Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
557/09.0GEVNG.P3.S1
Nº Convencional: 3.ª SECÇÃO
Relator: MANUEL AUGUSTO DE MATOS
Descritores: HOMICÍDIO
COMPREENSÍVEL EMOÇÃO VIOLENTA
DESESPERO
ATENUAÇÃO ESPECIAL DA PENA
MEDIDA CONCRETA DA PENA
SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA
Data do Acordão: 06/28/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO PARCIALMENTE.
Área Temática:
DIREITO PENAL – FACTO / PRESSUPOSTOS DA PUNIÇÃO / CONSEQUÊNCIA JURÍDICA DO FACTO / SUSPENSÃO DA EXECUÇÃO DA PENA DE PRISÃO / ESCOLHA E MEDIDA DA PENA – PARTE ESPECIAL / CRIMES CONTRA AS PESSOAS / CRIMES CONTRA A VIDA / HOMICÍDIO PRIVILEGIADO.
DIREITO PROCESSUAL PENAL – RECURSOS / RECURSOS ORDINÁRIOS / MOTIVAÇÃO DO RECURSO.
Doutrina:
-AMADEU FERREIRA, Homicídio Privilegiado, Almedina, 1996, 13, 63, 68 a 71 e 96;
-AMÉRICO TAIPA DE CARVALHO, Direito Penal, Parte Geral, 2.ª Edição, Coimbra Editora, 65 e 66;
-AUGUSTO SILVA DIAS, Crimes contra a vida e a integridade física, 2.ª Edição, revista e actualizada, AAFDL, 2007, 37, 38, 39 e 44;
-FERNANDA PALMA, Direito Penal, Parte Especial, Crimes contra as Pessoas, AAFDL, Lisboa, 1983;
-FERNANDO SILVA, Direito Penal Especial, Crimes Contra as Pessoas, 2005, 91, 94 E 113;
-FIGUEIREDO DIAS, Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, Coimbra Editora, 1999, 48, 50, 51 e 52 ; Parecer na Colectânea de Jurisprudência 1987, Tomo IV, 55 ; Penal Português, As Consequências Jurídicas Do Crime, Editorial de Notícias, 1993, 227 e ss., 231, 306;
-FREDERICO LACERDA COSTA PINTO, Crime de Homicídio Privilegiado, Acórdão da Relação de Évora de 4 de Fevereiro de 1997, RPCC, 1998, 288;
-GERMANO MARQUES DA SILVA, Direito Penal Português, Parte Geral, III, Teoria das penas e medidas de segurança, 2.ª Edição, Verbo, Lisboa, 2008, 163;
-JOÃO CURADO NEVES, O Homicídio Privilegiado na Doutrina e na Jurisprudência do STJ, RPCC, 2001, 11 e 186;
-LEAL HENRIQUES, SIMAS SANTOS, Código Penal Anotado, II, 132;
-M. MIGUEZ GARCIA e J. M. CASTELA RIO, Código Penal, Parte Geral e Especial, 2015, 2.ª Edição, Almedina, 395, 541 e 546 ; ACTAS, 1965, 129 e 394;
-MARIA JOÃO ANTUNES, Consequências Jurídicas do Crime, Coimbra Editora, 44;
-PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, Comentário do Código Penal, 3.ª Edição Actualizada, Universidade Católica Editora, 305, 367, 523 ; 2.ª Edição, 409;
-SOUSA E BRITO, Um caso de homicídio privilegiado, Direito Penal II, AAFDL, 1984, 64;
-TERESA QUINTELA DE BRITO, O Homicídio Privilegiado: Algumas Notas, Direito Penal, Parte Especial: Lições, Estudos e Casos, Coimbra Editora, 2007, 316 e ss., 333 e 923;
-TERESA SERRA, Homicídios em Série, Homicídios em Série, Jornadas de Direito Criminal, Revisão do Código Penal, Alterações ao Sistema Sancionatório e Parte Especial, CEJ, 1998, 143, 158, 159 e 160.
Legislação Nacional:
CÓDIGO PENAL (CP): - ARTIGOS 17.º, 20.º, 40.º, N.º 1, 50.º, N.º 1, 71.º, N.º 2, 72.º, N.ºS 1, 2, ALÍNEA D) E 3, 73.º, N.ºS 1, ALÍNEAS A) E B) E 2, 131.º E 133.º.
CÓDIGO PENAL DE 1852/1886: - ARTIGO 370.º.
CÓDIGO DE PROCESSO PENAL (CPP): - ARTIGO 412.º, N.º 1.
CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGOS 130.º E 608.º, N.º 2.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- DE 20-11-1998, PROCESSO N.º 645/98;
- DE 29-03-2000, PROCESSO N.º 27/00;
- DE 28-08-2005, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 03-10-2007, PROCESSO N.º 2791/07;
- DE 17-01-2008, PROCESSO N.º 607/07;
- DE 29-10-2008, PROCESSO N.º 08P1309, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 17-09-2009, PROCESSO N.º 434/09.5YFLSB;
- DE 03-03-2010, PROCESSO N.º 242/08.0GHSTC.S1;
- DE 14-07-2010, IN WWW.DGSI.PT;
- DE 09-09-2010, PROCESSO N.º 1795/07.6GISNT.L1.S1;
- DE 13-10-2010, PROCESSO N.º 200/06.0JAAVR.C1.S1;
- DE 15-12-2011, PROCESSO N.º 706/10.6PHLSB.S1;
- DE 20-06-2012, PROCESSO N.º 416/10.4JACBR.C1.S1;
- DE 18-10-2012, PROCESSO N.º 32/11.3JALRA.C1.S1, IN WWW.STJ.PT;
- DE 29-05-2013, PROCESSO N.º 1264/11.0PCSTB.E1.S1;
- DE 05-06-2014, PROCESSO N.º 259/09.8JAPTM.E1.S1;
- DE 09-07-2014, PROCESSO N.º 38/05.1SVLSB.L2.S1;
- DE 13-11-2014, PROCESSO N.º 74/14.7YFLSB;
- DE 05-02-2015, PROCESSO N.º 160/13.0GBTMR.C1.S1;
- DE 12-03-2015, PROCESSO N.º 40/11.4JAAVR.C2.S1;
- DE 09-04-2015, PROCESSO N.º 353/13.0PAPNI.L1.S1;
- DE 27-05-2015, PROCESSO N.º 445/12.3PBEVR.E1.S1;
- DE 24-02-2016, PROCESSO N.º 1825/08.4PBSXL.E1.S1;
- DE 09-03-2016, PROCESSO N.º 26/14.7GAAMR;
- DE 31-03-2016, PROCESSO N.º 221/14.9JAFAR.E1.S1;
- DE 07-09-2016, PROCESSO N.º 405/14.0JACBR.C1.
Sumário :


I - A exigibilidade diminuída constitui o fundamento do tipo privilegiado previsto no art. 133.º, do CP é comum a todas as situações aí previstas – “compreensível emoção violenta”, “compaixão”, “desespero” e “motivo de relevante valor social ou moral”.
II - A exigibilidade diminuída corresponde à “diminuição sensível da culpa” referida no art. 133.º, do CP. Uma vez que, para que possa estar em causa a prática por um agente do crime previsto no art. 133.º, do CP, este tem, previamente, que ser imputável (art. 20.º, do CP) e ter consciência da ilicitude (art. 17.º, do CP), a “diminuição sensível da culpa” tem de corresponder à sensibilidade que o homem normalmente fiel ao direito teria sentido ao conflito espiritual criado ao agente e que o afectou na sua decisão, no sentido de ter tolhido o normal cumprimento das suas intenções.
III - A “diminuição sensível da culpa” tem, assim, de se fundar numa situação ao mesmo tempo endógena e exógena ao agente: endógena na medida em que tem de corresponder a uma emoção sentida pelo mesmo, e exógena no sentido de que tem de ter um suporte externo e objectivo para ser atendível.
IV - A “diminuição sensível da culpa” distingue-se da “compreensibilidade” exigida para a “emoção violenta”: esta corresponde à sensibilidade do homem normalmente fiel ao direito à situação externa geradora da “emoção violenta”; aquela corresponde à sensibilidade do mesmo homem normalmente fiel ao direito ao conflito espiritual criado ao agente e que o afectou na sua decisão.
V - Em ambas as situações, isto é, tanto no que diz respeito à “compreensibilidade”, como no que diz respeito à “diminuição sensível da culpa”, é ao homem médio, colocado na situação do agente, que tem de se atender para se verificar da existência, no caso, das mesmas.
VI - No caso não existe um suporte ou uma realidade externa e objectiva que torne uma eventual emoção violenta compreensível à luz do homem médio: as doenças de que o filho da arguida padecia eram doenças comuns do foro respiratório, sendo que a arguida dispunha de um quadro familiar normal (de que aliás continua a dispor), levando uma vida funcional nas demais valências, designadamente profissional, isso mesmo resultando dos factos dados como provados quanto à sua situação económico-social. Ou seja, apenas para a arguida tal resolução criminosa terá sido compreensível, atento o seu quadro depressivo.
VII – Estando provado que a arguida se encontrava perturbada psiquicamente e se encontrava em estado depressivo e de grande fragilidade emocional, apresentando sintomas de depressão nervosa, o que a levava a valorizar demasiado os problemas de saúde do filho, que se traduziam em doenças comuns do foro respiratório, acompanhadas de febre, tendo, por tal motivo, resolvido matá-lo e suicidar-se, considera-se existir um estado de desespero. Porém, o estado de desespero que dominou a arguida e que a levou a tomar a resolução criminosa que tomou não é de molde a diminuir sensivelmente a culpa, uma vez que inexiste uma situação exógena ao agente que torne atendível o estado de desespero da arguida.
VIII – O facto de se afastar a integração nos elementos constitutivos do crime de homicídio privilegiado não afasta a consideração sobre uma eventual aplicação do regime de atenuação especial. O instituto da atenuação especial da pena tem em vista casos especiais expressamente previstos na lei, bem como, em geral, situações em que ocorrem circunstâncias anteriores, contemporâneas ou posteriores ao crime que diminuem de forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade de pena, conforme dispõe o art. 72.º, n.º 1, do CP.
IX - Não obstante em termos de culpa e para efeitos do crime de homicídio privilegiado, não ser de atender ao facto da arguida, aquando do cometimento do crime, se encontrar perturbada psiquicamente em estado depressivo e de grande fragilidade emocional, tal circunstancialismo fáctico e condicionalismo que rodeou a prática do crime não podem ser ignorados, relevando para a constatação de uma diminuição acentuada da culpa no crime de homicídio executado pela arguida para efeitos da aplicação da atenuação especial.
X - A arguida apresenta uma inserção social ajustada ao seu meio residencial e tem vindo a aceitar tratamento de âmbito psicológico e psiquiátrico. Refez a sua vida afectiva, tendo retomado a sua vida conjugal com o marido, da qual resultou o nascimento de uma filha. Perante as condições de vida actuais da recorrente, tendo presente a sua conduta posterior ao crime, a sua inserção social e aceitação na família e na comunidade, estamos convictos de que a execução da pena de prisão só assumiria compreensibilidade numa perspectiva essencialmente retributiva, de expiação. Pelo que, tudo ponderado, se julga adequada a aplicação de 5 anos de prisão suspensa na sua execução por igual período, com sujeição ao regime de prova.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

I - RELATÓRIO

1. No âmbito do processo comum que, sob o n.º 557/09.0 GEVNG, corria termos pela ….ª Vara de Competência Mista da Comarca de ... (agora, pela ....ª Secção Criminal, …, da Instância Central, Comarca do …), AA, devidamente identificada nos autos, foi submetida a julgamento por tribunal colectivo, acusada e pronunciada pela prática, em autoria material, de um crime de homicídio.

Realizada a audiência, com documentação da prova nela oralmente produzida, após deliberação do Colectivo, foi proferido o acórdão datado de 02.10.2013 (fls. 617 e segs.) e depositado na mesma data, com o seguinte dispositivo:

«Em face do exposto, o tribunal colectivo decide:
1) Condena a arguida AA como autora material de um crime de homicídio simples p. e p. pelos artigos 131º e 132º, n.ºs 1 e 2, al. b), ambos do Código Penal, na pena de 5 (cinco) anos de prisão.
2) Mais condena a arguida AA no pagamento da taxa de justiça de 4 UC’s e nas demais custas.
3) Pelos fundamentos constantes do precedente n.º III-3, suspende a execução da pena de prisão ora imposta à arguida, pelo período de 5 (cinco) anos, com sujeição ao regime de prova, ficando a arguida obrigada a submeter-se a acompanhamento médico».

2. O Ministério Público interpôs recurso da decisão condenatória para o Tribunal da relação do … que, por acórdão de 12.03.2014 (fls. 704 e segs.), julgou procedente o recurso e determinou o reenvio do processo para novo julgamento, se bem que limitado à questão de facto que se enunciou.

3. Regressado o processo à 1.ª instância, foi proferido, pelo mesmo Colectivo de juízes, acórdão datado de 10.07.2014 (fls. 746 e segs.) e depositado em 14.07.2014, com o mesmo dispositivo do anterior.

4. Ainda inconformado, o Ministério Público interpôs novo recurso que, por acórdão da mesma Relação, foi, novamente julgado procedente, anulando-se o novo julgamento efectuado e o novo acórdão proferido e determinando-se «o reenvio do processo para novo julgamento a realizar pelo tribunal colectivo com a composição que resulte do cumprimento das regras estabelecidas nos artigos 426.º-A e 40.º, al. c), do Código de Processo Penal, sendo o novo julgamento limitado à questão já identificada no acórdão de 12.03.2014, aqui proferido, e devendo o novo acórdão a proferir satisfazer integralmente a exigência de fundamentação contida no n.º 2 do artigo 374.º do Cód. Proc. Penal, com exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do Colectivo, ficando, assim, prejudicado o conhecimento das demais questões suscitadas no recurso interposto».

5. Voltando o processo à 1.ª instância e realizado novo julgamento, foi proferido acórdão que condenou a arguida pela prática de um crime de homicídio simples, p. e p. pelo artigo 131.º do Código Penal, na pena de 8 (oito) anos e 3 (três) meses de prisão.

6. Inconformada, interpôs a arguida recurso para o Tribunal da Relação do … que, por acórdão de 9 de Novembro de 2016, confirmou na íntegra o acórdão proferido pelo tribunal colectivo.

7. De novo inconformada, interpôs a arguida o presente recurso, rematando a respectiva motivação com as conclusões que se transcrevem[1]:

«CONCLUSÕES:

A. Não pode a Recorrente concordar com o douto Acórdão ora recorrido que negou provimento ao recurso interposto e manteve a sua condenação pela prática do crime de homicídio simples na pena de 8 (oito) anos e 3 (três) meses.

B. Ao invés, e desde logo, sempre a conduta da Recorrente será de subsumir ao tipo de homicídio privilegiado, p. e p. no art. 133º do C.Penal.

