Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
130/14.1PDPRT.P1.S1
Nº Convencional: 5.ª SECÇÃO
Relator: MARGARIDA BLASCO
Descritores: RECURSO DE DECISÃO CONTRA JURISPRUDÊNCIA FIXADA
PRESSUPOSTOS
TEMPESTIVIDADE
TRÂNSITO EM JULGADO
RECURSO PARA O TRIBUNAL CONSTITUCIONAL
MATÉRIA DE FACTO
IDENTIDADE DE FACTOS
INADMISSIBILIDADE
Data do Acordão: 03/11/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO DE FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA (PENAL)
Decisão: REJEITADO O RECURSO.
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I - A admissibilidade de recurso directo para o STJ, de decisões proferidas contra jurisprudência que por ele se mostra fixada, prevista no art. 446.º, do CPP, está directamente relacionada com a necessidade de garantir o controle difuso dos fundamentos das decisões das instâncias que, eventualmente, não acatem tal jurisprudência, por via do reexame do tribunal superior. Visa, pois, a estabilização e a uniformização da jurisprudência, eliminando eventuais conflitos existentes entre uma decisão com o acórdão que fixou jurisprudência sobre a mesma questão de direito no domínio da mesma legislação. Esta disposição está directamente ligada com o n.º 3 do art. 445.º do CPP.
II - Entende-se que incumbe ao tribunal que não acate tal jurisprudência, um particular dever de fundamentação de modo a convencer da razoabilidade dos fundamentos que sustentam essa divergência, havendo recurso nos termos do art. 446.º, do CPP, para permitir uma reponderação que atenda aos novos argumentos.
III - Decorre, deste modo, da conjugação dos arts. 445.º, n.º 3 e 446.º, n.º 1, ambos do CPP, que apenas haverá fundamento para recurso contra jurisprudência fixada quando a decisão que divirja da fixação não a aceite, expressamente a contestando, o que é diverso da desaplicação da jurisprudência fixada por desconhecimento ou errada interpretação, devendo quanto a esta o meio de impugnação, ser o de recurso ordinário. Por outras palavras, a possibilidade de interpor este recurso extraordinário apenas se admite quando estiverem esgotados todos os recursos ordinários, seja por que a eles se lançou mão sem êxito, seja por que, não importa o motivo, se deixou precludir o direito a recorrer, nomeadamente por trânsito em julgado da decisão recorrida.
IV - Quanto ao regime de interposição, efeito e processamento do recurso, face ao que dispõe a parte final do n.º 1, do art. 446.º, do CPP, este deve seguir os termos do recurso extraordinário para fixação de jurisprudência.
V - E, sendo assim, tem assumido a jurisprudência que para a admissibilidade deste recurso extraordinário, impõe-se a verificação de determinados requisitos de natureza formal e de natureza substancial.
VI - Entre os pressupostos de natureza formal, contam-se: (1) a legitimidade do recorrente; e, (2) a tempestividade da interposição de recurso no prazo de 30 dias posteriores ao trânsito em julgado da decisão de que se pretende recorrer, pois deverá estar esgotada a possibilidade de recurso ordinário.
VII - Constituem pressupostos de natureza substancial : (1) a oposição entre a decisão recorrida e um acórdão de fixação de jurisprudência, que respeitem à mesma questão de direito e a justificação da oposição entre os mesmos que motiva o conflito de jurisprudência e que deve resultar explicitamente dos termos em que a contradição se verifica (e não apenas em termos implícitos ou tácitos); (2)a identidade de legislação do domínio da qual foram proferidas as decisões, ou seja, que no período compreendido entre a prolação das decisões conflituantes, não exista alteração ou modificação do texto da lei que interfira, directa ou indirectamente, na resolução da questão controvertida; (3) a existência de soluções opostas, que assentem em decisões de sinal contrário, ou seja, que a questão seja decidida em termos expressamente contraditórios, relevando uma patente posição divergente sobre a mesma questão de direito; (4) a identidade das situações de facto, ou seja, a identidade de facto respeitante à mesma questão de direito que é, justamente, a tratada no acórdão uniformizador; (5) a jurisprudência do STJ firmou-se no sentido de considerar incontornável a necessidade de identidade de factos, não sendo suficiente apenas, a oposição entre as soluções de direito. Tal identidade factual de ambos os processos, a do acórdão/decisão recorrido e a do acórdão fundamento, não é absoluta; contudo, entende-se que para que a oposição releve, tais factos terão de ter sentido equivalente ou ser idênticos nos dois processos. Pretende-se, deste modo, evitar que a falta de identidade dos factos, quando não seja inócua, possa interferir com o aspecto jurídico do caso e seja justificação para a prolação de decisões jurídicas opostasA questão prende-se com o trânsito em julgado da decisão recorrida, ou seja, do acórdão do TRP que a recorrente alega que decidiu contra jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça. Concretamente, se o trânsito em julgado da decisão recorrida é coincidente com o trânsito em julgado da Decisão Sumária do TC que não conheceu do objecto do recurso.
VIII - O STJ, a propósito do recurso para fixação de jurisprudência, ou de decisão proferida contra jurisprudência fixada pelo STJ, densificou o conceito de trânsito em julgado, para efeito de contagem do prazo de interposição de tais recursos. Conforme jurisprudência uniforme deste STJ, uma decisão considera-se transitada em julgada logo que não seja susceptível de recurso ordinário ou de reclamação (artigo 628.º, do CPC, aplicável ex vi artigo 4.º, do CPP). Atendendo aos relevantes efeitos associados ao trânsito em julgado [como seja, a exequibilidade da decisão (artigo 467.º, n.º 1, do CPP), o prazo para interposição de recursos extraordinários (artigos 438.º, n.º 1 e 446.º, n.º 1, ambos do CPP), ou momento a partir do qual se inicia os prazos de contagem de prescrição da pena (artigo 122.º, n.º 2, do CP), bem como, os institutos do caso julgado ou ne bis in idem], o mesmo desempenha uma relevante função de acautelamento da segurança jurídica. É, justamente, a previsibilidade, estabilidade e segurança, no firmamento da data do trânsito em julgado, que o STJ tem invocado para decidir que a reclamação apresentada ao abrigo do disposto no artigo 405.º, do CPP do despacho que não admitiu o recurso não tem qualquer reflexo no trânsito em julgado do acórdão da Relação, pois que, a decisão do presidente do Supremo que indefere a reclamação da decisão que não admite o recurso limita-se a declarar e confirmar a «insusceptibilidade» do recurso, a qual, ao nível do trânsito do acórdão recorrido, se deverá reportar ao momento em que o recurso já não é legalmente possível. Isto é, o acórdão transitou «logo que», no caso, se esgotou a possibilidade de recorrer por a lei não admitir recurso”.
