Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JSTJ00040613 | ||
Relator: | FLORES RIBEIRO | ||
Descritores: | COACÇÃO SEQUESTRO RESISTÊNCIA | ||
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Nº do Documento: | SJ20000405000713 | ||
Data do Acordão: | 04/05/2000 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Referência de Publicação: | BMJ N496 ANO2000 PAG39 | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | REC PENAL. | ||
Decisão: | NEGADO PROVIMENTO. | ||
Área Temática: | DIR CRIM - CRIM C/PESSOAS / CRIM C/ESTADO. | ||
Legislação Nacional: | CP95 ARTIGO 154 N1 ARTIGO 158 ARTIGO 347. | ||
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Sumário : | I - Estando provado que o arguido se aproximou do veículo automóvel onde se encontravam F. e a namorada, M., e que, empunhando uma pistola, ordenou ao primeiro que saísse e permanecesse junto da traseira do veículo - advertindo-o de que "estava a ser observado" -, de tal forma que F., receando pelo que pudesse acontecer-lhe, a si e à sua namorada, não se afastou daquele local, enquanto o arguido, contra a vontade dela, manteve relações sexuais com M., deve concluir-se que, relativamente ao ofendido F., estão verificados todos os elementos objectivos e subjectivos do tipo legal de crime de sequestro. II - O facto de o arguido mandar dizer à ofendida, através de terceiras pessoas, que, se não retirasse a queixa e tudo o que já havia declarado no processo, a sua vida (dela, ofendida) corria perigo, integra o conceito de "ameaça com mal importante" constante do artigo 154, n.º 1, do Código Penal. III - A circunstância de o arguido se recusar a cumprir a ordem de identificação dada por um agente da Polícia Judiciária (que prévia e devidamente se lhe identificara como tal), ao mesmo tempo que, empunhando uma pistola, o ameaçava de que lhe "limpava o sarampo", dessa forma obrigando aquele agente de autoridade a não reagir ao seu afastamento do local, integra todos os elementos típicos do crime previsto e punido pelo artigo 347, do Código Penal. | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam no Supremo Tribunal de Justiça: No 2. Juízo Criminal do Tribunal Judicial da comarca de Viseu respondeu, em processo comum e perante o Tribunal Colectivo, o arguido A, com os sinais constantes dos autos, acusado pelo Ministério Público da prática, em autoria material e em concurso real, dos seguintes crimes: um de sequestro, previsto e punido pelo artigo 158, n. 1; um de violação, previsto e punido pelo artigo 164, n. 1; um de coacção sexual, previsto e punido pelo artigo 163, n. 1; dois de coacção (como autor moral), previsto e punido pelo artigo 154, n. 1; dois de ameaças previstos e punidos pelo artigo 153, n. 1; outro de ofensa à integridade física qualificada, previsto e punido pelo artigo 146, com referência ao artigo 143; outro de desobediência, previsto e punido pelo artigo 348 n. 1 alínea b); e outro de coacção sobre funcionário, previsto e punido pelo artigo 347, - artigos todos do Código Penal; e quatro contra-ordenações previstas e punidas pelo artigo 65, do Decreto-Lei n. 37313, de 21 de Fevereiro de 1942, com a alteração introduzida pelo Decreto-Lei n. 399/93, de 3 de Dezembro e pela Lei n. 22/97, de 27 de Junho. O arguido não contestou. Realizada a audiência de discussão e julgamento, veio o Tribunal Colectivo: a determinar o arquivamento dos autos, por falta de legitimidade do Ministério Público para dedução da acção penal, quanto aos dois crimes de ameaças, previsto e punido pelo artigo 153, n. 1 nas pessoas de B e C; a julgar a acusação improcedente relativamente a um crime de coacção sexual previsto e punido pelo artigo 163, n. 1 e quanto às 4 contra-ordenações, absolvendo o arguido do crime e das conta-ordenações; a convolar os dois crimes de coacção previsto e punido no artigo 154, n. 1 para os mesmos crimes apenas na forma tentada, previsto e punido no artigo 154, ns. 1 e 2 com referência ao artigo 23, n. 2, todos do Código Penal, condenando o arguido pela autoria destes crimes na pena de 12 meses de prisão por cada um deles; a condená-lo na pena de 9 meses de prisão pela prática de um crime de sequestro, previsto e punido pelo artigo 158, n. 1, do Código Penal; pela autoria de um crime de violação, previsto e punido