Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
381/21.2T8PVZ.P1.S1
Nº Convencional: 1.ª SECÇÃO
Relator: MANUEL AGUIAR PEREIRA
Descritores: CULPA IN CONTRAHENDO
BOA -FÉ
RESPONSABILIDADE CONTRATUAL
PRINCÍPIO DA CONFIANÇA
RECUSA
CONTRATO DE DISTRIBUIÇÃO
ILICITUDE
PRESSUPOSTOS
NULIDADE DE ACÓRDÃO
OPOSIÇÃO ENTRE OS FUNDAMENTOS E A DECISÃO
AMBIGUIDADE
Data do Acordão: 06/18/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA PARCIALMENTE A REVISTA
Sumário :
I) A observância das regras da boa fé no decurso das negociações tendo em vista a celebração de um contrato, a que alude o artigo 227.º n.º 1 do Código Civil, impõe que, nos preliminares como na formação do contrato, as partes pautem a respectiva conduta de forma a não criar na parte contrária a confiança na celebração do contrato que não tenham intenção de celebrar;

II) Tendo sido criada na contraparte essa confiança na celebração do contrato, a ruptura ou o abandono das negociações e a recusa de celebração do contrato só é ilícita se for injustificada e com desrespeito pelos parâmetros éticos a que a parte está vinculada, nomeadamente com violação dos deveres de honestidade e seriedade ou desconsideração dos padrões aceites de um relacionamento sério na contratação;

III) Provando-se que uma das partes apresentou um plano de gestão da sua actividade de distribuição comercial de produtos da outra, o qual foi objecto de revisão a solicitação desta última, mas relativamente aos quais não foi dada qualquer aprovação, e que cerca de quatro meses decorridos esta comunicou à primeira não ser sua intenção celebrar com ela o contrato visado, não se mostra preenchida a sua responsabilidade civil com base no artigo 227.º n.º 1 do Código Civil pelos prejuízos que para a primeira possam ter resultado da quebra das negociações comerciais com vista a celebrar o contrato de distribuição;

IV) Nessas circunstâncias, não se tendo demonstrado qualquer conduta violadora das regras da boa-fé por parte de quem se recusou a celebrar o contrato, o seu comportamento no âmbito das negociações em curso não é objectivamente adequado a criar na contraparte a confiança na celebração do contrato que ela tem interesse em concluir, não havendo lugar à peticionada indemnização.

Decisão Texto Integral:

EM NOME DO POVO PORTUGUÊS, acordam os Juízes Conselheiros da 1.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça:




I - RELATÓRIO

Parte I – Introdução

1) MAIBIR, S.A., com sede em ..., subsequentemente incorporada pela sociedade DISTRA, S.A., com sede em ..., instaurou contra BIRKENSTOCK GMBH & CO KG, com sede em ..., Alemanha, (actualmente Ockenfels Group GmbH & Co. KG) a presente acção de processo comum, pedindo que esta seja condenada a pagar-lhe:

- a quantia de 1.287.320,00 €, sendo 663.428,00 € a título de lucros cessantes referentes às vendas por grosso que deixou de fazer nos anos de 2021 (Coleção Outono/Inverno) e 2022, e 623.892,00 € a título de lucros cessantes referentes às vendas a retalho que deixou de fazer nos anos de 2021 e 2022;

- a quantia de 61.568,51 € a título de danos patrimoniais.

- quantia a liquidar em execução de sentença, a título de indemnização por lucros cessantes, por conta das vendas que deixar de fazer referentes à coleção Primavera/Verão 2021.

Alegou para tanto, e em síntese, que celebrou com a ré dois contratos sucessivos, com duração de 3 anos cada um, de distribuição exclusiva em Portugal de produtos da marca da ré mas que, por opção desta e contra todas as espectativas que havia criado em função do estado adiantado das negociações entretanto encetadas, a ré não se dispôs a celebrar um contrato parar o biénio 2021/2022, com os inerentes prejuízos que sofreu, derivadas da necessidade de reduzir as encomendas, e da perda da margem de lucro proveniente da comercialização dos produtos da ré e bem assim a perda do investimento numa loja do Centro Comercial ... assumida na expectativa de celebração de novo contrato com a ré.

2) A ré contestou invocando a incompetência absoluta do Tribunal por preterição de Tribunal Arbitral, e alegando que os contratos de distribuição celebrados entre as partes tinham prazo certo não renovável, e que não houve lugar a um terceiro contrato, justamente porque a proposta da autora não foi por si aceite.

3) Foi oportunamente julgada improcedente a excepção da incompetência invocada pela ré.

Realizada a audiência final em primeira instância foi proferida sentença que julgou a acção improcedente e absolveu a ré de todos os pedidos contra si deduzidos.

4) Tendo a autora interposto recurso de apelação o Tribunal da Relação do Porto viria a julgar a apelação procedente revogando a sentença recorrida e condenando a ré a indemnizar a autora “pelo prejuízo decorrentes da quebra das negociações comerciais com vista a celebrar contrato de distribuição a liquidar posteriormente nos termos do artigo 609.º n.º 2 do Código de Processo Civil”.


◊ ◊



Parte II – A Revista

5) Inconformada a ré interpôs recurso de revista para este Supremo Tribunal de Justiça, tendo formulado as seguintes conclusões nas respectivas alegações:

“1. O presente recurso tem por objeto o Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto, o qual julgou – mal – procedente a apelação apresentada pela Autora, e, consequentemente, condenou a Ré a indemnizar a Autora pelos prejuízos decorrentes da quebra das negociações comerciais com vista à celebração de contrato de distribuição, a liquidar posteriormente nos termos do artigo 609.º, n.º 2 do Código de Processo Civil .

2. O acórdão recorrido apresenta erros de julgamento e contradições que tornam ininteligível a decisão na medida em que o Tribunal não responde, de forma sustentada, às duas questões que importa considerar para a decisão da causa: (i) se houve responsabilidade da Ré no âmbito da cessação das negociações ("culpa in contrahendo") e (ii) quais as obrigações de indemnização que recairiam sobre a Ré no caso de ser condenada por tal responsabilidade.

3. Em comparação com a sentença proferida pelo Tribunal de Primeira Instância, não encontramos no acórdão recorrido um raciocínio lógico, uma ponderação e também uma fundamentação sólida para concluir que a Ré incorreu em responsabilidade. O seguinte excerto do acórdão recorrido é um bom exemplo: "A Requerida manteve a Requerente em "lume brando", transmitindo-lhe a ideia de contratualização e acabou por descartar, de um momento para o outro, todo o processo negocial, sem dar qualquer justificação à Requerente, assumindo uma conduta desonesta, sem escrúpulos e desleal". Esta afirmação surge tirada do nada, como mera conclusão, não consentânea com os factos tidos como provados e até em contradição com os factos definitivamente tidos como não provados.

4. Após considerações teóricas muito sumárias a respeito do interesse contratual negativo e/ou positivo que deve ser tido em conta neste tipo de responsabilidade pré-contratual, o Tribunal a quo conclui que, por um lado, apenas o interesse negativo é protegido, mas, por outro lado, e sem quaisquer outras considerações, factos ou fundamentos, conclui que a Autora tem direito a ser indemnizada pelos lucros cessantes que não teria sofrido se não tivesse confiado nas expectativas negociais criadas pela Ré.

5. A inclusão dos lucros cessantes nos danos indemnizáveis com fundamento neste tipo de responsabilidade pré-contratual é uma matéria complexa que exigiria, salvo o devido respeito, uma análise e fundamentação muito mais profunda por parte do Tribunal, e não somente uma conclusão vaga e linear como na realidade acontece no acórdão recorrido.

6. O facto de o Tribunal a quo relegar a liquidação dos lucros cessantes indemnizáveis para incidente próprio, à luz do disposto no artigo 609.º, n.º 2, do CPC traduz igualmente uma decisão obscura e não fundamentada na medida em que não deixa claro, à luz do pedido formulado pela Autora em sede de recurso, quais os prejuízos exatos que o Tribunal considera.

7. Apesar de o pedido inicial incluir vários tipos de lucros cessantes, a Autora aceitou parcialmente a decisão do tribunal de primeira instância que julgou improcedente a ação, tendo circunscrito o pedido que formulou junto do Tribunal da Relação em moldes que levariam a concluir, face ao acórdão recorrido, que apenas estariam em causa as vendas que a Autora tivesse deixado de efetuar, referentes à coleção primavera/verão 2021. No entanto, a referência genérica feita no acórdão recorrido aos "lucros cessantes que a MAIBIR não sofreria se não confiasse nas expectativas negociais criadas pela Birkenstock" afigura-se demasiado ampla e equívoca, carecendo de clarificação (sem prejuízo da impugnação dos fundamentos de facto e de direito em que tal condenação assenta).

