Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
03P3210
Nº Convencional: JSTJ000
Relator: SIMAS SANTOS
Descritores: PODERES DE COGNIÇÃO
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
MATÉRIA DE FACTO
MATÉRIA DE DIREITO
TRIBUNAL COLECTIVO
ACÓRDÃO
COMPETÊNCIA DA RELAÇÃO
COMPETÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Nº do Documento: SJ200310090032105
Data do Acordão: 10/09/2003
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: 2 J CR LOULÉ
Processo no Tribunal Recurso: 416/02
Data: 07/09/2003
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Sumário : 1 - Se o recorrente impugna no recurso a matéria de facto fixada pelo tribunal colectivo, ao abrigo dos seus poderes de livre convicção, não se está perante um recurso exclusivamente de direito [art.º 432.°, al. d) do CPP], cuja apreciação pertença ao Supremo Tribunal de Justiça.
2 - O conhecimento desse recurso cabe, pois, à respectiva Relação - art.ºs 427.º e 428.º do CPP, que conhece de facto e de direito e a que deve o recurso ser remetido.
Decisão Texto Integral: Acordam do Supremo Tribunal de Justiça
I
1.1.
O Tribunal Colectivo da Comarca de Loulé (2.º Juízo Criminal - CC 416/02.8GFLLE), por acórdão de 9.7.2003, decidiu condenar o arguido DSN, como os sinais dos autos, como autor de homicídio qualificado dos arts. 131° e 132°, 1 e 2, h) e i), C. Penal, na pena de vinte e dois anos de prisão.
1.2.
Baseou-se na seguinte factualidade:
O arguido e DAV, nascida a 11-3-83, em Faro, namoraram no período que medeia entre meados de 2000 e 2002;
A partir de Maio de 2001 passaram a viver um com o outro como se de marido e mulher se tratasse, na residência do arguido, em Vale D' Éguas, Almancil;
Do relacionamento íntimo entre ambos assim estabelecido veio a nascer, em Fevereiro de 2001, RSVN;
Tal relacionamento veio a terminar, em Junho de 2002, por iniciativa da DAV;
A ida da malograda DAV foi viver para casa dos seus pais, levando a menor consigo;
Tendo ficado ajustado que o arguido teria o direito de se deslocar a casa da DAV para visitar a filha, assim como a malograda DAV ficou de se deslocar todas as segundas feiras a casa do arguido para que este pudesse ver a mesma menor;
Num dos referidos encontros, que tinham em vista o convívio entre pai e filha, a DAV informou o arguido que entretanto iniciara um relacionamento amoroso com um indivíduo de Olhão, de nome H, e que tencionava ir viver com ele, fazendo-se acompanhar da filha;
O arguido ficou com ciúmes, porquanto nunca aceitaria nem admitiria a ideia de que a malograda DAV pudesse vir a ter um companheiro que não fosse ele;
No dia 3 de Agosto de 2002, ao fim da tarde, quando o arguido se encontrava na esplanada do estabelecimento de cafetaria denominado "Ribatejano", a DAV apareceu no local, acompanhada de mão dada com um indivíduo que o arguido referenciou como sendo o dito H, atentas as características fisionómicas com que a DAV o havia descrito;
Sentindo-se humilhado e preterido, logo o arguido congeminou o propósito firme de vingança, que culminaria na eliminação física da DAV;
Para tal, na manhã do dia 9 de Agosto de 2002, o patrão do arguido, a solicitação deste, concedeu-lhe dispensa para a parte da tarde, período do dia que idealizou para levar a cabo o seu plano de retirar a vida à malograda DAV;
Pelas 15h00m, pouco antes de deixar o trabalho, o arguido telefonou para a DAV, solicitando-lhe que se deslocasse a casa dele e trouxesse a menor RSVN, pois pretendia vê-la;
De seguida, o arguido abandonou o seu trabalho e dirigiu-se a casa, onde, na cozinha, escolheu a faca mais adequada à perfuração e corte, com 13cm de lâmina, serrilhada, que prendeu e dissimulou numa presilha sita na parte de trás das calças, tendo após aguardado a chegada da DAV e filha de ambos, o que ocorreu pelas 18h15m;
Como o arguido tivesse dito à malograda DAV que precisava de falar com ela a sós, e ela concordasse, dirigiram-se ambos a casa da testemunha D, tia do arguido, residente muito próximo da casa deste, a cujos cuidados entregaram a criança;
Após a entrega da menor, seguiram arguido e vítima em direcção à Parcolândia, em Almancil, fazendo-se transportar no veículo ligeiro n.° AH, marca Hiunday, propriedade da malograda DAV, com esta ao volante;
Sendo que o arguido, logo após ter penetrado no veículo, retirou discretamente a faca da presilha e guardou-a no compartimento da porta do seu lado;
Pretendia o arguido adquirir haxixe no referido local para ambos fumarem em local isolado, onde ele de seguida poria em prática os seus intentos;
Como ali não encontrassem vendedor de haxixe e o arguido persistisse em aliciar a vítima para local recôndito, disse a esta que ainda tinha consigo o suficiente para um "charro", que dividiriam entre ambos;
O que não correspondia à verdade, porquanto o arguido não tinha droga consigo;
Então, o arguido indicou à ofendida o trajecto a seguir, tendo a infeliz DAV conduzido o veículo até um local denominado Barrocal, em Vale D' Éguas, onde o arguido lhe ordenou que detivesse a marcha do veículo, o que ela cumpriu, imobilizando o veículo a cerca de 10m da linha férrea, com a retaguarda do veículo voltada para esta;