pelo artigo 164, n. 1, foi condenado na pena de 5 anos de prisão; como autor do crime de ofensa à integridade física qualificada, previsto e punido pelos artigos 146 e 143, foi condenado na pena de 18 meses de prisão; a condenar o arguido na pena de 4 meses de prisão, pela prática do crime de desobediência, previsto e punido pelo artigo 348, n. 1 alínea b) do Código Penal e a condená-lo na pena de 12 meses de prisão pela autoria de um crime de coacção sobre funcionário, previsto e punido pelo artigo 347, do aludido Código. Em cúmulo jurídico de todas as penas aplicadas, veio o arguido A a ser condenado na pena única de 8 anos de prisão. Não se conformou o arguido com o assim decidido e por isso interpôs recurso para este Supremo Tribunal que, por seu acórdão de folha 453, julgou ser competente para apreciar a matéria do recurso o Tribunal da Relação de Coimbra. Neste Tribunal veio a ser proferido o acórdão de folhas 473 e seguintes que decidiu: absolver o arguido do crime de coacção sob a forma tentada na pessoa do ofendido D; declarar amnistiado o crime de desobediência previsto e punido no artigo 348, n. 1 alínea b) e por isso extinto o respectivo procedimento criminal - artigo 7, alínea d) da Lei n. 29/99, de 12 de Maio; reformular o cúmulo jurídico das penas em que o arguido foi condenado para 7 anos de prisão, substituído por igual tempo de Presídio Militar; e declarar perdoado um ano de prisão ao abrigo do disposto no artigo 1, ns. 1 e 4 e artigo 2, n. 3, da aludida Lei n. 29/99. O arguido não se conformou uma vez mais com o decidido e daí o ter interposto recurso para este Supremo. Da motivação apresentada, extraiu o recorrente as seguintes conclusões: 1 - Inexistem os elementos objectivos do crime de sequestro, pelo que o arguido deve ser absolvido e, ao decidir de modo diverso, o tribunal recorrido procedeu a uma errada interpretação e aplicação do artigo 158, n. 1, do Código Penal; 2 - Não se verificam in casu, os elementos objectivos do crime de coacção perpetrado na pessoa da E, pelo qual o arguido foi condenado na forma tentada, pelo que o arguido deve ser absolvido e, ao decidir de modo diverso, o tribunal recorrido procedeu a uma errada interpretação e aplicação do artigo 154, ns. 1 e 2 , com referência ao artigo 23, n. 2, ambos do Código Penal; 3 - O arguido não praticou qualquer crime de coacção sobre funcionário pelo que deverá igualmente ser absolvido, e ao decidir de modo contrário, o tribunal violou o disposto no artigo 347, do Código Penal; 4 - Foi feito um errado enquadramento jurídico-penal ao subsumir-se a conduta do arguido no artigo 146 do Código Penal, quando deveria ter sido enquadrada no artigo 143; 5 - Deverá, assim, o arguido ser condenado pelos crimes de violação, previsto e punido pelo artigo 164, n. 1 e pelo crime de ofensa à integridade física simples, previsto e punido pelo artigo 143 e tendo em conta os critérios fixados no artigo 71 do Código Penal nas penas respectivas de três anos e dez meses de prisão; 6 - Feito o respectivo cúmulo e tendo em conta o disposto no artigo 77, do Código Penal deverá o arguido ser condenado na pena única de três anos e dez meses do prisão, devendo beneficiar (na parte aplicável) de perdão previsto na Lei n. 29/99, de 12 de Maio; 7 - Deverá ser absolvido de todos os demais crimes pelos quais foi condenado; 8 - Ao decidir de modo diferente, o tribunal recorrido violou o disposto nos artigos 71, 77, 143, 158 e 347, do Código Penal. Na resposta que apresentou, o Exmo. Procurador-Geral pugna pela improcedência do recurso. Neste Supremo Tribunal a Exma Procuradora-Geral Adjunta teve vista dos autos e foi proferido o despacho preliminar. Colhidos os vistos, teve lugar a audiência oral. No seguimento da resposta apresentada pelo Exmo. Magistrado do Ministério Público junto do Tribunal da Relação, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta entendeu que o recurso não merece provimento. Pelo contrário, a defesa pugnou pela procedência do recurso. Cumpre decidir. É a seguinte a matéria de facto dada como provada: 1 - Pelas 24 horas de dia não concretamente apurado de 1997, mas nunca posterior ao mês de Março, numa Sexta-feira, encontravam-se E e D no interior da viatura deste último, a qual se encontrava estacionada nas proximidades do Aeródromo de Viseu - no ponto assinalado no croquis a folha 107, a que se reportam também as fotografias de folhas 108-109. 