8. A verdade é que o recurso interposto pela Autora não incidiu sobre a totalidade da sentença proferida pelo Digníssimo Tribunal de primeira instância, tendo esta circunscrito o pedido de revisão da sentença ao pedido de indemnização por violação do disposto no artigo 227.º do Código Civil a título de lucros cessantes referente às vendas por grosso que alega ter deixado de fazer nos anos de 2021 (coleção Outono/Inverno) e 2022, e, bem assim, aos lucros cessantes por conta das vendas que deixasse de fazer referentes à coleção Primavera/Verão 2021.

9. A Autora aceitou a decisão que julgou totalmente improcedentes, por não provados, os pedidos que inicialmente deduziu nos autos de indemnização a título de lucros cessantes referentes às vendas a retalho que alegou deixaria de fazer nos anos de 2021 e 2022 e de danos patrimoniais, que alicerçou nos supostos investimentos realizados na loja do ....

10. Em qualquer circunstância, o Acórdão recorrido enferma de nulidades, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, alínea c) do Código de Processo Civil (ex vi artigo 674.º, n.º 1, alínea c) do Código de Processo Civil), dado que os seus fundamentos estão em oposição com a decisão e, ainda que assim não se entendesse, sempre se teria de concluir que esta é ambígua, o que a torna ininteligível.

11. O Tribunal da Relação não procedeu a qualquer alteração da matéria de facto dada como provada e não provada pelo Tribunal de Primeira Instância.

12. Existe uma flagrante oposição entre os fundamentos e a decisão proferida.

13. O Tribunal da Relação confirmou a decisão tomada pelo Tribunal de Primeira Instância quanto aos factos dados como provados e não provados, concluindo que a convicção adquirida se mostra séria e credível.

14. Em particular, foram definitivamente julgados como provados os factos n.º 4, 5 e 55; bem como, foram definitivamente julgados como não provados, os factos n.º i, ii, iii, ix, xv, xxi, xxii, xxiii.

15. A decisão definitiva quanto à matéria de facto impede que se conclua, à luz dos factos assentes, pela violação por parte da Ré de qualquer dever pré-negocial de proteção, de informação ou de lealdade, previsto no artigo 227.º do Código Civil.

16. No que à criação de uma razoável confiança diz respeito, a conclusão acertada resulta evidentemente explanada dos factos provados n.º 4 e 5, onde se retrata a previsão que existia no último contrato que vigorou entre as Partes, que previa o seu termo certo, sem renovações – assim, a única expectativa legítima e justificadamente que a Autora podia criar, seria a de que o contrato não se iria renovar.

17. Também dos factos provados n.º 10 e 18, resulta claro que a Autora estava ciente de que o contrato que tinha com a Ré terminaria a 31 de dezembro de 2020 e que não haveria possibilidade de renovar esse contrato.

18. Assim sendo, o único cenário possível seria a celebração de um novo contrato, no pressuposto de um acordo das Partes quanto aos termos e condições a fixar para um novo contrato, sabendo ambas que o contrato então em vigor tinha vindo a ser sucessivamente incumprido pela Autora, que há muito não cumpria os objetivos a que se havia comprometido perante a Ré.

19. Desde o envio do primeiro business plan ficou de imediato claro que a Ré não pretendia sequer discutir uma proposta como aquela que havia sido apresentada pela Autora, com números francamente abaixo daquilo que seria aceitável para a celebração de um novo contrato – pelo que, a Autoria não podia legitimamente confiar que a Ré celebraria um novo contrato quando, de imediato, colocou questões e rejeitou sequer avaliar a proposta inicialmente apresentada pela Autora.

20. Ficou claríssimo, desde junho de 2020, que a Ré entendia não haver condições para manter uma relação contratual a longo prazo com a Autora.

21. Não obstante, foi apresentado pela Autora, a 25 de setembro de 2020, um business plan a dois anos, que foi enviado ao Diretor Comercial Ibérico da Ré – mas não ao seu Legal Representante – que logo apresentou questões e dúvidas quanto à viabilidade e razoabilidade da proposta, a que a Autora veio responder a 29 de setembro de 2020.

22. A 5 de novembro de 2020, trinta e sete dias depois de apresentada uma proposta de business plan, a Ré comunicou à Autora que não celebraria um novo contrato.

23. O que se verificou, portanto, foi que a Autora apresentou uma proposta de business plan que a Ré não aceitou e, como tal, nunca existiram sequer negociações tendentes à celebração de um novo contrato.

24. A Autora não poderia legitimamente ter por certa a celebração de um novo contrato sabendo, como confessou e resulta provado, dos contactos entre representantes comerciais da Ré e clientes da marca em outubro de 2020 – contactos esses que estavam enquadrados no âmbito da Cláusula 13.1. do Contrato então em vigor e que eram, para a Autora, um sinal de que a Ré estaria, pelo menos, a ponderar a reorganização da sua atividade e eventual mudança de distribuição.

25. Nada no comportamento da Ré nem no Contrato então em vigor permitiria que a Autora tivesse uma confiança razoável de que celebraria um novo contrato com a Ré.

26. O facto de existir uma relação contratual anterior não implica que tivesse de ser celebrado um novo contrato, nem tampouco, é fundamento suficiente para ancorar uma alegada legítima confiança na sua renovação. Tal conclusão violaria frontalmente o princípio da liberdade contratual (previsto no artigo 405.º do Código Civil) e da autonomia privada.

27. Não se aceita, nem se entende, as conclusões alcançadas pelo Tribunal da Relação em face daquela que é a matéria de facto definitivamente assente: se a Autora só enviou o business plan, que tampouco traduzia uma proposta contratual perfeita, a 29 de setembro como poderia a Ré responder noutra altura senão posterior? Como se pode considerar que um período de resposta de trinta e sete dias foi longo? A noção de tempo do Tribunal a quo é, salvo o devido respeito, desconexa do mundo real.

28. Jamais um período inferior a sessenta dias pode ser incluído num conceito de «longo período de tempo», mas é este prazo que leva o Tribunal a concluir que a Ré teve uma conduta “desonesta, sem escrúpulos e desleal”, não obstante a clara contradição com a decisão que tomou acerca da matéria de facto ao confirmar a decisão tomada pelo Tribunal de Primeira Instância.

29. A conclusão do Tribunal da Relação surge ancorada em conceitos concretizados de forma totalmente desfasada da realidade e em violação dos direitos ao bom-nome e reputação da Ré.

30. O Contrato em vigor previa que o seu termo era certo, sem renovações, com a possibilidade de cessar antes do fim (cláusula 7.2), com o direito da Recorrente de reorganizar a sua atividade nos últimos seis meses (cláusula 13.1);

31. Foi julgado como facto não provado que fosse no interesse de ambas as Partes manter a relação contratual que haviam encetado (facto não provado n.º 1); bem como, foi julgado como não provado que a Ré estivesse de acordo em celebrar um novo contrato com a Autora (facto não provado n.º 2).

32. Não se logra alcançar o raciocínio do Tribunal da Relação para concluir pela criação por parte da Ré – na Autora – de uma confiança razoável na conclusão do contrato.

33. Das premissas de facto e de Direito em que se ancorou o Tribunal da Relação, não poderia logicamente resultar outra conclusão que não a de que a Ré não criou na Autora, em momento algum, uma razoável confiança na renovação do contrato, pelo que, estamos perante uma latente contradição entre os fundamentos de facto definitivamente julgados e a decisão tomada pelo Tribunal – que constitui, nos termos da alínea c), do n.º 1 do artigo 615.º do Código de Processo Civil, uma nulidade do Acórdão de que aqui se recorre.

34. Ainda que assim não se entendesse, sempre se teria de concluir pela não verificação da segunda condição de que o Tribunal a quo faz depender a obrigação de reparação: o carácter injustificado da rutura das conversações ou negociações.

35. Foi dado como não provado (facto não provado 9), que “A Ré tenha posto fim às negociações de forma abrupta sem qualquer sinal prévio por parte da Ré de que o desfecho das conversas que vinham mantendo pudesse ser outro que não a celebração de um novo contrato” – facto este que o Tribunal da Relação considerou bem julgado.

36. Não é admissível que venha o Tribunal a quo justificar a não alteração da matéria de facto alegando não se tratar de verdadeiros factos, mas antes, de matéria conclusiva, conforme decidido pelo Insigne Supremo Tribunal de Justiça, no Acórdão proferido no processo n.º 19035/17.8..., de 14-07-2021.

37. Se optou o Tribunal da Relação por aceitar este facto, tornando o mesmo definitivamente estabelecido, não pode depois vir decidir de forma totalmente contrária ao mesmo – sob pena de nulidade, nos termos e para os efeitos do estabelecido na alínea c), do n.º 1 do artigo 615.º do Código de Processo Civil.

