Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
444/15.3JAPRT.G1.S1
Nº Convencional: 3ª SECÇÃO
Relator: PIRES DA GRAÇA
Descritores: RECURSO PENAL
ABUSO SEXUAL DE CRIANÇAS
CRIME DE TRATO SUCESSIVO
CRIME ÚNICO
CONCURSO DE INFRACÇÕES
CONCURSO DE INFRAÇÕES
CRIME CONTINUADO
PENA PARCELAR
PENA ÚNICA
MEDIDA CONCRETA DA PENA
Data do Acordão: 11/30/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Área Temática:
DIREITO PENAL - FACTO / CONCURSO DE CRIMES E CRIME CONTINUADO - CONSEQUÊNCIAS JURÍDICAS DO FACTO / PENAS / ESCOLHA E MEDIDA DA PENA / PUNIÇÃO DO CONCURSO DE CRIMES - CRIMES EM ESPECIAL - CRIMES CONTRA AS PESSOAS / CRIMES CONTRA A AUTODETERMINAÇÃO SEXUAL.
Doutrina:
- CESARE BECARIA, Dos delitos e das Penas, tradução de JOSÉ DE FARIA COSTA, Serviço de Educação, Fundação Calouste Gulbenkian, 38.
- EDUARDO CORREIA, «Para Uma Nova Justiça Penal», Ciclo de Conferências no Conselho Distrital do Porto da Ordem dos Advogados, Livraria Almedina, Coimbra, 16.
- EDUARDO CORREIA, Direito Criminal, II, reimpressão, Almedina, Coimbra, 1971, 203 e ss..
- FIGUEIREDO DIAS, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, Lisboa, 1993, §55, § 56; Direito Penal, Questões fundamentais, A doutrina geral do crime, Universidade de Coimbra, Faculdade de Direito, 1996, 118; Temas Básicos da Doutrina Penal, Coimbra Editora, 2001, 84, 109 e ss., 117, 121.
- MAIA GONÇALVES, “Código Penal” Português, anotado e comentado, 18ª edição, 154 (nota 1), em anotação ao artigo 30.º, 247 (nota 3), 266 (nota 2), 649.
- PAULO PINTO DE ALBUQUERQUE, Comentário do Código Penal, 2.ª edição actualizada, Universidade Católica Editora, 139 (notas 28 e 29), 158 (nota 14), 160 (nota 22).
- ROBALO CORDEIRO, «Escolha e Medida da Pena», in Jornadas de Direito Criminal, Publicação do Centro de Estudos Judiciários, 237 e ss..
Legislação Nacional:
CÓDIGO DE PROCESSO PENAL (CPP): - ARTIGO 343.º, N.º 1.
CÓDIGO PENAL (CP): - ARTIGOS 30.º, N.º 3, 40.º, N.ºS 1 E 2, 70.º, 71.º, 77.º, N.ºS 1 E 2, 171.º, N.º 1, 177.º, N.º 1, AL. B).
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA (CRP): - ARTIGO 26.º N.º 1.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃOS DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

-DE 15-11-2006, PROC. N.º 3135/06 - 3.ª SECÇÃO.
-DE 08-11-2007, PROC. N.º 3296/07 - 5.ª, ACESSÍVEL IN WWW.DGSI.PT .
-DE 23-01-2008, PROC. N.º 07P4830, ACESSÍVEL IN WWW.DGSI.PT .
-DE 01-10-2008, PROC. N.º 2872/08.
-DE 14-05-2009, PROC. N.º 07P0035, ACESSÍVEL IN WWW.DGSI.PT .
Sumário :
I  -   O crime de trato sucessivo, embora englobe a realização plúrima do mesmo tipo de crime ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico executado por forma essencialmente homogénea, é unificado pela mesma resolução criminosa, bastando a prática de qualquer das condutas para que fique preenchido o tipo legal de crime.
II -  No caso, estando em causa crimes de abuso sexual de crianças, as acções adequadas à produção do resultado, ainda que de forma sucessiva, não se encontram interligadas de forma a que só possam produzir o resultado numa adequação conjunta de todas elas. Outrossim, cada acção produz o consequente resultado. Pelo que, in casu, a renovação da acção criminosa reiterada desenvolvida, produz o consequente e adequado resultado. Embora haja homogeneidade na violação do mesmo bem jurídico, há uma pluralidade da resolução criminosa na produção do resultado que desencadeia e que se autonomiza como tal. Inexiste, pois, o crime de trato sucessivo.
III -      Inexistem, de igual forma, os pressupostos do crime continuado, uma vez que o ilícito de abuso sexual de crianças atenta contra bem jurídico eminentemente pessoal, qual seja a autodeterminação sexual da vítima, pelo que está legalmente afastada a possibilidade de o arguido ter praticado um só crime continuado, atento o disposto no art. 30.º, n.º 3, do CP.
IV -      Tendo em conta que a situação delituosa ocorreu não menos de 20 vezes, mediante o aproveitamento da ausência da residência da companheira do arguido, sendo que em algumas das ocasiões o arguido procurou penetrar o ânus da ofendida, não tendo nunca usado preservativo e em algumas das situações ejaculado na zona da vagina da ofendida, o grau de ilicitude é muito elevado. O dolo é também intenso. As exigências de prevenção geral são, de igual forma, elevadas, o mesmo acontecendo com as exigências de prevenção especial, não obstante o arguido ser primário, face às circunstâncias da infracção e necessidade de dissuasão da reincidência. Pelo que, tudo ponderado, se revela justa a pena de 2 anos e 3 meses de prisão por cada um dos 20 crimes em causa e de 3 anos de prisão por cada um dos 2 restantes crimes, relativos às situações em que o arguido ejaculou na zona da vagina da ofendida e em que procurou introduzir o seu pénis erecto no ânus da ofendida.

V -       Analisado o ilícito global, verifica-se a natureza homogénea e gravidade dos crimes, reflectida nas penas parcelares ora aplicadas. Os factos encontram-se interligados, por resoluções e meio de actuação idênticos. O arguido não possui antecedentes criminais e à data dos factos mantinha uma vida familiar estruturada, estando integrado familiar e socialmente. O ilícito global foi perpetrado sobre uma única pessoa menor, pelo que verifica-se que os factos resultaram de actuação pluriocasional e não de tendência para delinquir. Pelo que, tudo ponderado se conclui ser adequada a pena única de 8 anos de prisão.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

No processo comum nº 444/15.3JAPRT da comarca de Bragança, Bragança – Inst. Central – Sec.Cível e Criminal – J1, foi submetido a julgamento em tribunal colectivo, o arguido AA, solteiro, nascido a 25.08.1975, filho de BB e de CC, natural de Malange – Angola, com residência na Rua ....., n.º.., ......, em Bragança, titular da autorização de residência P001784459, actualmente preso preventivamente, à ordem dos presentes autos, no Estabelecimento Prisional de Bragança., na sequência de acusação deduzida pelo Ministério Público, que lhe Imputava a prática, em autoria material, na forma consumada e em concurso efectivo, de:

- 22 (vinte e dois) crimes de abuso sexual de crianças agravado, previstos e punidos pelos artigos 171, n.º1 e 177, n.º1, alínea b) do Código Penal; e,

- 1 (um) crime de actos sexuais com adolescentes, agravado, previsto e punido pelos artigos 173, n.ºs 1 e 2 e 177, n.º1, alínea b) do Código Penal.