IX - Num plano mais lato, o que se sustenta é que no caso em que o recurso não é admissível para o STJ, a decisão transita a partir do momento em que já não é possível reagir processualmente à mesma, estabilizando-se o decidido, pelo que, no caso de decisões que não admitam recurso, o trânsito verifica-se findo o prazo para arguição de nulidades ou apresentação de pedido de correcção (arts. 379.º, 380.º e 425.º, n.º 4, do CPP), ou seja, o prazo-regra de 10 dias fixado no n.º 1 do art. 105.º do CPP, em caso de não arguição ou de não apresentação de pedido de correcção” e, em caso de arguição, após o trânsito da decisão que conhece da arguição, data a partir do qual se inicia a contagem do prazo dos recursos extraordinários que pressupõe o trânsito em julgado. Deste modo, impede-se a abertura de uma nova via para prolongar, ou seja, alterar, os prazos legalmente estabelecidos.
X - Interpretação cuja não inconstitucionalidade, por similitude de raciocínio, se pode extrair (pelo menos nas situações em que é evidente a impossibilidade de recurso para o STJ), por exemplo, do ac. TC n.º 75/2014, que considerou irrelevante, para efeito de contagem de prazo de recurso para o TC, o recurso interposto para o Pleno das Secções Criminais, assinalando que a estatuição do art. 75.º LTC “não abrange a utilização do meio impugnatório usado pelos reclamantes, já que é legalmente inexistente”. E, citando os acs. do TC 640/2011 e 95/2012, exarou que é entendimento reiterado deste Tribunal que a errónea e indesculpável dedução de um incidente legalmente inexistente não tem a virtualidade de interromper ou suspender o prazo de dez dias legalmente estabelecido para a interposição do recurso de constitucionalidade.
XI - No entanto, tal entendimento do STJ, no sentido de que a dedução de um recurso ordinário inadmissível, não pode protelar a data do trânsito em julgado, não é transmutável para o caso dos autos, já que está em causa um recurso para o TC. Nos casos em que não é admissível recurso (ordinário) para o STJ, um dos meios de reacção ao acórdão confirmativo da condenação é a interposição de recurso para o TC no prazo de 10 dias (arts. 105.º, do CPP, e 75.º, n.º 1, da Lei n.º 28/82).
XII - Em relação à questão da tempestividade do recurso para o TC é necessário acatar, por força do caso julgado formal, quer o despacho do Senhor Desembargador [que, por despacho de 09-7-2019, decidiu em relação aos (três) recursos interpostos para o TC, que o foram “tempestivamente (art. 75º, 1, da L.T.C.), ao abrigo da al. b) do nº 1 do art. 70º da L.T.C., tendo por objecto uma decisão que não admite recurso ordinário para o Supremo Tribunal de Justiça, sendo, por isso, admissível para o Tribunal Constitucional.”], quer a própria posição assumida pelo TC, que, por decisão de 22-09-2020, decidiu não conhecer do objecto do processo por outras razões que não a intempestividade. Aliás, quanto a isto, o próprio art. 75.º, n.º 2, da Lei n.º 28/82 (Lei do TC), preceitua que interposto recurso ordinário, mesmo que não admitido com fundamento em irrecorribilidade da decisão, o prazo para recorrer para o TC conta-se do momento em que se torna definitiva a decisão que não admite recurso.
XIII - Assim, não sendo questionado o recurso tempestivo para o TC, é posição do ac. STJ, que não se pode considerar a existência de um trânsito em julgado. E isso, independentemente de, por Decisão Sumária, o TC não tomar conhecimento objecto do recurso já que, atenta a Lei n.º 28/82 (Lei do TC), tal não significa que se deva atender, para efeito de trânsito em julgado da decisão recorrida, à data em que o recurso foi rejeitado no Tribunal Superior (da Relação ou STJ). Pelo contrário, o trânsito em julgado de uma Decisão Sumária, que não conhece do objecto do processo, conforme resulta do artigo 75.º, n.º 1, da Lei n.º 28/82 (Lei do TC), é a data a partir do qual se reiniciam os prazos para interposição de outros recursos, “que porventura caibam da decisão, os quais só podem ser interpostos depois de cessada a interrupção”. O que, note-se, emerge igualmente do artigo 80.º, n.º 4, parte final, da Lei n.º 28/82 (Lei do TC), referindo que transitada em julgado decisão que não admita recurso ou lhe negue provimento, começam a correr os prazos para os recursos ordinários, se não estiverem esgotados. E essa mesma norma, refere expressamente que transitada em julgado “a decisão que não admita o recurso ou lhe negue provimento, transita também a decisão recorrida, se estiverem esgotados os recursos ordinários”. O que é o caso dos autos. Ou seja, a data do trânsito em julgado da decisão recorrida coincide com o trânsito em julgado da Decisão Sumária que não conheceu do objecto do recurso. Assim, verifica-se o trânsito em julgado da decisão recorrida, estando, como se disse no ponto imediatamente anterior, esgotada a possibilidade de recurso ordinário.
XIV - No caso do presente recurso de decisão contra jurisprudência fixada, não se verifica no acórdão recorrido qualquer posição expressa que traduza uma solução jurídica de situação de facto idêntica ou assimilável à tratada no acórdão de uniformização de jurisprudência e que ali tenha sido decidida de forma dissonante da jurisprudência fixada.
XV - E assim, nos termos conjugadamente previstos nos arts. 414.º, n.º 2, 420.º, n.º 1, al. b), 446.º, 441.º, n.º 1, e 448.º, do CPP, vai o recurso rejeitado por inadmissibilidade legal.
Decisão Texto Integral:

