/pdf-a/fedlex-data-admin-ch-eli-cc-24-233_245_233-20220701-en-pdf-a-2.pdf; 6. Segundo Ferrer Correia (Lições de Direito Internacional Privado, Universidade de Coimbra, 1973, p. 221) elementos de conexão são “elementos que estabelecem a ligação dos factos ou situações plurilocalizadas com as leis de diferentes Estados”. 7. Sobre as convenções relevantes veja-se o Parecer do Comité Económico e Social Europeu sobre o “Livro Verde sobre as sucessões e os testamentos”, de 26 de Outubro de 2005 (https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/HTML/?uri=CELEX%3A52005AE1242). 8. https://www.unidroit.org/fr/instruments/testaments/etat/. 9. Cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, volume I, Coimbra, Coimbra Editora, 1987 (4.ª edição), p. 99. 10. A expressão é usada por Baptista Machado [Lições de Direito Internacional Privado, Coimbra, Almedina, 1985 (3.ª edição), p. 450], mas é comum, sendo utilizada, entre outros, por Maria João Matias Fernandes, “Artigo 65.º”, in: VVAA, Comentário ao Código Civil – Parte Geral, Lisboa, Universidade Católica Editora, 2014, pp. 159-160. 11. Dá conta da semelhança entre as normas dos artigos 65.º e 36.º Ferrer Correia (Lições de Direito Internacional Privado, cit., p. 224) dizendo que o primeiro estabelece doutrina análoga à do artigo 36.º, “mas em termos que ainda acentuam mais fortemente a ideia de favor negotii”. 12. Numa fórmula sucinta, próxima do que afirmam também Pires de Lima e Antunes Varela (Código Civil Anotado, volume I, cit., p. 101) dir-se-á que o n.º 2 funciona como um limite à regra do n.º 1. 13. Cfr. Baptista Machado, Lições de Direito Internacional Privado, cit., p. 451. 14. Dário Moura Vicente, “Artigo 31.º”, in: António Menezes Cordeiro, Código Civil Comentado – Parte Geral, Coimbra, Almedina, 2020, p. 237. 15. Para uma síntese da discussão que se gerou na doutrina, em que participaram reputados juristas como Baptista Machado e Marques dos Santos, por um lado, e Guilherme de Oliveira, Antunes Varela e Lima Pinheiro, por outro, veja-se Dário Moura Vicente, “Artigo 31.º”, cit., pp. 237-238. 16. Saliente-se que o notário interveio, sim, em momento anterior à feitura do testamento, num “esboço de testamento” (cfr. facto provado 10). 17. Cfr. Guilherme de Oliveira, “Forma exigida para a validade do testamento feito por cidadão português em país estrangeiro. Anotação ao acórdão do STJ de 12.05.1992, in: Revista de Legislação e de Jurisprudência, 1993, n.º 3823, pp. 314-315. 18. Diz Baptista Machado (Lições de Direito Internacional Privado, cit., p. 451): “Não é líquido o conceito de «forma solene», mas parece que deve significar o mesmo que forma escrita; pelo que só ficaria excluída, portanto, a eficácia do testamento puramente nuncupativo”. 19. Veja-se os termos em que discorre Baptista Machado (Lições de Direito Internacional Privado, cit., pp. 355-356) a propósito da ressalva contida na 2.ª parte do n.º 1 do artigo 36.º do CC (forma do negócio), que é homóloga à do n.º 2 do artigo 65.º. 20. Cfr. Guilherme de Oliveira, “Forma exigida para a validade do testamento feito por cidadão português em país estrangeiro. Anotação ao acórdão do STJ de 12.05.1992, cit., p. 316. 21. Cfr., neste sentido, Florbela Almeida Pires, “Artigo 31.º”, in: VVAA, Comentário ao Código Civil – Parte Geral, Lisboa, Universidade Católica Editora, 2014, p. 104. 22. Cfr. Baptista Machado, Lições de Direito Internacional Privado, cit., pp. 175-176 (sublinhados do autor). 23. Loi fédérale sur le droit international privé (LDIP) du 18 décembre 1987 (https://fedlex.data.admin.ch/filestore/fedlex.data.admin.ch/eli/cc/1988/1776_1776_1776/20220701/fr/pdf-a/fedlex-data-admin-ch-eli-cc-1988-1776_1776_1776-20220701-fr-pdf-a-3.pdf). |