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A ofendida/demandante DD, através da sua legal representante e mãe EE, id. nos autos, deduziu pedido de indemnização civil contra o arguido/demandado AA, dele reclamando o pagamento da quantia de €7.500,00 (sete mil e quinhentos euros), acrescida de juros de mora à taxa legal, desde a notificação a que alude o art. 78.º do Código de Processo Penal até efectivo integral pagamento, para ressarcimento dos danos não patrimoniais que sofreu, e ainda, , que o tribunal declare o arguido/demandado responsável pelo pagamento de toda e qualquer despesa hospitalar resultante dos exames, consultas e perícias a que a menor foi submetida e que ainda se encontre por liquidar, bem como pelo pagamento das custas e demais encargos processuais.

           

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Realizado o julgamento, foi proferido acórdão em 17 de Março de 2016,com a seguinte:

 “- Decisão

Tudo visto, após deliberação, acordam os juízes que compõem o tribunal colectivo em:-

Absolver o arguido AA da prática, em autoria material e na forma consumada e com dolo directo, de 1 (um) crime de actos sexuais com adolescentes, previsto e punido pelo art. 173, nºs 1 e 2 do Código Penal, com a agravação prevista na alínea b) do n.º1 do art. 177.º do mesmo diploma legal;

            - Alterar a qualificação jurídica dos factos descritos na acusação pública (por reporte aos vinte e dois crimes de abuso sexual, previsto e punidos pelos artigos 171, n.º1, com a agravação plasmada na alínea b) do n.º1 do art. 177.º do mesmo diploma legal), na medida em que foram provados, para a prática pelo arguido AA, em autoria material, na forma consumada e com dolo directo, de 1 (um) de um crime de abuso sexual de crianças, previsto e punido pelo art. 171, n.º1 do Código Penal, com a agravação consagrada na alínea b) do n.º1 do art. 177.º do mesmo diploma legal;

            - Condenar o arguido AA pela prática, em autoria material, na forma consumada e com dolo directo, de um crime de abuso sexual de crianças, previsto e punido pelo art. 171, n.º1 do Código Penal, com a agravação consagrada na alínea b) do n.º1 do art. 177.º do mesmo diploma legal, na pena de 6 (seis) anos de prisão;

- Condenar o arguido no pagamento das custas criminais, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC. (cf. artigos 513, n.º1 do Código de Processo Penal e 8, n.º9 do Regulamento das Custas Processuais e tabela III anexa a tal regulamento).

                                                                       ***

            Mais decide o tribunal colectivo, julgar parcialmente procedente, por parcialmente provado, o pedido cível aduzido pela ofendida/demandante DD, através da sua legal representante e mãe EE, e, em consequência:

- Condenar o demandado AA a pagar à ofendida/lesada DD, a título de compensação pelos danos não patrimoniais, a quantia de €7.500,00 (sete mil e quinhentos euros), acrescida de juros moratórios à taxa legal em vigor sobre o capital em dívida, contabilizados desde a data da presente decisão até integral e efectivo pagamento;

- Absolver o demandado do mais peticionado pela demandante civil.

                                                           ***

As custas relativas ao pedido cível serão suportadas pelo demandado e pela demandante, na proporção do decaimento. (cf. art. 527, nºs 1 e 2 do Código de Processo Civil, aplicável ex vi do art. 523.º do Código de Processo Penal)

                                                           ***

Fixa-se o valor desta causa cível enxertada neste procedimento criminal nos €7.500,00 (sete mil e quinhentos euros), o qual corresponde à utilidade económica do pedido. (cf. artigos 296, n.º1, 297, n.º1 e 306, n.º 1 e 2 do Código de Processo Civil, aplicáveis ex vi do art. 4.º do Código de Processo Penal)

                                                           ***

            Estatuto coactivo do arguido

O arguido AA encontra-se, no âmbito deste processo, desde 04.08.2015, sujeito à medida de coacção de prisão preventiva. (cf. fls. 174 e ss.)

Tal estatuto coactivo foi sendo revisto e mantido, nos prazos legais, tendo a última revisão ocorrido aos 03.03.2016.

[…]

Pelo exposto e uma vez não existem motivos para se determinar a sua revogação ou substituição, decide-se que o arguido AA continuará a aguardar os ulteriores termos do processo sujeito à medida de coacção de prisão preventiva em que actualmente se encontra (arts. 191º, nº1; 193º, nº1; 202º, nº1, al. a); 204, alíneas a) e c); 213.º e 215.º, todos do Código de Processo Penal).

A medida deverá ser revista dentro de três meses, como impõe a alínea a) do n.º1 do art. 213.º do Código de Processo Penal, pelo que deverá ser aberto termo de vista ao Ministério Público, oportunamente, para promover o que tiver por conveniente a respeito da revisão do estatuto coactivo do arguido.

                                                                       ***

Após trânsito:

- Remeta boletim ao registo criminal (cf. art. 6, alínea a) e 7, n.º1, alínea a) da Lei n.º37/2015, de 5 de Maio).

                                                                       ***       

Em obediência ao disposto nos artigos 1, nºs 1 e 2 e 8, n.º2 da Lei n.º 5/08, de 12 de Fevereiro, determina-se a recolha ao arguido, após trânsito em julgado da presente decisão, do perfil de ADN, para fins de investigação criminal.

            Em momento anterior à recolha deverá ser cumprido o direito à informação do arguido, nos termos previstos no art. 9, alíneas a) e c) da citada lei.

            O perfil deverá ser incluído na base de dados de perfis de ADN. (cf. art. 18, n.º3 da referida lei)

            Comunique ao INML.

                                                           ***

            Notifique e proceda ao depósito do acórdão na secretaria. (cf. artigos 372, n.º5 e 373, n.º2 do Código de Processo Penal)

            D.N.”

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Inconformado com a decisão condenatória, dela o Ministério Público interpôs recurso para este Supremo Tribunal, concluindo a motivação do recurso, nos seguintes termos:

“1)-Não são praticáveis – porque aleatórios e não compatíveis com a concisão que a juridicidade pressupõe –, na definição e integração material do conceito de “crime de trato sucessivo” (ou prolongado ou exaurido), critérios assentes essencialmente em considerações abstracto-formais e espácio temporais, de molde, a partir daí, classificar um concreto facto-crime como tal.

2)-Só pelo recurso ao bem-jurídico tutelado (na sua relação inevitável com o concreto objecto da accão protegido) é que pode decidir-se, com o acerto que se exige, sobre a integração de um facto-crime em tal categoria conceitual-penal.

3)-Tal categoria conceptual (que não legal) em nada se adequa, no plano da realização da justiça material, aos crimes contra a liberdade e a autodeterminação sexual, maxime o de “abuso sexual de crianças”.

4)-Cada acto sexual cometido com criança representa, inexoravelmente, para ela (e para a comunidade), a mais que uma relevância típica autónoma, um novo e diverso atentado à sua sexualidade, uma nova lesão no seu estado somático-psíquico-emocional, que inelutavelmente colocou mais longe de poder vir a gozar, na idade certa, de uma sexualidade sem complexos, sem traumas e de satisfação plena.