38. Não obstante, sempre seria de concluir, pelos fundamentos de facto que consubstanciam a decisão, que a rutura alegadamente existente não foi arbitrária nem desleal.

39. Desde logo, porque o business plan é apenas um dos anexos do Contrato (anexo D), pelo que, teriam ainda as Partes de discutir e acordar nos restantes anexos, bem como, no clausulado do próprio contrato – o que, em nenhuma medida, se verificou.

40. O business plan tem de cumprir e satisfazer as intenções comerciais de ambas as partes antes de, sequer, se começar a falar de um contrato. Esta é uma prática habitual e comum - começa sempre com um business plan, aliás como provado em sede de audiência de julgamento, por prova testemunhal.

41. Não havendo discussão de nenhuma das matérias previstas pelo próprio contrato – i.e. a organização das vendas e condições a observar para a venda a retalho; o marketing, com a definição, entre outros aspetos, do orçamento que o distribuidor teria de alocar para efeitos de publicidade; ou os valores mínimos de compra por cada gama/produto que o distribuidor deveria atingir sob pena de incumprimento contratual – não se poderia concluir que as Partes estavam já em negociações porquanto não existiram sequer negociações entre as Partes. E muito menos que estivessem num estádio avançado de negociações tendentes à celebração de um novo contrato.

42. O que se verificou no presente caso foi que a Autora, já bastante perto da data de término do contrato em vigor, tentou iniciar negociações com a apresentação de um business plan, mas não foi bem-sucedida, visto que a Recorrente a informou, ato contínuo, que não estavam reunidas condições para encetar negociações com vista à celebração de um novo contrato.

43. As razões da rejeição do business plan eram claras: a Autora não havia cumprido os objetivos contratuais do Contrato que então estava em vigor e os números que se propunha cumprir no âmbito de um novo contrato estavam aquém daqueles que eram os objetivos da marca Birkenstock para o mercado nacional no contexto europeu.

44. Sem prejuízo dessa situação, muito embora não existisse renovação do contrato em vigor, a Recorrente – exatamente por ter consciência e ser sensível à rapidez, volatilidade e sazonalidade própria dos mercados de moda – não permitiu que o término da relação contratual afetasse as encomendas já realizadas pela Autora referentes à coleção Primavera/Verão de 2021.

45. A Recorrente garantiu e forneceu as encomendas já colocadas pela Autora (sem o suporte de um contrato de distribuição, dado que o contrato em vigor terminaria – como terminou – os seus efeitos a 31 de dezembro de 2020), e comprometeu-se – como veio efetivamente a fazer (facto provado n.º 50) – a não interferir com a venda da referida coleção por parte da Autora.

46. Resulta expresso da Cláusula 12.1. do Contrato celebrado entre as Partes que a aceitação, pela Recorrente, das encomendas referentes à coleção Primavera/Verão 2021 não pode ser interpretada como renúncia à cessação do contrato ou extensão além da data do seu Termo. Para a coleção Primavera/Verão 2021, as Partes celebraram contratos de compra e venda, que foram cumpridos.

47. Em face da decisão quanto à matéria de facto, é evidente que a «rutura» das negociações não é arbitrária nem desrazoável, quer face ao tempo de negociação que se realizou, quer em face da negociação paralela que foi realizada tendo por objeto a coleção Primavera/Verão de 2021, que foi cumprida e é claramente demonstrativa da boa-fé e lealdade da Recorrente.

48. Na esteira do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, proferido no âmbito do processo n.º 69/11.2..., de 20-05-2021 e da alínea c) do n.º 1 do artigo 674.º do Código de Processo Civil, verifica-se uma contradição clara entre as premissas de facto e de Direito – que o Tribunal da Relação manteve inalteradas em face do que havia sido decidido pelo Tribunal de 1.ª Instância – e a conclusão/decisão final, que consubstancia a verificação de uma nulidade.

49. Ainda que não se concluísse pela latente oposição existente entre os fundamentos e a decisão do Tribunal da Relação, o que apenas por mero dever de patrocínio se concebe, sempre se teria de concluir que enferma a decisão recorrida de uma inultrapassável ambiguidade e obscuridade que a torna ininteligível.

50. Não se alcança em que é que a Ré foi condenada, bem como, em face do pedido deduzido em sede de recurso pela Autora, qual a medida de condenação que resulta do acórdão de que se recorre.

51. Na indemnização que o Tribunal diz respeitar aos “prejuízos correspondentes à perda do lucro decorrentes da não comercialização dos produtos” incluem-se as vendas por grosso que a Autora alegou que deixaria de fazer nos anos de 2021 e 2022 ou só aquelas referentes à coleção Primavera-Verão de 2021? (Sendo que da prova produzida resultou que “A 23 de dezembro grande parte das vendas já estava feita (…)”).

52. Se da parca fundamentação do Acórdão recorrida poderia parecer resultar que o Tribunal estava a limitar os lucros cessantes por referência à coleção Primavera/Verão de 2021, chegados à decisão, não resulta minimamente clarificado se esta inclui também os lucros cessantes pelas vendas por grosso, nem se verifica qualquer definição que permita que a decisão de condenação seja minimamente inteligível.

53. O Tribunal da Relação imiscuiu-se de decidir do pedido tal como formulado pela Autora, condenando numa indemnização genérica, remetendo para liquidação posterior, de uma forma totalmente impercetível, não logrando sequer concretizar a condenação em função dos anos/coleção em causa, tal como peticionado pela Autora.

54. Pelo que, nos termos do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, proferido no âmbito do processo n.º 69/11.2..., de 20-05-2021, bem como, da alínea c), do n.º 1 do artigo 615.º, por via da aplicação da alínea c), do n.º 1 do artigo 674.º, ambos do Código de Processo Civil, estamos perante (mais uma) nulidade.

55. Concluindo-se que na condenação estão apenas incluídos os lucros cessantes referentes à coleção de Primavera/Verão de 2021 (por serem tais alegados danos aqueles que a Autora não sofreria se não tivessem sido iniciadas «negociações»), ter-se-ia, necessariamente, de respeitar e atender à liquidação desses danos efetuada pela própria Autora implicando que os danos a liquidar nunca possam ser superiores a €54.325,00 (cinquenta e quatro mil, trezentos e vinte e cinco euros).

56. A Ré não violou quaisquer deveres de lealdade ou boa-fé para com a Autora.

57. Não estão verificados, face à matéria de facto julgada, os pressupostos de que depende a aplicação do disposto no artigo 227.º do Código Civil sendo que a decisão recorrida encerra um evidente erro de juízo, que aqui se sindica.

58. O Tribunal a quo incorreu num erro de juízo também no que respeita à ressarcibilidade dos danos reconhecidos e prova dos mesmos, visto que a Autora não apresentou como causa de pedir a existência de um verdadeiro dever de contratar e respetiva violação, tendo, ao invés, situado a causa de pedir na rutura bruta de negociações e no alegado desrespeito por deveres acessórios por parte da Ré (não por deveres de prestação).

59. A ressarcibilidade dos danos peticionados estará sempre limitada à medida da situação em que a Autora estaria se não tivessem sido iniciadas negociações com vista à celebração de um novo contrato de distribuição para os anos de 2021 e 2022 e nunca poderá incluir os danos que resultariam da colocação da Autora na situação em que estaria se tal contrato tivesse sido celebrado e cumprido.

60. Impõe-se concluir pela inviabilidade de ressarcibilidade dos lucros cessantes peticionados pela Autora.

61. O acórdão recorrido está, ademais, em clara contradição com o acórdão do Tribunal da Relação do Porto, proferido no âmbito do processo n.º 0652628, de 22-05-2006: «II - O facto de haver negociações preliminares intensas, mas que, razoavelmente, não prenunciem à consumação do negócio, não é, por si só, revelador de culpa in contrahendo, relevante é que haja ruptura contratual infundada, reveladora de um modus negociandi passível de censura e que viole deveres acessórios de conduta que se justificava observar no tipo de negócio em questão.»

62. Mesmo que se pudesse considerar – o que não se admite – que entre as Partes se verificaram negociações preliminares intensas, jamais se poderia concluir que a posição tomada pela Recorrente tenha sido infundada ou violadora de deveres que estivesse obrigada a observar.

63. Estando o Acórdão recorrido em crise em clara contradição com um outro proferido pela mesma Relação, deverá ser substituído por um que se coadune na sua decisão, confirmando a decisão do Tribunal de 1.ª Instância e absolvendo a Ré da condenação pela alegada quebra das negociações, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 227.º do Código Civil.”

Conclui a recorrente pedindo a revogação do acórdão recorrido com a consequente manutenção da sentença proferida em primeira instância.