C. Ao invés do agora decidido, dos factos provados resultam, relativamente à pessoa da Recorrente e à sua tomada de resolução criminosa, que “envolvia” o pôr termos também à sua vida contemporaneamente com a do seu filho, por verificados os pressupostos daquele tipo legal previsto no art. 133º do C.Penal.

D. Erradamente, afastou o Tribunal da Relação a verificação de uma emoção violenta, relativamente à pessoa da ora Recorrente, e ao porquê da sua apurada actuação, bem como, afastou igualmente a verificação de desespero naquela sua tomada de resolução.

E. Ainda que fosse a própria Recorrente quem “empolava” os problemas de saúde do seu filho BB, a verdade é que, para ela, tais problemas eram sérios e persistentes, e causadores de grande sofrimento para aquele, daí resultando a sua resolução criminosa, tendente a por fim a um tal sofrimento.

F. De igual modo, e ao arrepio do que se refere no Acórdão recorrido, não existiu um qualquer plano pensado e preparado pela Recorrente para tirar a vida ao seu filho, pois que, se assim fosse, nada teria deixado a Recorrente ao acaso e teria certamente concretizado o seu propósito de por termo também à sua própria vida.

G. Ao agir como o fez, a Recorrente “reagiu” a mais um estado febril do seu filho e apossada da aludida emoção violenta e motivada por forte desespero, tendo a isso sido “conduzida”, de forma inevitável e inconsciente, em razão de perturbação psicológica de que padecia, sendo-lhe assim menos exigível um comportamento conforme ao direito.

H. Donde, e porque no douto Acórdão ora recorrido se alude expressamente ao vertido na decisão proferida em sede de Acórdão proferido em 1ª Instância, será de reiterar tudo quanto anteriormente vertido em sede de recurso interposto daquele douto Acórdão.

I. Os factos provados configuram-se como bastantes para se concluir pela verificação de uma «compreensível emoção violenta» e, bem assim, de verdadeiro «desespero» que diminuíram sensivelmente a culpa da Recorrente – cfr. art. 133º  do C.Penal – encontrando-se assim justificado o tipo em causa.

J. Como compreensível emoção violenta temos, como o refere Figueiredo Dias, a ocorrência do denominado “estado de afecto”, que condiciona as faculdades e capacidades do agente, empurrando-o para a desconformidade com o direito.

K. Como o diz Eduardo Correia, e conforme sucedeu no caso presente, com o estado febril do BB, e a impotência que sentia a Recorrente para evitar uma tal situação e a “hiperbolização” da doença do filho, verifica-se a “conexão entre a emoção e o crime”,

L. Assim sendo de ter por sensivelmente diminuída a culpa daquela, na medida em que, atento o seu estado emocional, a Recorrente ficou numa situação de exigibilidade diminuída, tendo actuado dominada pela sua própria revolta, sendo levada a actuar contrariamente àquilo que queria e sabia de direito.

M. O aferir da compreensibilidade da emoção, por forma a se verificar se a mesma se configura então como aceitável, ocorrerá nos termos do padrão do homem médio, mas não do que faria esse homem médio perante situação similar, mas sim, se o mesmo não deixaria de ser sensível à situação em causa, até porque será sempre de efectivar sem ”perder de vista” o agente do crime, no caso a Recorrente, e a sua situação psicológica.

N. Agiu ainda a Recorrente em «desespero», fundado em todos os pequenos episódios que foram acontecendo ao longo dos anos que o seu filho levava já de vida, com os constantes adoeceres e internamentos, e que a levaram a achar-se num “beco sem saída”, geradores de angústia, depressão e revolta.

O. Sendo certo que, ainda que em razão de um qualquer “empolar” daqueles problemas de saúde do seu filho, derivados da perturbação psicológica de que a Recorrente padecida, para aquela não se “apresentava” qualquer alternativa tendente a por termo ao sofrimento do filho, que não a morte de ambos,

P. Sendo essa sua “opção” de entender como menos censurável, assim diminuindo a sua culpa, em razão da sua preocupação quase obsessiva pelo estado de saúde do filho que culminou em verdadeiro «desespero»,

Q. O que, «significa e traduz um estado subjectivo em que a angústia, a depressão ou as consequências de factores não domináveis colocam o estado de afecto do sujeito no ponto em que nada mais das coisas da vida parece possível ou sequer minimamente positivo, de tal forma que se permite considerar, nas circunstâncias do caso, uma acentuada diminuição da culpa por menor exigibilidade de outro comportamento» - douto Acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça, de 14.07.2010 (proferido no âmbito do Proc. 408/08.3PRLASB.L2.S1, disponível in www.dgsi.pt) (negrito e sublinhado nossos),

R. Sem descurar que, «No desespero despontam estados de afecto ligados à angústia, à depressão ou à revolta. Podem referir-se os casos de suicídios da mãe que tenta matar-se com os filhos, para lhes poupar sofrimentos, mas que acaba por sobreviver-lhes (Ac. STJ de 28/09/2005 (05P2537); e Ac. STJ de 14/07/2010 (408/08.3) – Cfr. Código Penal Anotado, de M. Miguel Garcia e J.M. Castela Rio, da BDJUR, 2014, págs. 522 e 523 (negrito e sublinhado nossos).

S. Tudo isto, bem como a consequente diminuição sensível da sua culpa, resulta das declarações da própria Recorrente, das quais resulta claro o pânico em que vivia, o sofrimento de que entendia padecer o seu filho e, ainda, o seu completo “esgotamento” nervoso.

T. Nos termos em que a mesma foi tida como provada, com a morte do BB a surgir da tentativa da Recorrente em pôr conjuntamente fim à sua própria vida, a factualidade assente é claramente demonstradora do «desespero» da Recorrente, o qual se “apresentava” como bastante a diminuir sensivelmente a sua culpa,

U. “Afastando” assim a conduta da Recorrente do tipo de homicídio simples e “integrando” a mesma no homicídio privilegiado, pois que estamos perante situação distinta da que previu o legislador, em que o autor do facto criminoso tenta conjuntamente com a morte de outrem o seu próprio suicídio.

SEM PRESCINDIR,

V. E sem conceder do exposto, atentos os fundamentos invocados, sempre haverá que referir ainda que, não pode a Recorrente concordar com o facto de não haver o Digníssimo Tribunal “a quo” decidido pela “aplicabilidade” da figura da atenuação especial da pena, nos termos do disposto do art. 72º do C.Penal.

W. Porque a morte do BB resultou de uma conduta da Recorrente também destinada a pôr termo à sua própria vida, sempre será de concluir que as circunstâncias anteriores, posteriores e contemporâneas ao crime diminuem de forma acentuada a culpa da Recorrente e a necessidade da pena.

X. Tendo-se o douto Acórdão ora recorrido, para decidir como o fez, “fundado” na fundamentação vertida no douto Acórdão proferido em 1ª Instância, importará sempre reiterar tudo quanto já anteriormente referido, pois que o que antes se “discutiu” mostra-se actual e susceptível de ser “trazido” perante este Egrégio Supremo Tribunal.

Y. Ao demais, e ao que resulta, a rejeição dessa referida atenuação especial parece resultar apenas da prevenção geral e da “sensibilidade” dos factos e de uma qualquer reprovação social à liberdade da Recorrente, o que não poderia haver sucedido pois que nunca poderia haver sido descurada a situação concreta da Recorrente, anterior, contemporânea e posterior ao crime.

Z. Ainda que verdadeiramente “excepcional”, logo, reservada a casos distintos da generalidade, sempre tal atenuação é aplicável ao caso presente porquanto o mesmo trata de um filicídio mas contemporâneo a um suicídio falhado, sendo o acto causador da morte o mesmo com que pretendia a Recorrente por termo à própria vida,

AA. Não estamos perante apenas perante a morte de um filho para o poupar ao sofrimento de que se entendia aquele padecer, mas sim perante a tentativa de alguém, num único acto, terminar com a sua vida e do seu filho, porque atendendo o seu estado psíquico vê aquela como a única solução viável.

BB. Porque pretendia a Recorrente, não a morte do seu filho, mas sim que ambos partissem conjuntamente deste mundo, claro se torna estarmos perante as denominadas circunstâncias que diminuem de forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa do agente, bem como a necessidade da pena.

CC. A Recorrente só agiu como se teve como provado porque numa situação de grave perturbação psicológica e fragilidade emocional, valorizando de forma exacerbada os problemas de saúde do seu filho, entendendo aquele como em constante sofrimento e com que procurou então terminar com a sua conduta.

DD. A decisão da Recorrente em por termo à vida do seu filho BB não adveio de uma qualquer sua decisão prévia de por termo à sua própria vida, antes sim, o que sucedeu foi o inverso, ao decidir por termo à vida do menor para acabar com o sofrimento de que entendia o mesmo padecer e, contemporaneamente, por termo à própria vida porque não se imaginava sem o seu filho.

EE. Assim, terá que se aferir da diminuição da culpa da Recorrente tendo por base o estado psíquico em que se encontrava e o facto de, no seu entendimento, prejudicado e nebuloso, nada mais restar, na tentativa de “libertar” o filho, do que a morte daquele a que se “juntaria” a sua própria morte.

FF. De referir ainda a acentuada diminuição da necessidade da própria pena, patente no facto de o maior dos castigos já o haver sofrido a Recorrente, ao haver sobrevivido à morte do seu filho, com quem pretendia então “partir”, e que melhor resulta da prova documental existente nos autos e da qual resulta a “anuência” da Recorrente na continuidade de acompanhamento psicológico.

GG. Apesar de tudo o sucedido, continuou a Recorrente a poder contar com o apoio dos familiares e amigos, sendo que mesmo com o seu cônjuge, e apesar da morte do filho de ambos, conseguiu restabelecer vida conjugal, beneficiando do seu apoio incondicional e tendo já nascido uma filha de ambos,

HH. Tudo isto sem descurar do facto de, conforme melhor resulta do Relatório Social de fls. 998. e ss. e conforme melhor consta do ponto 12.18) dos factos provados, no meio social de residência continua a Recorrente a merecer aceitação, apesar de ser por todos conhecida a sua situação processual.

II. Daqui resultando, então, a inexactidão do agora referido no douto Acórdão ora recorrido quando se refere que uma atenuação da pena neste caso não seria “aceite” pela sociedade, uma vez que, ao longo de todos estes 7 (sete) anos, nunca a liberdade da Recorrente foi questionada socialmente, nunca aquela tendo experimentado ou sentido sinais de rejeição,

JJ. Pois que, para todos se torna patente que a actuação da Recorrente se ficou a dever unicamente à perturbação de que sofria, e que a própria sofreu já o “preço” daquela sua actuação, ao se ver privada do seu filho e, bem assim, ao ser agora impossibilitada de se encarregar individualmente da sua filha,

KK. Sem descurar que seria deveras cruel privar a Recorrente da sua liberdade pelo período de tempo decidido, pois que se mostram já decorridos mais de 7 (sete) anos desde a prática dos factos, e porque nesta altura tem a Recorrente a sua vida estabilizada, mantendo a sua relação com o pai do falecido BB, com quem entretanto já teve uma outra filha, a qual, como sucedeu infelizmente com o BB, ainda que por motivo diverso, não poderá ver crescer e a quem se verá obrigada a explicitar a morte do seu irmão.

LL. Atento o tempo já decorrido, mais de 7 (sete) anos, a regularidade da conduta da Recorrente, a “sujeição” da mesma a tudo quanto vem se afigurando como necessário, e a inexistência de uma qualquer repulsa social quanto à sua pessoa, até porque um qualquer alarme social decorrente do crime já esmoreceu, sempre à sua pessoa será aplicável a aludida atenuação especial da pena – Cfr., neste sentido, doutos Acórdãos deste Supremo Tribunal de Justiça, de 03.02.1993, 20.04.1995 e 07.12.1995, proferidos, respectivamente, no âmbito dos Processos, 045043, 046181e 96P223, e cujos Sumários se mostram disponíveis in www.dgsi.pt.

MM. Ademais, de referir que nos presentes autos, e por um Colectivo de Juízes que integravam a Secção Criminal de ..., foi decidido ser de aplicar uma tal atenuação especial da pena, tendo então a Recorrente sido condenada em pena suspensa,

NN. Não se tendo, no entanto, à data, e mesmo perante a maior proximidade dos factos e a maior mediatização do processo, verificado uma qualquer repulsa social às penas então decididas, tendo a comunidade aceite como tendo sido feita justiça com a condenação da Recorrente nos termos verificados.

OO. Também os documentos clínicos existentes nos autos, respectivas perícias médicas/psíquicas, e os depoimentos prestados, permitem o esclarecimento quanto aos “antecedentes” da Recorrente e à sua infeliz evolução para o estado emocional, psicótico, em que se encontrava quanto tomou a resolução de pôr fim à vida de ambos.

PP. Dos Relatórios Sociais temos claramente resultante a fragilidade emocional da Recorrente, e os sentimentos da mesma, cumulados com a depressão acentuada em que vivia, sentindo “revolta” por não conseguir evitar o adoecimento do seu filho, exacerbando o seu desespero e o sofrimento daquele.

QQ. Pelo que, e porque atendendo a esse seu estado psicológico, não estaremos então perante uma verdadeira hipótese especial, divergente de tudo quanto o pensado pelo legislador na “criação” das respectivas molduras, ter-se-á aqui que se decidir pela aplicabilidade da verdadeira válvula de segurança que é a atenuação especial da pena – Cfr. o já citado Acórdão STJ, de 17.10.2002,

RR. Isto porque, a Recorrente não fez o seu filho pagar pelo seu sofrimento, antes sim, a Recorrente pretendeu, única e exclusivamente, terminar com aquilo que entendia ser o sofrimento daquele, tomando então a decisão de acabar com a vida de ambos, por ser a única “saída” que se lhe apresentava como viável.

SS. À conduta da Recorrente é aplicável o preceituado no art. 72º do C.Penal, sendo a punição da mesma de efectivar nos termos do disposto no art. 73º do mesmo C.Penal, o que deverá redundar na aplicação à mesma de uma pena de prisão em medida inferior a 5 (cinco) anos, a qual deverá então ser suspensa, na sua execução, nos termos do art. 50º do C.Penal.

TT. Do exposto, de referir que temos por inconstitucional a interpretação da norma contida no art. 72º do C.Penal efectivada pelo douto Acórdão ora recorrido, porque no sentido de se relevarem apenas as razões de prevenção geral, descurando-se, em absoluto, tudo quanto demais vertido naquele preceito legal,

UU. Em clara violação dos princípios da igualdade”, da “proporcionalidade” e da “legalidade”, designadamente, das normas constantes nos arts. 13º, 18º e 29º da Constituição da República Portuguesa.

VV. O douto Acórdão sob recurso violou os arts. 72º, 73º, 131º e 133º do C.Penal, e 13º, 18º, 29º e 32º da Constituição da República Portuguesa.