5)-Sendo a sexualidade um dos atributos mais restritos e caros da pessoalidade, é lícito afirmar que a sua salvaguarda, como princípio, acompanhou, por motivos práticos e éticos, os alvores da Civilização, o que, lógica e razoavelmente, há-de, para o abusador sexual, implicar (psicológica, emocional e culturalmente) a necessidade de uma renovação íntima do querer em cada acto, tendo como barreira a ultrapassar, em cada momento, uma réstia que seja da natural inibição que desde sempre acompanha o ser-humano relativamente à sexualidade das crianças.

6)-Nesta medida, a decisão de manter uma relação de carácter sexual com uma criança não passará, nunca, de eventual.

Será sempre um projecto de actuação

7)-Porque ancorada nas regras da experiência comum e na normalidade do acontecer emocional e psicológico do ser que age – não infirmadas por uma qualquer situação anómala –, impor-se-á que o agente será o sujeito de vários processos decisórios, tantos os autónomos actos de abuso sexual de criança que cometa e, daí, tantas, quantas as violações do bem jurídico-penal;

8)-Assim afrontando com efectiva multiplicidade a expectativa de eficácia de uma e mesma norma de determinação – que se pretende preservada –, sendo, pois, de lhe assacar outros tantos juízos de censura subjectiva, pois que a culpa é o “ter de responder por uma personalidade contrária (no caso) ou indiferente ao deve-ser jurídico-penal”.

9)-A concreta conformação e interpretação do direito substantivo (penal) positivado nunca poderá ser condicionada pelas vicissitudes postas pelo concreto arranjo e desempenho do direito adjectivo (processual-penal) e das entidades judiciárias, mormente a nível probatório.

Apurar quantas vezes ocorreu o abuso sexual, ainda que numa miríade de possibilidades, é julgar.

10)-Comete 22 crimes de ““abuso sexual de crianças”, agravados, p. e p. nas disposições do arts. 171º/1 e 177º/1-b) do Código Penal, quem (verificados todos os elementos objectivos e subjectivos):

-Durante cerca de dois anos, em, pelo menos, vinte e duas ocasiões, na sala ou no quarto da sua residência, aproveitando as situações em que a ofendida, de 12 e 13 anos de idade, afilhada da sua companheira, que trabalhava por turnos (assim como a sua mãe, que morava no mesmo prédio), ia a sua casa para jantar e se encontrava apenas na sua presença, a apalpava nas pernas, nos seios e na zona da vagina, isto por cima da roupa;

Após o que lhe tirava roupa da cintura para baixo, o que ele fazia também, e voltava a apalpá-la, esfregava o seu corpo nu no corpo dela e friccionava o seu pénis erecto na sua vulva, procurando penetrar a sua vagina, o que apenas não lograva concretizar porque ela não o permitia, empurrando-o para trás;

Sendo que numa dessas ocasiões, procurara penetrar o ânus da ofendida, com o seu pénis erecto, o que não concretizara apenas porque ela lhe pedira para parar, porque lhe doía;

E, pelo menos numa das situações, ejaculara na zona da vagina da ofendida.

*

            11)-Medida das penas parcelares.

            Tendo o arguido cometido, em autoria material e concurso real efectivo, os vinte e dois crimes em causa, nas concretas circunstâncias assim reveladas na douta decisão;

E salientando ainda, essencialmente, à luz dos critérios tipológicos previstos na disposição do art. 71º do Código Penal para a determinação da pena, as circunstâncias já destacadas em I, A:

            Mostra-se justa, criteriosa e adequada às finalidades da punição a aplicação das penas de:

-03 anos  de prisão por cada um de vinte dos crimes em causa;

-04 anos de prisão por cada um dos dois restantes crimes em questão, relativos às situações em que o arguido ejaculou (pelo menos, uma vez) na zona da vagina e em que procurou introduzir o seu pénis erecto no ânus da ofendida.

            12)-Pena única.

            E nos pressupostos já definidos em I, B):

Operando o cúmulo jurídico das penas parcelares, adentro da moldura do concurso, impõe-se a condenação do arguido, ao abrigo do disposto no art. 77º do Código Penal, na pena única de 09 anos de prisão.

*

            13)-Se o Tribunal “ad quem” decidir manter a condenação pela unidade criminosa, impõe-se, porque justa, criteriosa, necessária e adequadas às finalidades da punição, e acordo com as circunstâncias evidenciadas em II, a condenação do arguido em pena não inferior a 07 anos e 06 meses de prisão.

*

            -Violou a douta decisão recorrida a disposição do art. 30º/1, ou, subsidiariamente, a do art. 71º, ambos do Código Penal.

*

Motivo por que deve o presente recurso ser julgado provido e procedente e, em consequência, ser revogada a decisão recorrida e substituída por outra que:

-Pugnando pela qualificação jurídica dos factos-provados em conformidade com o exposto, condene o arguido nas penas parcelares e única nos termos referidos.

-Se assim não entender, decidindo pela unidade criminosa, condene o arguido na pena em questão.

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            Nem o arguido, nem a assistente, apresentaram resposta, apesar de notificados.

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Neste Supremo, a Dig.ma Procuradora-Geral Adjunta emitiu douto Parecer onde assinala:

“1. O Ministério Público deduziu acusação contra AA pela prática, em autoria material, na forma consumada e em concurso real, de 22 crimes de abuso sexual de crianças agravado, p. e p. pelos arts. 171º, nº 1 e 177º, nº 1, al. b), do C.Penal e 1 crime de actos sexuais com adolescentes, agravado, p. e p. pelos arts. 173º, nºs. 1 e 2 e 177º, nº 1, al. b), do mesmo C.Penal.

2. Submetido a julgamento, o Tribunal Colectivo da Instância Central de Bragança, Secção Cível e Criminal, J1, da Comarca de Bragança, por Acórdão de 17/3/2016, absolveu o arguido BB da prática de 1 crime de acto sexual com adolescente, p. e p. pelos arts. 173º, nºs 1 e 2 e 177º, nº 1, al. b), do CP; alterou a qualificação jurídica dos factos descritos na acusação pública (por reporte aos 22 crimes de abuso sexual de que fora acusado o arguido), “porquanto ficaram provados factos da prática, em autoria material e na forma consumada, de 1 crime de abuso sexual de crianças, em trato sucessivo, p. e p. pelos arts. 171º, nº 1, e 177º, nº 1, al. b), ambos do C.Penal”, pelo que o condenou na pena de 6 anos de prisão.

3. Inconformado, recorreu o Mº Pº, defendendo que, em resumo, cada acto sexual cometido em crianças represente um novo e diverso atentado à sua sexualidade, uma nova lesão ao seu estado-somático-psíquico-emocional “inalienavelmente colocou mais longe de poder vir a gozar, na idade certa, de uma sexualidade sem complexos, sem traumas e de satisfação plena” (conc. 4ª);

“não são praticáveis (…), na definição e integração material do conceito de “crime de trato sucessivo “(…) critérios assentes essencialmente em considerações abstrato-formais e espácio temporal, de molde, a permitir, a partir daí, classificar um concreto facto-crime como tal (…)” (conc. 1ª);

o arguido deve ser condenado pela prática, em autoria material e na forma consumada de 20 crimes de abuso sexual de crianças, nas penas parcelares de 3 anos de prisão por cada um deles e na pena de 4 anos de prisão por cada um dos dois crimes de “abuso sexual de criança, relativamente às situações em que o arguido ejaculou na zona da vagina da ofendida menor e em que procurou introduzir o seu pénis erecto no anus da mesma ofendida, menor DD.