Logo que a infeliz DAV retirou o cinto de segurança e, antes que tivesse tempo de desligar o motor, o arguido, num gesto rápido retirou a faca do compartimento da porta e, com utilização de sua força física, espetou-a em profundidade no pescoço da vítima, fazendo de seguida pressão continuada no mesmo instrumento, assim perfurando a face lateral anterior esquerda do pescoço e os grandes vasos, no sentido ascendente, da esquerda para a direita e da frente para trás, ao mesmo tempo que com a mão esquerda puxava a alavanca do travão de mão, porquanto o veículo deslizava para a retaguarda, por ausência de pressão no pedal do travão de pé;
No momento do contacto inicial com a lâmina a malograda DAV ainda deu dois gritos de desespero e dor, que foram ouvidos pela testemunha BC, que se encontrava na sua residência, sita a cerca de 80m do local;
Após imobilização da viatura, o arguido puxou a cabeça da vítima com a sua mão esquerda e baixou-a entre os dois bancos dianteiros, colocando-lhe o joelho em cima, sempre pressionando a faca no pescoço da vítima;
O arguido manteve esta posição até deixar de sentir estertor por parte da vítima;
Após se ter convencido de que a vítima se encontrava morta, retirou a faca do pescoço e levantou igualmente o joelho de cima do corpo da vítima;
De seguida, saiu do veículo e puxou o corpo da vítima para c exterior, pelo lado direito do veículo, e colocou-o no solo, ao lado do veículo;
Após, destravou a alavanca do travão de mão para possibilitar o recuo do veículo por forma a melhor encobrir o corpo da vista de eventuais populares que no lado oposto da linha férrea passassem;
Retirou de seguida a faca em causa do interior do veículo E lançou-a para o outro lado da via férrea, não tendo sido possível apreendê-la;
A seguir abriu a porta da bagageira do veículo e do seu interior retirou dois cobertores, com os quais tapou os dois banco dianteiros, para que o sangue em que estavam embebidos não fosse visível do exterior, tendo fechado de seguida a porta do lado direito e lançado as chaves à distância;
Depois agarrou a mão direita da vítima e arrastou-a por um carreiro durante alguns metros, tendo parado por sentir que o corpo se estava a tornar demasiado pesado para ser deslocado daquela forma;
Ao parar deu-se conta de que um dos sapatos da vítima se soltou do pé, pelo que pegou nele e lançou-o para a via férrea;
Dando conta de que a vítima aparentava ainda sinais de vida, o arguido segurou uma pedra com 53cms de comprimento, 32cms de largura, 13 cms de espessura e 13,5kgs de peso, que se encontrava no carreiro e, com utilização da sua força física, bate violentamente com ela na cabeça da vítima;
Depois lançou a mesma pedra para o meio da vegetação, a uma distância de cerca de 5m;
De seguida, pegou no corpo ao colo e transportou-o deste modo até uma moita, a cerca de 50m em linha recta do local onde c veículo se encontrava imobilizado, constituída por um conjunto de arbustos de médio porte - 3 metros de altura por 4m de comprimento -, onde o escondeu, de barriga para baixo;
Abandonou o local logo após, dirigindo-se para sua casa, onde lavou as mãos e a cara, que continham sangue da vítima;
Mudou de roupa, guardando o par de calças e a t-shirt que vestia aquando da prática dos factos descritos numa arca, que se encontravam com sangue da vítima, e dirigiu-se a casa da testemunha D, sua tia, para tomar banho, uma vez que a sua casa não dispunha de equipamento para o efeito;
Considerando que não tinha condições para ter consigo a sua filha, o arguido, fazendo-se transportar no veículo da testemunha J, seu primo, dirigiu-se a casa dos avós maternos da RSVN, onde deixou a menor;
O golpe produzido pela faca produziu, directa e necessariamente na jovem e infeliz DAV ferida inciso-perfurante cervical, dirigida da esquerda para a direita, da frente para trás e ligeiramente ascendente, lesão que provocou secção e lacerações dos grandes vasos cervicais direitos, com hemorragia local e hemotórax direito;
Em resultado da pancada desferida com a pedra supra descrita ainda em vida da vítima, sofreu esta múltiplas lesões crânio-encefálicas e faciais, nomeadamente esmagamento malar esquerdo, fracturas do maxilar inferior na sua zona mediana e ramo ascendente esquerdo, fracturas cominutivas tempero-parietoesfenoidais esquerdas, fractura do occipital, continuando a fractura parietal;
Lesões estas que lhe causaram directa e necessariamente a morte;
O que também sucederia inevitavelmente, alguns minutos mais tarde, como resultado necessário das lesões acima descritas provocadas pela faca;
Atenta a natureza dos instrumentos utilizados, as suas características, a forma como os manejou e a sensibilidade dos órgãos atingidos, tem-se por certo que o arguido agiu com o firme propósito de tirar a vida à vítima, o que logrou;
Agiu o arguido de modo livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta lhe estava vedada por lei penal;
O arguido é de modesta condição económica e social, trabalhando como empregado de mesa;
Vivia sozinho à data dos factos;
Tinha um bom relacionamento com a filha, de quem gostava como pai;
Não tem antecedentes criminais.
Não se provou que:
A separação da vítima e do arguido se tenha ficado a dever a incompatibilidade daquela com o pai deste;
O arguido tenha aceitado pacificamente esta separação;
O arguido tenha querido matar a DAV com arma de fogo, tendo efectuado diligências com vista a adquirir uma.
II
2.1.
Inconformado o arguido recorreu para este Supremo Tribunal de Justiça, concluindo na sua motivação:
A) Os Meritíssimos Juízes " a quo" não fizeram uma correcta aplicação do Direito aos factos, nomeadamente quanto à medida da pena aplicada ao Recorrente;