2 - O local referido, apesar de se situar próximo de estrada asfaltada, não é visível desta, porque é constituído por um "retiro" em terra, circundado de pinhal e mato, é local isolado - sem casas, estabelecimentos comerciais ou outros nas proximidades e sem iluminação pública. 3 - Tal "retiro" era, por isso, procurado por casais de namorados para encontros íntimos. 4 - E e D encontravam-se sózinhos na viatura e, nas proximidades, não havia outras. 5 - O arguido aproximou-se dessa viatura e, empunhando uma pistola, com ela bateu no vidro da porta do lado do condutor, junto à qual o D se encontrava e apontou a este a referida arma. 6 - O veículo encontrava-se com as portas trancadas, mas o D, que acabara de se relacionar sexualmente com a E, ao ver-se alvo da mira de arma de fogo, ficou apavorado, deu até um "berro", abriu, parcialmente, o vidro. 7 - O arguido, aproveitando a abertura, destrancou e abriu a porta e disse para o D: "oh pá, saí cá para fora". 8 - Este, ainda apavorado por ver a arma apontada, obedeceu e saiu da viatura. 9 - Quando já se encontrava no exterior da viatura, o arguido disse-lhe então que não lhes faria mal, mas que também queria manter relações sexuais com a E. 10 - O D, pensando que a concordância da E era a única forma de ambos saírem dali sem serem mais gravemente molestados - perante a ameaça da pistola - regressou ao carro e explicou à E os propósitos do arguido, perguntando-lhe se aceitava. 11 - A E também atemorizada temendo pela vida, acedeu aos intuitos do arguido. 12 - Este disse então ao D que saísse do veículo , fosse para a traseira e aí permanecesse e "nada tentasse porque estava a ser observado". 13 - Cumpriu o D a ordem, saindo da viatura e ficando, em respeito, atrás da mesma. 14 - O arguido entrou então no automóvel, para junto da E. Colocou a pistola junto dos pés, no chão do carro e pegando-lhe na mão, obrigou-a a tocar-lhe no pénis. 15 - Aproveitando o facto de a E se encontrar ainda despida, abriu-lhe as pernas e introduziu-lhe completamente o pénis, erecto, na vagina, nela o friccionando. 16 - Entretanto perguntou à E se usava algum contraceptivo. Porque a mesma primeiro dissesse que sim, mas, hesitante, logo dissesse que não, o arguido interrompeu a penetração sem ter ejaculado. 17 - Enquanto o arguido esteve com a E, esta esteve sempre a chorar. 18 - Depois de sair do veículo, o arguido foi falar com o D a quem ordenou que se identificasse, o mesmo fazendo relativamente à E. 19 - Por sua vez, ele disse que era polícia. Disse até que fiscalizava aquela zona, que ali vinham muitas pessoas drogarem-se. Chegou, inclusive, a mostrar o verso de um cartão do tamanho de um B.I. que tinha impresso o escudo da República Portuguesa e outras características não apuradas. 20 - Nessa noite o arguido trajava as calças, o blusão, botas e o boné fotografados a folhas 95 a 97 ou outros artigos de vestuário e calçado de características idênticas. 21 - Trazia pendurados ao pescoço os binóculos fotografados a folha 93 e à cintura um dos coldres castanhos também ali fotografados. 22 - Afastou-se do local, a pé, através da mata que rodeia o local, silenciosamente, tal como o havia feito quando se aproximou. 23 - Agiu com o intuito concretizado de, sempre sob a ameaça do uso da arma de fogo, impossibilitar a resistência da E e do D, obrigando este a sair do seu automóvel e a permanecer inerte nesse local, contra a vontade dele, e obrigando a E a tocar-lhe o pénis com a mão e a consigo copular, assim satisfazendo os seus desejos sexuais, contra a vontade dela. 24 - No dia 16 de Abril de 1998 o arguido foi submetido a interrogatório judicial, findo o qual lhe foi aplicada, como medida de coacção, entre outras, a proibição de contacto directo ou indirecto com os ofendidos destes autos. 25 - Apesar da proibição, no dia 26 de Maio de 1998, cerca das 21 horas, deslocou-se ao local de trabalho da ofendida E, tendo perguntado por ela; e - como ela não se encontrava nesse local - dirigiu-se para as proximidades da casa dela, onde foi visto uma hora mais tarde. 