Em cúmulo jurídico deverá ser-lhe fixada a pena única de 9 anos de prisão.

Se, porém, não for essa a decisão do Tribunal “ad quem”, sempre se imporá, porque mais justa, adequada e proporcional às finalidades de punição, ser-lhe aplicada pena não inferior a 7 anos e 6 meses de prisão (cf. fls. 555 e sgs.)

3.1. O recurso foi interposto em tempo e com legitimidade, admitido com o efeito e modo de subida devidos (fls. 575).

3.2. O arguido, não obstante notificado para responder, querendo, não o fez (cf. fls. 577).

3.3. A ofendida assistente também não respondeu ao recurso interposto pelo Mº Pº, pese embora ter sido notificada para tal (fls. 578).

3.4. Remetidos os autos ao Tribunal da Relação de Guimarães o Mº Pº naquele tribunal sublinhou o lapso, porquanto o recurso fora admitido e mandado subir ao STJ (fls. 592).

3.5. O Juiz Desembargador titular decidiu remeter o processo a este Venerando Tribunal, considerando o disposto no art. 432º, nº 1, al. c), do CPP (fls. 593).

3.6. Efectivamente, o recurso do Mº Pº foi delimitado a questões de direito e o arguido foi condenado na pena de 6 anos de prisão, pelo que, considerando o disposto no artº 432º, nº 1, al. c) e 434º, ambos do CPP, é este Supremo Tribunal de Justiça competente para decidir a causa.

4. Inexistem vícios da decisão que comportem o seu conhecimento oficioso pelo STJ, considerando o disposto nos artºs. 434º e 410º, nºs. 2 e 3, ambos do CPP.

            5. Questões de fundo.

          5.1. A questão do crime de trato sucessivo de abuso sexual de criança.

Acompanho a motivação e conclusões do recurso interposto pleo Mº Pº à excepção dos segmentos em que defende não serem praticáveis na definição e integração material do conceito de crime de trato sucessivo, prolongado ou exaurido, porque aleatórios e não compatíveis com a concisão que a juridicidade pressupõe, critérios assentes essencialmente em considerações abstrato-formais e espácio-temporais, de molde, a partir daí, classificar um concreto facto-crime como tal (concls. 1ª e 2ª).

É que a Doutrina e a Jurisprudência têm vindo a afirmar, pacificamente, a unificação num só crime da pluralidade de actuações semelhantes, bastando, porém, a prática de apenas uma delas para a consumação do crime, cabendo ao quantum da pena em concreto censurar um acto isolado ou uma série deles, durante um certo período de tempo.

A propósito, citamos do Acórdão do STJ, de 12/9/2013, proc. 29/07.8GEIDN.L1.S1, embora relativamente a outro tipo de crime, o crime de dano, p. e p. pelo artº 212, nº 1, do CP:

“(…) Diferentemente dos crimes ditos habituais, em que a reiteração de certa espécie de comportamento é necessária à consumação do crime, a figura do crime de trato sucessivo permite unificar num só crime uma pluralidade de actuações semelhantes, sendo certo que a prática de apenas uma delas seria suficiente para que o crime se consumasse. A unificação dos comportamentos socorre-se então da sua aglutinação, enquanto concretização de um desígnio que se possa situar historicamente.

Melhor, da existência de um único processo deliberativo (nos crimes que o comportam) que desemboca numa decisão operativa, e que não tenham sido renovados  .

De acordo com o art. 30.º nº 1 do CP, o número de crimes determina-se pelo “número de crimes efectivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente”.

Há mais do que um crime se estivermos perante desvalores jurídico-penais autónomos. Porque são diferentes os tipos legais preenchidos, ou porque o juízo concreto de reprovação terá que ser formulado mais do que uma vez, face a atividades que preenchem o mesmo tipo legal de crime, mas se for de concluir, perante as regras de experiência da vida, que o agente teve de renovar o respectivo processo de motivação.(…)” )(cf., ainda, os Acórdãos do STJ e Doutrina citados pela decisão recorrida).

Como resulta do extracto acabado citar, importa é que se tenha provado ter havido por parte do agente um único processo deliberativo que “desemboca numa decisão operativa, e que não tenham sido renovados (…)”.

No caso dos autos, não ficou provado que o arguido tenha tomado uma única deliberação criminosa.

De cada vez que atentava contra liberdade sexual, emocional, psíquica e contra o são desenvolvimento da personalidade da menor ofendida, antecedia-lhe a decisão, consciente e voluntária, para satisfazer os seus desejos libidinosos, de praticar os factos que integram os crimes de abuso sexual agravado, nos exactos termos defendidos pelo MºPº recorrente.

E tanto assim é que, pelo menos duas vezes, a actuação do arguido foi diferente, para mais grave, ejaculando, pelo menos uma vez, na zona da vagina e outra em que procurou introduzir o seu pénis erecto no ânus da ofendida. Cfr. Ac. do STJ, de 22/5/2013, pº 93/09.5TAABT.E1.S1, que decidiu pela acumulação real de dois crimes de abuso sexual de criança agravado, sendo vítima a mesma menor.

O Acórdão do STJ, de 20/11/2012, citado na decisão recorrida, afirma, a certo passo que: “(…) Ora, quando os crimes sexuais são actos isolados, não é difícil saber qual o seu número. Mas, quando os crimes sexuais envolvem um repetitiva actividade prolongada no tempo, torna-se difícil e quase arbitrária qualquer contagem (…) a doutrina e a jurisprudência têm resolvido este problema de contagem do número de crimes, que de outro modo seria quase insolúvel, falando em crimes prolongados, protelados, protraídos, exauridos ou de trato sucessivo, em que se convenciona que há só um crime, apesar de se desdobrar em várias condutas que, se isoladas, constituiriam um crime-tanto mais grave (no quadro da sua moldura penal) quanto mais repetido (…)”.

A Jurisprudência e também a Doutrina, ao assim entenderem, justificam o seu pensamento na dificuldade/impossibilidade da contagem do número de crimes praticados.

Porém, não no caso dos autos. Foram, pelo menos, 22 as acções criminosas praticadas pelo arguido, ficou provado que, pelo menos 22 vezes, o arguido cometeu factos criminosos contra a ofendida que integram os elementos objectivos e subjectivos do crime de abuso de criança. O arguido cometeu, em autoria material e na forma consumada, 22 crimes de abuso sexual de criança agravado.

Como o defende, e em nosso parecer bem, o magistrado do MºPº recorrente.

5.2. Das penas parcelares de prisão e única.

5.2.1. Acompanhamos, nesta parte, integralmente a motivação e conclusões do recurso interposto pelo MºPº. São muito graves os factos criminosos provados praticados pelo arguido. Aproveitando-se de amizade, quase familiar, entre o arguido, sua companheira, mãe da menor DD e esta, traiu a confiança de todas, violou as regras éticas mais fundamentais, de protecção e cuidado devido às crianças, e, cabendo-lhe a responsabilidade de tomar conta e proteger a menor, enquanto esta se encontrava em sua casa e ao seu cuidado, violou superiores bens-jurídicos protegidos pelo C. Penal – art. 171º e 177º.