B) A pena de prisão aplicada ao Arguido mostra-se bastante elevada, tendo em consideração a matéria dada como provada nos autos e a moldura penal do crime;

C) Tendo em conta tudo o que resultou provado, o Arguido deveria ter sido condenado em pena de prisão que, não ultrapassasse os dezasseis anos de prisão;

D) Não ficou provado em sede de Audiência de Julgamento que o Arguido tivesse congeminado o propósito firme de vingança contra a vítima;

E) Não foi, igualmente, referido na Audiência de Julgamento que o Arguido S tenha antecipadamente escolhido a faca mais adequada a perfuração e corte, e que a tenha prendido e dissimulado numa presilha sita na parte de trás das calças,

F) O Arguido sempre demonstrou um grande arrependimento pelo crime praticado, tendo confessado que o mesmo apenas foi cometido de forma repentina e irreflectida, no seguimento de uma discussão com a vitima,

G) Assim, não houve da parte do Arguido, ao contrario do referido no douto Acórdão Recorrido, qualquer persistência na intenção de matar, muito menos a premeditação da prática do crime (facto que não foi referido em Audiência de Julgamento por qualquer testemunha, nem pelo Arguido);

H) Atendendo à idade do Arguido - 21 anos à data dos factos, ao facto de não ter antecedentes criminais, o estar inserido socialmente, o ter confessado os factos por si praticados e ter demonstrado sério arrependimento, mostra-se bastante elevada a pena aplicada ao Arguido;

1) Ao não entender assim, o douto Acórdão Recorrido violou o disposto nos artigos 71° e 132° do Código Penal;

Termos em que deve ser concedido provimento ao presente Recurso, assim se fazendo JUSTIÇA.