26 - No dia 30 de Maio de 1998 a E deslocou-se à Esquadra da P.S.P., nesta cidade, a informar o que lhe tinha sucedido nesse dia: deslocaram-se ao seu local de trabalho três mulheres de identidade não apurada, uma das quais aparentando ser de etnia cigana, a qual se lhe dirigiu dizendo que era comadre do Cabo A, - o arguido - e, se ela não negasse o que já havia dito no referido processo, a vida dela corria perigo. 27 - A E ficou amedrontada e chegou a dizer que pretendia retirar a queixa pois não aguentava mais tantas ameaças: aquela e bem assim as que vinha recebendo constantemente através de telefonemas, para sua casa e local de trabalho. 28 - Foi necessário, para que não retirasse a queixa, a P.S.P. garantir-lhe segurança com a consequente vigilância dos seus movimentos. 29 - Também o D, no início do mês de Maio de 1998, foi abordado no seu local de trabalho, no "Restaurante .....", por 3 indivíduos de etnia cigana - F, G e um outro de identidade não apurada. 30 - O F disse-lhe: "você foi o indivíduo que teve o caso lá em cima no campo da aviação??... olhe que ele é meu compadre, você conhece-o??". 31 - O D respondeu que não, ao que o F retorquiu dizendo saber o seu nome e que até tinha a matrícula da sua viatura, exibindo-lha de seguida. 32 - O D ficou apavorado com o referido contacto, temendo represálias sobre a sua pessoa. 33 - Foi o arguido que contactou o F e o G e lhes solicitou que contactassem o D nos termos em que o fizeram. 34 - Também foi o arguido que contactou as 3 mulheres que abordaram a E no seu local de trabalho e a ameaçaram. 35 - O arguido, ao solicitar a intervenção das referidas pessoas, solicitando-lhes que contactassem e pressionassem os ofendidos, pretendia amedrontá-los e limitar-lhes a liberdade na prestação de depoimentos, designadamente, tentando levar os ofendidos a desdizer o que tinha já dito no processo e que incriminava o arguido. 36 - Em data incerta, mas que se situa no mês de Novembro de 1997, por volta das 22 horas, a B e C, namorados, deslocaram-se na viatura deste, no sentido Viseu - Aeródromo. 37 - Depois de terem circulado algum tempo atrás de uma viatura Citroen 2 Cv, a fotografada a folha 58, propriedade do arguido e por ele conduzida, resolveram parar junto à berma da estrada, no ponto J, assinalado no "croquis" de folha 107. 38 - Instantes depois de pararem, parou ao lado deles a viatura do arguido. 39 - Este, mal imobilizou a viatura, dele saiu empunhando uma espingarda caçadeira, uma das referidas a folha 112 e apontou-a à cabeça da B, com os canos praticamente encostados ao vidro da janela; passados alguns segundos, rodeando o carro, apontou-a à cabeça de C que estava ao volante. 40 - Acusava a B e o C de o terem perseguido. Estes negaram, dizendo que andavam a passear e que tinha sido casual o facto de terem seguido na retaguarda do veículo do arguido. 41 - Então o arguido regressou ao seu veículo e seguiu em direcção ao aeródromo. 42 - Nesse dia o arguido usava o blusão e o boné fotografados a folhas 96 e 97. 43 - A B e o C, dado o inesperado da ameaça, desta ser realizada com arma de fogo, em local ermo, de noite, usando o arguido um tom autoritário e nada amistoso, ficaram receosos. 44 - O arguido sabia o seu comportamento idóneo a provocar receio e inquietação nos ameaçados. 45 - No dia 7 de Dezembro de 1997, cerca das 16 horas e 30 minutos A e a sua namorada H estavam no interior da viatura daquele, estacionada num retiro do pinhal, próximo do Instituto de Meteorologia - v. croquis de folha 107. 46 - Estavam absortos um com o outro só reparando que alguém os espiava quando viram um vulto encostado à janela. 47 - O A perguntou ao intruso - o arguido - o que é que pretendia. Em resposta, o arguido empunhou uma espingarda de caça, uma das referidas a folha 112 e, em tom ameaçador, disse que o local era propriedade privada e não era sítio para se estar a namorar. 48 - O arguido continuou a dizer, em tom arrogante, que aquele não era local para namorar; a certa altura o arguido, sem mais, desferiu vários murros no A (estando este ao volante, dentro do automóvel) atingindo-o na face e no nariz. 49 - Após a agressão, o arguido pôs-se em fuga, a pé. O A ainda tentou a perseguição, mas foi infrutífera, apercebendo-se à distância, que, já longe, seguia o agressor - o arguido - conduzindo o veículo fotografado a folha 58. 