As penas parcelares de prisão propostas pelo MºPº recorrente mostram-se adequadas ao dolo elevado e ao grau de ilicitude.

Quanto à pena única de prisão de 9 anos, que igualmente propõe, é demasiado branda, mas que, porém, não pode ser ultrapassada em obediência à proibição da reformatio in pejus.

Assim que a pena de 9 anos de prisão sugerida pelo MºPº deve ser acatada.

À semelhança do que decidiu o Acórdão do STJ, de 22/5/2013, já citada, “(…) É grave o conjunto global dos factos, em particular os abusos sexuais de criança, que geram no tecido social repulsa e séria reprovação ética e moral, a sua reiteração, o animus que lhes presidiu, de satisfação incontrolada dos seus apetites sexuais, “(…) não olhando à idade da ofendida, à especial responsabilidade que lhe incumbia de proteger a menor nos momentos em que a mãe desta e a companheira daquele a confiavam ao seu cuidado.”

Consabidamente, na procura e decisão relativamente à aplicação de uma pena única, importa atentar no conjunto global dos factos, à personalidade do arguido no seu todo, baseada numa nova culpa e ilicitude emergentes da valoração dos factos no seu conjunto.

Ponderando todos estes factores, a pena única de 9 anos de prisão proposta pelo MºPº é a que, minimamente, mas aquém da pena adequada e proporcional aos fins das penas, se ajusta ao dolo e ilicitude elevadíssimos dos factos praticados pelo arguido.

5.2.2. Sem conceder, se doutamente fôr decidido manter a requalificação jurídica dos factos, operada pelo Acórdão recorrido, deve dar-se provimento ao recurso interposto, agravando a pena de 6 anos de prisão para 7 anos e 6 meses de prisão, conforme pedido do MºPº recorrente, pelos fundamentos expendidos na respectiva motivação e conclusão 13ª.

6. Pelo exposto, emite-se Parecer no sentido do provimento integral do recurso do MºPº, condenando-se o arguido pela prática de 20 crimes de abuso sexual de criança na pena de 3 anos por cada um deles e de 2 crimes de abuso sexual de criança, concretizados um, na ejaculação na zona da vagina da ofendida e, outro, na tentativa de introduzir o seu pénis erecto no ânus desta, na pena de 4 anos de prisão, por cada um deles, devendo fixar-se em 9 anos de prisão a pena a aplicar, ou em alternativa, a manter-se a (re) qualificação jurídica dos factos operada pelo tribunal recorrido, deverá ser agravada a pena de 6 anos de prisão aplicada, para os 7 anos e 6 meses de prisão, pedida pelo MºPº recorrente.”

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            Cumpriu-se o disposto no artº 417º nº 2, e, 424º nº 3,, do CPP.

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           Não tendo sido requerida audiência, seguiu o processo para conferência, após os vistos legais:

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            Consta do acórdão recorrido:

                                  

2 – Fundamentação

2.1 Matéria de facto provada com relevância para a decisão da causa:

1. DD nasceu no dia 23 de Outubro de 2000 (15 anos).

2. É filha de FF e de EE, residindo com esta na Rua ....., n.º ..., ..., Bragança.

3. O arguido AA nasceu em 25 de Agosto de 1975 (40 anos).

4. Vivendo, desde 2009 sensivelmente, em união de facto com GG, que é sobrinha de EE e madrinha da ofendida DD.

5. O casal residia, ao tempo dos factos, no mesmo prédio e andar onde residia (ao tempo dos factos) a ofendida DD, designadamente no apartamento em frente (Rua ....., n.º..., 2.º ... - Bragança).

6. Anteriormente, e em períodos não concretamente apurados, o casal também viveu noutras duas residências, sitas na mesma Rua ..... e que a ofendida DD sempre frequentou amiúde, em virtude do bom relacionamento existente e para estar com o filho menor do casal.

7. Como a mãe da ofendida DD, EE, trabalhava e trabalha num restaurante, inclusive à noite, a ofendida DD ia diariamente para a residência do arguido, onde jantava e ficava algum tempo, indo depois para a sua residência. 

8. A madrinha da ofendida DD, companheira do arguido, GG, nem sempre se encontrava presente, porquanto também trabalhava à noite, em sistema de turnos, na obra social HH, ficando a ofendida, nesses momentos (de jantar e pós jantar), com o arguido ou com este e o seu filho, após o nascimento deste, ocorrido no ano de 2013.

9. Entre o final do ano de 2012 e o final do ano de 2014, quando a ofendida tinha idade compreendida entre os 12 e os 13 anos, na sala ou no quarto da residência do arguido, à noite, em horas não concretamente apuradas, o arguido aproveitava as situações em que a ofendida DD ia a sua casa para jantar e se encontrava apenas na presença daquela, ou daquela e do seu filho BB (após o nascimento deste), para se aproximar da mesma.

10. Nesses momentos, apalpava-a nas pernas, nos seios e na zona da vagina, isto por cima da roupa.

11. Depois, tirava-lhe a roupa da cintura para baixo e despia-se também da cintura para baixo e voltava a apalpá-la; esfregava o seu corpo nu no corpo daquela; e, friccionava o seu pénis erecto na vulva da ofendida, tentando penetrar a sua vagina, o que apenas não logrou concretizar pois a ofendida jamais o permitiu, empurrando-o para trás.

12. Para concretização dos seus ímpetos lascivos, algumas vezes, o arguido fazia a ofendida sentar-se no seu colo, no sofá da sala, virada de frente para si e com as pernas abertas.

13. À medida que praticava os actos descritos, o arguido, em algumas ocasiões, dizia à ofendida que aquilo “era para ela aprender.”

14. A situação anteriormente descrita nos 9) a 11) ocorreu não menos de vinte vezes, sempre nos termos descritos e mediante o aproveitamento da ausência (da residência) da companheira do arguido.

15. Em data concreta que não se logrou apurar, mas no quadro temporal referido em 9), no seguimento dos contactos físicos descritos em 9) a 11), o arguido procurou penetrar o ânus da ofendida DD com o seu pénis erecto, todavia não o concretizou, pois que a mesma lhe pediu para parar, porque lhe doía.

16. Em todas as situações, o arguido não usou preservativo.

17. Em algumas das situações, o arguido ejaculou na zona da vagina da ofendida.

18. A ofendida DD só contou à sua progenitora o sucedido por ter tido um atraso no período menstrual e ter receado estar grávida do arguido, e não antes por o arguido lhe ter dito que se contasse a alguém o sucedido ninguém acreditaria nela.

19. Ao actuar da forma descrita, o arguido agiu de forma livre, deliberada e consciente, com o propósito concretizado de praticar actos sexuais de relevo com a ofendida SS, com idade inferior a catorze anos de idade, bem sabendo que punha em causa o livre desenvolvimento da personalidade da mesma na esfera sexual.

20. O arguido agiu ainda e sempre movido pela excitação e satisfação do seu instinto lascivo.

21. Apesar de saber que a conduta que protagonizou ofendia os mais elementares princípios da moral sexual e atentava contra a liberdade de determinação sexual da menor e o seu são desenvolvimento, bem sabendo a idade da mesma.