2.2.

Por sua vez, o Ministério Público junto do Tribunal recorrido respondeu, concluindo:

1 - Concretamente, a questão levantada pelo arguido/recorrente relaciona-se directamente com a determinação da medida concreta da pena de prisão que lhe foi aplicada.

2- Relativamente à determinação da medida da pena, é a própria lei que fixa os critérios para a determinação da medida judicial da pena, oferece uma moldura mais ou menos ampla, dentro de cujos limites, o julgador, tendo em conta as particularidades do crime e do seu autor, deve fixar, orientando-se por critérios valorativos objectivos, a medida concreta da sanção.

Tal determinação da medida concreta da pena terá sempre subjacente:

- a culpa do agente que impõe uma retribuição justa;

- exigências decorrentes do fim preventivo especial, ligadas à reinserção social do delinquente;

- exigências decorrentes do fim preventivo geral, ligadas, à contenção da criminalidade e à defesa da comunidade.

3 - Embora o arguido fosse jovem e sem passado criminal, quando praticou os factos pelos quais foi condenado, tendo efectuado, relativamente aos mesmos, uma confissão parcial, as circunstâncias de cometimento do ilícito revelam uma especial censurabilidade e perversidade do agente, perfeitamente manifestadas na frieza e insensibilidade com que actuou antes e após o cometimento do crime, bem como na ligeireza com que ultrapassou os laços afectivos que o uniam à vítima, mãe de sua filha menor.

4 - Tais circunstâncias preenchedoras do tipo de culpa agravado, juntamente com a intensidade do dolo demonstrado, bem como grande indiferença pelo bem jurídico em questão foram exaustivamente ponderados aquando da determinação da medida concreta da pena a aplicar ao arguido.

5) O acórdão recorrido não violou os artigos 71° e 132.º do Código Penal, já que o critério da escolha e dosimetria da pena aplicada ao arguido, integra-se perfeitamente nos limites legais referidos nos artigos 40°, 70°, 71°, e 132° do referido Código, alicerçando-se solidamente na culpa do arguido, em direcção ás legais exigências de prevenção.

6 - Ponderado tudo que fica dito, bem decidiu o tribunal "a quo", pelo que o acórdão recorrido, ainda no que à medida da pena aplicada ao arguido DSN dos Santos Nobre concerne, em nada nos merece reparo, razão pela qual deverá ser negado provimento ao presente recurso, mantendo-se aquela decisão, assim se fazendo a costumada Justiça!


III

Neste Tribunal o Ministério Público teve vista dos autos e suscitou a questão prévia da competência do Supremo Tribunal de Justiça para conhecer do presente recurso.

Foi cumprido o disposto no n.º 2 do art. 417.º do Código de Processo Penal (CPP).

Colhidos os vistos legais, teve lugar a conferência, pelo que cumpre conhecer e decidir.


IV

E decidindo.

4.1.

Como se relatou, embora o recorrente comece por clamar que o Tribunal a quo não fez uma correcta aplicação do Direito aos factos, nomeadamente quanto à medida da pena que lhe aplicada (conclusão A), o que colocaria o objecto do recurso no domínio da questão de direito, o certo é que critica a decisão tomada pelo mesmo Tribunal quanto à questão de facto.

Com efeito, refere expressamente que «não ficou provado em sede de Audiência de Julgamento que o Arguido tivesse congeminado o propósito firme de vingança contra a vítima» (conclusão D), que «não foi, igualmente, referido na Audiência de Julgamento que o Arguido tenha antecipadamente escolhido a faca mais adequada a perfuração e corte, e que a tenha prendido e dissimulado numa presilha sita na parte de trás das calças» (conclusão E).