◊ ◊



6) A autora, ora recorrida, apresentou resposta às alegações da ré que concluiu pela forma seguinte:

“1. O recurso vem apresentado do douto Acórdão do Tribunal da Relação do Porto que revogou a sentença de primeira instância, condenando a ré a indemnizar a autora em indemnização pelos danos prejuízos decorrentes da quebra das negociações comerciais com vista a celebrar contrato de distribuição, sendo a indemnização a liquidar nos termos previstos no artigo 609.º, n.º 2 do Código do Processo Civil.

A. DA ALEGADA OPOSIÇÃO ENTRE OS FUNDAMENTOS E A DECISÃO.

2. A autora invoca a nulidade por contradição, mas, na verdade, o seu argumento é o de que os factos provados são contrários a factos não provados: a nulidade invocada não tem esses pressupostos.

3. Não há nenhuma incompatibilidade entre os factos provados e a decisão final e, para este efeito, os factos não provados não têm qualquer relevância.

4. Dos factos não provados apenas se pode retirar a conclusão de que a parte que os alegou não carreou para o processo prova suficiente e não (nunca) que o seu contrário é verdade.

5. Os factos que ficaram provados são de molde a justificar a decisão tomada pelo Venerando tribunal a quo: A autora em setembro perante todo o contexto objectivo das negociações, dos quais se salienta o longo tempo de duração, mais de 6 meses, e em concreto perante a confirmação da sua encomenda, podia confiar que o contrato, que as partes qualificaram como distribuição, se iria concretizar dado que mantinha este tipo de relação comercial com a Ré desde 2014. E, podia ter essa confiança porque, por um lado, não existia qualquer indício de que o contrato não seria concluído e que não era do interesse da Ré, sobretudo por estarmos em finais de 2020, sendo que o novo contrato teria início em 2021, portanto com negociações muito avançadas.

Se é verdade que a Ré foi solicitando ao longo das conversações, vários elementos à Autora, e, que esta prontamente satisfez, este facto não é um indício dado à Autora de que a outra parte não estava interessada na contratualização, ou que as conversações eram precárias. Antes pelo contrário, a Ré manteve a Autora “em lume brando”, transmitindo a ideia de contratualização e acabou por descartar, de um momento para o outro, todo o processo de negociação credível, sem dar qualquer justificação à autora assumindo uma conduta desonesta, sem escrúpulos e desleal.

6. Não resultou provado nenhum indício que possa minimamente inferir esta conclusão do tribunal recorrido.

7. O Acórdão recorrido não padece da nulidade prevista no artigo 615.º, n.º 1, alínea c) do Código do Processo Civil, na parte em que se prevê a contradição entre os fundamentos da sentença e a decisão.

B. DA ALEGADA AMBIGUIDADE E OBSCURIDADE.

8. A dúvida da ré é resolvida pela lei: o pedido que o Tribunal da Relação do Porto poderia deferir ou indeferir é o formulado nas alegações de recurso. Ao julgar procedente o pedido, essa é a medida da condenação da ré, cuja exata liquidação se há de seguir.

9. A ré terá que pagar à autora os prejuízos decorrentes da não celebração de um novo contrato, portanto, o valor a apurar a título de lucros cessantes referente às vendas por grosso que a autora deixa de fazer nos anos de 2021 (coleção outono/inverno) e 2022, e, cumulativamente, o valor referente às vendas, também por grosso, que a autora deixar de fazer referentes à coleção primavera/verão 2021, nos valores que vierem a ser liquidados.

10. O Acórdão recorrido não padece da nulidade prevista no artigo 615.º, n.º 1, alínea c) do Código do Processo Civil, na parte em que se prevê a ambiguidade ou obscuridade que tornariam a decisão ininteligível.

III – DA APLICAÇÃO DO DIREITO.

11. Esquecendo as falsas questões quanto à nulidade do Acórdão, o que a autora pretende é pôr em causa a aplicação do direito, ainda que sem razão.

A. CRIAÇÃO DE UMA RAZOÁVEL CONFIANÇA NA CONCLUSÃO DO CONTRATO.

12. Está demonstrado que, ao longo de meses (entre o início de junho e o fim de novembro de 2020), as partes negociaram os termos de um novo contrato, contemplando várias opções e cenários, decorrentes precisamente das conversas que se iam mantendo, com verdadeiro diálogo entre a autora e a ré, com empenho e colaboração ativa da ré, no sentido de concretizar um novo acordo, que prosseguisse com a relação comercial que vinham mantendo desde 2014.

13. A existência de negociações pressupõe a vontade de ambas as partes em chegar a um acordo. Se assim não for, uma das partes negoceia com reserva mental ou mesmo com dolo, o que, se era o caso da ré, apenas agrava mais o seu comportamento e a necessidade de o direito o sancionar.

14. Discutiram-se quantidades (nas várias revisões do business plan apresentado), prazos (três anos, no início, depois e a pedido da ré, apenas dois), modelos de negócio (manter apenas distribuições por grosso, ou incluir também as vendas a retalho).

15. Não há nenhum facto provado de que resulte qualquer hesitação por parte da ré, qualquer dúvida, qualquer indício, qualquer sinal quanto à eventual não celebração de um novo acordo.

16. As alegações de recurso da ora recorrente, a que se responde, ignoram olimpicamente toda a prova produzida, o julgamento sobre ela feito pelo Venerando Tribunal da Relação do Porto, retomando simplesmente argumentos retirados da ultrapassada contestação que apresentou nos autos e que se não provaram.

17. Ao contrário do que a ré quer fazer crer nas suas alegações, os seguintes factos, que voltam a aparecer agora, não estão provados: a ré alegou-os, mas não foi capaz de os provar.

A. Não ficou provado que a autora tivesse incumprido o contrato anterior celebrado com a ré;

B. não ficou provado que o conteúdo do business plan era apenas uma das matérias que teria que ser negociada entre as partes;

C. não ficou provado que a ré tivesse manifestado recusa ou repúdio pela proposta apresentada pela autora (pelo contrário, aceitou discuti-la, alterou-a, contrapropôs);

D. não ficou provado que a ré tivesse informado a autora, em junho de 2020, que não pretendia celebrar novo acordo com a autora (pois se ainda em novembro de 2020 continuavam a negociar, é evidente que nada foi informado em junho);

E. não ficou provado que a aprovação do business plan fosse condição para o início de verdadeiras negociações.

18. Toda a argumentação da ré assenta numa falácia de petição de princípio: pretende obter um resultado com base em factos que não estão provados.

19. O arrojo da ré (a má-fé?) atinge novos píncaros ao alegar agora, em sede de segundo grau de recurso, que a autora teria pedido aos responsáveis pelo mercado ibérico para que fizessem uma análise preliminar do seu business plan: esta mentira é nova, e nunca poderia ser conhecida precisamente por isso (por não ter sido alegada nas instâncias anteriores).

20. De todo o modo, está provado que o business plan foi apresentado a pedido da ré (dos tais responsáveis pelo mercado ibérico), em junho de 2020, que todas as conversas com a ré, ao longo da execução do contrato, eram feitas com aqueles mesmos interlocutores, sem que alguma dessas pessoas alguma vez tenha posto em causa a sua legitimidade para conduzir as negociações.

21. De todo o modo, não ficou provado se os legais representantes da ré tinham ou não conhecimento direto das negociações havidas.

22. As partes iniciaram, de facto, negociações, que se prolongaram durante vários meses, sem qualquer indício de que cessariam sem acordo, até que a ré o comunicou à autora, sem nenhuma prévia sinalização ou aviso nesse sentido.

23. A ré sabia que a autora estava a negociar uma loja no ... para iniciar aí as vendas diretas ao público, que tinha feito encomendas para a estação seguinte: nada disse ou insinuou sequer quanto à incerteza da celebração do contrato, porque tal incerteza não existia.

24. São todas estas circunstâncias combinadas (e não apenas o curso do tempo de negociações) que contribuíam para uma única conclusão: o contrato novo seria celebrado (como fora o de 2017).

B. CARÁTER INJUSTIFICADO DA RUTURA DAS CONVERSAÇÕES OU NEGOCIAÇÕES.

25. O que é verdade, porque resultou provado, é que as partes estiveram a negociar desde o início de junho e até ao final de novembro de 2020: nesse período, o que está provado é que não houve nenhum indício de que tais conversas não iriam conduzir a um contrato novo. Não há nenhum mail, nenhuma conversa de que resulte a dúvida acerca da celebração de um novo contrato.

26. Não está provado que a ré alguma vez tenha apresentado uma explicação para o termo das negociações (o que não fez, de facto.

C.PRODUÇÃO DE UM DANO NO PATRIMÓNIO DE UMA DAS PARTES.

27. Alega a ré que os lucros cessantes não seriam indemnizáveis no âmbito do instituto da responsabilidade por culpa in contrahendo. Está errada também.