22. Para a prática dos factos descritos, o arguido aproveitou-se do fácil contacto que tinha com a ofendida DD, fruto das boas relações familiares existentes e da habitualidade da permanência da mesma na sua residência, bem como da sua dependência económica em relação a si e à sua companheira, ao nível da alimentação.

23. O arguido agiu sempre de forma livre, voluntária e consciente, sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei Penal.

24. O que, ainda assim, não o demoveu de actuar da forma descrita.

                                                                       ***

Do pedido cível

25. Em consequência directa e necessária da actuação do arguido sobre a ofendida, esta sofreu desgosto, aborrecimentos e revolta.

26. Tornou-se menos comunicativa e desinteressada, quer na escola, quer nos contactos com os seus familiares e amigos.

27. Sofreu perturbações do sono e ficou transtornada, sendo frequentes os pesadelos durante noite, acordando aos gritos, por vezes, exclamando “para!... para!...”

28. Em razão disso passou a dormir diariamente com a sua mãe, quando antes apenas o fazia esporadicamente.

29. Sente vergonha e vexame, pois que o assunto é comentado pelas pessoas conhecidas, nomeadamente na aldeia onde habitualmente passa os seus fins-de-semana.

                                                                       ***

30. O arguido não possui antecedentes criminais registados.

                                                                       ***

Processo de socialização do arguido; condições pessoais e sociais; impacto da situação jurídico-penal

31. O arguido AA é natural de Angola e o mais velho de três filhos de um casal de situação socioeconómica humilde mas estável, exercendo o seu pai as funções de responsável pela pecuária e agricultura do Estabelecimento Prisional de Malanje e a sua mãe pela gestão do quotidiano da família.

32. O seu processo de desenvolvimento e formação decorreu no seio da família de origem, de forma harmoniosa, contudo foi marcado pela morte precoce da sua progenitora, quando o arguido contava apenas seis anos de idade, vítima de um acidente de viação.

33. Apesar deste facto, o seu progenitor, bem como as suas posteriores companheiras, sempre lhe proporcionaram o acompanhamento aos diversos níveis.

34. Foi em Malanje que o arguido AA iniciou a escolaridade obrigatória, acusando um percurso regular a este nível, sem problemas de integração e/ou rendimento escolar.

35. Nos seus tempos livres, sempre se dedicou à prática desportiva, designadamente nas modalidades de futebol e ginástica, bem como ao convívio com os seus familiares e amigos.

36. Após terminar o 8º ano de escolaridade, e com aproximadamente 16 anos de idade, o arguido AA deslocou-se para a cidade de Luanda, com o objectivo de dar continuidade aos seus estudos, dada a instabilidade sentida em Malanje por causa da guerra em curso.

37. Nesta altura ficou a viver integrado no agregado familiar de um amigo do seu pai, também ele trabalhador dos serviços prisionais, completando o 9º ano de escolaridade com sucesso.

38. Posteriormente abandonou os estudos, ficando alguns anos desempregado, já que mais uma vez o clima de guerra sentido no país não facilitava a sua inserção a este nível, apesar de permanecer em Luanda, localidade onde haveria maior oferta de emprego.

39. Foi neste contexto que se deu a sua iniciação sexual, já após a maioridade, referindo o mesmo que a informação obtida a este nível foi no seio do grupo de amigos, já que não seria na altura usual falar com os progenitores sobre assuntos desta natureza.

39. Durante o período em que permaneceu em Luanda, o arguido AA refere duas relações afectivas, de curta duração e sem grande impacto no seu quotidiano.

            40. Em 1996, o arguido AA decidiu emigrar para Bragança - Portugal, localidade onde viviam há já vários anos os seus tios II e JJ, que se dispuseram a acolhê-lo e a dar-lhe ocupação profissional.

41. Passou a residir com estes e a trabalhar, primeiro com uma máquina de ceifar que estes detinham, mais tarde no corte comercialização de madeira, e, mais recentemente na empresa “N.......- C.........., Lda.”, primeiro como operador de máquinas e posteriormente como chefe de equipa de trabalho.

42. Paralelamente, em 2009, o arguido AA conhece e inicia uma relação afectiva com GG, com quem há aproximadamente sete anos vive em união de facto, tendo em 2013 nascido o primeiro e único filho do casal, actualmente com quase três anos de idade.

43. A partir deste momento o arguido AA autonomizou-se do agregado familiar dos tios, passando a viver só com o seu agregado constituído, em apartamento arrendado no Bairro de S. Sebastião em Bragança.

44. No meio social de residência, o arguido AA beneficiava de uma imagem social ajustada, não sendo alvo de estigmatização e/ou rejeição, sendo identificado como um individuo com hábitos de trabalho e afável.

45. À data a que se reportam os factos que deram origem ao presente processo judicial penal, o arguido AA vivia com a companheira e o filho de ambos em apartamento arrendado de tipologia 3, sito na R......., em Bragança, zona urbana não conotada com problemas sociais específicos.

46. Até o ano 2014, o arguido AA encontrava-se a trabalhar na empresa “........- C.............., Lda.”, propriedade dos seus tios, como chefe de equipa.

47. A sua companheira também trabalhava desde agosto de 2014, de forma regular, na Obra Social HH.

48. A partir do mês Novembro de 2014, o arguido AA ficou desempregado, dado a empresa para a qual trabalhava atravessar um período de dificuldades económicas, pelo que passou a dedicar-se à criação do seu próprio negócio, tendo elaborado e apresentado um projecto para financiamento de um Snack-Bar, a abrir na cidade de Bragança, projecto este que não chegou a executar dado a sua prisão.

49. O seu dia-a-dia era centrado desta forma, numa primeira fase, no exercício da sua actividade profissional e numa 2ª fase nos procedimentos necessários à concretização do seu próprio negócio.

50. Nos seus tempos livres dedicava-se sobretudo à família, nomeadamente ao acompanhamento do seu filho, sendo que às vezes tinha que garantir esta tarefa sozinho, dado que a sua companheira exercia a sua actividade profissional por turnos.

51. Havia uma relação de amizade e interajuda entre o agregado familiar do arguido e a mãe da ofendida DD (tia materna de GG, sua companheira), a qual trabalhava à noite e se encontrava divorciada, pelo que recorria a ao arguido e à sua companheira para o acompanhamento da menor.

52. O arguido AA refere o seu quotidiano como estável e a relação que mantinha com a companheira como harmoniosa.

53. Actualmente e desde 04.08.2015, o arguido AA encontra-se preso preventivamente à ordem dos presentes autos no Estabelecimento Prisional de Bragança.

54. Em meio institucional tem mantido um comportamento normativo e ajustado, participando nas actividades propostas e frequentando o Curso EFA 2/3 de forma a habilitar-se com o 9º ano português.

55. Tem beneficiado do apoio da sua companheira, bem como dos seus tios, que o visitam com regularidade.

56. O arguido AA verbaliza vontade de em liberdade centrar a sua vida no acompanhamento dos que lhe são mais próximos, nomeadamente a companheira e o filho.

57. É também sua intenção retomar actividade profissional, por conta própria ou voltar a trabalhar com os seus tios.