Nestes termos, nos melhores de direito e com o sempre mui douto suprimento de V. Exas., sopesadas as conclusões acabadas de exarar, deverá ser dado provimento ao presente recurso e, por via disso, ser o douto Acórdão ora recorrido revogado e substituído por outro que, decida pela subsunção da conduta da Recorrente no tipo de homicídio privilegiado, p. e p. no art. 133º do C.Penal, e, sem conceder, decida pela atenuação especial da pena a aplicar, nos termos do disposto nos arts. 72º e 73º do C.Penal, com o que, modestamente se entende, V. Exas. farão, como sempre, inteira e sã JUSTIÇA.»

8. Respondeu o Ministério Público, concluindo:

«a) Tendo o Tribunal da Relação confirmado integralmente o quadro de facto dado por assente pela 1ª instância, é inquestionável que a recorrente, com a sua conduta, preencheu os elementos, objetivo e subjectivo, do crime de homicídio, p. e p. pelo artigo 131°, do C. Penal, por que foi condenada, não merecendo qualquer reparo a qualificação jurídica operada pelas instâncias;

b) A conduta da recorrente não se apresenta com uma gravidade tão reduzida que possa justificar que a medida da pena deixe de ser encontrada na moldura abstracta prevista para o crime que lhe é imputado, como é a regra, sendo de recusar - pelas razões de facto e de direito claramente explicitadas em ambas as instâncias -, a aplicação da atenuação especial da pena, prevista no artigo 72°, do C. Penal;

c) Improcedem, pois, todos os fundamentos do recurso, quer na parte em que se aponta erro na qualificação jurídica dos factos provados, quer no segmento em que se pede a atenuação especial da pena e se invoca inconstitucionalidade fundada em alegada deficiente fundamentação da recusa de aplicação ao caso do preceituado no artigo 72°, do C. Penal;

d) O douto acórdão recorrido é de confirmar nos seus precisos termos.»

9. Neste Supremo Tribunal, a Ex.ma Procuradora-Geral Adjunta considerou nada ter a acrescentar ao entendimento defendido pelo Ministério Público.

10. Foi dada cumprimento ao disposto no artigo 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, doravante CPP, nada tendo sido dito.

11. Colhidos os vistos e presente à conferência, por não ter sido requerida a realização de audiência [art. 419.º, n.º 3, alínea c), do CPP], cumpre apreciar e decidir.


II - FUNDAMENTAÇÃO


1. Delimitação do objecto do recurso

De harmonia com o disposto no art. 412.º, n.º 1, do CPP é a partir da motivação do recurso interposto e das suas conclusões que se delimita o objecto do recurso, salvo as questões de conhecimento oficioso.

Face às conclusões de recurso, a recorrente impugna a qualificação jurídica dos factos, pugnando pela verificação do crime de homicídio privilegiado p. e p. pelo artigo 133.º, do Código Penal (conclusões A a U);

Subsidiariamente, caso se entenda pela subsunção dos factos em apreço ao crime de homicídio, p. e p. pelo artigo 131.º, do Código Penal, é impugnada a pena com o fundamento de que deveria ter sido especialmente atenuada (conclusões V a VV).

2. Factualidade relevante

O acórdão recorrido regista a seguinte factualidade considerada provada e não provada:

«A.      Factos provados:

Discutida a causa, resultaram provados os factos seguintes:

12.1) A arguida AA é mãe de BB, nascido a 00/00/00;

12.2) No dia 27/10/2009, a arguida, que se encontrava perturbada psiquicamente e se encontrava em estado depressivo e de grande fragilidade emocional, apresentando sintomas de depressão nervosa; o que, conjugado, a levava a valorizar demasiado os problemas de saúde do seu filho BB, que entendia sofrer «demasiado», em virtude, nomeadamente, das recorrentes amigdalites, faringites e doenças comuns do foro respiratório, acompanhadas de febre, de que o menor padecia, resolveu, por tal motivo, matá-lo e suicidar-se, de seguida, afogando-o e afogando-se, nas águas do Rio ...;

12.3) Em execução de tal propósito, cerca das 16 horas do aludido dia, saiu de casa, na companhia do referido BB, que se encontrava em estado febril, deixando escrito na cómoda do seu quarto um bilhete de despedida, dirigido ao marido, com os dizeres «Amo-te ...»;

12.4) Dirigiu-se, então, para a garagem do prédio onde habitava, e colocou o seu filho BB no interior do veículo automóvel de marca «Opel», com a matrícula 00-00-AO, ao volante do qual, após uma breve passagem por um parque infantil situado nos ..., se dirigiu para o ..., em ..., no concelho de ...;

12.5) Uma vez ali chegados, cerca das 17 horas, a arguida estacionou o aludido veículo de matrícula 00-00-AO, no qual, em ordem a sinalizar aos familiares «o sucedido», deixou um bloco, onde escreveu «lamento fazer isto, mas a vida não me proporcionou melhor opção, o meu menino não merece sofrer mais por isso vou partir», «mas amo-vos a todos principalmente o meu grande amor que me fez ser feliz dentro dos possíveis dele amo-te muito ... + ... = BB» e «O nosso amor é mesmo verdadeiro é pena que tenha chegado ao fim. Minha mãe, Meu Pai minha irmã amo-vos muito eternamente …»;

12.6) Após, em execução do referido propósito, a arguida retirou o seu filho BB do interior do automóvel e conduziu-o para a extremidade do ..., próximo do local onde existem umas escadas, junto ao Rio;

12.7) Quando ambos se encontravam junto da extremidade do aludido ..., a arguida lançou-se então às águas do Rio …, levando consigo o seu filho menor BB;

12.8) Uma vez que não sabia nadar, o menor submergiu nas águas do rio, o que foi causa directa, necessária e adequada da respectiva morte, por afogamento, fruto de asfixia por submersão em meio líquido;

12.9) Por seu turno, a arguida, nas aludidas circunstâncias, conseguiu vir à tona e flutuar nas águas do Rio …;

12.10) Não se tendo apurado o concreto comportamento posterior da arguida, a mesma veio a ser resgatada das águas do rio … por alguns remadores, numa altura em que se encontrava dentro de água, nas imediações de uma igreja em ruínas (designada por Capela do …) situada a jusante da Ponte … e a montante da Ponte …, pelas 08 horas do dia 28/10/2009;

12.11) O corpo, sem vida, do referido BB foi localizado junto ao ... de ..., no dia 29/10/2009, pelas 09 horas e 33 minutos, em posição de decúbito ventral, a cerca de três metros defronte do respectivo cais e a cerca de três metros de profundidade, sendo, então, resgatado das águas;

12.12) Quando foi retirado, o cadáver do dito BB apresentava:

i) Formação de cogumelo de espuma, na região nasal (espuma branca nas fossas nasais);

ii) Maceração cutânea nas mãos e pés (apresentando-se toda a superfície cutânea plantar e palmar empalidecida e enrugada);

iii) Frio ao toque;

iv) Membros inferiores ligeiramente flectidos, ao nível dos joelhos;

v) Membros superiores flectidos cerca de 45º, ao nível dos cotovelos;

vi) Rigidez cadavérica na nuca e nos membros superiores e inferiores a desinstalar-se;

vii) Ausência de livores;

viii) Ausência de lesões ao nível do tronco, rosto e cabeça;

ix) Rubor conjuntival;

x) Lábios cianosados;

12.13) O cadáver não apresentava mancha verde no abdómen, nem distensão abdominal;

12.14) No decurso da autópsia efectuada ao respectivo corpo, constatou-se, nomeadamente, que o referido BB não apresentava lesões traumáticas fatais, apresentando, contudo, ao nível pulmonar, «[p]arênquima pulmonar com expansão e dilatação dos espaços alveolares, com alongamento e adelgaçamento da parede, por vezes com ruptura de septos sugestivos de lesões de enfisema, mais evidentes na zona subpleural e paraseptal (…) brônquios e bronquíolos com descamação epitelial acentuada e presença de secreção mucóide exuberante no lúmen»;

12.15) Ao fazer com que o seu filho caísse às águas do Rio …, a arguida quis e conseguiu tirar-lhe a vida;

12.16) A arguida agiu voluntária, livre e conscientemente, sabendo a sua conduta proibida e punida por lei;

12.17) Relativamente à situação socioeconómica, pessoal e familiar da arguida, apurou-se no julgamento originariamente realizado nos autos:

i) A arguida possui o 12.º ano de escolaridade;

ii) Dos 14 aos 18 anos de idade a arguida trabalhou como operária fabril numa fábrica de confecções;

iii) Dos 18 aos 33 anos de idade a arguida desempenhou funções como operária numa empresa de componentes eléctricos para automóveis, actividade que cessou por ter sido alvo de despedimento colectivo;

iv) Após um período de 3 meses que permaneceu inactiva a arguida iniciou funções como operária fabril numa empresa de ar condicionado, onde permaneceu 3 anos, após os quais foi alvo de despedimento colectivo;

v) Aos 24 anos de idade a arguida contraiu matrimónio, relação da qual resultou o filho BB e uma filha;

vi) À data dos factos a arguida vivia com o seu marido e o seu filho BB e trabalhava como operária fabril;

vii) O quotidiano da arguida era dedicado sobretudo à via profissional e à gestão da vida doméstica e do processo educativo do filho;

viii) Após a data dos factos, a arguida esteve internada durante cerca de 15 dias, tendo beneficiado de apoio psiquiátrico em consultas particulares cerca de 9 meses;

ix) Neste período a arguida contou com o suporte do marido, da irmã, da cunhada e de outros familiares;

x) Após a morte de BB, a arguida e o marido retomaram a sua vida conjugal, da qual resultou uma filha;

xi) O nascimento da filha desencadeou na arguida um novo período de desequilíbrio pessoal, com sintomatologia depressiva, tendo sido transferida do serviço de obstetrícia para o serviço de psiquiatria do hospital de …e, posteriormente, para o Hospital de …, permanecendo internada cerca de 3 semanas;

xii) Subsequentemente beneficiou de acompanhamento em consultas de psicologia e de psiquiatria no Hospital de …;

xiii) A situação da menor foi sinalizada à Comissão de Protecção de Crianças e Jovens, tendo sido decretada a medida de apoio junto de outro familiar, tendo a arguido acordado dar continuidade ao acompanhamento psicológico e psiquiátrico, comparecendo assiduamente às consultas de psiquiatria e psicologia que lhe são marcadas;

xiv) Após um período de desemprego de cerca de um ano, a arguida começou a trabalhar no início do mês de Junho de 2013 como operadora de máquinas de fabricar agulhas;

xv) A arguida apresenta uma inserção social ajustada no seu meio residencial;

12.18) Do novo relatório social relativo à arguida, elaborado pelos serviços de reinserção social, que se encontra junto a fls. 998 e segs., refere-se, no que aqui interessa:

i) A arguida AA continua a residir na morada dos autos com o cônjuge, ..., com o qual conserva uma relação de matrimónio desde os 24 anos de idade, e com a filha do casal, CC, nascida a 00/00/..., com 4 anos de idade;

ii) Desde o nascimento da filha que a mesma ficou, durante os dias úteis de trabalho dos progenitores, aos cuidados da ama DD, pessoa conhecida do casal, desde há vários anos;

iii) Contemporaneamente, os cunhados da arguida – EE e FF – vizinhos do andar da arguida, são fontes de apoio e acompanhamento permanente no processo educativo da menor;

iv) Estes cuidadores mantiveram-se incluídos na medida de promoção e protecção decretada pela Comissão de Protecção de Crianças e Jovens de ..., processo arquivado em Dezembro de 2013;

v) No meio social de residência, a arguida continua a merecer aceitação, apresentando inserção social ajustada e discreta no meio, onde reside há cerca de 16 anos, não se verificando indícios de rejeição, de hábitos ou de condutas anti-sociais;

vi) Em contacto com os Órgãos de Polícia Criminal, verifica-se a inexistência de registos criminais relativos à arguida;

vii) No que se refere ao percurso laboral, a arguida, que trabalhava como operária fabril, com funções de operadora de máquinas de fabricar agulhas, na empresa «GG, Lda.», sita na Rua ..., ..., em ..., através de empresa de trabalho temporário «HH», com celebração de contrato mensal desde o mês de Junho de 2013, renovado por iguais períodos, terminou funções em Junho de 2014, por cessação de renovação de contrato;

viii) Ainda nesse mês, iniciou novas funções, também com operária fabril, na empresa de calçado «II, Lda.», em ..., actividade que mantém e que é encarada como fonte de satisfação e de gratificação profissionais, auferindo o vencimento mensal de € 505;

ix) O cônjuge da arguida conserva o trabalho como sócio-gerente na oficina «JJ, Lda.», sita na Rua ..., 0000-0000, ..., ..., privilegiando, desde a data dos factos, a conciliação da sua actividade laboral com a dinâmica familiar, de modo a garantir diariamente o acompanhamento da arguida e filha do casal;

x) A situação económica do agregado continua a ser avaliada como estável e suficiente perante os encargos familiares, verificando-se, por parte do casal, percepção de equilíbrio na gestão doméstica e financeira familiar;

xi) Os principais encargos fixos do agregado resultam da prestação do crédito/habitação, no valor de € 240, acrescido de despesas de fornecimento de serviços domésticos, onde se inclui o montante de € 100 para pagamento do serviço prestado pela ama;

xii) O quotidiano da arguida é ocupado com a sua actividade profissional, onde cumpre o horário das 08 às 17 horas, bem como com a gestão da vida doméstica, onde se inclui o processo educativo da filha;

xiii) No contacto com a filha a arguida não apresenta momentos em que está sozinha com a menor, sendo este contacto mediado por elementos familiares, designadamente os cunhados, conforme supramencionado, o cônjuge da arguida e a ama DD;

xiv) Para além do apoio destes elementos, é ainda confirmado pelas fontes o apoio dos sogros da arguida e da irmã desta, que residem próximo da zona de residência da arguida;

xv) A filha da arguida integrou, no presente ano lectivo, em Setembro de 2015, o Jardim de Infância de …, na Rua …, …, confirmando-se regular processo adaptativo, através das fontes de informação formal (Jardim de Infância) e informal (ama, cunhada);

xvi) O processo educativo da filha é vivenciado pela arguida AA como fonte de satisfação, responsabilidade e crítica face ao seu desempenho parental, mesmo que condicionado e contando sempre com o apoio e mediação familiares;

xvii) Esta situação tem sido vivenciada pela arguida de forma adequada e proporcional com o sofrimento e tristeza concomitante à morte do filho;

xviii) Este acompanhamento é encarado pelas fontes como uma necessidade a manter ao longo do processo desenvolvimental da menor;

xix) Pese embora a fragilidade emocional da arguida, é descrita superior estabilidade emocional na gestão e resolução de problemas relacionados com a educação parental, nomeadamente maior tolerância perante as contrariedades;

xx) Desde a data dos factos e até à presente data, a arguida AA mantém-se em acompanhamento psiquiátrico e psicológico no Centro Hospitalar de ..., estando medicada psiquiatricamente;