28. A responsabilidade pré-contratual é considerada como integrando a responsabilidade contratual, sujeita às mesmas regras, designadamente quanto aos pressupostos para a sua aplicação e quanto às suas consequências.

29. Não pode deixar de se considerar que todos os danos são indemnizáveis, decorram do interesse positivo ou negativo do contrato, por uma razão simples e evidente: a lei não permite a distinção. É sabido que ubi lex non distinguit, nec nos distinguere debemus.

30. Nas palavras de António Menezes Cordeiro (op. cit.): A indemnização deve ser integral, não havendo base legal para limitar ao denominado interesse negativo. Todos os bens atingidos pelas normas violadas devem ser ressarcidos, reconstituindo-se a situação que existiria, se não se tem verificado o evento que obriga à reparação (562.º): prevalecem as regras gerais da responsabilidade civil. Se resultar dos factos que, a não haver cic, teria sido concluído um contrato com determinados benefícios, a indemnização pode alargar-se ao interesse positivo.

31. Em qualquer caso, sempre teria que se considerar, no caso concreto, que as negociações estavam num ponto em que já não era possível voltar atrás, a ré já estava obrigada a celebrar o contrato que se encontrava negociar há meses: um contrato terminava em dezembro de 2020 e toda a estrutura estava montada e a crescer necessariamente para suportar a continuação do negócio. Com esse negócio, futuro e certo para a autora, estariam ao seu alcance, pelo menos, os ganhos que o mesmo negócio tinha permitido gerar até então. Esse é o conceito de lucros cessantes.

IV –DA ALEGADA CONTRADIÇÃO DE JULGADOS.

32. Nos termos do artigo 672.º, n.º 1, alínea c) do Código do Processo Civil, excecionalmente, cabe recurso de revista de um Acórdão da Relação que esteja em contradição com outro, já transitado em julgado.

33. O recurso excecional de revista poderá ser apresentado, portanto, nos casos em que não seja possível a submissão de recurso de revista: não neste, que admite recurso de revista.

34. Acresce (se fosse preciso) que a ré não faz prova de que os dois arestos estejam em contradição, limitando-se a transcrever o que parece ser um sumário de uma decisão. A similitude dos julgados, para se apreender se há contradição, teria que ser feita pela similitude de factos a que o mesmo direito pudesse ou não ser aplicado.

35. Por outro lado, também não demonstra que o referido Acórdão já tenha transitado em julgado.

36. Julga-se que, sem necessidade de outros argumentos, se pode com segurança requerer o indeferimento do argumento apresentado pela ré (qualquer que ele seja…) associado à alegação de que o Acórdão recorrido estará em contradição com outro”.

Terminando defende a autora a confirmação do acórdão recorrido.


◊ ◊



10) Colhidos que foram os vistos dos Juízes Conselheiros adjuntos importa apreciar e decidir.

Tendo em conta o teor das decisões impugnadas e o das conclusões das alegações do recurso interposto as questões a decidir na presente revista são as seguintes:

a) a da nulidade do acórdão recorrido, por contradicção entre os seus fundamentos e a decisão;

b) a da nulidade do acórdão recorrido, por ambiguidade ou obscuridade do dispositivo;

c) a da rutura arbitrária e injustificada das negociações para renovação do contrato de distribuição comercial por parte da ré



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II - FUNDAMENTAÇÃO

Parte I – Os Factos

1) São os seguintes os factos provados, tal como resultam do decidido pelas instâncias:

“1. A autora é uma sociedade comercial que se dedica ao comércio por grosso e a retalho de artigos de calçado, de artigos de desporto, têxteis e afins.

2. A ré é uma sociedade comercial, com sede na Alemanha, titular de várias marcas de calçado, designadamente e a mais notória, a Birkenstock®.

3. No exercício da sua atividade, a autora celebrou com a ré um contrato para comercializar em Portugal os produtos das marcas tituladas por esta.

4. Em 1 de maio de 2014 iniciou-se um primeiro contrato de distribuição entre as partes, cujo termo ocorreu em 31 de dezembro de 2017.

5. O referido contrato previa, na sua cláusula 13, que o termo do contrato era certo, sem renovações.

6. A 1 de Janeiro de 2018 iniciou-se um novo contrato de distribuição entre as mesmas partes que previa o seu termo no dia 31 de dezembro de 2020.

7. Antes do termo do primeiro contrato, as partes negociaram um novo contrato.

8. Como tinha acontecido em 2017, as partes, em meados de 2020, iniciaram conversações tendentes à celebração de novo contrato de distribuição, para vigorar para lá de dezembro de 2020.

9. A vontade da autora era de que fosse celebrado um novo contrato por 3 anos.

10. Em 19 de junho de 2020, e depois de várias conversas telefónicas já havidas, a autora enviou à ré uma primeira versão do business plan.

11. Nesse plano e nos seus pressupostos está evidenciada a sequência entre os contratos de distribuição celebrados e o resultado dessa sequência: tendo em conta a diminuição de vendas no ano de 2020 por efeitos da pandemia da Covid-19, que resultaria no aumento do stock de artigos da ré que ficaria a cargo da autora.

12. A encomenda de mercadoria para o ano de 2021 seria menor do que inicialmente antecipado.

13. A autora, até pelo menos janeiro de 2021, tinha a exploração da loja temporária que tinha montado no centro comercial ....

14. E negociava um contrato com o mesmo centro comercial para vir a ocupar uma loja pelo período de um ano a partir dessa data.

15. A alternativa a essa loja no centro comercial poderia ser uma loja em rua movimentada, identificada como igualmente vantajosa.

16. No mesmo plano se delineava a estratégia para melhor equilibrar os stocks e a distribuição do volume de vendas entre o norte e o sul do país, num plano elaborado para ser concretizado até 2023.

17. Pouco depois, nesse mesmo dia (19 de junho de 2020), a autora enviou um ficheiro de Excel com a descrição das quantidades e artigos que pretendiam encomendar a partir de 2020 e até 2023.

18. Na sequência de várias conversas telefónicas havidas, a ré solicitou a revisão do business plan apresentado pela autora, o que veio a ser feito e partilhado com a ré, em 4 de setembro de 2020.

19. Nessa segunda versão do business plan foram atualizados os valores de referência, tendo em conta a evolução das vendas que ocorreu entre junho e setembro (em resultado do desconfinamento que, entretanto, foi autorizado em Portugal e do natural aumento de vendas no período de verão): as perspetivas das vendas ainda no ano de 2020 melhoraram e, portanto, os stocks seriam diminuídos, logo, o volume de vendas para 2021 podia ser revisto em alta, como foi.

20. No mesmo documento, a autora também atualizava o estado das negociações com o centro comercial ... para a instalação de uma loja mais permanente, destinada à comercialização pela autora dos produtos das marcas da ré, informando que estavam em boa posição para celebrar esse contrato.

21. Pedindo já instruções quanto às condições a praticar nessa loja e quanto ao seu layout.

22. Em 24 de setembro de 2020, a ré pediu – telefonicamente – que a autora apresentasse um business plan para 2 anos (em vez de 3), uma vez que essa também era uma opção que pretendia equacionar.

23. A autora acedeu, uma vez que era mais uma opção.

24. Na sequência dessa conversa telefónica entre autora e ré, a autora veio a apresentar um plano revisto, logo em 25 de setembro de 2020.

25. Em resposta ao plano revisto, a ré pediu informações adicionais, que foram prestadas no dia 29 de setembro.

26. Tal mail foi recebido pela ré, agradecido e seria colocado em discussão.

27. Na sequência deste último email, a ré deu instruções aos seus comerciais para, a partir de Espanha, começarem a contactar os clientes da autora.

28. No final de outubro de 2020, a autora foi confrontada com contactos de vários dos seus clientes pedindo explicações acerca das abordagens que estavam a receber, pois alguém em nome da ré, AA, contactou-os, identificando-se como sendo representante da ré.

29. A autora confrontou a ré com esses contactos de vendedores da ré, a partir de Espanha.

30. A 5 de novembro de 2020 a ré enviou uma comunicação eletrónica à autora dando conta de que, afinal, não celebraria um novo acordo com a autora.

31. A autora procurou logo contactar a ré, nas pessoas de BB e CC.

32. A autora manifestou a total surpresa pela cessação das negociações, tão em cima da hora e numa fase tão adiantada.

33. Alertou para todo o investimento que vinha sendo feito no desenvolvimento da marca ao longo dos anos e, recentemente, no centro comercial ....

34. Em resposta, ficou apenas o compromisso de que a posição seria reavaliada e que, depois de tomada uma decisão, voltariam a contactar.

35. Por telefonema do dia 26 de novembro de 2020, a ré, através do BB, informou que, de facto, as negociações terminavam então.