58. O arguido AA ficou bastante surpreso com o seu envolvimento no presente processo judicial penal, evidenciando preocupação com a existência do mesmo, aguardando com expectativa o seu desfecho.

59. Salientou que o mesmo já teve um impacto muito negativo no seu quotidiano, já que se vê privado da sua família, bem como não pôde executar o projecto profissional que tinha em curso.

60. Denotou alguma indignação, referindo que sempre procurou agir de acordo com as normas socialmente aceites e que não se revê na acusação que contra si é formulada.

61. Em abstracto e relativamente a factos da mesma natureza dos subjacentes aos presentes autos, o arguido AA identifica a ilicitude e censurabilidade dos mesmos.

62. Embora apresente um discurso predominantemente autocentrado no que se refere ao impacto do processo, verbaliza reconhecer os danos causados a vítimas deste tipo de crimes, apesar de considerar que por vezes tais situações ocorrem pela expectativa das vítimas e seus familiares obterem benefícios económicos.

63. O arguido AA referiu que apenas consegue antecipar um desfecho positivo para o presente processo pelo que não consegue perspectivar a adesão a uma medida de execução na comunidade.

64. Os seus familiares em Portugal sabem da sua situação jurídico-penal atual e dispõem-se a apoiá-lo no que vier a revelar-se necessário, partilhando tal como o arguido a sua indignação face o presente processo judicial.

65. A companheira do arguido tem vivido com penosidade este período privativo de liberdade do companheiro, já que se encontra a criar sozinha o filho de ambos e a vítima e a mãe desta são seus familiares directos, facto que se tem repercutido no afastamento das relações entre estes membros da família.

66. O pai e os irmãos do arguido, que ainda vivem em Angola, desconhecem a sua actual reclusão, por opção do primeiro, já que considera que para estes seria uma grande vergonha a sua situação processual.

67. Em Bragança o presente processo judicial não teve reflexos negativos na imagem social do arguido, dado que os factos não são muito conhecidos da população brigantina.

68. Os elementos contactados que têm conhecimento da acusação denotaram alguma expectativa face ao desenvolvimento deste processo judicial, já que ficaram surpresos com este facto, não identificando o arguido AA como um possível agente de crimes desta natureza.

                                                                       ***

2.2 Matéria de facto não provada com relevância para a decisão da causa

1. A primeira situação ocorreu em data não concretamente apurada mas compreendida entre o final do ano de 2012 e o início do ano de 2013, à noite, numa altura em que o arguido vivia no 3.º esquerdo da Rua ....., n.º ... e levou a menor até ao quarto do casal, agarrando-a pelos braços com força e empurrando-a para lá.

2. Ocorreu uma segunda vez, no início do ano de 2014, num sábado à tarde em que a menor DD foi a casa da madrinha a pedido da mesma, para lhe adormecer o filho, uma vez que tinha de ir trabalhar.

3. Assim, a DD deitou-se na cama juntamente com o menor, e a sua madrinha aproveitou para sair para o trabalho, acabando os dois menores por adormecer.

4. Algum tempo depois, o arguido abeirou-se da DD e deitou-se em cima da mesma, o que a assustou e fez com que, instintivamente, o tivesse repelido, empurrando-o para trás.

5. O arguido, por diversas vezes, masturbou-se em frente da ofendida.

6. Nas repetidas situações descritas em 9) a 11) dos factos provados, o arguido logrou introduzir o seu pénis erecto na vagina da ofendida, ainda que não completamente e num número de vezes não concretamente apurado.

7. Há data da prática de algum ou alguns dos factos a arguida tinha 14 anos de idade.

8. No início do mês de Fevereiro de 2015, quando a ofendida contava 14 anos, o arguido introduziu o seu pénis erecto no ânus da ofendida, penetrando-a nessa parte do seu corpo.

                                                           ***

            2.3 - Motivação

            […]

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            Cumpre apreciar e decidir:

            Inexistem vícios, ou nulidades de que cumpra conhecer nos termos do artº 410º nºs 2 e 3, do CPP.

            Como informa o Recorrente:

“Nos termos do disposto no art. 403º/1 e 2-d) e f) do Código do Processo Penal, limita-se o objecto do presente recurso à questão-de-direito, concretamente à parte da decisão que:

-Condenou o arguido apenas pela prática, em autoria material, de um único crime de “abuso sexual de crianças”, agravado, p. e p. nas disposições do arts. 171º/1 e 177º/1-b) do Código Penal;

-Subsidiariamente, condenou o arguido na pena de 06 anos de prisão.”

           

E, em síntese, alega que:

Cada acto sexual cometido com criança representa, inexoravelmente, para ela (e para a comunidade), a mais que uma relevância típica autónoma, um novo e diverso atentado à sua sexualidade, uma nova lesão no seu estado somático-psíquico-emocional, que inelutavelmente colocou mais longe de poder vir a gozar, na idade certa, de uma sexualidade sem complexos, sem traumas e de satisfação plena.

A decisão de manter uma relação de carácter sexual com uma criança não passará, nunca, de eventual. Será sempre um projecto de actuação

Porque ancorada nas regras da experiência comum e na normalidade do acontecer emocional e psicológico do ser que age – não infirmadas por uma qualquer situação anómala –, impor-se-á que o agente será o sujeito de vários processos decisórios, tantos os autónomos actos de abuso sexual de criança que cometa e, daí, tantas, quantas as violações do bem jurídico-penal;

            O acórdão recorrido fundamentou desta forma:

                                              

“3 - Enquadramento jurídico-penal

O arguido AA vem acusado, além do mais, pela prática, em autoria material, na forma consumada e em concurso efectivo, de 22 (vinte e dois) crimes de abuso sexual de crianças, previstos e punidos pelo art. 171, n.º1 do Código Penal, com a agravação consagrada na alínea b) do n.º1 do art. 177.º do Código do mesmo diploma legal.

De harmonia com o disposto no art. 171, n.º1 do Código Penal, incorre na prática de um crime de abuso de sexual de crianças, quem praticar acto sexual de relevo com ou em menor de 14 anos, ou o levar a praticá-lo consigo ou outra pessoa, sendo o ilícito punido com pena de prisão de um a oito anos.

Todavia, se o acto sexual de relevo consistir em cópula, coito anal, coito oral ou introdução vaginal ou anal de partes do corpo ou objectos, o agente é punido com pena de prisão de três a dez anos, é o que decorre do n.º2 do art. 171.º do Código Penal.

As penas previstas, além do mais, nos nºs 1 e 2 do art. 171.º do Código Penal, são agravadas de um terço, nos seus limites mínimos e máximos, se a vítima for ascendente, descendente, adoptante, adoptado, parente ou afim até ao segundo grau do agente (cf. art. 177, n.º1, alínea a) do Código Penal), ou, se encontrar numa relação familiar, de tutela ou curatela, ou de dependência hierárquica, económica ou de trabalho do agente e o crime for praticado com aproveitamento desta relação (cf. art. 177, n.º1, alínea b) do Código Penal).

O bem jurídico que a incriminação supra aludida visa tutelar é o da autodeterminação sexual, no sentido acautelar a afectação do livre desenvolvimento da personalidade de pessoas menores face a condutas de natureza sexual.