xxi) A arguida percepciona este acompanhamento como fulcral no seu processo de estabilização psico-emocional, com melhoria da sintomatologia depressiva, estratégias de enfrentamento da perda do filho e questões relacionadas com a educação parental;

xxii) A actual situação processual da arguida provocou elevado impacto psico-emocional e social na sua vida, nomeadamente, a nível pessoal e familiar;

xxiii) Apresenta suporte consistente por parte do cônjuge e família de origem deste;

xxiv) Pese embora reconheça o impacto negativo dos factos, o cônjuge demonstra apoio e investimento no relacionamento conjugal e familiar;

xxv) A arguida AA refere que a pendência do presente processo se tem revelado de elevada tensão e ansiedade, tanto para si como para os seus familiares, reconhecendo receio em vir a ser alvo de sanção penal privativa da liberdade;

xxvi) Tal cenário, a concretizar-se é encarado como passível de desmoronar todo o processo de recuperação e de reorganização pessoal e familiar em que a arguida e família se têm vindo a empenhar aos longos dos últimos anos, na tentativa de enfrentar e ultrapassar o processo de luto relacionado com a morte do filho;

xxvii) Todos os elementos contactados apresentam disponibilidade para a prossecução da prestação de apoio à arguida, qualquer que seja o desfecho do presente processo;

xxviii) Em caso de eventual condenação e quando questionada sobre a sua adesão a uma medida de execução na comunidade, a arguida revelou receptividade face a tal hipótese;

xxix) A dinâmica familiar do agregado constituído da arguida é caracterizada como estável e gratificante, pese embora o acontecimento negativo ocorrido relacionado com a morte do filho permanecer como factor significativo de vulnerabilidade no seio familiar;

xxx) As estratégias de enfrentamento pessoais adoptadas e cumpridas rigorosamente pela arguida e pelos restantes elementos familiares parecem apresentar-se como factor de enfrentamento e de promoção da recuperação familiar;

xxxi) O investimento no processo de acompanhamento clínico preconizado e mantido pela arguida tem sido igualmente um aspecto significativo no processo de recuperação psico-emocional, minimizando factores de risco na educação parental;

xxxii) Em termos laborais, a arguida revela empenho e estabilidade, documentando quotidiano centrado na ocupação laboral e na gestão e organização do seu espaço doméstico e familiar, áreas de vida que privilegia;

xxxiii) A arguida AA não regista antecedentes criminais, sendo que o actual processo judicial impactou todas as suas áreas de vida, nomeadamente, pessoal e sociofamiliar;

xxxiv) Em conclusão da sua análise do caso, entendem os serviços de reinserção social que se a pena concretamente aplicada o permitir, a arguida reúne condições para a execução de uma medida na comunidade, que promova a continuidade da interiorização do desvalor da sua conduta e que contemple as necessidades avaliadas, designadamente, a manutenção da sua estabilidade psicológica e emocional, através da manutenção do acompanhamento clínico de que tem beneficiado.

12.19) Do certificado de registo criminal relativo à arguida, junto a fls. 1006, nada consta.

B.        Factos não provados:

1. Com interesse para a decisão da causa não se provaram quaisquer outros factos relevantes, e, em especial, no tocante à matéria invocada na pronúncia proferida contra a arguida:

13.1) Que o menor BB tinha medo das águas do rio;

13.2) Que a arguida nadava mal.

2. Da matéria alegada na contestação da arguida, não se provou, igualmente:

14.1) Que a arguida, quando confrontada com a água do rio …, abandonou a sua intenção de pôr fim à sua vida e à do seu filho, tendo entrado em «convulsão mental» sobre o porquê de ali se encontrar e se na verdade iria levar por diante a sua intenção;

14.2) Que a arguida tenha perdido por momentos a noção onde o seu filho se encontrava quando aquele se afastou dela;

14.3) Que a arguida se encontrava alheada de tudo quanto a rodeava quando o menor BB se aproximou das escadas de acesso ao rio … existentes no local e caiu às águas;

14.4) Que a arguida «despertou» do seu estado de «transe» no momento da queda do menor BB, tendo-se então lançado às águas do Rio ... com o único propósito de resgatar o seu filho;

14.5) Que o menor BB quando caiu nas águas do rio … tenha ido logo ao fundo, não tendo esboçado qualquer reacção;

14.6) Que perante a perda do seu filho a arguida ao longo de várias horas tentou concretizar a sua própria morte;

14.7) Que quando ocorreu a morte do menor BB a arguida já tinha desistido da ideia de pôr termo à sua vida e à do seu filho.»

3. Qualificação jurídica dos factos

3.1. Entende a arguida que os factos dados como provados devem ser subsumidos ao crime de homicídio privilegiado, p. e p. pelo artigo 133.º, do Código Penal, e não (como foram pelas instâncias) ao crime de homicídio, p. e p. pelo artigo 131.º, do mesmo Código, pois que os factos que foram fixados pelas instâncias permitem concluir pela existência de uma «compreensível emoção violenta» e/ou do «desespero» exigidos pelo artigo 133.º.

Com efeito, refere que «Ainda que fosse a própria Recorrente quem “empolava” os problemas de saúde do seu filho BB, a verdade é que, para ela, tais problemas eram sérios e persistentes, e causadores de grande sofrimento para aquele, daí resultando a sua resolução criminosa, tendente a por fim a um tal sofrimento», sendo que «não existiu um qualquer plano pensado e preparado pela Recorrente para tirar a vida ao seu filho, pois que, se assim fosse, nada teria deixado a Recorrente ao acaso e teria certamente concretizado o seu propósito de por termo também à sua própria vida».

Conclui, assim, que «“reagiu” a mais um estado febril do seu filho e apossada da aludida emoção violenta e motivada por forte desespero, tendo a isso sido “conduzida”, de forma inevitável e inconsciente, em razão de perturbação psicológica de que padecia, sendo-lhe assim menos exigível um comportamento conforme ao direito».

Por sua vez entende diversamente o Ministério Público que «estando demonstrado que a recorrente tirou a vida ao seu filho, na concretização de um projecto pensado e preparado, deliberada, livre e conscientemente, é claramente de afastar a ideia de que possa ter agido dominada por uma «compreensível emoção violenta», susceptível de diminuir acentuadamente a sua culpa».

Mais refere que «Igualmente de afastar será o elemento “compaixão”. A forma planeada como a arguida decidiu por termo à vida do filho não pode ser explicada por qualquer "compaixão ", sobretudo se tivermos em conta que a criança não se encontrava em estado de sofrimento tal que pudesse suscitar esse sentimento, em termos de poder afectar o discernimento da arguida e a sua capacidade de determinação, sendo certo que, como vem dado como provado, as doenças de que o BB padecia - e que, na tese da recorrente teriam originado aquele sentimento de "compaixão" - não iam além de doenças frequentes em crianças, como "amigdalites, faringites e doenças comuns do foro respiratório, acompanhadas de febre».

Por fim, e no que diz respeito ao «desespero», considera o Ministério Público que «no caso concreto, não pode o mesmo ser dado por existente, uma vez que não se provou que a arguida tivesse agido nesse estado de insuportável sofrimento, que não lhe restasse outra alternativa perante as doenças do filho (aliás, normais para a idade), de tal modo que suprimir-lhe a vida fosse a única solução para remover o sofrimento que a situação lhe causava».

3.2. Importa, pois, analisar o crime de homicídio privilegiado, condensando os contributos mais relevantes da doutrina e da jurisprudência sobre os fundamentos do privilegiamento invocados: a «compreensível emoção violenta», e o «desespero», enquanto estados que diminuam sensivelmente a culpa.

Estabelece o artigo 133.º, do Código Penal que:

«Quem matar outra pessoa dominado por compreensível emoção violenta, compaixão, desespero ou motivo de relevante valor social ou moral, que diminuam sensivelmente a sua culpa, é punido com pena de prisão de 1 a 5 anos.»

A redacção original do preceito, constante do Código Penal, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 400/82, de 23 de Setembro, dispunha:

«Será punido com pena de prisão de 1 a 5 anos quem for levado a matar outrem dominado por compreensível emoção violenta ou por compaixão, desespero ou outro motivo, de relevante valor social ou moral, que diminua sensivelmente a sua culpa.»

O tipo previsto no Código Penal de 1982 traduziu-se numa ruptura com o regime anteriormente consagrado no artigo 370.º, do Código Penal de 1852/1886 relativo ao homicídio provocado «por pancadas ou outras violências graves contra as pessoas», uma vez que, como refere AMADEU FERREIRA, o fundamento do privilegiamento passou a estar «ligado ao próprio agente emocionado, menos culpado devido às características da sua emoção, independentemente das causas»[2], e não, como sucedia anteriormente, à existência de um facto exterior ao mesmo que o impelia a agir, diminuindo a sua culpa.

Foi com o Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de Março, que o artigo 133.º passou a ter a sua actual redacção, tendo sido esclarecidas algumas das dúvidas que a redacção original suscitava.

Assim, questionava-se «se a compaixão e o desespero deveriam ser valorados, primeiro, enquanto motivos de relevante valor social ou moral, como a redacção do preceito parecia inculcar (…), valoração expressiva de uma menor ilicitude que conduziria à exigência de que estes motivos assumissem uma relevância objectiva»[3].

Questionava-se, ainda, «se a exigência de uma diminuição sensível da culpa respeitava a todas as cláusulas de privilegiamento ou apenas à última, ou seja, o motivo de relevante valor social ou moral, como a redacção do preceito deixava transparecer (…)»[4].

Com a redacção dada pelo Decreto-Lei n.º 48/95, passou a ser claro que se nos deparam quatro conceitos autónomos e distintos: «compreensível emoção violenta», «compaixão», «desespero» ou «motivo de relevante valor social ou moral», aos quais acresce a exigência de que os mesmos diminuam sensivelmente a culpa, para que se verifique o privilegiamento do homicídio.

3.3. Questão amplamente debatida na doutrina e fundamental para ajudar a concretizar os requisitos exigidos para que se mostre preenchido o artigo 133.º, do Código Penal, é a de saber qual é afinal o fundamento do privilegiamento aí previsto.

Seguindo de perto a lição de TERESA QUINTELA DE BRITO[5], para uns, o fundamento do privilegiamento é diverso consoante estejam em causa as situações de «compreensível emoção violenta», «compaixão» e «desespero» ou o «motivo de relevante valor social ou moral». Assim, FERNANDA PALMA[6] considera que o privilégio tem dois fundamentos distintos: por um lado, e no que diz respeito aos casos de «compreensível emoção violenta», «compaixão» e «desespero», a menor capacidade psicológica de o agente dominar os seus impulsos e de determinar a sua vontade; por outro, e no que concerne ao «motivo de relevante valor social ou moral», a menor exigibilidade de um comportamento de acordo com o Direito, atenta a relevância social do motivo que o conduziu à decisão criminosa.

FREDERICO COSTA PINTO[7] expressa entendimento semelhante, considerando que o fundamento do privilegiamento nos casos de «compreensível emoção violenta», «compaixão» e «desespero» é um estado de menor culpa do agente (imputabilidade diminuída), pelo que relativamente a estas causas não se aplica a exigência de diminuição sensível da culpa, prevista na parte final do artigo 133.º. Em sua opinião, tal exigência apenas é aplicável ao privilegiamento por conta de «motivo de relevante valor social ou moral», sendo que, neste caso, o mesmo tem natureza mista, assente num decréscimo do conteúdo de ilícito e da culpabilidade do facto.

Também AMADEU FERREIRA se situa nesta posição, ao cindir o fundamento do privilegiamento em dois aspectos distintos: por um lado, na «compreensível emoção violenta» a culpa é atenuada por via da imputabilidade diminuída; ao passo que nos restantes casos tal funda-se na exigibilidade diminuída de um comportamento diverso. Sendo que, em ambos os casos, «o art. 133.º constitui um tipo de culpa em que se atende prioritariamente, não à causa do facto ou à sua consideração global, mas ao estado do agente, ao grau de afectação da sua vontade»[8].

Por sua vez, para SOUSA E BRITO[9], o fundamento do privilegiamento do artigo 133.º, do Código Penal é, em todas as situações aí previstas – «compreensível emoção violenta», «compaixão», «desespero» e «motivo de relevante valor social ou moral» – a imputabilidade diminuída do agente.

Por fim, no entendimento sustentado por FIGUEIREDO DIAS[10], TERESA SERRA[11] e CURADO NEVES[12], o privilégio é reconduzido à exigibilidade diminuída, sendo certo, porém, que estes autores não são unânimes na concepção de exigibilidade diminuída perfilhada.

Para FIGUEIREDO DIAS, as várias circunstâncias elencadas no artigo 133.º - a «compreensível emoção violenta», a «compaixão», o «desespero» e o «motivo de relevante valor social ou moral» – têm de ser externas ao próprio agente. Tal conclusão resulta da delimitação e diferenciação do conceito de «diminuição sensível da culpa», exigida pelo preceito em causa, do conceito de «imputabilidade» (artigo 20.º, do Código Penal) e ainda do conceito de «consciência da ilicitude» (artigo 17.º, do Código Penal). Ou seja, uma vez que a aplicação do artigo 133.º, do Código Penal pressupõe a imputabilidade do agente e a consciência da ilicitude, o privilegiamento tem necessariamente que se fundar numa situação endógena e exógena ao agente e em que «também o homem normalmente “fiel ao direito” (“conformado com a ordem jurídico-penal”) teria sido sensível ao conflito espiritual que lhe foi criado e por ele afectado na sua decisão, no sentido de lhe ter sido estorvado o normal cumprimento das suas intenções»[13].

Também M. MIGUEZ GARCIA e J. M. CASTELA RIO consideram que «os fundamentos do privilégio assentam em motivos ligados ao agente, que contam unicamente para a culpa», salientando que «o art. 133.º tem o seu lugar próprio em situação de exigibilidade diminuída», sendo este, pois, «o fundamento único do privilégio»[14].

3.4. No que respeita à densificação das várias situações a que alude o artigo 133.º, do Código Penal, vejamos, primeiramente, a «compreensível emoção violenta» invocada pela recorrente.

3.4.1. Por emoção violenta deve entender-se, segundo AUGUSTO SILVA DIAS, «um estado de exaltação, de arrebato súbito, de ira ou fúria que limita a capacidade de o agente se motivar concretamente pela proibição»[15].

Na definição de FIGUEIREDO DIAS, a «compreensível emoção violenta» é um forte estado de afecto emocional provocado por uma situação pela qual o agente não pode ser censurado e à qual também o homem normalmente “fiel ao direito” não deixaria de ser sensível[16].