Proc. n.º 130/14.1PDPRT.P1. S1

(recurso extraordinário contra jurisprudência fixada)

Acordam, em conferência, na 5.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça

I.

1. A arguida AA, veio em 30.10.2020, interpor recurso extraordinário de decisão proferida contra jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça, por entender que se impõe a modificação do acórdão de 8.03.2019, do Tribunal da Relação …. (TR…..), pois a aqui arguida tem um entendimento diverso do enquadramento da matéria de direito, especificadamente no que concerne à condenação por detenção de quantidade de estupefaciente em quantidade muito baixa, não tendo sido fixada, na sua óptica, matéria de facto que afaste a posse para consumo próprio.

Para tal, transcrevem-se as conclusões à sua motivação de recurso:

(…).

1º - O Ac., do S.T.J., de 15-05-1996 - relator ANDRADE SARAIVA, in dgsi.pt., aceita que para termos de consumo os consumidores possam ter na sua posse 1,5 g para consumo diário e no máximo para 10 dias, isto é, 1,5 x 10=15 gramas.

2º - Já foi demonstrado, no art.º 22 das conclusões que nas audiências as testemunhas confirmaram que era uma consumidora abusiva, também com sustentação no relatório social.

3º - E poder-se-á concluir que todo o estupefaciente capturado à arguida era todo para vender? Ou reter para terceiro? Uma consumidora abusiva, que todos os dias ia ao Bairro … comprar, não ia consumir nem um pouco? Não acreditámos nesta conclusão do Tribunal a quo. Principalmente porque a quantidade apreendida para um consumidor abusivo não é assim tanto.

4º - Atente-se igualmente Ac., uniformizador de jurisprudência n.º 8/2008 do S.T.J.:" «Não obstante a derrogação operada pelo art. 28.º da Lei 30/2000, de 29 de Novembro, o artigo 40.º, n.º 2, do Decreto-Lei 15/93, de 22 de Janeiro, manteve-se em vigor não só “quanto ao cultivo” como relativamente à aquisição ou detenção, para consumo próprio, de plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a IV, em quantidade superior à necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias»

5ª – Aliás na sentença de 1ª instância foi sentenciado que o produto não era para venda ou ceder, logo o STJ pode alterar a matéria de facto pelo art.º 410º n. º2, als., a), b) e c) mas especialmente a B).

6ª – Assim sucede, pois, há uma contradição insanável visto ser contraditório condenar alguém por pequeno tráfico e fundamentar que o estupefaciente não era afinal para Venda.

7ª – O que se requer expressamente.

8ª – O AUJ, fundamento do recurso tem que ser interpretado em sentido posto, isto é, não deve ser condenado por crime de tráfico ou pequeno tráfico nos termos do art.º 25º do D.L 93 quem tiver produto/ estupefaciente para quantidade inferior a 10 dias.

9ª – Tendo aqui arguida sustentando-se na tese de que: 1.5 gramas de cocaína x 10 dias = 15 gramas: 1.5 gramas de heroína x 10 dias = 15 gramas: 2 gramas de haxixe (canábis resina) x 10 dias = 20 gramas - cfr. Acórdão do STJ de 15/05/1996 - Relator: Andrade Saraiva, vd., https://www.stj.pt/wp-content/uploads/2018/01/criminal1996.pdf - pág. 35.

10ª –E o valor com que foi detida - 2,663 gramas, nunca poderia ter sido condenada sem que tivesse sido provado que era para Venda ou cedência, o que sucedeu.

11ª –Nunca o requisito negativo do Ac., uniformizador de jurisprudência n.º 8/2008 do S.T.J., de consumo médio de 10 foi ultrapassado.

12ª – Pelo que a decisão ora recorrida foi contra jurisprudência fixada e é recorrível, e deve a aqui arguida ser absolvida.

13ª – Em sede de dimensão constitucional requer-se que recaia Acórdão expresso sobre a interpretação da compaginação normativa do art. 40.º do DL n.º 15/93, de 22/01, do art. 28.º da Lei n.º 30/2000, de 29/11, e bem assim do Acórdão Uniformizador de Jurisprudência com o n.º 8/2008, publicado no DR Iª Série, n.º 150, de 25/08, a detenção de produtos estupefacientes para consumo próprio exclusivo, em quantidade INFERIOR a 10 dias, constitui crime a prever e punir dentro do âmbito daquela primeira norma e Diploma, e a de quantidades iguais ou abaixo ao período indicado, a contraordenação prevista no art. 2.º da referida Lei n.º 30/2000, é inconstitucional por violação dos arts 18.º, n.º 2, 29.º, n.º 1, 3 e 4, da C.R.P.

14ª – Pois é violadora do princípio da prevalência da constituição, o qual confere que, na hermenêutica jurídica/judicial, a imposição de uma interpretação não contrária ao texto e programa da norma ou normas constitucionais, e de igual modo, viola o dever de aplicação do direito legal em conformidade com os direitos liberdades e garantias dos arguidos.

15ª - Visto que tal interpretação ofende o princípio da legalidade previsto no artigo 29.º da C.R.P., inscrito no âmbito dos direitos, liberdades e garantias constitucionalmente positivados na nossa ordem jurídico-constitucional, nos termos supra narrados, quando a letra e o espírito da lei permitiam, ou mesmo impunham, outra interpretação conforme à C.R.P.

Nestes termos e fundamentos deverão Vª Exas revogar o ora Acórdão recorrido e absolver a aqui arguida pelo crime aqui condenada mantendo a jurisprudência fixada.

(…).

2. O recurso foi admitido por despacho de 20.12. 2020.

3. O Magistrado do Ministério Público junto do TRP, veio alegar que o presente recurso deve ser rejeitado, por ter sido interposto fora do prazo legal (artigos 414.º, n.º 2 e 446.º, n.º 1, do CPP); ou, ser rejeitado, por manifesta improcedência (artigo 420.º, n.º 1, a) do CPP, ex vi do artigo 448.º, do mesmo diploma legal).

4. Subiram os autos a este Supremo Tribunal de Justiça, onde em Parecer, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto entendeu que o presente recurso se mostra tempestivo; deve, no entanto, verificada a inexistência de oposição de julgados, ser rejeitado, nos termos dos artigos 441.º, n. º1, ex vi 446.º, n. º 1, ambos do CPP.

5.Deu-se conhecimento deste Parecer à recorrente, nada tendo sido dito.

6. Foi feito exame preliminar nos termos em que se refere o artigo 440.º, n.º 1, do CPP ex vi artigo 446.º, n.º 2, do CPP.