36. Tendo em conta que as encomendas para a estação primavera/verão 2021 estavam já registadas – desde 25 de setembro e 16 de outubro de 2020 – a ré comprometeu-se a não interferir com a venda dessa coleção que seria ainda comercializada pela autora em exclusivo, como forma de garantir que as vendas que já tinha feito junto dos seus clientes poderiam ser concretizadas e que o stock já encomendado poderia ser escoado.

37. A gestão da autora deixou de ser para ser feita ao longo de 2 ou 3 anos mas em apenas cerca de 6 meses.

38. Por essa razão, no dia 27 de novembro a autora fez um ajuste na sua encomenda, tendo reduzido o pedido de entrega de mercadoria.

39. A autora tinha colocado as encomendas para a coleção SS21 (spring/summer; primavera/verão), como sempre fez ao longo da relação com a ré, desde 2014:

40. Em 25 de setembro de 2020 foi colocada a primeira encomenda, para a aquisição de 26.682 pares de sapatos, no valor de € 578.675,76.

41. Em 16 de outubro de 2020 foi colocada a segunda encomenda para a aquisição de 18.338 pares de sapatos no valor de € 438.410,75.

42. No total, a autora encomendou à ré mercadoria no valor de € 1.017.086,51, para a estação primavera/verão 2020.

43. Ambas as encomendas foram confirmadas pela ré, que anunciou a sua entrega para ser feita ao longo dos meses de março, abril e maio de 2021.

44. Apesar do acordo de que a coleção SS21 ainda seria em exclusivo distribuída e vendida pela autora, após ter a notícia de que o novo contrato não seria celebrado, a autora reduziu a encomenda feita.

45. A encomenda de 45.020 pares de sapatos tinha como pressuposto a possibilidade de o stock ser gerido e comercializado ao longo de mais 2 ou 3 anos.

46. Como o cenário temporal foi reduzido a cerca de 6 meses, a autora teve que ajustar a encomenda feita, para que não ficasse com stock que, depois desses 6 meses, poderia não ter autorização para vender.

47. Foi por isso que, em 27 de novembro de 2020, logo a seguir à definitiva comunicação de interrupção das negociações, a autora comunicou à ré a redução da encomenda em 14.315 pares de sapatos, no valor de € 290.311,91.

48. A 23 de dezembro de 2020, a autora comunicou à ré que iria proceder a um corte na encomenda que a autora tinha registado, porquanto apenas poderiam fornecer 23.499, em vez dos 30.705 que estavam então encomendados, alegando as limitações à produção causadas pela pandemia.

49. O mail recebido a 23 de dezembro contém, em anexo, uma comunicação datada de 17 de novembro.

50. A 23 de dezembro grande parte das vendas já estava feita e os clientes da autora já esperam as entregas para começar a vender nos meses de primavera que se aproximam.

51. A ré começou a fazer contactos aos clientes da autora no final de outubro de 2020.

52. As reposições correspondem a novas encomendas feitas pelos clientes da autora, de artigos cujas unidades foram todas vendidas e que continuam a suscitar o interesse do consumidor final.

53. A autora deixou de poder comercializar os produtos das marcas da ré, deixando com isso de poder beneficiar da margem que daí adviria.

54. Tal margem, ao longo dos anos de duração da relação comercial entre as partes, foi 26,5%.

55. O investimento feito na loja P... no Centro Comercial foi feito por uma empresa parceira da autora, com muito mais experiência e conhecimento na venda a retalho, o que permitiu obter melhores condições.

56. A ré também acompanhava de perto, tinha conhecimento, aprovava, e incentivava o investimento feito na loja P... na perspetiva de que a relação contratual se manteria e cresceria, em benefício de ambas as partes.”


◊ ◊



2) São os seguintes os factos que as instâncias tiveram por não provados:

“Todos os que se mostrem em contradição com os que acima se deram como provados, designadamente e ainda que:

Autora e ré tenham concordado que era no interesse de ambas manter a relação que tinham iniciado em 2014.

A ré estivesse de acordo em celebrar um novo contrato por 3 anos.

A primeira versão do business plan que a autora enviou à ré em 19/06/2020 fosse a concretização traduzida em números da proposta que já ambas as partes tinham discutido e negociado entre si.

A autora estivesse a negociar com o Centro Comercial ... uma loja por um período de 6 anos a partir de janeiro de 2021.

A ideia da ré fosse equacionar o cenário de um novo contrato por 2 anos para depois poder ser renovado por adicionais em que se incluíssem as vendas a retalho.

Quando em nome da ré contactou os clientes da autora, AA se tenha oferecido para mostrar e vender os seus artigos.

A ré tenha garantido à autora que o contacto desta com os clientes daquela se tratava de um mal entendido.

A autora tenha acreditado e tenha ficado descansada.

A ré tenha posto fim às negociações de forma abrupta sem qualquer sinal prévio por parte da ré de que o desfecho das conversas que vinham mantendo pudesse ser outro que não a celebração de um novo contrato.

Não se compreenda a razão invocada pela ré para fazer o corte da encomenda da autora.

O anexo correspondente a uma comunicação datada de 17 de novembro não tenha sido recebido pela autora nessa data.

A razão para a redução pela ré da encomenda da autora seja contactos da ré aos clientes da autora a partir de finais de outubro de 2020.

Estes contactos tenham sido feitos às escondidas da autora.

Desde o final de outubro de 2020 que a ré contactou clientes da autora para lhes propor a venda de reposições de stock referentes à coleção SS21.

O facto de ter deixado de comercializar os produtos da marca da ré representa para a autora 54.325,00 € no ano de 2021 e de 609.103,00 € no ano de 2022.

As vendas feitas no Centro Comercial ... teriam uma margem de 55%.

No ano de 2021 a margem praticada nas vendas a retalho permitiria à autora ter um lucro de 289.263,00 € em 2021 e 334.629,00 em 2022.

Todo o investimento feito pela autora desde 2014 conduzisse à abertura de lojas próprias ao público e na duplicação da sua margem de lucro.

A autora viesse a realizar vendas que importassem para si um lucro de 663.428,00 € nas vendas por grosso e 623.892,00 € nas vendas a retalho.

A autora tenha investido na loja P... no Centro Comercial ... um total de 61.568,51 €, entre as obras de preparação da loja à imagem e conceito da marca da ré, os direitos pagos à administração do centro comercial, o pessoal alocado ou contratado para trabalhar naquele local.

Tal investimento tenha sido no pressuposto de que a colaboração entre a autora e a ré se manteria pelo menos mais 2 ou 3 anos.

Disso tenha sido convencida a autora pela ré.

Tal investimento tenha sido feito por iniciativa da ré.

Os custos da loja no Centro Comercial ... fossem suportados pela autora.

A empresa parceira da autora que fez o investimento na loja do Centro Comercial ... fosse ressarcida com parte dos proveitos da loja permanente a abrir no mesmo Centro Comercial.


◊ ◊



Parte II – O Direito

1) Importa agora apreciar as questões colocadas pelo recorrente, começando, naturalmente, pela análise do fundamento das nulidades de que, no entender da recorrente, padece o acórdão recorrido: a nulidade por oposição entre os fundamentos e a decisão prevista na primeira parte do artigo 615.º n.º 1 c) do Código de Processo Civil e a nulidade por ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível prevista na segunda parte da mesma norma.

Alega para tanto a ré recorrente que o acórdão recorrido, assentando na mesma matéria de facto que serviu de fundamento à decisão de primeira instância acaba por concluir, de forma oposta e contraditória, pela existência de uma injustificada rutura do processo negocial destinado à celebração / renovação do contrato de distribuição comercial dos seus produtos então em curso.

2) Como tem sido de modo uniforme e inequívoco afirmado pelo Supremo Tribunal de Justiça – por todos o acórdão do STJ de 8 de Outubro de 2020 — processo n.º 361/14.4T8VLG.P1.S1 – “a nulidade do acórdão por oposição entre os fundamentos de facto e a decisão, prevista na al. c), do nº1, do artigo 615º, do Código de Processo Civil, segundo a qual a sentença é nula quando os fundamentos estejam em manifesta oposição com a decisão, sanciona o vício de contradição formal entre os fundamentos de facto ou de direito e o segmento decisório da sentença.”

Sendo a mencionada oposição entre os fundamentos e a decisão um vício lógico de construção do percurso argumentativo expresso no acórdão, verifica-se a nulidade quando na fundamentação da decisão o julgador seguir uma determinada linha de raciocínio conducente a uma conclusão e esta for em sentido oposto ou divergente.

E, como é igualmente pacífico, a nulidade da sentença ou do acórdão assim configurada também se não confunde com o erro de julgamento caracterizado pela errada subsunção dos factos concretamente apurados à correspondente hipótese legal ou com uma deficiente ou errada interpretação ou determinação da norma aplicável.