50 - Nesse dia o arguido usava botas e as calças e o gorro fotografados a folha 95. 51 - Em consequência directa e necessária das agressões, o ofendido A sofreu as lesões descritas e examinadas nos autos de exame directo e de sanidade de folhas 131 e 145 - fractura dos ossos do nariz - os quais demandaram, para a sua cura, um período de 46 dias, todos com incapacidade para o trabalho. 52 - O arguido quis molestar fisicamente o A. Sabia o seu comportamento idóneo a atingir aquele resultado. 53 - No dia 30 de Janeiro de 1998, pelas 23 horas, I, agente da Polícia Judiciária de Aveiro e a sua namorada J encontravam-se a conversar no interior da viatura daquele, a qual estava parada na posição assinalada no croquis de folha 107 pela letra D e nas fotos de folha 110. 54 - Nesta situação, sendo um local habitualmente usado por namorados para estarem discretamente, não havia nas redondezas outras viaturas para além da de I. 55 - O local onde estavam é isolado, um pouso afastado da estrada, não visível da mesma, com mato à volta e sem casas ou construções de outros fins, nas proximidades. 56 - No mesmo local, cerca de dez minutos depois de aí entrarem, entrou o arguido conduzindo a sua viatura, a fotografada a folha 58. Passou pela viatura de I e foi parar a cerca de 100 metros desta, desligando o motor e as luzes. 57 - Sem que se apercebessem - julgavam que no referido veículo também estava um par de namorados - o arguido aproximou-se da viatura onde se encontravam, a pé, e pôs-se a espreitar pela janela traseira, do lado contrário ao do condutor. 58 - I, apercebendo-se do espia, empunhou a pistola que lhe está distribuída, uma Browning BDA 9 milímetros, destrancou o fecho interior das portas e saiu de forma rápida. 59 - Disse, em voz alta, "alto! Polícia Judiciária!" apontando a referida arma ao arguido. E, vendo que este também empunhava uma pistola, ordenou-lhe que colocasse a arma no chão e repetiu que era da Polícia Judiciária. 60 - O arguido não obedeceu, antes avançou para o I empunhando a sua arma apontando-a a este. Quando estavam a cerca de 2 metros um do outro, vendo que nenhum deixava de apontar ao outro as armas que empunhavam, acordaram guardá-las. 61 - O arguido, dizendo que também era Polícia, solicitou a I a sua identificação, ao que este lhe exibiu o cartão de livre trânsito e distintivo, tendo aquele observado os referidos documentos. 62 - Disse então o arguido que o carro do I lhe pareceu ser de uns indivíduos que se injectavam, que os queria apanhar e até trazia uma navalha para lhe cortar os pneus, exibindo-lha - uma das fotografadas a folha 93 e examinadas a folha 91. 63 - O I insistiu com o arguido para se identificar, ordenando-lhe que o fizesse, depois de o advertir que a recusa o faria incorrer num crime de desobediência. 64 - Porém, o arguido respondeu que não daria a sua identificação, "pois não queria que no seu serviço soubessem que ali andava na caça do javali", e, para atestar a alegada caça, exibiu alguns cartuchos de calibre 12, de tom branco. 65 - O arguido ia realizando tentativas de se afastar do local sem dar a sua identificação. 66 - Opunha-se o I, dizendo-lhe que não o deixaria sair dali sem se identificar, tanto mais que ele se tinha identificado como polícia e empunhava uma arma. 67 - A dada altura o arguido disse que se ia embora, não se importando da oposição do I. 68 - Este, vendo que o arguido se preparava para cumprir o que tinha afirmado - ausentar-se sem se identificar - efectuou um disparo para o ar, como forma de o intimidar. 69 - O arguido reagiu com violência, empunhando de novo a sua pistola e disse: "Eu não tenho medo, sou cabo da Brigada de Trânsito, já respondi em Tribunal Militar por duas vezes por dar tiros, não tenho problemas nenhuns em limpar-te o sarampo". Enquanto falava, avançava para o I, o qual também tinha a pistola empunhada e, face à investida do arguido recuou um pouco. 70 - A namorada deste, ouvindo o disparo, vendo o comportamento do arguido e temendo que alguma desgraça pudesse ocorrer, começou a chorar e disse para o seu namorado: "deixa-o ir embora". 71 - O arguido, apercebendo-se do pânico da J acalmou e disse: "Vocês da judiciária têm a mania mas não têm perspicácia nenhuma. Então nem vê que este casaco é da Brigada de Trânsito!?". 