Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
083569
Nº Convencional: JSTJ00020480
Relator: FERNANDO FABIÃO
Descritores: RESPONSABILIDADE CIVIL POR ACIDENTE DE VIAÇÃO
LIMITE DA INDEMNIZAÇÃO
DESVALORIZAÇÃO DA MOEDA
JUROS DE MORA
Nº do Documento: SJ199309210835691
Data do Acordão: 09/21/1993
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T REL ÉVORA
Processo no Tribunal Recurso: 23/91
Data: 02/20/1991
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA.
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA. CONCEDIDA PARCIALMENTE A REVISTA.
Área Temática: DIR CIV - DIR RESP CIV.
Legislação Nacional: CCIV66 ARTIGO 566 ARTIGO 805 N3.
Jurisprudência Nacional: ACÓRDÃO STJ DE 1987/10/06 IN BMJ N370 PAG505.
ACÓRDÃO STJ DE 1985/02/21 IN BMJ N344 PAG427.
ACÓRDÃO STJ DE 1987/02/05 IN BMJ N364 PAG819.
ACÓRDÃO STJ DE 1987/02/19 IN BMJ N364 PAG845.
ACÓRDÃO STJ DE 1988/O5/O5 IN BMJ N377 PAG471.
ACÓRDÃO STJ DE 1990/04/23 IN BMJ N396 PAG393.
Sumário : I - Não é permitido cumular o aumento do montante indemnizatório decorrente da desvalorização da moeda com os juros de mora pelo não pagamento tempestivo da indemnização por acidente de viação.
II - A redacção do n. 3 do artigo 805 do Código Civil, na redacção introduzida pelo Decreto-Lei 262/83 de l6 de Junho, contém matéria inovadora, sendo aplicável só aos casos em que o termo inicial da mora ali fixado - a citação -, ocorra já depois do início da sua vigência.
III - Anteriormente, a mora e os correspondentes juros dependiam de o crédito do lesado se ter tornado liquido, salvo se a falta de liquidez fosse imputável ao devedor.
Decisão Texto Integral: Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

Na comarca de Lagos, A propôs contra B, J. Martins & Martins, Lda, e Companhia de Seguros Tranquilidade a presente acção de indemnização por acidente de viação, na qual pediu que os réus fossem condenados solidariamente a pagarem-lhe a quantia de 504000 escudos de indemnização pelos danos patrimoniais e não patrimoniais que sofreu do acidente de viação ocorrido em 24 de Setembro de 1976.
Nas suas contestações os réus J. Martins & Martins Lda e Companhia de Seguros Tranquilidade pediram a improcedência da acção e o primeiro réu não contestou.
No saneador, além de ser concedida ao autor a assistência judiciária, deixaram-se para final a apreciação das excepções e, depois, organizaram-se a especificação e o questionário.
Seguiu o processo os tramites normais e foi feito o julgamento mas, em consequência de recurso, foi anulado o processo desde inclusive o julgamento.
Realizado um segundo julgamento, nele pediu o autor a ampliação do pedido com fundamento na correcção monetária e nos juros, o que foi admitido.
Mas já antes a ré Tranquilidade havia feito parte do pagamento do remanescente do capital garantido pela apólice, no montante de 199700 escudos, e mais pediu se declarasse extinta a instância relativamente a ela, pedido este que, contudo, foi indeferido.
Após o julgamento, a sentença de 1 instância condenou os réus solidariamente a pagarem ao autor a quantia de 1664000 escudos acrescida de juros à taxa anual de 5 por cento desde 20 de Fevereiro de 1980 até 5 de Agosto de 1980, à taxa anual de 23 por cento desde 6 de Agosto até 28 de Abril de 1987 e à taxa anual de 15 por cento desde esta última data até integral pagamento, sendo, porém, que a ré Tranquilidade pagará, apenas, os juros decididos às taxas anuais acabadas de referir, "desde 1 de Junho de 1984, momento em que deixou de estar em mora, por ter pago o capital seguro ao autor, juros que incidirão, tão só sobre a quantia de 197000 escudos".