E sustenta que sempre demonstrou um grande arrependimento pelo crime praticado» que «apenas foi cometido de forma repentina e irreflectida, no seguimento de uma discussão com a vitima» (conclusão F), não tendo havido da sua parte qualquer persistência na intenção de matar, muito menos a premeditação da prática do crime». Afirma mesmo que a premeditação «não foi referida em Audiência de Julgamento por qualquer testemunha, nem pelo Arguido» (conclusão G).

Ora, como também se relatou, está provado que no dia 3 de Agosto de 2002, ao fim da tarde, o arguido, quando viu a DAV acompanhada com um indivíduo com quem tinha um relacionamento amoroso, sentindo-se humilhado e preterido, logo congeminou o propósito firme de vingança, que culminaria na eliminação física da DAV.
E para tal, na manhã do dia 9 de Agosto de 2002, pediu e obteve dispensa para a tarde, período em que pretendia levar a cabo o seu plano de retirar a vida à malograda DAV;
Está ainda provado que cerca da 15 horas escolheu na cozinha da sua casa a faca mais adequada à perfuração e corte, com 13cm de lâmina, serrilhada, que prendeu e dissimulou numa presilha sita na parte de trás das calças, tendo após aguardado a chegada da DAV e filha de ambos, o que ocorreu pelas 18h15m;
Convencendo a malograda DAV que precisava de falar com ela a sós acabou o arguido por lhe indicar o trajecto a seguir, até um local denominado Barrocal, em Vale D' Éguas, onde o arguido lhe ordenou que detivesse a marcha do veículo, o que ela cumpriu, imobilizando o veículo e «logo que a infeliz DAV retirou o cinto de segurança e ,antes que tivesse tempo de desligar o motor, o arguido, num gesto rápido retirou a faca do compartimento da porta e, com utilização de sua força física, espetou-a em profundidade no pescoço da vítima, fazendo de seguida pressão continuada no mesmo instrumento, assim perfurando a face lateral anterior esquerda do pescoço e os grandes vasos, no sentido ascendente, da esquerda para a direita e da frente para trás, ao mesmo tempo que com a mão esquerda puxava a alavanca do travão de mão »
«Após imobilização da viatura, o arguido puxou a cabeça da vítima com a sua mão esquerda e baixou-a entre os dois bancos dianteiros, colocando-lhe o joelho em cima, sempre pressionando a faca no pescoço da vítima», posição que manteve «até deixar de sentir estertor por parte da vítima»
Quando transportava o corpo da infeliz vítima deu conta de que esta aparentava ainda sinais de vida, pelo que bateu violentamente na cabeça dela com uma pedra com 53cms de comprimento, 32cms de largura, 13 cms de espessura e 13,5kgs de peso.
Está ainda provado que «atenta a natureza dos instrumentos utilizados, as suas características, a forma como os manejou e a sensibilidade dos órgãos atingidos, tem-se por certo que o arguido agiu com o firme propósito de tirar a vida à vítima, o que logrou».
Em contrapartida não se deu como provado que estivesse arrependido.
4.2.

Da posição assumida pelo recorrente, na impugnação que deduz, decorre, pois, que não se está perante um recurso exclusivamente de direito [art.º 432.°, al. d) do CPP], cuja apreciação pertença ao Supremo Tribunal de Justiça, do conhecimento da Relação de Évora - art.ºs 427.º e 428.º do Código de Processo Penal.
Com efeito, como se viu, discorda o recorrente de parte importante da matéria de facto apurada, entendendo que a mesma não resulta da prova produzida em audiência.
Coloca-se, assim, uma questão que tem sido objecto de frequentes decisões deste Tribunal [Cfr. v.g. os Acs de 25.1.01, proc. n.º 3306/00-5, de 23.11.00, proc. n.º 2832/00-5 e de 7.12.00, proc. n.º 2807/00-5], que tem entendido que, para conhecer de recurso interposto de um acórdão final do tribunal colectivo em que contesta a matéria de facto fixada, mesmo se invocando qualquer dos vícios previstos no art. 410.º do CPP, é competente o tribunal da relação.