Para AMADEU FERREIRA[17], a «compreensível emoção violenta que domina o agente» constitui um «estado psicológico que não corresponde ao normal do agente, encontrando-se afectadas a sua vontade, a sua inteligência e diminuídas as suas resistências éticas, a sua capacidade para se conformar com a norma. Há uma “excitação de molde a obscurecer-lhe a inteligência e a arrebatar-lhe a vontade”», sendo uma situação que documenta um menor grau de culpa do agente, que se aproxima da incapacidade acidental». A emoção para ser relevante como cláusula privilegiante deve dominar o agente, significando que este perde o seu autodomínio, o controlo, ficando obnubilada ou cortada a sua relação com a realidade. Não é o agente que conduz o seu comportamento, mas “deixa-se levar”, arrastar, pela violência da emoção que o domina.

A emoção violenta, diversamente ao que sucede com as demais cláusulas privilegiadoras, submete-se a uma dupla exigência que se configura como um duplo controlo na medida em que tem de ser compreensível e tem de diminuir sensivelmente a culpa. Tem de ser uma emoção (violenta) socialmente tolerável ou respeitável. Esta característica explica, como considera AUGUSTO SILVA DIAS, que «a circunstância privilegiante em questão releve através de critérios de menor exigibilidade de uma reacção conforme as exigências normativas»[18].

Como se refere no acórdão deste Supremo Tribunal, de 29-10-2008, proferido no processo n.º 08P1309 (Conselheiro Raul Borges)[19], onde constam extensos e relevantes elementos sobre o requisito da “compreensibilidade” da emoção violenta, «No esforço de compreensão da emoção é imperativo o estabelecimento de uma relação entre o afecto e as suas causas ou motivos, pois, para se entender uma emoção tem de se entender as relações que lhe deram origem, tendo em atenção o sujeito que a sentiu e o contexto em que se verificou a atitude, em ordem a entender o estado de espírito, o “conflito espiritual”, a situação psíquica que leva o agente ao crime.

Como assinala Figueiredo Dias, in Parecer na Colectânea de Jurisprudência 1987, tomo 4, pág. 55, o facto que origina a emoção não tem agora que radicar em qualquer provocação. Na visão do art. 133º - assente, não em juízos de ponderação ético-jurídicos dos valores conflituantes, mas sim na valoração da situação psíquica que leva o agente ao crime – o que interessa é «compreender» esse mesmo estado psíquico, no contexto em que se verificou, a fim de se poder simultaneamente «compreender» a personalidade do agente manifestada no facto criminoso e, assim, efectuar sobre a mesma o juízo de (des) valor que afinal constitui o juízo de culpa.

“A compreensibilidade da emoção é mais, assim, o estabelecer de uma relação não desvaliosa entre os factos que provocaram a emoção e essa mesma emoção. Se essa relação for estabelecida, a emoção é compreensível e provoca, portanto, uma diminuição da culpa do agente”.

Subjacente a todo o preceito está um critério de menor exigibilidade relacionado com a “sensível diminuição da culpa”, a que acresce segundo Figueiredo Dias, Comentário Conimbricense …, § 8, págs. 50/51, uma exigência adicional, exigindo-se da emoção violenta (e apenas desta, com exclusão da compaixão e desespero - § 11, pág. 52) que seja compreensível, restringindo o Autor a validade da exigência de compreensibilidade para os estados de afecto esténicos».

A «compreensibilidade», que não se confunde com a «diminuição sensível da culpa», deve ser avaliada por correspondência ao tipo social do agente, ou seja, «por uma pessoa proveniente do mesmo meio social do autor, com uma educação e uma mentalidade análogas às dele, conhecedora de todas as circunstâncias de facto»[20]. Assim, a «compreensibilidade» corresponde à sensibilidade do homem normalmente fiel ao direito à situação externa geradora da «emoção violenta», ao passo que a «diminuição sensível da culpa» corresponde à sensibilidade do mesmo homem ao conflito espiritual criado ao autor.

3.4.2. No desespero despontam estados de afecto ligados à angústia, à depressão ou à revolta.

É entendimento de M. MIGUEZ GARCIA e J. M. CASTELA RIO, que se acompanha, que «o desespero, como o elemento que privilegia o crime, significa ausência total de esperança e sentimento de absoluta incapacidade de superação das contingências exteriores que afectem negativamente o indivíduo, a falência irremediável das elementares condições para a manifestação da dignidade da pessoa. O desespero significa e traduz um estado subjectivo em que a angústia, a depressão ou as consequências de factores não domináveis colocam o estado de afecto do sujeito no ponto em que nada mais das coisas da vida parece possível ou sequer minimamente positivo»[21].

AUGUSTO SILVA DIAS trata o «desespero» como «vivência emocional caracterizável como total falta de esperança, como sensação de estar num “beco sem saída” existencial»[22].

Um estado de afecto que, segundo PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, «suscita no agente impotência diante de uma situação pessoal, de terceiro ou da vítima»[23].

O acórdão deste Supremo Tribunal supra citado condensa as contribuições da doutrina sobre a cláusula do desespero que se nos afigura pertinente convocar.

Assim:

«Para Figueiredo Dias, Comentário Conimbricense …, pág. 52, o estado de afecto desespero corresponde, não tanto a situação objectiva de falta de esperança na obtenção de um resultado ou de uma finalidade, mas sobretudo a estados de afecto ligados à angústia, à depressão ou à revolta, não se tornando necessário que deva ter-se como compreensível.

Teresa Serra, Homicídios em Série, págs. 159/160, define desespero como estado emocional que tal como a compaixão afecta o discernimento normal do agente, em que em contraposição à emoção violenta, há uma acumulação de tensão que impele o autor a um beco sem saída ou a considerar-se num beco sem saída, actuando em conformidade com esse impulso. A situação de desespero implica estados emotivos de natureza passiva, interiorizada, reflexiva, com uma componente intelectual, não sujeita à cláusula da compreensibilidade, podendo reconduzir-se ao desespero os casos de homicídio de humilhação prolongada.

João Curado Neves, in RPCC 2001 citada, pág. 186, afirma que o desespero tanto pode consistir num estado de espírito ocasional como resultar da avaliação ponderada da situação em que o agente se encontra; está em causa, não a perturbação do agente, mas a motivação do facto.

Para Frederico Lacerda Costa Pinto, in RPCC 1998 citada, pág. 288, desespero corresponde a situação de facto em que o agente se encontra numa situação de pressão psicológica que lhe apresenta o crime como a única saída possível para a situação em que se encontra.

Segundo Leal Henriques - Simas Santos, Código Penal Anotado, II, pág.132, entende-se por desespero «o estado de alma em que se encontra quem já perdeu a esperança na obtenção de um bem desejado, de quem enfrenta uma grande contrariedade ou uma situação insuportável, enfim, de quem está sob a influência de um estado de aflição, desânimo, desalento, angústia ou ânsia» - assim no acórdão do STJ de 17-01-2008, processo n.º 607/07-5ª.

Amadeu Ferreira, Homicídio Privilegiado, págs. 68 a 71 refere: Embora muito próximo da emoção violenta, distingue-se dela porque coincide em geral, com situações que se arrastam no tempo, fruto de pequenos ou grandes conflitos que acabam por levar o agente a considerar-se numa situação sem saída, deixando de acreditar, de ter esperança, exigindo a lei não apenas que o agente esteja desesperado, mas que tal desespero diminua consideravelmente a sua culpa, o que só poderá entender-se se levarmos em conta os motivos do autor.

Se é certo que “o que identifica socialmente um homem desesperado não é o valor social ou ético dos seus motivos, mas a estrutura comportamental, independentemente das suas causas”, devemos realçar que não basta identificar o homem desesperado. É necessário que tal desespero diminua sensivelmente a culpa do agente.”

Para Teresa Quintela de Brito, loc. cit, pág. 923, o desespero só pode tornar menos exigível um comportamento conforme ao direito, em função (a) da não reprovabilidade ou, mesmo, da relevância humana, ética ou social dos motivos que orientam o agente e (b) da correspondência de tais motivos a um quadro de vida tão grave que ponha em causa a própria dignidade humana do autor.

Fernando Silva, loc. cit., pág. 113, refere que o desespero está associado a situações extremas, em que o agente foi suportando uma situação que sobre ele exerce grande pressão psicológica, vendo limitar-se as suas capacidades de resistir mais à situação, e mata como forma de libertação desse estado. Neste tipo de situações o decurso do tempo foi funcionando como agravante da situação do agente, que provavelmente em silêncio e sozinho foi interiorizando o seu sentimento, acabando por o exteriorizar. Todo o circunstancialismo foi desgastando o agente, que acaba por matar por força dessa mesma situação, não encontrando outra saída para o problema que o afecta.»

A jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça elaborada sobre a figura do homicídio segue tendencialmente a doutrina de FIGUEIREDO DIAS, no sentido de que o fundamento do privilegiamento previsto no artigo 133.º, do Código Penal é a exigibilidade diminuída, considerando que o mesmo é comum a todas as circunstâncias aí previstas.

Assim, e como refere o citado acórdão de 29-10-2008: «O homicídio privilegiado assente numa cláusula de exigibilidade diminuída concretizada em certos “estados de afecto” vividos pelo agente, que diminuam sensivelmente a sua culpa».

Também o acórdão de 24-02-2016 (proc. n.º 1825/08.4PBSXL.E1.S1-3.ª), relatado pelo Conselheiro Oliveira Mendes: «Ao crime de homicídio privilegiado subjazem considerações atinentes à culpa, que se situam ao nível da exigibilidade. É a especial diminuição da culpa, em resultado de exigibilidade diminuída, que justifica e fundamenta o crime do art. 133.º, do CP».

Bem assim, o acórdão do STJ de 07-09-2016 (proc. n.º 405/14.0JACBR.C1-3.ª), relatado pelo Conselheiro Santos Cabral: «Subjacente à norma do art. 133.º, do CP, como elemento do tipo privilegiado, está um critério de menor exigibilidade relacionado com a sensível diminuição da culpa».

No mesmo sentido, e referindo-se expressamente ao facto de a exigibilidade diminuída ser fundamento comum às várias circunstâncias previstas no artigo 133.º, do Código Penal, veja-se o acórdão de 05-02-2015 (proc. n.º 160/13.0GBTMR.C1.S1-5.ª), relatado pela Conselheira Isabel Pais Martins: «O privilegiamento do homicídio deriva de uma sensível diminuição da culpa, a qual constitui denominador comum às quatro circunstâncias enunciadas no art. 133.º, do CP, todas elas com o efeito de conformar uma exigibilidade diminuída de comportamento diferente».

Veja-se ainda o acórdão de 09-04-2015 (proc. n.º 353/13.0PAPNI.L1.S1-3.ª), relatado pelo Conselheiro João Silva Miguel: «A compreensível emoção violenta, a compaixão, o desespero, ou um motivo de relevante valor social ou moral constituem cláusulas que apontam para a redução da culpa, ou cláusulas de privilegiamento, ou elementos privilegiadores, traduzindo estados de afecto vividos pelo agente, ou causas de atenuação especial da pena do homicídio».

Também no que diz respeito à delimitação das várias circunstâncias previstas no citado preceito, designadamente no que diz respeito ao facto de as mesmas terem de ser externas ao próprio agente, é a doutrina perfilhada por Figueiredo Dias que é seguida, manifestando-se a mesma sobretudo na referência (e exigência) da jurisprudência a uma relação de proporcionalidade “entre o facto injusto provocador e o facto ilícito provocado” – neste sentido vejam-se, a título exemplificativo, o acórdão do STJ de 12-03-2015, proferido no proc. n.º 40/11.4JAAVR.C2.S1, o acórdão do STJ de 29-05-2013, proferido no proc. n.º 1264/11.0PCSTB.E1.S1, ambos relatados pelo Conselheiro Pires da Graça e o acórdão do STJ de 20-06-2012, proc. n.º 416/10.4JACBR.C1.S1, relatado pelo Conselheiro Oliveira Mendes.

Por fim, e do mesmo modo, é a doutrina de FIGUEIREDO DIAS que está presente na posição assumida pela jurisprudência de que a «compreensibilidade» exigida para a emoção violenta se distinga da «diminuição sensível da culpa» e de aquela tem de ser aferida «não atendendo às suas reacções particulares ou ao seu temperamento mas, em função do padrão do homem médio, colocado na situação do agente». Mencionam-se, de entre outros, neste âmbito, os acórdãos de 31-03-2016 (proc. n.º 221/14.9JAFAR.E1.S1-5.ª), relatado pela Conselheira Isabel São Marcos, de 20-06-2012 (proc. n.º 416/10.4JACBR.C1.S1-3.ª), relatado pelo Conselheiro Oliveira Mendes e de 17-09-2009 (proc. n.º 434/09.5YFLSB-3.ª), relatado pelo Conselheiro Maia Costa.

E é também ao homem médio que a jurisprudência considera ser de recorrer para aferir da «diminuição sensível da culpa».

Como se considera no acórdão do STJ de 05-06-2014, proferido no proc. n.º 259/09.8JAPTM.E1.S1-5.ª, relatado pelo Conselheiro Rodrigues da Costa[24], a «menor exigibilidade tem de ser vista à luz do comportamento de uma pessoa normal, respeitadora das normas jurídicas, e não do particular ponto de vista do agente».

Analisando o requisito da compreensibilidade da emoção, lê-se no já citado acórdão do STJ, de 24-02-2016, que «o mesmo consiste no entendimento, compreensibilidade e perceptibilidade da emoção, no sentido de que a emoção só será relevante quando aceitável [[25]], cuja aferição deve ser avaliada em função de um padrão de homem médio, colocado nas condições do agente, com as suas características, o seu grau de cultura e formação, sem perder de vista o agente em concreto; a partir da imagem do homem médio (diligente, fiel ao direito, bom chefe de família) tentar-se-á apurar se, colocado perante o facto desencadeador da emoção, nas mesmas circunstâncias de tempo e lugar em que o agente se encontrava, se conseguiria ou não libertar da emoção violenta que dele se apoderou [[26]], sem esquecer que o que se pretende apurar não é se o homem médio também mataria a vítima ou se reagia em termos idênticos (o que interessa averiguar é se a emoção é ou não compreensível), mas sim se o homem médio não deixaria de ser sensível àquela situação, sem se conseguir libertar da emoção, para se compreender se é menos exigível ao agente que não mate naquelas circunstâncias».

O entendimento perfilhado por FIGUEIREDO DIAS e adoptado pela jurisprudência, como vimos, é o que efectivamente, quanto a nós, melhor conjuga/articula os conceitos de «imputabilidade», «consciência da ilicitude» e «diminuição sensível da culpa», assim se realizando uma interpretação sistemática das várias normas de direito penal. Sendo que, se o legislador utilizou designações diferentes, tais conceitos têm necessariamente que corresponder a realidades distintas e ter campos de aplicação perfeitamente diferenciáveis e não sobreponíveis. O mesmo se diga quanto à distinção entre o conceito de «compreensibilidade» e de «diminuição sensível da culpa».