Desta sentença interpuseram recurso a ré J. Martins & Martins Lda, este recurso principal, e a ré Tranquilidade, este recurso subordinado no que respeita
à condenação em juros.
Posteriormente, o Tribunal da Relação decidiu não conhecer do recurso subordinado interposto pela ré Tranquilidade.
Mas, já antes, a mesma ré Tranquilidade havia requerido a sua adesão ao recurso da apelante J. Martins & Martins Lda, nos termos e para os efeitos dos ns. 3 e 4 do artigo 683 do Código de Processo Civil, o que foi deferido.
Seguidamente o Tribunal da Relação deu parcial provimento ao recurso da ré J. Martins & Martins Lda e condenou esta a pagar ao autor a quantia de 808000 escudos e juros contados sobre a quantia de 504000 escudos à taxa anual de 23 por cento entre 21 de Junho de 1983 até 28 de Abril de 1987 e à taxa anual de 15 por cento desde 29 de Abril de 1987 até integral pagamento e manteve em tudo o mais a sentença recorrida, assim improcedendo a apelação da ré Tranquilidade.
Deste acórdão recorreram para o Supremo o autor e a ré Tranquilidade.
Na sua alegação, o autor conclui assim:
I - a actualização monetária é devida e deve atender ao muito tempo decorrido e à grande inflação verificada;
II - são devidos juros pelo muito tempo decorrido e de acordo com as taxas de inflação;
III - são os lesantes e não o lesado quem terá de suportar os efeitos da desvalorização e do não pagamento tempestivo;
IV - a sentença de 1 instância não merece censura e deve ser mantida, uma vez que interpretou correctamente as disposições legais, mas o acórdão recorrido deve ser revisto.
Na sua alegação, a ré Tranquilidade conclui assim:
I - nenhuma razão há para o Tribunal da Relação não ter conhecido do recurso da Tranquilidade, o qual se prevê na alínea c) do n. 1 do artigo 483 e não na alínea a) do mesmo preceito.
II - ao efectuar o pagamento comprovado a folhas 230, a ora recorrente extinguiu a sua obrigação e, parcialmente, e da sua ("seguradora" é lapso manifesto) e o autor aceitou esse pagamento e seu pressuposto de que com ele se esgotava o capital seguro e, consequentemente, a obrigação da recorrente, nada obstando a que pagasse tudo aquilo a que estava obrigada ou possa estar, antes da decisão final do pleito;
III - ao receber, há cerca de 9 anos, o capital em dívida, o autor beneficiou do real valor da moeda nessa altura, pelo que será absurdo condená-la em juros, desde essa data;
IV - Com o pagamento de folhas 230 extinguiu-se a obrigação da recorrente e até lá não houve mora no cumprimento da obrigação.
V - o autor aceitou expressamente o pagamento, com ele se conformando e só em alegações do recurso da sentença veio pedir juros.
VI - a decisão recorrida violou os artigos 683 n. 2 alínea a) do Código de Processo Civil, 12 e 806 n. 1 do Código Civil, pelo que deve ser revogada, absolvendo a recorrente do pedido.
Como o autor não tivesse especificado a norma jurídica violada, foi este recorrente convidado a indicá-la, nos termos do disposto no n. 3 do artigo 690 do Código de Processo Civil, e, então, disse que eram os artigos
805 e 806 do Código Civil.
A recorrida J. Martins & Martins Lda não contra-alegou.
Vêm provados os factos seguintes:
1 - o acidente verificou-se em 24/9/76;
2 - o acordo de seguro feito entre a ré J. Martins & Martins Lda e a ré Tranquilidade responsabilizava esta até ao capital de 200000 escudos e esta última pagou ao autor 199700 escudos em 1 de Junho de 1984 e, ao tempo da propositura da acção, já dispunha 300 escudos para elaboração dos autos.
Apreciemos os recursos, começando pelo do autor.
Se bem entendermos, o recurso deste limita-se à seguinte questão: pretende a actualização da indemnização tanto por força dos juros devidos pelo não pagamento tempestivo duma indemnização, pelo que entende ser de manter a sentença de 1 instância e não o acórdão recorrido.