7. Foram os autos remetidos a conferência, nos termos do artigo 440.º, n.º 4, do CPP, ex vi artigo 446.º, n.º 1, do CPP.

II.

8. A admissibilidade de recurso directo para o Supremo Tribunal de Justiça, de decisões proferidas contra jurisprudência que por ele se mostra fixada, prevista no artigo 446.º, do CPP, está directamente relacionada com a necessidade de garantir o controle difuso dos fundamentos das decisões das instâncias que, eventualmente, não acatem tal jurisprudência, por via do reexame do tribunal superior. Visa, pois, a estabilização e a uniformização da jurisprudência, eliminando eventuais conflitos existentes entre uma decisão com outra que fixou jurisprudência sobre a mesma questão de direito no domínio da mesma legislação.

Esta disposição está directamente ligada com o n.º 3, do artigo 445.º, do CPP que prevê: “(…) A decisão que resolver o conflito não constitui jurisprudência obrigatória para os tribunais judiciais, mas estes devem fundamentar as divergências relativas à jurisprudência fixada naquela decisão. (…)”.

Entende-se que incumbe ao tribunal que não acate tal jurisprudência, um particular dever de fundamentação de modo a convencer da razoabilidade dos fundamentos que sustentam essa divergência, havendo recurso nos termos do artigo 446.º, do CPP, para permitir uma reponderação que atenda aos novos argumentos.

Decorre, deste modo, da conjugação dos artigos 445.º, n.º 3 e 446.º, n.º 1, ambos do CPP, que apenas haverá fundamento para recurso contra jurisprudência fixada quando a decisão que divirja da fixação não a aceite, expressamente a contestando, o que é diverso da desaplicação da jurisprudência fixada por desconhecimento ou errada interpretação, devendo quanto a esta o meio de impugnação, ser o de recurso ordinário[1]. Por outras palavras, a possibilidade de interpor este recurso extraordinário apenas se admite quando estiverem esgotados todos os recursos ordinários, seja por que a eles se lançou mão sem êxito, seja por que, não importa o motivo, se deixou precludir o direito a recorrer, nomeadamente por trânsito em julgado da decisão recorrida.

Quanto ao regime de interposição, efeito e processamento do recurso, face ao que dispõe a parte final do n.º 1, do artigo 446.º, do CPP, este deve seguir os termos do recurso extraordinário para fixação de jurisprudência previsto no Capítulo II, do Título II "Da fixação de jurisprudência" ("Dos recursos extraordinários", do Livro IX "Dos recursos") - cf. artigo 437.º e ss, do CPP, com as devidas adaptações.

E, sendo assim, tem assumido a jurisprudência que para a admissibilidade deste recurso extraordinário, impõe-se a verificação de determinados requisitos de natureza formal e de natureza substancial.

Entre os pressupostos de natureza formal, contam-se:

i. a legitimidade do recorrente - que é restrita ao arguido, ao assistente, às partes civis e ao Ministério Público - sendo o mesmo obrigatório para o Ministério Público, prevendo-se, ainda, no n.º 3, que o Supremo Tribunal de Justiça pode limitar-se a aplicar a jurisprudência fixada, apenas devendo proceder ao seu reexame se entender que está ultrapassada;
ii. a interposição de recurso no prazo de 30 dias posteriores ao trânsito em julgado da decisão de que se pretende recorrer, devendo estar esgotada a possibilidade de recurso ordinário.

Constituem pressupostos de natureza substancial:

i. a oposição entre a decisão recorrida e um acórdão de fixação de jurisprudência[2], que respeitem à mesma questão de direito e a justificação da oposição entre os mesmos que motiva o conflito de jurisprudência e que deve resultar explicitamente dos termos em que a contradição se verifica (e não apenas em termos implícitos ou tácitos);

ii. a identidade de legislação do domínio da qual foram proferidas as decisões, ou seja, que no período compreendido entre a prolação das decisões conflituantes, não exista alteração ou modificação do texto da lei que interfira, directa ou indirectamente, na resolução da questão controvertida;

iii. a existência de soluções opostas, que assentem em decisões de sinal contrário, ou seja, que a questão seja decidida em termos expressamente contraditórios, relevando uma patente posição divergente sobre a mesma questão de direito;

iv. a identidade das situações de facto, ou seja, a identidade de facto respeitante à mesma questão de direito que é, justamente, a tratada no acórdão uniformizador. Quanto a este requisito, a identidade de situações de facto, não se mostrando expressamente previsto na lei, foi aditado por jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, na medida em que se passou a considerar incontornável a necessidade de identidade de factos, não sendo suficiente apenas, a oposição entre as soluções de direito. Tal identidade factual de ambos os processos, a do acórdão/decisão recorrido e a do acórdão fundamento, não é absoluta; contudo, entende-se que para que a oposição releve, tais factos terão de ter sentido equivalente ou ser idênticos nos dois processos. Pretende-se, deste modo, evitar que a falta de identidade dos factos, quando não seja inócua, possa interferir com o aspecto jurídico do caso e seja justificação para a prolação de decisões jurídicas opostas[3].

9. Vejamos o caso em concreto.

9.1. Dos requisitos de natureza formal.
i. Da legitimidade da recorrente.
A recorrente tem a qualidade de arguida, pelo que tem legitimidade para a interposição do presente recurso.
ii. Da tempestividade do recurso.
Entende o Magistrado do Ministério Público junto do Tribunal recorrido que o presente recurso é intempestivo, por ter sido interposto fora do prazo de 30 dias, a contar do trânsito da decisão recorrida, previsto no artigo 446.º, n.º 1, do CPP.

Sustenta que conforme resulta dos autos, por decisão sumária de 1.2.2019, o recurso foi rejeitado. Tendo a arguida reclamado para conferência, foi proferido acórdão em 8.3.2019, que indeferiu a sua pretensão. Por acórdão do mesmo Tribunal, de 11.4.2019, foi indeferida a nulidade suscitada por parte da mesma arguida.

Tendo recorrido para o TC, foi proferida decisão sumária em 22.9.2020, que não conheceu do objeto do recurso. Nesta conformidade, dúvidas não existem que este recurso extraordinário é claramente intempestivo, pelo que deverá ser rejeitado.

Posição diversa tem o Sr. Procurador-Geral Adjunto, junto deste Supremo Tribunal de Justiça, entendendo que o recurso é tempestivo.
Vejamos.