3) Neste contexto da avaliação da nulidade do acórdão recorrido é irrelevante a diferente interpretação que dos mesmos factos posam ter feito a sentença proferida em primeira instância e a decisão agora recorrida.

A invocação da oposição entre os fundamentos e a decisão, que a recorrente entende existir, assenta exactamente na circunstância de, perante o mesmo elenco de factos provados e não provados, o acórdão recorrido ter concluído, contrariamente ao que sucedeu na sentença, que deles ressaltava a responsabilidade civil da ré.

A questão assim apresentada pela ré não se traduz, porém, em nulidade por contradição entre os fundamentos e a decisão, mas em eventual erro de julgamento e de aplicação das regras de direito aos factos apurados.

É essa, de resto, na estrutura do recurso apresentado, a razão central do inconformismo expresso pela recorrente: os factos apurados não permitem integrar a sua conduta como violadora do dever de boa-fé contratual no âmbito das negociações sobre a pretendida – pela autora – celebração de um contrato de distribuição comercial dos seus produtos para o triénio 2021/2023.

4) O acórdão recorrido teve outro entendimento e do seu percurso argumentativo não se extrai que os fundamentos de facto e de direito expressos estejam em oposição com a decisão.

O alegado e eventual erro de julgamento através do errado enquadramento jurídico dos factos provados não preenche a previsão do artigo 615.º n.º 1 c) primeira parte do Código de Processo Civil.

Concluindo, improcede a arguição da nulidade do acórdão recorrido por oposição entre os seus fundamentos e a decisão.


◊ ◊



5) E que dizer quanto à arguição da nulidade do acórdão recorrido por alegada ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível (artigo 615.º n.º 1 c) segunda parte do Código de Processo Civil?

É também pacifico, na doutrina como na jurisprudência, que a nulidade a que agora nos reportamos só ocorre quando da leitura da decisão recorrida os respectivos destinatários não possam compreender, por deficiência da linguagem discursiva utilizada na fundamentação, o alcance do que foi decidido.

Contendo a sentença ou o acórdão alguma passagem que se preste a diversas interpretações ou comporte mais do um sentido ou se apresente como geradora de dúvidas para um declaratário normal (artigo 236.º n.º 1 e 238.º n.º 1 do Código Civil), ocorrerá a respectiva nulidade desde que esse vício na fundamentação torne a decisão ininteligível ou incompreensível mesmo depois de recorrer à fundamentação.

6) Consta do dispositivo do acórdão recorrido o seguinte: “Na procedência das alegações de recurso, revoga-se a sentença recorrida condenando-se a Ré a indemnizar a Autora em indemnização pelos prejuízos decorrentes da quebra das negociações comerciais com vista a celebrar contrato de distribuição a liquidar posteriormente nos termos do artº 609º, nº 2 do C.P.C.”

O dispositivo está precedido de fundamentação sobre o pedido formulado pela autora e é com ele conforme, nomeadamente porque, tendo concluído que os factos apurados sustentam a responsabilidade civil da ré pelo pagamento dos “prejuízos decorrentes da perda de lucro dada a não celebração do contrato frustrado”, a sua quantificação deverá ser feita em momento posterior.

A obrigação da ré recorrente decretada na decisão recorrida está suficientemente balizada e é facilmente inteligível face ao teor da fundamentação – ela abrangerá os prejuízos que forem apurados decorrentes da perda do lucro pela não celebração do contrato, assim satisfazendo o interesse contratual negativo da autora na prestação da ré a que se alude na fundamentação, excluindo, portanto, o valor do lucro que a autora teria tido se as negociações tivessem chegado a bom termo.

Improcede, pois a arguição da nulidade do acórdão recorrido por ambiguidade / obscuridade que torne ininteligível a decisão.


◊ ◊



7) Partindo da mesma base factual a sentença proferida em primeira instância e o acórdão recorrido chegaram a soluções opostas sobre o respectivo enquadramento jurídico e a subsunção da comprovada conduta da ré ao instituto da responsabilidade civil por violação do princípio da boa fé a que alude o artigo 227.º n.º 1 do Código Civil sob a epígrafe “culpa na formação dos contratos” nos termos seguintes:

“Quem negoceia com outrem para conclusão de um contrato deve, tanto nos preliminares como na formação dele, proceder segundo as regras da boa fé, sob pena de responder pelos danos que culposamente causar à outra parte”.

8) Em primeira instância, analisados os pressupostos de que a doutrina faz depender a proteção da tutela da confiança da parte que se vê confrontada com a recusa da celebração do contrato, apesar das negociações havidas – nomeadamente a criação pela contraparte de uma razoável confiança na conclusão do contrato e a falta de justificação para a ruptura das negociações – a sentença decidiu que os factos apurados não eram de molde a permitir à autora “concluir de forma suficientemente consistente pela futura conclusão de um novo contrato”.

Mais se salientou que “ao longo das conversações a ré foi solicitando à autora alterações da sua (da autora) prestação num futuro contrato, como seja os objectivos mais exigentes a atingir, que faziam antever a avaliação pela própria (pela ré) das vantagens e desvantagens para si na manutenção da parceria com a autora e a possibilidade da opção pela não conclusão de um novo contrato”.

E, mais adiante que, “na situação dos autos, o que acontece é justamente que, em face dos objectivos das negociações, que para a ré passavam, como a autora não podia desconhecer, pela ponderação em curso da utilidade económico-financeira da prestação da autora, a ruptura das mesmas por parte daquela, objectivamente não se apresenta ilegítima, arbitrária, intempestiva nem desleal, mas antes uma opção fundamentada e justificada do ponto de vista da ponderação custos / benefícios própria dos contratos de natureza económica, como é o caso”.

Para rematar que “nem a autora podia ter criado uma razoável confiança na conclusão do contrato nem a ruptura das conversações ou negociações por parte da ré se mostra injustificada, em prejuízo da possibilidade de imputar a esta danos provenientes da frustração das expectativas daquela que, à luz do citado artigo 227.º, n.º 1 do Código Civil, não são indemnizáveis.”

9) Já o acórdão recorrido interpretou diversamente os factos apurados, como se vê dos excertos que de seguida se transcrevem:

“Podemos extrair da matéria de facto que a autora (…), interessada na celebração do contrato foi fazendo propostas á ré que sempre as foi analisando, mostrando igualmente interesse no negócio de cliente já seu conhecido, fazendo contrapropostas e pedindo esclarecimentos, durante meados de 2020 até novembro do mesmo ano”, sendo que decorrendo as negociações, em setembro de 2020, foram realizadas encomendas confirmadas pela ré.

“A autora em setembro perante todo o contexto objectivo das negociações, dos quais se salienta o longo tempo de duração, mais de 6 meses, e em concreto perante a confirmação da sua encomenda, podia confiar que o contrato, que as partes qualificaram como distribuição, se iria concretizar dado que mantinha este tipo de relação comercial com a ré desde 2014.

E podia ter essa confiança porque, por um lado, não existia qualquer indício de que o contrato não seria concluído e que não era do interesse da ré, sobretudo por estarmos em finais de 2020, sendo que o novo contrato teria início em 2021, portanto com negociações muito avançadas.

Se é verdade que a ré foi solicitando ao longo das conversações, vários elementos à autora, e, que esta prontamente satisfez, este facto não é um indício dado à autora de que a outra parte não estava interessada na contratualização, ou que as conversações eram precárias.

Antes pelo contrário, a ré manteve a autora “em lume brando”, transmitindo a ideia de contratualização e acabou por descartar, de um momento para o outro, todo o processo de negociação credível, sem dar qualquer justificação à autora assumindo uma conduta desonesta, sem escrúpulos e desleal.

A confiança da autora mostra-se objetivamente fundada apresentando-se ilegítima a rutura contratual, que, aliás, foi só consumada depois de longo período e quase no final do ano, o que no mercado de moda se torna fatal dada a sua componente sazonal, como é de todos conhecida– primavera/verão, outono/inverno”.

10) Revisitando os factos apurados, salienta-se o seguinte:

Na sequência da celebração de um primeiro contrato de distribuição comercial dos produtos da ré, que vigorou pelo período de três anos entre 2014 e 2017, as partes encetaram negociações e celebraram um novo contrato com o mesmo objectivo para vigorar nos anos de 2018, 2019 e 2020.

Cerca de seis meses antes da cessação da vigência deste segundo contrato as partes iniciaram negociações com vista à celebração de um terceiro contrato de distribuição comercial dos produtos da ré.

Tanto quanto se alcança dos factos apurados, sendo do interesse da autora a celebração do terceiro contrato, o ponto de partida de tais negociações terá sido a apresentação de uma primeira versão de um plano de negócios para os três anos seguintes prevendo a diminuição das encomendas de mercadoria fornecida pela ré no ano de 2021, a possibilidade de transferência de uma loja temporária para uma loja permanente no Centro Comercial ... ou em rua movimentada e uma estratégia para melhor equilibrar os stocks e a distribuição do volume de vendas entre o norte e o sul do país, num plano elaborado para ser concretizado até 2023.