Em breve síntese:

a) A exigibilidade diminuída constitui o fundamento do tipo privilegiado previsto no artigo 133.º, do Código Penal comum a todas as situações aí previstas – «compreensível emoção violenta», «compaixão», «desespero» e «motivo de relevante valor social ou moral».

b) A exigibilidade diminuída corresponde à «diminuição sensível da culpa» referida no artigo 133.º, do Código Penal. Uma vez que, para que possa estar em causa a prática por um agente do crime previsto no artigo 133.º, do Código Penal, este tem, previamente, que ser imputável (artigo 20.º, do Código Penal) e ter consciência da ilicitude (artigo 17.º, do Código Penal), a «diminuição sensível da culpa» tem de corresponder à sensibilidade que o homem normalmente fiel ao direito teria sentido ao conflito espiritual criado ao agente e que o afectou na sua decisão, no sentido de ter tolhido o normal cumprimento das suas intenções.

A «diminuição sensível da culpa» tem, assim, de se fundar numa situação ao mesmo tempo endógena e exógena ao agente: endógena na medida em que tem de corresponder a uma emoção sentida pelo mesmo, e exógena no sentido de que tem de ter um suporte externo e objectivo para ser atendível.

c) A «diminuição sensível da culpa» distingue-se da «compreensibilidade» exigida para a «emoção violenta»: esta corresponde à sensibilidade do homem normalmente fiel ao direito à situação externa geradora da «emoção violenta»; aquela corresponde à sensibilidade do mesmo homem normalmente fiel ao direito ao conflito espiritual criado ao agente e que o afectou na sua decisão.

d) Em ambas as situações, isto é, tanto no que diz respeito à «compreensibilidade», como no que diz respeito à «diminuição sensível da culpa», é ao homem médio, colocado na situação do agente, que tem de se atender para se verificar da existência, no caso, das mesmas.

3.5. No caso sub judice, o acórdão recorrido não considerou reunidos os pressupostos do privilegiamento do crime de homicídio contemplado no artigo 133.º do Código Penal, referindo, como fundamento, que:

«Os factores de privilegiamento que se verificariam no caso seriam a “compreensível emoção violenta” e o “desespero” da recorrente (conclusão GG)).

Segundo a recorrente, ela actuou “dominada pela sua própria revolta”, o estado febril do filho BB, a impotência que sentia para evitar uma tal situação e a “hiperbolização” da doença do filho originaram uma situação de exigibilidade diminuída; logo, de uma culpa sensivelmente diminuída (conclusões II) e JJ)).

A emoção violenta que releva para este efeito tem de ser uma forte perturbação psíquica (temporária) geradora de um estado emocional de uma tal gravidade que arrede o agente das suas determinações normais; como é, geralmente, assinalado pela doutrina[27], é uma emoção asténica (medo ou susto) ou esténica (fúria, ira, cólera, exaltação) que suscita no agente uma reacção agressiva imediata a um comportamento (que não tem que ser ilícito ou injusto) da vítima ou de terceiro.

A factualidade considerada provada (vd. o ponto 12.2) diz-nos que a arguida/recorrente, no dia 27.10.209, estava perturbada psiquicamente e apresentava um estado depressivo (com sintomas de depressão nervosa) e de grande fragilidade emocional e foi nesse estado que pôs termo à vida do filho, afogando-o nas águas do rio ….

Nada mais que isso! Nada que se aproxime, sequer, da emoção violenta tal como ficou caracterizada, que é a que fundamenta a menor exigibilidade da conduta do agente.

Como bem observa o Ex.mo PGA no seu parecer, o que ficou demonstrado foi que a arguida tirou a vida ao seu filho em concretização de um plano pensado e preparado, agindo deliberada, livre e conscientemente, o que afasta, liminarmente, a ideia de emoção violenta.

Não há dúvidas quanto à perturbação psíquica vivenciada pela arguida, mas daí até poder concluir-se que ela agiu dominada por emoção violenta vai um passo que não é possível dar sem se tropeçar no erro.

Decididamente, no seu comportamento homicida, a arguida não actuou dominada por emoção violenta.

Mas, que assim pudesse ser qualificada (a perturbação por que passava), para que pudesse considerar-se verificado este elemento que privilegia o homicídio, a emoção violenta ainda teria que ser compreensível, é dizer, deveria corresponder a uma reacção que o homem médio colocado na situação concreta do agente poderia ter[28].

Dizendo de outro modo, a emoção violenta só pode considerar-se compreensível se, nas mesmas circunstâncias excepcionais, o homem médio, o cidadão normalmente respeitador das leis pudesse rever-se no modo como o agente lidou com a situação. Ou ainda, compreensível emoção violenta é «um forte estado de afecto emocional provocado por uma situação pela qual o agente não pode ser censurado e à qual também o homem normalmente “fiel ao direito” não deixaria de ser sensível» (Figueiredo Dias, “Comentário Conimbricense do Código Penal”, Tomo I,1999, p. 50).

Ora, se não pode ter-se como verificado que o arguido actuou dominado por uma emoção de tal modo intensa que tivesse afectado a sua liberdade de determinação e, assim, diminuísse, de forma sensível, a exigibilidade de outro comportamento, da factualidade apurada também não é possível extrair a conclusão de que a sua conduta foi compreensível no sentido apontado, ou seja, no sentido de que a situação, não sendo imputável ao agente, seria, razoavelmente, de esperar de uma qualquer pessoa normalmente cumpridora das normas vigentes.

A afirmação do acórdão recorrido de que “Pode «compreender-se», de facto, que a conduta homicida vise quem, com o seu comportamento, é a origem da situação que gera o desespero que atinge o potencial homicida, e nessa medida pode aceitar-se que, de acordo com as características do caso concreto, a supressão da vida assim motivada concite uma diminuição da censura dirigida ao agente responsável; já não será assim, no entanto, quando a conduta do homicida se dirija contra quem em nada contribui (a menos que se entenda o simples adoecer como contributo) para gerar aquele mesmo desespero” merece a nossa incondicional adesão.

O desespero, enquanto elemento privilegiador do homicídio, é ainda um estado de afecto que significa ausência total de esperança, sentimento de absoluta incapacidade de superação das contingências exteriores que afectem negativamente o indivíduo, a falência irremediável das elementares condições para manifestação da dignidade da pessoa.

Traduz um estado subjectivo em que a angústia, a depressão ou as consequências de factores não domináveis colocam o estado de afecto do sujeito no ponto em que nada das coisas da vida parece possível ou sequer minimamente positivo[29].

Normalmente, o desespero reconduz-se a situações que se prolongam no tempo, fruto de pequenos ou grandes conflitos que acabam por levar o agente a considerar-se num beco sem saída e que geram um estado de afecto ligado à angústia, à depressão ou à revolta.

Como casos que se reconduzem a esse estado apontam-se, entre outros, a humilhação e/ou sujeição a abusos prolongados do agente pela vítima e o suicídio da mãe que tenta matar-se com os filhos para lhes poupar sofrimentos, mas que acaba por sobreviver-lhes[30].

A recorrente alega que agiu “em «desespero», fundado em todos os pequenos episódios que foram acontecendo ao longo dos anos que o seu filho levava já de vida, com os constantes adoeceres e internamentos, e que a levaram a achar-se num “beco sem saída”, geradores de angústia, depressão e revolta” (conclusão LL).

Porém, a verdade é que nada na factualidade apurada autoriza a conclusão de que a arguida actuou dominada pelo desespero.

Ela, simplesmente, empolava os problemas de saúde do menor BB que era acometido de doenças comuns do foro respiratório, facilmente curáveis se devidamente tratadas, como amigdalites e faringites, e, se não era capaz de cuidar do filho, sempre poderia contar com o apoio dos seus familiares próximos, como hoje, efectivamente, acontece.

Neste contexto, não se descortina como pode, fundadamente, defender-se a verificação, in casu, de menor exigibilidade de um comportamento conforme ao direito.

Como, de novo certeiramente, se afirma no acórdão recorrido “…dada a situação objectiva em causa, não se vê como o cidadão “fiel ao direito” aceitasse que o sofrimento, para uma criança de seis anos de idade, proveniente de normais amigdalites, faringites e doenças comuns do foro respiratório, ou a eventual frustração e impotência associadas à incapacidade para evitar a recorrência de tais maleitas, pudesse justificar uma decisão, como a da arguida, de dar morte a essa criança, para mais seu filho, nas condições em que ela o planeou fazer e em que executou a sua intenção homicida”.

Improcede, também quanto a este ponto, o recurso, pois é manifesto que não se verifica nenhum dos elementos de privilegiamento do crime e é correcta a subsunção jurídico-penal dos factos à previsão incriminadora do homicídio simples».

Concordamos com este entendimento e com os fundamentos expressos pois correspondem à factualidade provada e primam, há que sublinhar, por clara e elevada correcção técnico-jurídica.

Também nós consideramos que, perante os factos provados, não se pode concluir pela verificação do crime de homicídio privilegiado, p. e p. pelo artigo 133.º, do Código Penal, ao contrário da pretensão formulada pela recorrente.

Com efeito, e desde logo, não resulta da factualidade provada que a arguida-recorrente tenha agido dominada por uma qualquer «emoção violenta», muito menos «compreensível».

Na síntese realizada no citado acórdão do STJ de 09-04-2015, «A compreensível emoção violenta é um forte estado de afecto emocional provocado por uma situação pela qual o agente não pode ser censurado e à qual também o homem “fiel ao direito” não deixaria de ser sensível”, ou seja, e como se refere neste mesmo acórdão, a “emoção violenta” tem como característica ser “intensa e breve, em regra desencadeada de modo imprevisto e algo surgido do momento».

Ora, não obstante a arguida negar a existência de um plano para pôr termo à vida do seu filho bem como à sua vida, certo é que não é isso que resulta da factualidade provada.

Logo no facto 2) consta que a mesma resolveu matar o seu filho e matar-se, não sendo pois de uma “reacção”, como a arguida a qualifica de que estamos a falar.

A existência de tal plano/resolução criminosa resulta ainda da forma como a arguida levou a cabo as suas intenções: deixando um bilhete de despedida, passando primeiro pelo parque infantil, deixando um bloco com uma mensagem justificativa aos familiares e só após tendo levado a cabo o afogamento do seu filho, tentando de seguida matar-se.

Não se verifica pois a existência de uma “emoção violenta” mas, ainda que assim não fosse, a mesma nunca seria “compreensível”.

Na verdade, ao contrário do que parece defender a arguida, tal exigência não pode ser aferida tendo por base as suas reacções particulares, mas antes o homem médio.

Outra solução, como justamente se assinala no acórdão do STJ de 03-10-2007 (proc. n.º 2791/07), relatado pelo Conselheiro Maia Costa, poderia levar a que se desse «relevância atenuativa a reacções violentas desproporcionadas e extravagantes, ou a condutas completamente reprováveis, com o álibi de serem desencadeadas por “estados de alma” fortemente emotivos».

Por outras palavras, e citando o acórdão do STJ de 09-09-2010 (proc. n.º 1795/07.6GISNT.L1.S1-5.ª), relatado pelo Conselheiro Souto de Moura:

«A atenuação reclama a compreensibilidade da emoção, e esta compreensibilidade não pode ignorar a dimensão ética da dita emoção. Se o estado psicológico do agente como dado de facto, só por si, fosse suficiente, não teria sido necessário acrescentar o requisito da compreensibilidade. Esta, não releva, pois, apenas, como explicação do encadeamento causal do comportamento, porque o que está aqui em causa é a sua força atenuativa, ao nível da culpa, é dizer, da censura ética que o agente merece».

Ora, in casu, não existe um suporte ou uma realidade externa e objectiva que torne uma eventual «emoção violenta» – que reafirmamos não se verifica no caso concreto – «compreensível» à luz do homem médio: as doenças de que o filho da arguida padecia eram doenças comuns do foro respiratório, sendo que a arguida dispunha de um quadro familiar normal (de que aliás continua a dispor), levando uma vida funcional nas demais valências, designadamente profissional, isso mesmo resultando dos factos dados como provados quanto à sua situação económico-social.

Ou seja, apenas para a arguida tal resolução criminosa terá sido «compreensível», atento o seu quadro depressivo.

Porém, como já referimos, e sob pena de se dar relevância atenuativa a condutas totalmente desproporcionadas, a referida «compreensibilidade» tem de ser aferida face ao homem médio. E, tendo por referência tais parâmetros de um homem normalmente “fiel ao direito”, é evidente que a resolução da arguida de matar o seu filho e matar-se de seguida, devido às doenças comuns do foro respiratório de que este padecia, não é compreensível.

Tal circunstância poderá eventualmente ser atendida em sede de medida da pena, designadamente em sede de atenuação especial da pena, questão que apreciaremos adiante, mas não torna compreensível a (suposta) «emoção violenta».

Do mesmo modo, e no que diz respeito a um eventual estado de «desespero», ainda que se admita a sua existência, tal não basta para que se verifique o privilegiamento do homicídio: é ainda necessário que tal estado diminua sensivelmente a culpa.

Configurando-se a situação de desespero como «uma situação que se arrasta no tempo, com origem em pequenos ou grandes conflitos, que acabam por levar o agente a considerar-se numa situação sem saída, deixando de acreditar, de ter esperança, arrancando da limitação psicológica do agente desesperado, nele se englobado os casos de suicídios alargados ou de humilhações reiteradas» (acórdão do STJ de 03-03-2010, proferido no processo n.º 242/08.0GHSTC.S1-3.ª, relatado pelo Conselheiro Armindo Monteiro), poderíamos ser levados a concluir – como aliás faz a arguida – que no caso em apreço se encontra preenchido o crime de homicídio privilegiado.

Com efeito, estando provado que a arguida se encontrava perturbada psiquicamente e se encontrava em estado depressivo e de grande fragilidade emocional, apresentando sintomas de depressão nervosa, o que a levava a valorizar demasiado os problemas de saúde do seu filho, que se traduziam em doenças comuns do foro respiratório, acompanhadas de febre, tendo, por tal motivo, resolvido matá-lo e suicidar-se, considera-se existir um estado de «desespero».

Porém, o estado «desespero» que dominou a arguida e que a levou a tomar a resolução criminosa que tomou, tal como se encontra configurado nos factos provados, não é de molde a diminuir sensivelmente a culpa.

Com efeito, relembramos que a «diminuição sensível da culpa» tem de se fundar numa situação ao mesmo tempo endógena e exógena ao agente e corresponde à sensibilidade do homem normalmente fiel ao direito ao conflito espiritual criado ao agente e que o afectou na sua decisão.

Ora, como se refere no já citado acórdão do STJ de 09-09-2010, «dificilmente o desespero poderá diminuir a censura dirigida ao agente, quando ninguém, para além do homicida, contribuiu para essa situação de desespero». E, no caso, é isso mesmo que se verifica: a inexistência de uma situação exógena ao agente que torne atendível o estado de «desespero» da arguida.