Retira-se dos autos o seguinte:
i. A arguida recorreu da decisão de 1.ª Instância para o TR….., que por decisão sumária de 1.02.2019, decidiu rejeitar o recurso;
ii. Desta decisão reclamou para a conferência, sendo a mesma objecto de indeferimento, por acórdão de 8.3.2019;
iii. Veio, ainda, arguir a nulidade prevista no artigo 119.º, al. c), do CPP, a qual foi indeferida por acórdão de 11.4.2019;
iv. Em 25.03.2019, interpôs recurso para o Tribunal Constitucional (TC), o qual em 22.09.2020, por Decisão Sumária decidiu não conhecer o objecto do recurso;
v. A arguida foi notificada desta decisão sumária, por carta registada de 23 de Setembro de 2020.
vi. Esta Decisão Sumária transitou em julgado a 8.10.2020.

Importa escalpelizar um pouco mais esta dissonância de posições. A questão prende-se com o trânsito em julgado da decisão recorrida, ou seja, do acórdão do TR…. que a recorrente alega que decidiu contra jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça. Concretamente, se o trânsito em julgado da decisão recorrida é coincidente com o trânsito em julgado da Decisão Sumária do TC que não conheceu do objecto do recurso.

O Supremo Tribunal de Justiça tem vindo, a propósito do recurso para fixação de jurisprudência, ou de decisão proferida contra jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça, a densificar o conceito de trânsito em julgado, para efeito de contagem do prazo de interposição de tais recursos. Conforme jurisprudência uniforme deste Supremo Tribunal de Justiça uma decisão considera-se transitada em julgada logo que não seja susceptível de recurso ordinário ou de reclamação (artigo 628.º, do CPC, aplicável ex vi artigo 4.º, do CPP). Atendendo aos relevantes efeitos associados ao trânsito em julgado [como seja, a exequibilidade da decisão (artigo 467.º, n.º 1, do CPP), o prazo para interposição de recursos extraordinários (artigos 438.º, n.º 1 e 446.º, n.º 1, ambos do CPP), ou momento a partir do qual se inicia os prazos de contagem de prescrição da pena (artigo 122.º, n.º 2, do CP), bem como, os institutos do caso julgado ou ne bis in idem], o mesmo desempenha uma relevante função de acautelamento da segurança jurídica.

É, justamente, a previsibilidade, estabilidade e segurança, no firmamento da data do trânsito em julgado, que o Supremo Tribunal de Justiça tem invocado para decidir que “a reclamação (apresentado ao abrigo do disposto no artigo 405.º, do CPP) do despacho que não admitiu o recurso não tem qualquer reflexo no trânsito em julgado do acórdão da Relação” (ac. STJ, Rel. Helena Moniz, 26.11.2020, Proc. n.º 775/18.0T9LRA-B.S1 - 5.ª Secção), pois que, “a decisão do presidente do Supremo que indefere a reclamação da decisão que não admite o recurso limita-se a declarar e confirmar a «insusceptibilidade» do recurso, a qual, ao nível do trânsito do acórdão recorrido, se deverá reportar ao momento em que o recurso já não é legalmente possível. Isto é, o acórdão transitou «logo que», no caso, se esgotou a possibilidade de recorrer por a lei não admitir recurso” (ac. do STJ, Rel. Lopes da Mota, 22.01.2020, Proc. n.º 1784/17.2T9AMD.L1-B.S1 - 3.ª Secção).

Num plano mais lato, o que se sustenta é que no caso em que o recurso não é admissível para o Supremo Tribunal de Justiça, a decisão transita a partir do momento em que já não é possível reagir processualmente à mesma, estabilizando-se o decidido, pelo que, no caso de “decisões que não admitam recurso, o trânsito verifica-se findo o prazo para arguição de nulidades ou apresentação de pedido de correcção (arts. 379.º, 380.º e 425.º, n.º 4, do CPP), ou seja, o prazo-regra de 10 dias fixado no n.º 1 do art. 105.º do CPP, em caso de não arguição ou de não apresentação de pedido de correcção” e, em caso de arguição, após o trânsito da decisão que conhece da arguição (ac. do STJ, Rel. Lopes da Mota, 22.01.2020, Proc. n.º 1784/17.2T9AMD.L1-B.S1 - 3.ª Secção), data a partir do qual se inicia a contagem do prazo dos recursos extraordinários que pressupõe o trânsito em julgado (ac. STJ, Rel. Clemente Lima, 14.03.2019, Proc. n.º 740/12.1GELLE.E1-A.S1 – 5.ª Secção). Deste modo, impede-se a abertura de “uma nova via para prolongar, ou seja, alterar, os prazos legalmente estabelecidos” (ac. STJ, Rel. Helena Moniz, 22.09.2016, Proc. n.º 43/10.6ZRPRT.P1-D. S1 - 5.ª Secção).

Interpretação cuja não inconstitucionalidade, por similitude de raciocínio, se pode extrair (pelo menos nas situações em que é evidente a impossibilidade de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça), por exemplo, do ac. TC n.º 75/2014 (Rel. Maria João Antunes), que considerou irrelevante, para efeito de contagem de prazo de recurso para o TC, o recurso interposto para o Pleno das Secções Criminais, assinalando que a estatuição do artigo75.º LTC “não abrange a utilização do meio impugnatório usado pelos reclamantes, já que é legalmente inexistente”. E, citando os acs. do TC 640/2011 e 95/2012, exarou que é “entendimento reiterado deste Tribunal que a errónea e indesculpável dedução de um incidente legalmente inexistente não tem a virtualidade de interromper ou suspender o prazo de dez dias legalmente estabelecido para a interposição do recurso de constitucionalidade”.

No entanto, tal entendimento do Supremo Tribunal de Justiça, no sentido de que a dedução de um recurso ordinário inadmissível, não pode protelar a data do trânsito em julgado, não é transmutável para o caso dos autos, já que está em causa um recurso para o TC. Nos casos em que não é admissível recurso (ordinário) para o Supremo Tribunal de Justiça, um dos meios de reacção ao acórdão confirmativo da condenação é a interposição de recurso para o TC no prazo de 10 dias (artigos 105.º, do CPP, e 75.º, n.º 1, da Lei n.º 28/82).