Não tem contudo, razão.
Efectivamente, não é permitido cumular o aumento do montante indemnizatório decorrente da desvalorização da moeda com os juros de mora pelo não pagamento tempestivo de indemnização porque isso implicaria um indevido enriquecimento do lesado por aplicação simultânea do n. 2 do artigo 566 e do n. 3 do artigo 805, ambos do Código Civil (acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 6 de Outubro de 1987, Boletim do Ministério da Justiça 370 , 505; acórdãos das Relações,
C. J. 1989, T2, 42 e T3, 123 e Boletim do Ministério da Justiça 366, 590; F. Correia das Neves, Manual dos Juros, 327).
E acontece, a este respeito, que o n. 3 do artigo 805 do Código Civil, na redacção introduzida pelos Decretos-Lei 262/83, de 16 de Junho, se não aplica ao presente caso, por ser inválido e é aplicável nos casos em que o termo inicial da mora por ele fixado (a citação) ocorre já depois do início da sua vigência (F. Correia das Neves, ob. cit., 326).
Na verdade, é interpretativa "toda a lei que, ou por declaração expressa ou pela sua intenção de cessar, exteriorizar, se propõe determinar o sentido de uma lei precedente" (Francisco Fenaca, traduzido por Manuel
Morale em Ensaios sobre a Teoria da Interpretação das Leis, 2 edição, 132); por sua vez, Oliveira Ascenção afirma que uma lei interpretativa tem por fim interpretar a lei antiga e este fim é anunciado por declaração expressa do diploma ou ver seu preâmbulo (O Direito, Introdução e Teoria Geral, 196). Mas nada disto se verifica quanto ao Decreto-Lei 262/83, pelo contrário, dos próprios textos do preâmbulo resulta tratar-se da lei inovadora. E a jurisprudência, de longe maioritária, tem empregado esta mesma tese (acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 21/02/85,
5/02/87, 19/02/87, 05/05/88 e 23/04/90, respectivamente, Boletim do Ministério da Justiça 344, 427, 364, 319, 364, 845, 377, 471 e 396, 393).
Sendo assim, vale, neste caso, ainda o texto do n. 3 do artigo 805 anterior à actuação do Decreto-Lei 262/83, segundo o qual, sendo o crédito ilíquido, não há mora enquanto se não tornou líquido, salvo se a falta de liquidez for imputável às decisões.
Nesta conformidade, só haveria lugar a juros quando o crédito da indemnização se tornasse líquido.
Simplesmente, que a ré J. Martins & Martins Lda não recorre do acórdão da Relação que a condenou em juros desde 21/06/93 até integral pagamento, tal acórdão transitou nesta parte e só resta obedecer-lhe, não obstante a desconformidade com a lei.
No entanto, há ainda uma outra parte em que o acórdão recorrido tocou e em que o autor obteve ganho de causa.
Vejamos.
A Relação aumentou a indemnização por virtude da desvalorização da moeda, consoante a ampliação do pedido, e fixou-a em 1008000 escudos, após o que lhe deduziu o montante do seguro pago pela ré Tranquilidade, reduzindo-a a 808000, mas só condenou em juros sobre a quantia inicialmente pedida de 504000 escudos.
Ora, entendemos que os juros devem incidir sobre aquela quantia de 808000 escudos, porquanto na altura do inicio dos juros, já o montante da indemnização, aumentava por força da inflação, e diminuída por via do pagamento do capital do seguro, se cifrava naqueles 808000 escudos, sendo esta a quantia não paga tempestivamente ao lesado, isto é, desde o momento em que a Relação estabeleceu que eram devidos juros.
Nesta ordem de ideias, o recurso do autor tem parcial provimentos, pois que se mantém a condenação da ré J. Martins & Martins Lda a pagar ao autor a quantia de 808000 escudos, com juros nos termos decididos pela
Relação ou contados sobre esta quantia de 808000 escudos e não sobre a quantia de 504000 escudos.
Passando ao recurso da ré Tranquilidade, vê-se que este ataca o acórdão recorrido que a condenou a pagar juros sobre a quantia de 197000 escudos, às taxas anuais fixadas para a outra ré, desde 1/6/84 e pretende se julgue que não tem a pagar quaisquer juros.