Sem tal circunstância exógena um homem normalmente fiel ao direito não seria sensível ao conflito espiritual criado na arguida e que a afectou na sua decisão. Com efeito, como bem referem as instâncias a este respeito, «não se vê como o cidadão “fiel ao direito” aceitasse que o sofrimento, para uma criança de seis anos de idade, proveniente de normais amigdalites, faringites e doenças comuns do foro respiratório, ou a eventual frustração e impotência associadas à incapacidade para evitar a recorrência de tais maleitas, pudesse justificar uma decisão, como a da arguida, de dar morte a essa criança, para mais seu filho, nas condições em que ela o planeou fazer e em que executou a sua intenção homicida».

Em conclusão, bem andaram as instâncias no que diz respeito à qualificação jurídico-penal que realizaram dos factos praticados pela arguida: inexiste qualquer facto que permita concluir pelo privilegiamento do crime de homicídio que a mesma praticou, pelo que consideramos que, face aos factos provados, a arguida cometeu um crime de homicídio, p. e p. pelo artigo 131.º, do Código Penal.

Improcede, assim, nesta parte o recurso interposto.

4. Atenuação especial da pena

4.1. Estando assente que a arguida praticou um crime de homicídio, p. e p. pelo artigo 131.º, do Código Penal, cumpre analisar a segunda questão objecto do presente recurso, isto é, saber se deve ser aplicada a atenuação especial da pena, prevista nos artigos. 72.º e 73.º, do Código Penal.

Em síntese, considera a arguida que uma vez que «a morte do BB resultou de uma conduta da Recorrente também destinada a pôr termo à sua própria vida, sempre será de concluir que as circunstâncias anteriores, posteriores e contemporâneas ao crime diminuem de forma acentuada a culpa da Recorrente e a necessidade da pena”. Defende, ainda, que “terá de se aferir da diminuição da culpa da Recorrente tendo por base o estado psíquico em que se encontrava e o facto de, no seu entendimento, prejudicado e nebuloso, nada mais restar, na tentativa de “libertar” o filho, do que a morte daquele a que se “juntaria” a sua própria morte”. A isto acresce, em seu entendimento, “o tempo já decorrido, mais de 7 (sete) anos, a regularidade da conduta da Recorrente, a “sujeição” da mesma a tudo quanto vem se afigurando como necessário, e a inexistência de uma qualquer repulsa social quanto à sua pessoa, até porque um qualquer alarme social decorrente do crime já esmoreceu, sempre à sua pessoa será aplicável a aludida atenuação especial da pena».

Por seu turno, o Ministério Público entende de forma diversa, aderindo ao que consta do acórdão recorrido, que «a arguida, durante o período aqui em causa, nunca vivenciou realmente particulares dificuldades para cuidar do seu filho menor e para lhe proporcionar condições de segurança e bem-estar: assim, a arguida tinha uma vida familiar estável, mostrando-se integrada numa família onde, aparentemente, os laços de solidariedade entre os seus membros eram e são fortes, o que lhe permitiu sempre contar com o apoio dos seus familiares mais próximos nas tarefas correspondentes à maternidade; tinha acesso a serviços de saúde para debelar as doenças que atingiam o seu filho; beneficiava de ocupação profissional e de rendimentos mensais que lhe permitiam fazer face às suas necessidades e às necessidades do seu filho (e demais membros do seu agregado familiar); tinha, como tem, como habilitações literárias, 12 anos de escolaridade, e experiência profissional que lhe tem permitido (como permitia à data dos factos) manter-se empregada apesar das mudanças de emprego a que foi sendo obrigada ao longo do tempo».

Vejamos então.

4.2. Antes de mais, cumpre lembrar que o facto de se afastar a integração nos elementos constitutivos do crime de homicídio privilegiado não afasta a consideração sobre uma eventual aplicação do regime de atenuação especial.

Como se pode ler no acórdão do STJ de 13-10-2010 (proc. n.º 200/06.0JAAVR.C1.S1-3.ª), relatado pelo Conselheiro Santos Cabral, «Como refere Figueiredo Dias a questão é ainda saber se, sempre que o juiz considere verificados os pressupostos de que depende o privilegiamento, deve necessariamente renunciar a uma atenuação especial da pena. O princípio geral de proibição de dupla valoração de que o disposto no proémio do art. 71,º, n.º 2 constitui apenas uma manifestação, proíbe que o mesmo substrato considerado para integração do art. 133.° seja de novo valorado para efeito de atenuação especial da pena. Mas é evidente que, para além dos elementos descritos no art. 133.°, podem no caso convergir outros e diferentes elementos relevantes para efeito dos arts. 71.° e 72.° (v. g., o do art. 72.°-2). Nada impede nestes casos que, determinada a medida da pena face ao art. 133.°, aquela seja depois especialmente atenuada face às regras especiais de determinação da pena contidas nos arts. 72.° e 73.°».

Também PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE considera que os estados de afecto referenciados no artigo 133.º «também podem ser considerados para efeitos de atenuação especial da pena quando se trate de uma situação de facto excepcional que diminua acentuadamente a culpa do agente»[31].

Assumindo-se este entendimento num quadro de ponderação simultânea do crime privilegiado e da atenuação especial da pena, não se suscitarão dúvidas de que, a não verificação de factos configuradores do privilegiamento não impedirá que os factos provados possam apontar no sentido da atenuação especial, estando salvaguardado o respeito pelo princípio da proibição de dupla valoração consagrado no artigo 72.º, n.º 3, do Código Penal.

4.3. O instituto da atenuação especial da pena tem em vista casos especiais expressamente previstos na lei, bem como, em geral, situações em que ocorrem circunstâncias anteriores, contemporâneas ou posteriores ao crime que diminuem de forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade de pena (correspondendo a necessidade de pena a exigências de prevenção), conforme dispõe o artigo 72.º, n.º 1, do Código Penal.

Sendo seu princípio regulador a acentuada diminuição da ilicitude do facto, da culpa do agente ou da necessidade da pena, a atenuação especial da pena só pode ter lugar em casos extraordinários ou excepcionais, numa situação em que seja de concluir que a adequação à culpa e às necessidades de prevenção geral e especial não é possível dentro da moldura penal abstracta prevista para o tipo legal em causa.

O n.º 2 do artigo 72.º enumera algumas circunstâncias que podem ser consideradas para o efeito de diminuir de forma acentuada ou a ilicitude do facto, ou a culpa ou a necessidade da pena

Para a produção do benefício da atenuação especial da pena exige-se, referem M. MIGUEZ GARCIA e J. M. CASTELA RIO, «uma diminuição acentuada da ilicitude do facto, da culpa do agente ou da necessidade da pena (prevenção geral positiva ou de integração). Qualquer destas situações não tem valor atenuante especial de per si, na sua existência objectiva, mas tem sempre de ser conexionada com um certo preceito que terá de produzir: o de diminuir acentuadamente a ilicitude ou a culpa do agente (ACTAS, 1965, p. 129) ou a necessidade da pena»[32].

Convocando de novo o acórdão do STJ de 24-02-2016, (proc. n.º 1825/08.4PBSXL.E1.S1-3.ª), constitui pressuposto material da atenuação especial da pena «a ocorrência de acentuada diminuição da culpa ou das exigências de prevenção, sendo certo que tal só se deve ter por verificado quando a imagem global do facto, resultante das circunstâncias atenuantes, se apresente com uma gravidade tão diminuída que possa razoavelmente supor-se que o legislador não pensou em hipóteses tais quando estatuiu os limites normais da moldura cabida ao tipo de facto respectivo».

Como explana Figueiredo Dias[33], referindo-se  às circunstâncias descritas nas diversas alíneas do artigo 72.º do Código Penal, «passa-se aqui algo de análogo – não de idêntico! - ao que vimos (…) suceder com os exemplos-padrão: por um lado, outras situações que não as descritas nas alíneas [do n.º 2 do art. 72.º] podem (e devem) ser tomadas em consideração, desde que possuam o efeito requerido de diminuir, por forma acentuada, a culpa do agente ou as exigências da prevenção; por outro lado, as próprias situações descritas nas alíneas do art. 73.º-2 não têm o efeito «automático» de atenuar especialmente a pena, mas só o possuirão se e na medida em que desencadeiem o efeito requerido».

Assim, não tendo tais circunstâncias (ou outras que eventualmente sejam susceptíveis de integrar o n.º 1 do artigo 72.º, n.º 1, do Código Penal) o efeito automático de atenuar especialmente a pena, conclui-se que a acentuada diminuição da ilicitude, da culpa ou das exigências de prevenção constitui o autêntico pressuposto material da atenuação especial da pena.

Na síntese realizada no acórdão do STJ de 13-10-2010 (proc. n.º 200/06.0JAAVR.C1.S1-3.ª), relatado pelo Conselheiro Santos Cabral, «a atenuação especial da pena só pode, pois, ser decretada (mas se puder deve sê-lo) quando a imagem global do facto revele que a dimensão da moldura da pena prevista para o tipo de crime não poderá realizar adequadamente a justiça do caso concreto, quer pela menor dimensão e expressão da ilicitude ou pela diminuição da culpa, com a consequente atenuação da necessidade da pena – vista a necessidade no contexto e na realização dos fins das penas».

A arguida funda a consideração de que deve ser aplicado o instituto da atenuação especial da pena essencialmente em duas ordens de razões: (a) por um lado, na perturbação psicológica e fragilidade emocional da arguida, patente quer na forma exacerbada como a mesma valorizava as doenças comuns do foro respiratório de que o seu filho padecia, quer na decisão de pôr termo não só à vida do filho como à sua própria vida; (b) por outro lado, no facto de ter decorrido muito tempo sobre a prática do crime, encontrando-se a arguida inserida socialmente.

A primeira circunstância poderá ter fundamento no n.º 1 do artigo 72.º do Código Penal; a segunda na alínea d) do n.º 2 do mesmo preceito.

Em ambos os casos, como já indicado, a atenuação especial da pena só pode/deve ser decretada quando a imagem global do facto revele que a dimensão da moldura da pena prevista para o tipo de crime não poderá realizar adequadamente a justiça do caso concreto, quer pela menor dimensão e expressão da ilicitude ou pela diminuição da culpa, ou das necessidades da pena (necessidades de prevenção). Não é, pois, apenas a culpa o vector a ter em conta na análise a efectuar.

Ora, encontra-se provado que a arguida agiu num contexto e num condicionalismo muito específico e invulgar que é susceptível, quanto a nós, revelar uma forte diminuição da culpa da arguida. De uma culpa cuja intensidade não se considerou suficiente para o privilegiamento do crime mas que, aceitamo-lo, poderá justificar a atenuação especial da pena. A este propósito, cumprirá referir que a diminuição da culpa no homicídio privilegiado tem de ser mais acentuada do que no âmbito da atenuação especial do artigo 72.º do Código Penal[34].

Com efeito, não obstante em termos de culpa e para efeitos do crime de homicídio privilegiado, não ser de atender ao facto da arguida, aquando do cometimento do crime, se encontrar perturbada psiquicamente em estado depressivo e de grande fragilidade emocional - uma vez que, reiteramos, inexiste uma situação exógena ao agente que torne atendível o estado de «desespero» da arguida, pelo que, sem tal circunstância exógena um homem normalmente fiel ao direito não seria sensível ao conflito espiritual criado na arguida e que a afectou na sua decisão – tal circunstancialismo fáctico e condicionalismo que rodeou a prática do crime não podem ser ignorados, relevando para a constatação de uma diminuição acentuada da culpa no crime de homicídio executado pela arguida para efeitos da aplicação da atenuação especial.

Tal circunstancialismo, anterior à prática do crime, a que acresce a circunstância, igualmente anterior, de a arguida ter decidido matar o filho e suicidar-se devido à hiperbolização das doenças deste como consequência da perturbação psíquica de que a arguida padecia, levam-nos a concluir, ao contrário do que fizeram as instâncias, pela existência de uma diminuição da culpa susceptível de suportar a atenuação especial da pena, nos termos do artigo 72.º, do Código Penal.

Acresce, por outro lado, que estamos em crer que sempre se verificaria a circunstância prevista na alínea d) do n.º 2 do artigo 72.º do Código Penal – o tempo decorrido após a prática do crime e a boa conduta da arguida.

Ora, no caso concreto, sobre a prática do crime, em 7 de Outubro de 2009, já decorreram quase 8 anos, dilação para a qual a arguida em nada contribuiu, resultando dos factos provados que a recorrente, que se tem mantido em liberdade, tem vindo a beneficiar de apoio psiquiátrico, contando com o apoio do marido (com quem continua casada e de quem já teve nova filha), da irmã, da cunhada e de outros familiares. Não possui antecedentes criminais, encontra-se a trabalhar, parecendo, pois, do conjunto da factualidade respeitante às suas condições económico-sociais ter feito um esforço sério e empenhado em refazer a sua vida e resolver o seu problema psiquiátrico/psicológico, continuando a merecer aceitação no meio social onde reside, não se verificando indícios de rejeição, de hábitos ou de condutas anti-sociais, ou seja, não se verificando já qualquer “alvoroço social”.

O tempo já decorrido desde a prática do crime, mantendo a arguida boa conduta, pode constituir uma circunstância que revele a inadequação do facto à sua personalidade e sobre a necessidade da pena. O tempo aqui assume nítida eficácia erosiva e a sua conjugação com a boa conduta do agente traduz culpa mitigada[35].

Também GERMANO MARQUES DA SILVA pondera que, se o decurso do tempo é causa de prescrição da punibilidade, também pode constituir, por idênticas razões, causa de atenuação especial, pois as necessidades de punição serão mais reduzidas[36].

Assim – como já se decidiu noutras situações em que estava em causa a alínea d) do n.º 2 do artigo 72.º do Código Penal - impõe-se que se conclua que se mostram acentuadamente diminuídas as exigências de prevenção, pelo que, também por esta via, deve a pena ser especialmente atenuada[37]

Procede, assim, nesta parte a pretensão da arguida, resultando prejudicada, nos termos dos artigos 608.º, n.º 2 e 130.º, ambos do Código de Processo Civil, ex vi do artigo 4.º, do CPP, a apreciação da inconstitucionalidade invocada pela recorrente (conclusão TT), relativamente à interpretação da norma contida no artigo 72.º o Código Penal realizada no acórdão recorrido.

5. Medida concreta da pena

5.1. A nova moldura do crime de homicídio, p. e p. pelo artigo 131.º, do Código Penal, determinada pela atenuação especial, nos termos do artigo 73.º, n.º 1, alíneas a) e b), do Código Penal, praticado pela arguida, será, assim, de 19 meses e 6 dias de prisão (limite mínimo) a 10 anos e 8 meses de prisão (limite máximo).

De acordo com o disposto no artigo 40.º do Código penal, a aplicação da pena visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade, não podendo, em caso algum, a pena ultrapassar a medida da culpa. Nos termos do artigo 71.º, n.º 1, do mesmo Código, a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção.