Em relação à questão da tempestividade do recurso para o TC é necessário acatar, por força do caso julgado formal, quer o despacho do Senhor Desembargador do TR…. [que, por despacho de 9.7.2019, decidiu em relação aos (três) recursos interpostos para o TC, que o foram “tempestivamente (artigo 75º, 1, da L.T.C.), ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da L.T.C., tendo por objecto uma decisão que não admite recurso ordinário para o Supremo Tribunal de Justiça, sendo, por isso, admissível para o Tribunal Constitucional.”], quer a própria posição assumida pelo TC, que, por decisão de 22.9.2020, decidiu não conhecer do objecto do processo por outras razões que não a intempestividade. Aliás, quanto a isto, o próprio artigo 75.º, n.º 2, da Lei n.º 28/82 (Lei do TC), preceitua que interposto recurso ordinário, mesmo que não admitido com fundamento em irrecorribilidade da decisão, o prazo para recorrer para o TC conta-se do momento em que se torna definitiva a decisão que não admite recurso.

Assim, não sendo questionado o recurso tempestivo para o TC, é posição do ac. STJ, que não se pode considerar a existência de um trânsito em julgado. Como se exara no ac. STJ, Rel. Pires da Graça, 27.06.2007, Proc. n.º 1885/07 - 3ª Secção, havendo “recurso de uma decisão para o Tribunal Constitucional, inexiste trânsito em julgado dessa decisão”, o que, conforme se salienta nesse mesmo acórdão, “impede, pois, a interposição do recurso para fixação de jurisprudência, por falta de um pressuposto legal necessário – trânsito em julgado (cf. art. 438.º, n.º 1, do CPP)”.

E isso, independentemente de, por Decisão Sumária, o TC não tomar conhecimento objecto do recurso já que, atenta a Lei n.º 28/82 (Lei do TC), tal não significa que se deva atender, para efeito de trânsito em julgado da decisão recorrida, à data em que o recurso foi rejeitado no Tribunal Superior (da Relação ou Supremo Tribunal de Justiça). Pelo contrário, o trânsito em julgado de uma Decisão Sumária, que não conhece do objecto do processo, conforme resulta do artigo 75.º, n.º 1, da Lei n.º 28/82 (Lei do TC), é a data a partir do qual se reiniciam os prazos para interposição de outros recursos, “que porventura caibam da decisão, os quais só podem ser interpostos depois de cessada a interrupção”. Como, recentemente, o Supremo Tribunal de Justiça, ressaltou em diversos arestos (ac. STJ, Rel. Helena Moniz, 12.11.2020, Proc. 1283/11.6TXPRT-O. S1 e 3150/10.1TCPRT-R.S1 - 5.ª Secção, ac. STJ, Rel. António Gama, 10.12.2020, Proc. n.º 586/12.7TXCBR-R.S1 - 5.ª Secção e o acórdão por nós proferido em 11.02.2021, no Proc. 64/11.1TXLSB-Y.S1-5.ª Secção), a propósito de contagem de prazo de recurso de decisão do TEP, interrompida por via de recurso para o TC.

O que, note-se, emerge igualmente do artigo 80.º, n.º 4, parte final, da Lei n.º 28/82 (Lei do TC), referindo que transitada em julgado decisão que não admita recurso ou lhe negue provimento, começam a correr os prazos para os recursos ordinários, se não estiverem esgotados.

E essa mesma norma, refere expressamente que transitada em julgado “a decisão que não admita o recurso ou lhe negue provimento, transita também a decisão recorrida, se estiverem esgotados os recursos ordinários”. O que é o caso dos autos. Ou seja, a data do trânsito em julgado da decisão recorrida coincide com o trânsito em julgado da Decisão Sumária que não conheceu do objecto do recurso.

Tudo, para concluir, que assiste razão aos argumentos aduzidos pelo Sr. Procurador-Geral Adjunto junto deste STJ, razão pelo qual devendo considerar-se o acórdão recorrido transitado em julgado em 8.10.2020, o presente recurso, interposto que foi em 30.10.2020, mostra-se tempestivo, por ter sido interposto no prazo de 30 dias, a contar daquele trânsito, nos termos previstos no artigo 446.º, n.º 1, do CPP.

Assim, verifica-se o trânsito em julgado da decisão recorrida, estando, como se disse no ponto imediatamente anterior, esgotada a possibilidade de recurso ordinário.

Pelo que se verificam todos os requisitos de natureza formal.

10. O mesmo não se estende aos requisitos de natureza substancial, como analisaremos em seguida.

11. Apreciemos.

11.1. Entende a arguida que a decisão recorrida violou a jurisprudência fixada no acórdão do STJ n.º 8/2008, tirado no proc. n º 1008/ 07-5ª Secção, relatado pelo Conselheiro Carmona da Mota, publicado in DR n º 150 S.I, de 5/8/2008.

Entende a recorrente no que concerne à condenação por detenção de quantidade de estupefaciente em quantidade muito baixa, não foi fixada, na sua óptica, matéria de facto que afaste a posse para consumo próprio.

O acórdão n.º 8/2008, fixou a seguinte jurisprudência:

Não obstante a derrogação operada pelo artigo 28.º da Lei n.º 30/2000, de 29 de Novembro, o artigo 40.º, n.º 2, do Dec. Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, manteve-se em vigor não só «quanto ao cultivo» como relativamente à aquisição ou detenção, para consumo próprio, de plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas Tabelas I a IV, em quantidade superior à necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias”.

11.2. A arguida foi condenada por sentença de 4.02.2016 pela prática, em autoria material, sob a forma consumada, de um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade - artigo 25º, alínea a), do DL nº 15/93, de 22.01 -, na pena de 2 anos e 3 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo mesmo período, sendo tal suspensão da execução da pena acompanhada de um regime de prova, mediante a imposição, além de outras que venham a mostrar-se necessárias, das subsequentes obrigações e regras de conduta:
a) cumprir um plano individual de readaptação social, a elaborar no prazo de 2 meses, pelos serviços de reinserção social;
b) manter-se afastada de locais conexos com a prática de atividades ilícitas, designadamente com o tráfico e o consumo de estupefacientes e não acompanhar pessoas associadas a tais atividades;

ic) abster-se do consumo de produtos estupefacientes.