72 - Face ao estado de aflição da namorada, pensando que a situação, a continuar, poderia terminar em tiroteio, e entendendo que já tinha do arguido retido um conjunto de características físicas e outras que poderiam permitir posterior identificação, o I deixou-o ir embora e disse àquela para conduzir o veículo até ao aceiro, local já afastado daquele onde o arguido se foi internar na mata. 73 - Na ocasião o arguido usava as calças, casaco, gorro, luvas um dos coldres castanhos, uma das navalhas e a lanterna fotografados a folhas 95, 96 e 93 e examinados a folha 91. 74 - O arguido tinha-se aproximado sorrateiramente do veículo, tal como havia feito nas demais vezes supra descritas. 75 - Agiu com o intuito de espiar os comportamentos dos pares de namorados e, se a ocasião se propiciasse, de repetir o que fez com a E. 76 - Foi-lhe dada ordem legítima de identificação e de largar a arma por agente de autoridade e foi advertido da responsabilidade penal em caso de desobediência. 77 - Desobedeceu e, ameaçando o referido agente impediu que este o identificasse, como era seu propósito. 78 - Em todas as circunstâncias descritas, sempre o arguido agiu de forma livre e voluntariamente; apesar de saber as suas condutas proibidas e punidas por lei quis actuar da forma que ficou descrita. 79 - Usou por duas vezes arma de caça e também por duas vezes pistola, para fins que sabia não serem permitidos. 80 - O agregado familiar do arguido é composto pelo próprio, pela mulher, doméstica, e dois filhos, dos quais apenas um em idade escolar. 81 - Vive em casa própria, auferindo o vencimento de 192000 escudos mensais líquidos. 82 - Do certificado do R.C. do arguido não consta a existência de quaisquer antecedentes criminais. 83 - A queixosa E logo num dos dias seguintes à ocorrência dos factos passados com ela, dirigiu-se ao Sub-chefe Chaves da P.S.P. de Viseu, seu conhecido, a quem relatou o sucedido, fornecendo-lhe os dados do autor desses actos que tinha retido e solicitando-lhe que encetasse diligências com vista a apurar a sua identidade. 84 - Logo que teve conhecimento de que havia sido identificado um indivíduo que podia corresponder à pessoa que tinha praticado os factos, veio a declarar desejar procedimento criminal "contra o autor dos factos, se vier a ser identificado", o que sucedeu em 4 de Fevereiro de 1998. O recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça visa exclusivamente o reexame da matéria de direito - artigo 432, alínea d) do Código de Processo Penal. É pacífica a jurisprudência deste Supremo no sentido de que o âmbito do recurso se define pelas conclusões que os recorrentes extraem das respectivas motivações, sem prejuízo, contudo, das questões de conhecimento oficioso. Começa o recorrente por, na conclusão 1, afirmar que não existem os elementos objectivos do crime de sequestro. Dispõe o n. 1 do artigo 158, do Código Penal (diploma a que pertencerão os artigos adiante citados, sem expressa referência a diploma legal) que "quem detiver, prender, mantiver presa ou detida outra pessoa ou de qualquer forma a privar da liberdade é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa". O bem jurídico que se pretende proteger nesta norma é a liberdade de locomoção, isto é, a liberdade física ou corpórea de mudar de lugar, de se deslocar de um sítio para o outro - veja-se, neste sentido, Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, volume 1, página 404 e acórdão do S.T.J. de 1 de Abril de 1987, no B.M.J. 366, página 245. A respeito da norma acima transcrita, escreve-se ainda no citado "Comentário", volume 1, página 407: "A descrição legal contém, ainda, a cláusula geral "ou de qualquer forma a privar de liberdade". Não se trata de uma alternativa às condutas de deter, prender, manter presa ou detida, mas sim de uma referência aos meios da conduta privadora de liberdade (deter, prender, manter presa ou detida), indicando que são relevantes e, portanto, subsumíveis ao tipo legal todo e qualquer meio, desde que adequado a impedir a liberdade de deslocação". Por isso é que já o acórdão deste Supremo acima referido decidiu, dentro da mesma linha de orientação, que a norma tutela a capacidade de cada um se fixar ou movimentar livremente no espaço físico contra a ilícita restrição, por qualquer forma ou medida