Convocando o que escrevemos no acórdão de 09-03-2016, proferido no processo n.º 26/14.7GAAMR-3ª, na determinação concreta da pena há que atender às circunstâncias do facto, que deponham a favor ou contra o agente, nomeadamente ao grau de ilicitude, e a outros factores ligados à execução do crime, à intensidade do dolo, aos sentimentos manifestados no cometimento do crime e aos fins e motivos que o determinaram, às condições pessoais do agente, à sua conduta anterior e posterior ao crime (artigo 71.º, n.º 2, do Código Penal).

Sobre a determinação da pena, em razão da culpa do agente e das exigências de prevenção, lê-se no acórdão deste Supremo Tribunal, de 15-12-2011 (proc. n.º 706/10.6PHLSB.S1-5.ª), relatado pelo Conselheiro Rodrigues da Costa, também convocado no acórdão de 27-05-2015 (proc. n.º 445/12.3PBEVR.E1.S1-3.ª), relatado pelo Conselheiro João Silva Miguel:

«Ao elemento prevenção, no sentido de prevenção geral positiva ou de integração, vai-se buscar o objectivo de tutela dos bens jurídicos, erigido como finalidade primeira da aplicação de qualquer pena, na esteira de opções hoje prevalecentes a nível de política criminal e plasmadas na lei, mas sem esquecer também a vertente da prevenção especial ou de socialização, ou, segundo os termos legais: a reintegração do agente na sociedade (art. 40.º n.º 1 do CP).

Ao elemento culpa, enquanto traduzindo a vertente pessoal do crime, a marca, documentada no facto, da singular personalidade do agente (com a sua autonomia volitiva e a sua radical liberdade de fazer opções e de escolher determinados caminhos) pede-se que imponha um limite às exigências, porventura expansivas em demasia, de prevenção geral, sob pena de o condenado servir de instrumento a tais exigências.

Neste sentido é que se diz que a medida da tutela dos bens jurídicos, como finalidade primeira da aplicação da pena, é referenciada por um ponto óptimo, consentido pela culpa, e por um ponto mínimo que ainda seja suportável pela necessidade comunitária de afirmar a validade da norma ou a valência dos bens jurídicos violados com a prática do crime. Entre esses limites devem satisfazer-se, quanto possível, as necessidades de prevenção especial positiva ou de socialização (Cf. FIGUEIREDO DIAS, Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas Do Crime, Editorial de Notícias, pp. 227 e ss.).

Quer isto dizer que as exigências de prevenção traçam, entre aqueles limites óptimo e mínimo, uma submoldura que se inscreve na moldura abstracta correspondente ao tipo legal de crime e que é definida a partir das circunstâncias relevantes para tal efeito e encontrando na culpa uma função limitadora do máximo de pena. Entre tais limites é que vão actuar, justamente, as necessidades de prevenção especial positiva ou de socialização, cabendo a esta determinar em último termo a medida da pena, evitando, em toda a extensão possível (...) a quebra da inserção social do agente e dando azo à sua reintegração na sociedade (FIGUEIREDO DIAS, ob. cit., p. 231).

Ora, os factores a que a lei manda atender para a determinação concreta da pena são os que vêm indicados no referido n.º 2 do art. 71.º do CP e (visto que tal enumeração não é exaustiva) outros que sejam relevantes do ponto de vista da prevenção e da culpa, mas que não façam parte do tipo legal de crime, sob pena de infracção do princípio da proibição da dupla valoração.»

Como sempre se tem assinalado, a defesa da ordem jurídico-penal, tal como é interiorizada pela consciência colectiva (prevenção geral positiva ou de integração), é a finalidade primeira, que se prossegue, no quadro da moldura penal abstracta, entre o mínimo, em concreto, imprescindível à estabilização das expectativas comunitárias na validade da norma violada, e o máximo, que a culpa do agente consente; entre estes limites, satisfazem-se quando possível, as necessidades de prevenção especial positiva ou de socialização.

Como justamente refere MARIA JOÃO ANTUNES, «[s]e a medida da pena é a protecção de bens jurídicos e, na medida do possível, a reintegração do agente na sociedade, e se a pena não pode ultrapassar, em caso algum, a medida da culpa (artigo 40.º, n.os 1 e 2, do CP), então a medida da pena há-de ser dada pela medida da necessidade de tutela dos bens jurídicos, sem ultrapassar a medida da culpa, actuando os pontos de vista de prevenção especial de socialização entre o ponto óptimo e o ponto ainda comunitariamente suportável de tutela de tais bens»[38].

A medida da pena, considera a mesma autora, «há-de ser dada pela medida da necessidade de tutela dos bens jurídicos, face ao caso concreto, num sentido prospectivo de tutela das expectativas da comunidade na manutenção (ou mesmo no reforço) da vigência da norma infringida»[39].

A prevenção geral positiva ou de integração significa, pois, sublinha-o AMÉRICO TAIPA DE CARVALHO, que a pena é um meio de interpelar, a sociedade e cada um dos seus membros, para a relevância social e individual do respectivo bem jurídico tutelado penalmente. A pena serve a função positiva de interiorização ou aprofundamento dessa interiorização dos bens jurídico-penais.

A prevenção geral positiva tem ainda, considera o mesmo autor, a dimensão ou objectivo da pacificação social ou, por outras palavras, do restabelecimento ou revigoramento da confiança da comunidade na efectiva tutela penal estatal dos bens jurídicos fundamentais à vida colectiva e individual. Esta mensagem de confiança e de pacificação social é dada, especialmente, através da condenação penal, enquanto reafirmação efectiva da importância do bem jurídico lesado[40].

Assim, a pena a aplicar deverá satisfazer as exigências de prevenção que a comunidade reclama e ser adequada à culpabilidade, isto é, consonante com a culpa revelada. A pena deve corresponder à sanção que a arguida merece pela prática do crime, ou seja, deve corresponder à gravidade do mesmo.

5.2. No caso em apreço, relevam as exigências de prevenção geral expressas na perturbação provocada na comunidade pelo crime de homicídio competido pela arguida. Está em causa o bem mais valioso concebível: a vida humana. E, para mais, a vida do próprio filho.

As exigências de prevenção apresentam, pode dizer-se, algum esmorecimento, quer em função do estado depressivo em que vivia a arguida na altura da prática dos factos, do suicídio frustrado, quer em função do tempo que já decorreu.

De acordo com a matéria fáctica assente, a arguida apresenta uma inserção social ajustada ao seu meio residencial.

Tem vindo a aceitar tratamento de âmbito psicológico e psiquiátrico. Refez a sua vida afectiva, tendo retomado a sua vida conjugal com o marido, da qual resultou o nascimento de uma filha.

Revela hábitos de trabalho, sendo positivo reconhecer que a arguida tem revelado sempre empenho em termos laborais.

Apresenta suporte consistente por parte do cônjuge e da família deste, merecendo aceitação no meio social da sua residência, apresentando aí inserção social ajustada e discreta, não se verificando indícios de rejeição, de hábitos ou de condutas anti-sociais.

Observa-se no caso presente uma acentuada diminuição da necessidade da própria pena, patente, como a própria recorrente reconhece, no facto de o maior dos castigos já o haver sofrido, ao haver sobrevivido à morte do seu filho, com quem pretendia então «partir».

Conforme resulta do Relatório Social e do ponto 12.18) dos factos provados, a recorrente continua a merecer aceitação no meio social de residência, apesar de ser por todos conhecida a sua situação processual.

Em face dos elementos expostos, revelando-se mais esbatidas as necessidades de prevenção especial, consideramos adequada e justa a aplicação à arguida de uma pena de 5 anos de prisão.

6. Suspensão da execução da pena

Nos termos do artigo 50.º, n.º 1, do Código Penal, «O tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição».

O pressuposto material da suspensão da execução da pena, salienta PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, «é o da adequação da mera censura do facto e da ameaça da prisão às necessidades preventivas do caso, sejam elas de prevenção geral, sejam de prevenção especial»[41].

A suspensão da execução da pena assenta, pois, na formulação de um juízo de prognose, referido ao momento da sentença (e não ao momento da prática do crime), favorável quanto ao futuro comportamento do arguido, ou seja, na formulação de um juízo de que ele não praticará novos crimes.

Perante as condições de vida actuais da recorrente, tendo presente a sua conduta posterior ao crime, a sua inserção social e aceitação na família e na comunidade, estamos convictos de que a execução da pena de prisão só assumiria compreensibilidade numa perspectiva essencialmente retributiva, de expiação.

Assim, consideramos que a suspensão da execução da pena de prisão reforçará os desígnios de prevenção especial, constituindo um apoio acrescido e um reforço da  reinserção social da arguida, sendo certo de que, perante a aceitação que a mesma tem merecido na comunidade, a suspensão será encarada, além do mais, como um sinal de humanidade e não como sinal de impunidade.

Nestes termos, ao abrigo do disposto no artigo 50.º do Código Penal, a execução da pena de 5 anos de prisão aplicada à arguida é suspensa por igual período, com sujeição ao regime de prova.

A arguida fica obrigada a submeter-se a acompanhamento clínico psiquiátrico e psicológico visando a sua recuperação psico-emocional.

III – DECISÃO

Em face do exposto, acordam no Supremo Tribunal de Justiça em:

1 - Negar provimento ao recurso interposto pela arguida AA no que respeita à pretendida convolação para o crime de homicídio privilegiado, mantendo-se a subsunção efectuada no acórdão recorrido ao homicídio p. e p. pelo artigo 131.º do Código Penal;

2 - Conceder provimento ao recurso interposto pela mesma arguida no que respeita à atenuação especial da pena e suspensão da sua execução e, em consequência:

a) Fixar a pena de 5 (cinco) anos de prisão pela prática do crime de homicídio p. e p. pelo artigo 131.º do Código Penal, especialmente atenuada, nos termos dos artigos 72.º e 73.º, n.º 1, alíneas a) e b), do Código Penal;

b) Suspender a execução da pena por igual período de tempo (5 anos), com sujeição ao regime da prova, no âmbito do qual fica a arguida obrigada a submeter-se a acompanhamento clínico psiquiátrico e psicológico.

Sem custas (artigo 513.º, n.º 1, do CPP)

(Consigna-se que foi observado o disposto no artigo 94.º, n.º 2, do CPP)

Supremo Tribunal de Justiça, 28 de Junho de 2017

Manuel Augusto de Matos(Relator)

Rosa Tching

______________________________________________________
[1] Mantêm-se os trechos destacados e sublinhados do original.
[2] Homicídio Privilegiado, Almedina, 1996 (reimpressão), p. 13.
[3] TERESA SERRA, “Homicídios em Série”, in Jornadas de Direito Criminal – Revisão do Código Penal – Alterações ao Sistema Sancionatório e Parte Especial, CEJ, 1998, p. 158.
[4] TERESA SERRA, ob. cit, p. 159.
[5] “O Homicídio Privilegiado: Algumas Notas”, in Direito Penal – Parte Especial: Lições, Estudos e Casos, Coimbra Editora, 2007, pp. 316 e segs.
[6] Direito Penal – Parte Especial – Crimes contra as Pessoas, AAFDL, Lisboa, 1983.
[7] “Crime de Homicídio Privilegiado – Acórdão da Relação de Évora de 4 de Fevereiro de 1997”, RPCC, 8, 1998.
[8] Ob. cit. p. 143.
[9] “Um caso de homicídio privilegiado”, in Direito Penal II, AAFDL, 1984.
[10] Comentário Conimbricense do Código Penal, tomo I, Coimbra Editora, 1999.
[11] Ob. cit.                                         
[12] “O Homicídio Privilegiado na Doutrina e na Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça”, RPCC, 11, 2001.
[13] FIGUEIREDO DIAS, Comentário…, cit., p.48.
[14] Código Penal – Parte Geral e Especial, 2015 – 2.ª Edição, Almedina, p. 541.
[15] Crimes contra a vida e a integridade física, 2.ª edição, revista e actualizada, AAFDL, 2007, p. 38.
[16] Comentário …, cit., p. 50.
[17] Ob. cit., pp. 63 e 96.
[18] Ob. cit., p. 39.
[19] Disponível, como os demais acórdãos que se citarem sem outra indicação quanto à sua fonte, nas Bases Jurídico-Documentais do IGFEJ, em www.dgsi.pt.
[20] TERESA QUINTELA DE BRITO, ob. cit., p. 333.
[21] Ob. cit., p. 546.
[22] Ob. cit., p. 44.
[23] Comentário do Código Penal, 3.ª Edição Actualizada, Universidade Católica Editora, p. 523.
[24]Sumário disponível em
http://www.stj.pt/index.php/jurisprudencia-42213/sumarios.
[25] Aceitabilidade que se refere apenas à emoção e não ao facto de matar – cf. Fernando Silva, Direito Penal Especial – Crimes Contra as Pessoas (2005), 91.
[26] Neste sentido Curado Neves, “O homicídio privilegiado na doutrina e na jurisprudência do STJ”, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, 11, 2001, 181, Sousa e Brito, Direito Penal (AAFDL-1984), II, 64 e Fernando Silva, ibidem, 94. Em sentido semelhante os acórdãos deste Supremo Tribunal de 98.11.24 e de 00.03.29, proferidos nos processos n.ºs 645/98 e 27/00.
[27] Cfr., por todos, Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal, UCE, 2.ª edição actualizada, 409.
[28] Paulo Pinto de Albuquerque, ob. cit., 409.
[29] Acórdãos do STJ, de 28.08.2005 e de 14.07.2010, acessíveis em www.dgsi.pt
[30] Exemplos referidos por M. Miguez Garcia e J.M. Castela Rio e in “Código Penal – Parte geral e especial”, Almedina, 2015, p.546.
[31] Comentário do Código Penal, cit., p. 367.
[32] Ob. cit., p. 394.
[33] As Consequências Jurídicas do Crime, 1993, Editorial Notícias, p. 306.
[34] V. AUGUSTO SILVA DIAS, ob. cit., p. 37.
[35] SÁ PEREIRA e A. LAFAYETTE, citados por M. MIGUEZ GARCIA e J. M. CASTELA RIO, ob. cit., p. 395.
[36] Direito Penal Português, Parte Geral, III – Teoria das penas e medidas de segurança, 2.ª Edição, Verbo, Lisboa, 2008, p. 163.
[37] Cf., por exemplo, o acórdão do STJ de 24-02-2016, já citado no texto, o acórdão do STJ de 09-07-2014, proc. n.º 38/05.1SVLSB.L2.S1, relatado pela Conselheira Isabel São Marcos, o acórdão do STJ de 18-10-2012, proc. n.º 32/11.3JALRA.C1.S1, relatado pelo Conselheiro Santos Carvalho, disponível em http://www.stj.pt/index.php/jurisprudencia-42213/sumarios, e o acórdão de 13-11-2014 (proc. n.º 74/14.7YFLSB), relatado pelo Conselheiro Arménio Sottomayor.
[38] Consequências Jurídicas do Crime, Coimbra Editora, p. 44.
[39] Idem, ibidem.
[40] Direito Penal – Parte Geral, 2.ª Edição, Coimbra Editora, pp. 65- 66.
[41] Ob. cit., p. 305.