Como se disse anteriormente, aquando da apreciação da tempestividade do presente recurso extraordinário, a arguida recorreu de todas as decisões proferidas – do acórdão de 1.ª Instância para o TR…, onde foram proferidos Decisão sumária, reclamação para conferência e arguição de nulidades do acórdão, que julgaram o recurso improcedente, e ainda do juízo constitucional de normas, que mereceu no TC, a Decisão Sumária de 22.9.2020.

Independentemente de todas as razões invocadas e que não cabem na apreciação do presente recurso, a questão que agora vem invocar, e já invocada que não da forma agora alegada, resume-se, em síntese, ao seguinte: a aqui arguida entende que soçobrando tudo mais e sendo consumidora, deve ser condenada pelo artigo 26.º, n.º 1, e não pelo artigo 25.º, n.º 1, do DL n.º 15/93 de 22.01, beneficiando, assim, da moldura penal mais favorável.

Recorde-se que nas decisões proferidas no TR…. (Decisão Sumária, Reclamação e acórdão que julgou improcedentes as nulidades invocadas pela arguida) se disse que, e transcreve-se: “Em primeiro lugar, um tribunal de julgamento não tem de apreciar o repositório integral dos argumentos da contestação, quanto ao enquadramento jurídico dos factos que constituem o objecto do processo, sendo suficiente que da sentença resulte, de forma fundamentada, em concreto, o enquadramento jurídico dos factos provados. Discordando da decisão - e dos seus fundamentos - a recorrente sempre poderia recorrer da mesma, identificando o alegado erro em matéria de direito (artigo 412°, 2, do Código de Processo Penal). Mas não ocorreu, na sentença, uma omissão de pronúncia, pois a mesma foi bem clara na, aliás, bem extensa fundamentação jurídica da sentença condenatória, procedendo ao adequado enquadramento jurídico dos factos. De resto, dificilmente se percebe a alegação jurídica da recorrente vertida nos artigos 19° e 20° da contestação, uma vez que a arguida nunca alegou, factualmente, que tenha cometido o crime, tendo "por finalidade exclusiva conseguir plantas, substâncias ou preparações para uso pessoal", nem tal resulta dos factos provados, ou da discussão realizada em julgamento. Não basta ser toxicodependente e praticar um crime de tráfico de estupefaciente (nas suas diversas modalidades), para poder beneficiar da moldura penal mais favorável prevista no artigo 26°, n° 1, do diploma referido. Pelo exposto, improcede, manifestamente, a última causa de nulidade da sentença suscitada pela arguida. (…).

E, mais adiante, quanto à impugnação da decisão da matéria de facto, diz-se:

(…) A recorrente ainda impugnou o facto considerado não provado vertido na alínea c), pretendendo que o mesmo seja considerado provado, por ter sido incorrectamente julgado, -nos termos do disposto no artigo 412°, 3, a), do Código de Processo Penal.

No entanto, para tanto, não cumpriu o ónus enunciado na alínea b) do mesmo número e artigo, indicando as provas concretas que imponham decisão diversa. Limitou-se a aludir a dois extractos de depoimentos das testemunhas BB e CC, que referiram saber que a arguida é consumidora de estupefacientes. Daqui não resulta, forçosamente, necessariamente ou, sequer, provavelmente, que a arguida detivesse a cocaína que lhe veio a ser apreendida, com a única finalidade de obter droga para o seu consumo pessoal. Improcede, assim, também manifestamente, o último argumento da motivação de recurso da arguida. (…).

12. Ora, com o recurso da decisão da matéria de facto pede-se ao tribunal de recurso que aprecie da fundamentação de facto e de direito, desde que se cumpram as regras taxativamente impostas pelo Código de Processo Penal, e que possibilite a emissão de um juízo substitutivo do efectuado pela 1.ª Instância. Em síntese, um reexame necessariamente segmentado, parcial, e conciso dos elementos de prova, exigindo-se uma apreciação crítica do mérito ou demérito dos vários meios de prova que alicerçam a convicção probatória, de forma que o tribunal de recurso possa avaliar o acerto do juízo efectuado sobre a matéria de facto.

A arguida enquanto recorrente balizou os limites dos seus recursos, e nesse sentido viu reapreciadas as questões então postas. E que agora vem novamente arguir, utilizando para tal um meio recursivo que não é, obviamente, o adequado. É certo que a recorrente discorda do julgamento da matéria de facto, insurgindo-se contra as decisões proferidas pelo TR…, mas não é pelo facto de considerar que o Tribunal julgou erradamente a matéria de facto, ou não concordar com a forma como foi apreciada por aquele Tribunal da Relação, o que significa tão só que não se conformou com o decidido no acórdão recorrido. Todavia, esta realidade em nada se confunde com uma oposição expressa, em decisão divergente, à jurisprudência fixada, designadamente, entre o acórdão recorrido e o acórdão uniformizador.

13.Ora, como se disse em supra 8., a norma do artigo 446.º, do CPP, prevê a possibilidade de recurso de decisão contra jurisprudência fixada, sendo que estando directamente relacionada com a do n.º 3, do artigo 445.º, do mesmo Diploma, resulta que, embora a jurisprudência fixada pelo STJ não seja obrigatória para os tribunais judiciais, "estes devem fundamentar as divergências relativas" a essa jurisprudência.

Assim, apenas as decisões que divergem da jurisprudência fixada, isto é, as decisões que a mencionam e a contrariam expressamente, fundamentando a razão da sua divergência, podem ser objecto deste recurso extraordinário, pois que apenas nestes casos, em que é questionada a validade da jurisprudência fixada pelo STJ, se pode equacionar a necessidade de a reexaminar.

No caso em apreço, o acórdão recorrido não afirmou qualquer oposição à jurisprudência fixada pelo STJ no referido AUJ n.º 8/2008. Diga-se, aliás, que a decisão ora recorrida nem faz qualquer referência à jurisprudência fixada. Não se está, portanto, perante uma decisão com o alcance do mencionado artigo 446º, n º 1, do CPP.

De todo o modo, sempre se dirá também que, mesmo que não fosse essa a interpretação correcta do n.º 1, do artigo 446.º, sempre haveria de se concluir que a solução a que se chegou no acórdão recorrido não contraria a jurisprudência fixada no referido acórdão uniformizador[4].