temporal, desse direito. Ficou provado, no que diz respeito a este crime, que, estando o D dentro do seu veículo com E, apareceu o arguido que acabou por lhe ordenar que saísse do carro e ali ficasse, atrás do mesmo, enquanto mantinha relações sexuais com E, dizendo que estava a ser observado. E tudo isto dito tendo na mão uma pistola - factos ns. 12 e 13. Perante esta situação, o D nada mais fez do que acatar o ordenado, com receio, não só do que lhe pudesse acontecer, como também à sua namorada. E só por esta razão é que o D se não afastou do local - facto n. 10. Uma coisa é ver a situação a frio, como o arguido agora a vê, outra a situação de pânico, dada a pistola existente, a noite e o local ermo. Fugir para quê e como se o arguido estava no veículo do ofendido? Perante todo este factualismo, não se pode deixar de concluir que todos os elementos objectivos do crime de sequestro se encontram preenchidos, tal como a vontade do agente em que o ofendido não se afastasse do local. Na conclusão 2 entende o recorrente que, igualmente, não se verifica o crime de coacção sobre a ofendida E, por inexistência dos elementos objectivos. Estatui o artigo 154, n. 1 que "quem, por meio de violência ou de ameaça com mal importante, constranger outra pessoa a uma acção ou omissão, ou a suportar uma actividade, é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa". "O tipo objectivo de ilícito da coacção consiste em constranger outra pessoa a adoptar um determinado comportamento: praticar uma acção, omitir determinada acção, ou suportar uma acção" - Comentário Conimbricense..., volume 1 página 354. E meios de coacção são a violência ou a ameaça com mal importante. Ficou provado - facto n. 26 - que no dia 30 de Maio de 1998 se tinham deslocado ao local de trabalho de E 3 mulheres de identidade não apurada, uma das quais, aparentando ser de etnia cigana, se lhe dirigiu dizendo que era comadre do Cabo A - o arguido - e que se ela não negasse o que já havia dito no processo, a vida dela corria perigo. E tal ameaça amedrontou a E, que só não retirou a queixa em face das garantias dadas pela P.S.P. - factos ns. 27 e 28. E tais mulheres só assim agiram em virtude da intervenção do arguido - factos ns. 34 e 35. Dizer a alguém que se não retirasse a queixa e o que tinha dito no processo, "a vida dela corria perigo" é, sem dúvida, ter-se ameaçado alguém com mal importante. A recusa por parte da arguida poria a sua vida em risco. Haverá algo mais grave? Daí que se possa afirmar, com toda a certeza, que os factos provados referentes a este crime enquadram a prática do crime pelo qual o arguido veio a ser condenado. E foi-o na forma tentada por que não chegou a consumar-se. Diz na conclusão seguinte o recorrente que também não cometeu o crime de coacção sobre funcionário. Determina o artigo 347 que "quem empregar violência ou ameaça grave contra funcionário ou membro das Forças Armadas, militarizadas ou de segurança, para se opor a que ele pratique acto relativo ao exercício das suas funções, ou para o constranger a que pratique acto relativo ao exercício das suas funções, mas contrário aos seus deveres, é punido com pena de prisão até 5 anos". A respeito deste crime há que ter em consideração os factos provados constantes dos ns. 53, 57, 59, 60, 63, 64, 66, 68, 69 e 72. E deles resulta que o ofendido, agente da P.J., nas condições referidas nos factos, depois de devidamente identificado como tal, deu uma determinada ordem, legítima, que o arguido não só não acatou, como reagiu de forma violenta com a pistola na mão, dizendo que lhe "limpava o sarampo". E acabou por se retirar sem se ter identificado, o que só conseguiu perante tal ameaça, que levou o ofendido a deixá-lo retirar-se, a fim de evitar prementes consequências. Encontram-se, pois, preenchidos todos os requisitos previstos no artigo 347. Entende depois o recorrente que os factos constantes dos ns. 48 e 51 foram mal enquadrados juridicamente, pois deviam ser subsumidos no artigo 143 e não no artigo 146. Como se alcança da motivação de recurso da decisão da 1. instância que o arguido apresentou e que foi analisada pelo Tribunal da Relação de Coimbra, não foi aí posta em xeque a qualificação jurídica de tais factos feita em tal decisão e que condenou o arguido como autor