A norma do corpo do artigo 434.º do CPP só fixa os poderes de cognição do Supremo Tribunal em relação às decisões objecto de recurso referidas nas alíneas a), b) e c) do artigo 432.º, e não também às da alínea d), pois, em relação a estas, o âmbito do conhecimento é fixado na própria alínea, o que significa, que, relativamente aos acórdãos finais do tribunal colectivo, o recurso para o Supremo só pode visar o reexame da matéria de direito.
Assim, o recurso que verse [ou verse também] matéria de facto, designadamente os vícios referidos do artigo 410.º, terá sempre de ser dirigido à Relação, em cujos poderes de cognição está incluída a apreciação de uma e outro, sem prejuízo de o Supremo poder conhecer, oficiosamente, daqueles vícios como condição do conhecimento de direito [Cfr., neste sentido, Simas Santos e Leal Henriques, Código de Processo Penal, Anotado, 2.ª edição].
Vale isto por dizer que, nos recursos das decisões finais do tribunal colectivo, o Supremo não conhece da questão de facto, nem dos vícios do artigo 410.º, n.º 2, do CPP, salvo por sua própria iniciativa e, nunca, a pedido do recorrente, que, para tal, se terá sempre de dirigir-se à Relação [interpretação que colheu a concordância de Germano Marques da Silva Cfr., Curso de Processo Penal III, 2.ª edição revista e actualizada, págs. 371].
É essa, aliás, a solução que resulta do esquema conceptual integrado na recente Reforma do processo penal, que alterando a redacção da alínea d) [correspondente à alínea c) da versão originária] do citado artigo 432.º, acrescentou a expressão "visando exclusivamente o reexame da matéria de direito".
Pretendeu-se, então e explicitamente, limitar o acesso ao Supremo Tribunal, assim obstando à sobrecarga de casos para apreciação provocada pelo regime de recursos das decisões finais do colectivo, instituído originariamente pelo Código de 1987, à luz da definição do tribunal ad quem por mera consideração da natureza do tribunal a quo, sob pena de o sistema então vigente comprometer irremediavelmente a dignidade do Supremo Tribunal de Justiça, como tribunal de revista que é.
Além de, com tal inovação, o legislador claramente pretender dar acolhimento a óbvias razões de operacionalidade judiciária, nomeadamente, restabelecendo mais equidade na distribuição de serviço entre os tribunais superiores.
E não se veja contradição entre a doutrina do Supremo sobre esta questão e a possibilidade de o mesmo conhecer oficiosamente dos falados vícios. Enquanto a invocação expressa dos apontados vícios da matéria de facto [se bem que algumas vezes possa implicar alguma intromissão nos domínios do conhecimento de direito, designadamente quando se trate de conhecer do vício de insuficiência] visa sempre a reavaliação da matéria de facto que a Relação tem, em princípio, condições de conhecer e colmatar, se for caso disso, sendo claros os benefícios em sede de economia e celeridade processuais que, em casos tais, se conseguem, se o recurso para ali for logo encaminhado. O conhecimento oficioso pelo STJ é imposto pela sua natureza de tribunal de revista, que se vê privado de matéria de facto adequadamente provada e suficiente para constituir a necessária base de aplicação do direito. Um remédio, que, ao contrário do que em regra sucede na Relação [que o pode ministrar (art.ºs 428.º, 430.º e 431.º do CPP)], terá de ser solicitado a quem de direito (art.º 426.º, n.º 1, do CPP) [e sempre com um percurso necessariamente mais alongado do que o da Relação, uma vez que, tendo de fazer voltar o processo à primeira instância para suprimento, irá provocar a reabertura integral do trajecto judiciário, que, pela via certa, tem largas possibilidades de sair encurtado].
Sublinhe-se que no caso sujeito nem sequer foi invocado qualquer vício específico em matéria de facto, mas foi impugnada a matéria de facto apurada pelo Tribunal a quo, ao abrigo da sua livre convicção, que sempre estaria ao fora do alcance da sindicância do Supremo Tribunal de Justiça.


V
De harmonia com o sinteticamente exposto, e sem necessidade de mais considerações, acordam os juízes que compõem a Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em não conhecer do recurso e ordenar a remessa dos autos ao Tribunal da Relação de Évora, por lhe caber o seu conhecimento - art. 428.º, n.º 1 do CPP, com comunicação ao tribunal recorrido.
Pagará o recorrente 2,5 UCs de taxa de justiça.
Lisboa, 9 de Outubro de 2003
Simas Santos
Santos Carvalho
Costa Mortágua