Decorre dos autos que as citações dos réus tiveram lugar em fins de Dezembro de 1979 e princípios de Janeiro de 1980, portanto muito antes do início de vigência do Decreto-Lei 262/82, que começou a vigorar em 21/06/83.
E nós já vimos que o n. 3 do artigo 805 do Código Civil, na redacção dada por este Decreto-lei, é inovador e não se aplica ao caso presente, porque o termo inicial da mora ocorre antes do início de uma vigência, isto é, as citações foram feitas antes do início de vigência do novo regime do n. 3 do artigo 805.
Mas, aplicando-se o regime anterior, como também já se disse, não havia mora, nos casos de crédito ilíquido, enquanto este se não tornasse líquido.
E o crédito do autor sobre a ré Tranquilidade veio a liquidar-se muito depois de esta ré ter pago todo o montante do seguro em 1/6/84.
Com efeito, tem sido controvertido o momento em que o crédito se torna líquido, ou seja, o momento a partir do qual se vencem juros moratórios. Parte da jurisprudência tem entendido que esse momento é o do encerramento da discussão em 1 instância a que alude o n. 1 do artigo 663 do Código de Processo Civil, mas a parte maioritária da jurisprudência e a doutrina vêm defendendo que o crédito só se torna líquido com a fixação da indemnização por decisão definitiva transitada em julgado, sendo a partir daí que se contam os juros moratórios (acs. do Supremo Tribunal de
Justiça de 21/2/85 e de 5/2/87, respectivamente, Boletim do Ministério da Justiça 344, 427 e 364 e 819; Antunes Varela, Revista de Legislação e Jurisprudência 102, 85; Vaz Serra, Revista de legislação e Jurisprudência 112, 327; A. Pinto Monteiro, Inflacção e Direito Civil, 24 e seguintes; F. Coreia das Neves, ob. cit, 316).
Mas, no caso sub-judice, não é preciso tomar partido na controvérsia, já que, quer se atenda ao momento do encerramento da discussão em 1 instância quer se atenda ao momento do trânsito em julgado da decisão, sempre estariamos em face de acontecimentos ocorridos após o pagamento ao lesado pela ré Tranquilidade do montante do seguro, pelo que nunca esta ré chegou a estar em mora e por isso não deve quaisquer juros.
Nesta conformidade procede inteiramente o recurso da ré Tranquilidade, impondo-se nesta parte, a revogação do acórdão recorrido.
É certo que a Relação decidiu não conhecer do recurso subordinado interposto pela ré Tranquilidade, que já se disse.
Todavia, a mesma ré aderiu ao recurso da ré J. Martins & Martins Lda, nos termos da alínea c) do n. 2 do artigo 683 do Código de Processo Civil, visto terem ambas sido condenadas como devedoras solidárias. Tal adesão conferiu-lhe o direito de tornar à posição de parte principal, nos termos do n. 4 deste artigo 683 não só quando a primitiva recorrente haja desistido como quando continue com o recurso (Alberto Reis C.P.C. Anotado, Volume V, 294 e seguintes). Daí a necessidade de apreciar semelhante recurso, como se fez.
Pelo exposto, concedendo parcial provimento ao recurso do autor e inteiramente ao da ré Tranquilidade, condena-se a ré J. Martins & Martins a pagar ao autor a quantia de 808000 escudos, acrescida de juros legais sobre esta mesma quantia, à taxa de 23 por cento ao ano desde 21/6/83 até 28/4/87 e à taxa de 15 por cento ao ano desde 29/4/87 até integral pagamento, e absolve-se a ré Tranquilidade do pagamento de quaisquer juros.
Custas pela ré J. Martins & Martins Lda, na proporção de metade para cada um, decerto, porém, atendeu-se a que o autor goza de assistência judiciária.
Rasurei:"veio", "não", "assistência", "desde", "acórdão". Interlinhei "conhecido".
Lisboa, 21 de Setembro de 1993.
Fernando Fabião.
César Marques.
José Martins da Costa.