do crime previsto e punido pelas disposições combinadas dos artigos 143, 146 e 132. Não recorrendo deste ponto de tal decisão, o arguido conformou-se com a mesma e daí não ter o Tribunal da Relação apreciado tal matéria. E só agora, ao recorrer do acórdão do Tribunal da Relação é que se insurge contra tal enquadramento. Não se pode, porém, conhecer de tal questão. Com a interposição de um recurso pretende-se que seja feito um reexame da causa por um tribunal hierarquicamente superior. Mas não pode este tribunal conhecer de questões novas, de questões que não tenham sido decididas no acórdão recorrido, por não terem sido questionadas. Ao conformar-se com a decisão da 1. instância, esta veio a transitar em julgado e por isso, também, o estar-se, agora, impedido de analisá-la. Finalmente, entende o recorrente que a pena a aplicar ao crime de violação deve fixar-se nos 3 anos de prisão, e em 10 meses a pena pelo crime do artigo 143 - pelo qual deve ser condenado e não pelo artigo 146, como o foi. Pelo que acima ficou dito, o conhecimento desta última questão está prejudicada, pois se mantém o enquadramento feito em 1. instância. Vejamos então se é merecedora de censura a pena de prisão aplicada ao crime de violação. De acordo com o artigo 164, n. 1, a moldura penal do crime é de 3 a 10 anos de prisão. A aplicação das penas visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade, não podendo a pena ultrapassar, em caso algum, a medida da culpa, conforme estatui o artigo 40. Por sua vez, o n. 1 do artigo 71 dispõe que a determinação da pena dentro dos limites definidos na lei será feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, indicando depois no seu n. 2 algumas circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, podem depor a favor ou contra o agente. Ao terminar o capítulo relativo ao estudo das finalidades e limites das penas criminais, apresentam Figueiredo Dias e Costa Andrade na obra (em publicação) "Direito Penal - Questões Fundamentais - A doutrina geral do crime" 1996, página 120, a seguinte conclusão: "A teoria penal aqui defendida - e que agora é sustentada também, praticamente na sua integridade, por Anabela Rodrigues - pode resumir-se pela forma seguinte: 1) Toda a pena serve finalidades exclusivas de prevenção, geral e especial. 2) A pena concreta é limitada, no seu máximo inultrapassável, pela medida da culpa. 3) Dentro deste limite máximo ela é determinada no interior de uma moldura de prevenção geral de integração, cujo limite superior é oferecido pelo ponto óptimo de tutela dos bens jurídicos e cujo limite inferior é constituído pelas exigências mínimas de defesa do ordenamento jurídico. 4) Dentro desta moldura de prevenção geral de integração a medida da pena é encontrada em função de exigências de prevenção especial em regra positiva ou de socialização, excepcionalmente negativa ou de intimidação ou segurança individuais". Em face dos factos dados como provados, temos que considerar o crime de violação cometido como um ilícito muito grave, tendo em conta o modo de execução, o local e a hora em que se consumou, sendo certo que a um agente de autoridade se impunha um outro comportamento. Quanto ao dolo com que agiu - directo - não pode o mesmo deixar de considerar como intenso. Nenhuma circunstância atenuante foi dada como provada. Tudo ponderado - os princípios jurídicos referidos e os factos provados - estamos em crer que nada há a censurar à pena aplicada. Quanto à pena única aplicada, é a mesma de manter. Com efeito, todas as penas parcelares são mantidas, somando, no total, 9 anos e 3 meses de prisão. Tendo em consideração a personalidade do agente e a globalidade dos crimes cometidos, julgamos inteiramente correcta a pena de 7 anos de prisão. Mantém-se o decidido quanto ao perdão de pena aplicada ao abrigo do disposto na Lei n. 29/99, de 12 de Maio. Nestes termos, acordam em, negando provimento ao recurso, manter o decidido. Vai o recorrente condenado em 10 UCS de taxa de justiça, com 1/4 de procuradoria. Fixa-se os honorários à Excelentíssima defensora oficiosa em 18000 escudos, a avançar pelos Cofres. Lisboa, 5 de Abril de 2000 Flores Ribeiro, Brito Câmara, Lourenço Martins, Pires Salpico. Tribunal da Relação de Coimbra - Processo - 2779/99 de 15-12-1999. |