Tendo a ré solicitado a revisão desse plano de negócios a autora apresentou uma segunda versão no dia 4 de setembro, actualizando os valores de referência das encomendas a realizar face à evolução dos stocks de mercadoria, previsão de vendas e reiterando a possibilidade de arrendamento de uma loja permanente no Centro Comercial ....

No dia 24 de setembro a ré solicitou a apresentação de um plano de negócios para dois anos, ao que a autora acedeu, enviando uma terceira versão do plano de negócios no dia 25 de setembro de 2020 relativamente ao qual a ré pediu informações adicionais também prestadas pela autora em 29 de setembro de 2020.

A ré nada disse à autora e em 5 de novembro de 2020 comunicou à autora que não celebraria com ela novo acordo de distribuição comercial dos seus produtos.

11) O pedido formulado pela autora funda-se na violação pela ré das regras da boa fé que devem nortear a conduta das partes que se encontram em negociações tendo em vista a celebração de um contrato, nos preliminares como na sua formação.

As regras da boa fé a que o artigo 227.º do Código Civil manda atender não impõem, porém, a qualquer das partes em negociação a obrigação de concluir o contrato já que, apesar das negociações em curso, as partes mantém a possibilidade de contratar ou não contratar, como melhor lhes aprouver – essa é uma das facetas do princípio da liberdade contratual a que alude o artigo 405.º n.º 1 do Código Civil.

A tutela da confiança gerada em qualquer das partes pelo facto de se encontrarem em negociações com vista á conclusão de um contrato significa apenas, tal como se extrai do artigo 227.º do Código Civil, que essa circunstância as obriga a assumir nesse processo negocial uma conduta pautada pela boa fé, expressão que aqui tem como salientam Pires de Lima e Antunes Varela no seu “Código Civil Anotado” um conteúdo vincadamente ético.

12) A violação dessas regras da boa fé nas negociações preliminares à celebração do contrato por uma das partes assume especial relevância à inobservância dos conexos deveres de prestar as informações verdadeiras e essenciais à decisão de contratar e de lealdade, prevenindo tomadas de posição contrárias a anteriores posições que foram, objectiva e adequadamente, geradoras de confiança da parte contrária na celebração do negócio ou dos seus termos, só sendo ilícita “se for feita com má-fé, com violação dos deveres de honestidade e seriedade, com desconsideração dos padrões de relacionamento sério na contratação”. 1

É aqui que se insere a invocada ilicitude da conduta da ré ao comunicar à autora no termo das negociações havidas para celebração de um contrato de distribuição comercial dos seus produtos para vigorar a partir de 2021, num momento em que – alega a autora – adquirira já plena confiança na conclusão do negócio.

13) A matéria de facto apurada não permite tirar a conclusão que o acórdão recorrido assume acerca da ilicitude da conduta da ré por violação – objectivamente avaliada – das regras de boa-fé.

Na realidade o que de relevante objectivamente se sabe é que as partes iniciaram conversações e que nesse contexto a autora apresentou uma versão do plano de negócios que tencionava levar a cabo e que tal plano de negócios foi sendo alterado ou revisto na sequência da sua comunicação à ré e a solicitação desta.

A revisão do plano de negócios elaborado pela autora demonstra, ao menos aparentemente, que nas negociações em curso a ré continuava – como é normal que acontecesse – a ponderar o seu interesse económico e as vantagens na celebração do contrato de distribuição com a autora.

Nenhum dos factos apurados aponta, no entanto, no sentido de a ré ter formulado qualquer contraproposta, estabelecido condições para a celebração do novo contrato ou que tenha sido feito crer à autora que aceitaria celebrar o contrato se o plano de negócios apresentado fosse alterado.

O que se sabe é que as partes estiveram em negociações entre meados de junho de 2020 e finais de setembro de 2020 consistindo essas negociações na apresentação de planos de negócio por parte da autora sobre os quais a ré se foi pronunciando até que, já no início de novembro de 2020, a ré comunicou à autora que não celebraria o contrato.

14) Teria a autora razão para confiar fundadamente que o contrato seria celebrado porque a conduta da ré durante as negociações assim o anunciava?

Vejamos.

A relação jurídica anteriormente estabelecida entre a autora e a ré com vista à distribuição comercial dos produtos da ré tinha natureza temporária, tendo sido negociada a celebração do segundo contrato com vigência a partir de 2018.

Não estava garantida – nunca esteve – a continuidade de tal relação jurídica, apesar de a autora ter uma legítima expectativa de que um novo contrato seria celebrado.

A apresentação do plano de negócios para apreciação da ré com que se iniciaram as negociações, não se confundindo com uma proposta ou minuta do contrato a celebrar, traduzia, no entanto, a vontade inequívoca da autora em manter essa relação.

15) E da parte da ré?

A sua conduta no decurso das negociações foi objectivamente indiciadora de que estava disposta a celebrar novo contrato em termos que justifiquem a conclusão – que qualquer comerciante profissional tiraria nas mesmas circunstâncias em que a autora se encontrava – que a ré tinha vontade de celebrar novo contrato de distribuição dos seus produtos com a autora?

É certo que as comunicações entre as partes sobre o assunto se prolongaram por mais de três meses e que durante esse período a ré analisou as sucessivas versões do plano de negócios apresentado pela autora, ponderando naturalmente o seu interesse económico na celebração do contrato, sem nunca recusar frontalmente a sua concordância com a celebração de novo contrato.

Não consta, porém, dos factos apurados que a ré tenha manifestado à autora, em qualquer momento, a sua vontade de celebrar o contrato caso fosse alterado – como foi – o plano de negócios apresentado em 19 de junho de 2020 ou em 24 de setembro de 2020 ou sequer a adesão a que o contrato a celebrar se regesse por tal plano de negócios.

Objectivamente, e apesar da repetida manifestação do seu interesse no desfecho das negociações em curso por parte da autora, nenhuma comprovada conduta da ré durante essas negociações justificava que a autora se convencesse que o contrato iria ser efectivamente celebrado dando continuidade ao então vigente.

A aceitação das encomendas feitas pela autora de produtos da ré no decurso do período negocial não pode ser, sem mais, havida como traduzindo a vontade de celebração de um novo contrato por parte da ré não relevando, por isso, objectivamente para efeito de criação da confiança da autora na disposição da ré manter uma relação comercial assente em novo contrato de distribuição.

16) Parecem assim carecer de fundamento as considerações em contrário tecidas no acórdão recorrido e transcritas supra (ponto 9).

A conduta processual da ré durante as negociações com a autora, avaliada objectivamente do ponto de vista de um declaratário normal, ponderando o seu interesse em celebrar novo contrato, não poderia fundamentar a confiança da autora de que era vontade da ré celebrar com ela novo contrato de distribuição.

Assim sendo, a comunicação através da qual a ré comunicou à autora não ser sua intenção celebrar o contrato não é subsumível à previsão do artigo 227.º n.º 1 do Código de Processo Civil, como, de forma clara, declarou a sentença da primeira instância (cfr supra ponto 8).

17) Em conclusão, a presente revista deve ser julgada parcialmente procedente, não obtendo acolhimento nesta instância a alegação da nulidade do acórdão recorrido, que, não obstante será revogado, por não encerrar a decisão que se tem por mais adequada ao enquadramento jurídico dos factos apurados, com a consequente reposição do decidido em primeira instância.

As custas da revista ficam a cargo da autora e da ré, na proporção do respectivo decaimento que se entende ser de metade para cada uma das partes.



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III - DECISÃO

Termos em que os Juízes Conselheiros deste Supremo Tribunal de Justiça acordam em:

a) Julgar a revista interposta pela ré parcialmente procedente;

b) Julgar improcedente a arguição das nulidades do acórdão recorrido;

c) Revogar o acórdão recorrido – que condenou a ré recorrente a indemnizar a autora “pelo prejuízo decorrentes da quebra das negociações comerciais com vista a celebrar contrato de distribuição a liquidar posteriormente nos termos do artigo 609.º n.º 2 do Código de Processo Civil” – com a consequente manutenção da decisão de absolvição da ré tomada na sentença proferida em primeira instância.

d) Condenar a autora e a ré nas custas da revista, na proporção de metade para cada uma das partes.


Lisboa e Supremo Tribunal de Justiça, 18 de junho de 2024

Manuel José Aguiar Pereira (Relator)

Maria João Romão Carreiro Vaz Tomé

António Pedro de Lima Gonçalves

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1. Pedro Pais de Vasconcelos e Pedro Leitão Pais de Vasconcelos, Teoria Geral do Direito Civil, 9.ª edição, 2019, Almedina, pág. 496↩︎