Com efeito, essa jurisprudência, recordemos, decidiu, em suma: “Conciliando o equívoco texto do art.º 28.º da Lei 30/2000 com o objectivo legal de evitar a descriminalização e, mesmo, a despenalização da aquisição e da detenção de drogas ilícitas, para consumo próprio, em quantidade que excedesse a necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias, haverá – na presunção de «que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados» - que confinar a expressa «revogação» do art.º 40.º do Decreto-Lei 15/93 ao contexto do próprio diploma («Para efeitos da presente lei, a aquisição e a detenção para consumo próprio das substâncias referidas no número anterior não poderão exceder a quantidade necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias»).”

Estipula o artigo 40.º do DL n.º 15/93, de 21.01, circunscrito ao consumo e à aquisição e detenção para consumo próprio de drogas ilícitas em pequenas quantidades, por redução teleológica, o alcance da sua revogação pelas disposições conjugadas dos artigos 28.º e 2.º, n.º 2, da Lei 30/2000 - conservará válido e actual o texto remanescente: “1 – Quem, para o seu consumo, cultivar plantas compreendidas nas tabelas I a IV é punido com pena de prisão até 3 meses ou com pena de multa até 30 dias. Se a quantidade de plantas cultivadas pelo agente exceder a necessária para o consumo médio individual durante o período de 5 dias, a pena é de prisão até 1 ano ou de multa até 120 dias. 2 - Quem, para o seu consumo, adquirir ou detiver plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a IV, em quantidade superior à necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias”.

Percorrido o teor do acórdão recorrido constata-se que o mesmo não se pronunciou sobre a matéria tratada pelo acórdão de fixação de jurisprudência invocado pela recorrente e, não divergiu da doutrina nele fixada, já que, a situação aí apreciada não era a de detenção ou aquisição para consumo próprio, por parte da arguida, de produto estupefaciente, em quantidade superior à necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias, como sucedia no acórdão fundamento, assim sendo inequívoco que não existe oposição entre as respectivas decisões.

Não se está, assim, perante decisão proferida contra jurisprudência fixada, pelo que não se observa o pressuposto substantivo supramencionado.

14. Em suma.

A arguida foi condenada pela prática de um crime de tráfico de menor gravidade p. e p. pelo artigo 25.º, do DL n.º 15/93, de 22/1, na pena de 2 anos e 3 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo mesmo período, com regime de prova.

E, como é evidente, tal decisão condenatória em nada contraria o acórdão do STJ n.º 8/2008, pub. no D.R., S. I, de 5/8/2008, que fixou a seguinte jurisprudência:

Não obstante a derrogação operada pelo artigo 28.º da Lei n.º 30/2000, de 29 de Novembro, o artigo 40.º, n.º 2, do Dec. Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, manteve-se em vigor não só «quanto ao cultivo» como relativamente à aquisição ou detenção, para consumo próprio, de plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas Tabelas I a IV, em quantidade superior à necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias”.

15. Pelo que:

Não se vislumbra a existência de soluções opostas, pois esta pressupõe que é idêntica a situação de facto nos dois acórdãos, havendo em ambos uma expressa resolução de direito, sobre situações semelhantes.

Inexiste qualquer identidade das situações de facto.

O acórdão recorrido, em momento algum desaplicou a jurisprudência fixada, seja por errada interpretação, seja por desconhecimento, divergiu da mesma ou fundamentou o seu desacordo para a sua não aplicação.

No caso, trata-se de duas realidades fácticas distintas, o que impede que se considere que possa existir no acórdão recorrido uma solução jurídica, expressamente proferida, em oposição com o acórdão uniformizador.

Dito por outra palavras, inexiste, no acórdão recorrido, qualquer oposição expressa ou explícita, traduzida numa solução jurídica de situação de facto idêntica à tratada no referido acórdão de uniformização, que tenha sido ali decidida de forma dissonante da jurisprudência fixada.

Assim, o decidido no acórdão recorrido, para além de não ter identidade da situação de facto com o circunstancialismo do acórdão uniformizador, também não apresenta para a mesma questão de direito uma solução jurídica oposta ao decidido no acórdão fundamento.

Em face destes considerandos, é de concluir que não se verifica oposição de julgados entre o acórdão recorrido e o acórdão uniformizador, inexistindo qualquer violação da jurisprudência fixada, pelo que sempre é de rejeitar o presente recurso, por falta dos pressupostos substanciais da sua admissibilidade.

16. Nos termos dos artigos 513.º, n.º s 1 e 3 e 514.º, n.º 1, do CPP, a recorrente é condenada em custas.

IV.

17. Termos em que, pelo exposto, acordam os juízes da 5.ª secção criminal do Supremo Tribunal de Justiça em:

a) rejeitar o recurso, por inadmissibilidade;

b) condenar a recorrente nas custas, com a taxa de justiça em 5 (cinco) unidades de conta.

11 de Março de 2021

Processado e revisto pela relatora, nos termos do disposto no artigo 94.º, n.º 2 do CPP, e assinado eletronicamente pelos signatários.

Margarida Blasco (Relatora)

Eduardo Loureiro (Adjunto)

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[1] Cfr. sumário do acórdão, do STJ, de 23.05.2019, processo 74/15.0T9ABF.E1.S1, onde se diz e cita-se: “Uma outra interpretação do n.º 1 do art. 446.º conferiria uma maior protecção à efectiva aplicação da jurisprudência fixada do que aquela que se encontra estabelecida para a cabal aplicação da lei. A não aplicação de uma determinada norma legal ou a sua interpretação incorrecta apenas permite aos sujeitos processuais o direito a interpor um recurso ordinário, estando-lhes vedada a interposição de qualquer recurso extraordinário.”
[2] Exige-se, nos termos do disposto no artigo 445. °, n ° 3, que "a decisão recorrida tenha decidido em sentido divergente ao do acórdão uniformizador, por não acatamento da sua doutrina, caso em que o tribunal que assim decida terá de fundamentar a sua divergência".
[3] Neste sentido vide Acórdão do STJ proferido no processo. n.º 73/16.4PHLRS.L1. S1, em 06.02.2019: o recurso de decisão proferida contra jurisprudência fixada está, assim, sujeito aos mesmos requisitos substanciais exigidos para o recurso de fixação de jurisprudência, isto é, necessário é que a oposição respeite à própria decisão e não aos fundamentos, bem como que se verifique identidade de facto quanto à mesma questão de direito.
[4] Cfr. acórdão proferido no processo n.º 523/08.3 TAVIS.C1-A. S1., de 23.04. 2015.