Como salienta Figueiredo Dias, “a lei presume (…) que a prática de actos sexuais com menor, em menor ou por menor de certa idade prejudica o desenvolvimento global do próprio menor (…) e considera este interesse tão importante que coloca as condutas que o lesem ou ponham em perigo sob a ameaça de pena criminal” – Comentário Conimbricense ao Cód. Penal, Tomo I, p. 541 e ss, Coimbra Editora.

Trata-se de um crime de perigo abstracto, posto que o preenchimento do tipo objectivo de ilícito não exige a possibilidade de um perigo eminente do desenvolvimento livre, físico ou psíquico, do menor ou dano correspondente, podendo os mesmos nem sequer ocorrer – cfr. autor e obra citados, p. 542 e ss.

São elementos típicos do crime imputado ao arguido:

a)A prática, pelo agente de acto sexual de relevo (que pode consistir, além do mais, em cópula, coito anal, coito oral ou introdução vaginal ou anal de partes do corpo ou objectos) com ou em menor de 14 anos, ou a determinação deste, pelo agente, a praticá-lo consigo ou outra pessoa;

b)         O dolo, numa das suas três modalidades, previstas no art. 14º do Código Penal.

No que respeita ao primeiro dos elementos referidos, releva que a vítima deverá praticar ou suportar um acto sexual de relevo, ou seja, deverá ser o sujeito activo ou passivo do acto sexual praticado.

É acto sexual todo aquele que, “de um ponto de vista predominantemente objectivo, assume uma natureza, um conteúdo ou um significado directamente relacionados com a esfera da sexualidade e, por aqui, com a liberdade de determinação sexual de quem o sofre ou pratica” – cfr. Figueiredo Dias, obra citada, p. 447-448 e 543.

Deverão ter-se em conta as circunstâncias em que o acto é praticado para a aferição do seu conteúdo sexual, designadamente, o lugar, tempo e condições em que é praticado. 

É de relevo toda a acção que se traduza num entrave importante para a liberdade de determinação sexual da vítima, ou seja, que revista conotação sexual de uma certa gravidade objectiva realizada na vítima – cfr. Figueiredo Dias, obra citada, p. 449; Pinto Albuquerque, Comentário do CP, 2008, p. 442 e ss..

O toque com objectos ou partes do corpo nos seios, ânus ou na boca integra o conceito de acto sexual de relevo – cfr. Pinto Albuquerque, obra citada, p. 443 -, sendo irrelevante que a vítima seja ou não sexualmente iniciada.

Com relevo para o caso, cópula é o acto pelo qual o pénis de um homem é introduzido na vagina de uma mulher, haja ou não emissio seminis (vide acórdão de Fixação de Jurisprudência do STJ n.º5/2003).

Já o coito anal consiste na introdução, total ou parcial, do pénis de um homem no ânus de outra pessoa, com ou sem emissio seminis.

No que concerne ao elemento típico subjectivo, acima elencado em segundo lugar, deverá abranger, além do comportamento do agente, o conhecimento, ainda que em termos de mera possibilidade, da idade da vítima – cfr. Figueiredo Dias, obra citada, p. 549 -, e, sendo caso disso, as circunstâncias agravantes.

            Volvendo a nossa objectiva para o caso vertente, coligidos os factos provados, podemos concluir que o arguido AA, de forma deliberada, livre e consciente, com o propósito conseguido de satisfazer os seus impulsos sexuais e libidinosos e a sua lascívia, e não obstante saber que as suas condutas encerravam a prática de crime, cometeu diversos actos sexuais de relevo sobre a ofendida, DD, afilhada e prima da sua companheira e menor de catorze anos (ao tempo dos factos), circunstâncias que eram, também, do seu efectivo conhecimento, aproveitando-se, para tanto, da relação familiar existente e da dependência económica da ofendida para consigo e sua companheira.

            Na verdade, apurou-se que, entre o final do ano de 2012 e o final do ano de 2014, quando a ofendida tinha idade compreendida entre os 12 e os 13 anos, na sala ou no quarto da residência do arguido, à noite, em horas não concretamente apuradas, o arguido aproveitava as situações em que a ofendida DD ia a sua casa para jantar e se encontrava apenas na presença daquela, ou daquela e do seu filho BB (após o nascimento deste), para se aproximar da mesma. Nesses momentos, apalpava-a nas pernas, nos seios e na zona da vagina, isto por cima da roupa. Depois, tirava-lhe a roupa da cintura para baixo e despia-se também da cintura para baixo e voltava a apalpá-la; esfregava o seu corpo nu no corpo daquela; e, friccionava o seu pénis erecto na vulva da ofendida, tentando penetrar a sua vagina, o que apenas não logrou concretizar pois a ofendida jamais o permitiu, empurrando-o para trás. Para concretização dos seus ímpetos lascivos, algumas vezes, o arguido fazia a ofendida sentar-se no seu colo, no sofá da sala, virada de frente para si e com as pernas abertas.

E, ainda no quadro temporal referido, no seguimento dos contactos físicos descritos em 9) a 11) dos factos provados, o arguido procurou penetrar o ânus da ofendida DD com o seu pénis erecto, todavia não o concretizou, pois que a mesma lhe pediu para parar, porque lhe doía.

Ora, os actos praticados pelo arguido e suportados pela vítima, acima descritos, que se repetiram em não menos que vinte ocasiões, revestem um conteúdo relacionado com a sexualidade desta última, atento um critério objectivo, reportado ao juízo formulado por um normal cidadão nas circunstâncias em que o arguido actuou.

Tais actos revestem, ainda, relevância para serem classificados como adequados a constituir um grave entrave à liberdade de determinação sexual da vítima (nos termos acima mencionados), posto que se traduzem numa invasão significativa da sua esfera de intimidade sexual.

Note-se que estão em causa actos de contacto físico, com forte conotação com a sexualidade e com a intimidade de um relacionamento amoroso com outrem de um normal cidadão.

A vítima/ofendida, na altura em que o arguido praticou os factos em apreço, tinha menos de 14 anos de idade.

O arguido actuou, pois, com dolo directo – art. 14, n.º1, do Código Penal.

Não se vislumbram quaisquer causas justificativas ou de exculpação da conduta do arguido.

Entende-se, assim, por reporte à actuação do arguido, que se mostram preenchidos os elementos, objectivo e subjectivo, do tipo legal de crime de abuso sexual de crianças, previsto e punido pelo art. 171, n.º1 do Código Penal, com a agravação consagrada na alínea b) do n.º1 do art. 177.º do mesmo diploma legal, porquanto o mesmo praticou os actos com aproveitamento da relação familiar e dependência económica da vítima para consigo e o seu agregado constituído.

A conduta do arguido não se enquadra na previsão no n.º2 do art. 171.º do Código Penal, porquanto não se provou que os actos sexuais de relevo praticados pelo arguido sobre a ofendida consistiram em cópula, coito anal, coito oral e/ou introdução vaginal ou anal de partes do corpo ou objectos.

                                                           ***

            Aqui chegados, importa perceber quantos ilícitos penais cometeu o arguido.

Como se observa da simples leitura da acusação pública, o Ministério Público imputa ao arguido a prática de 22 (vinte e dois) crimes de abuso sexual de crianças.

            Não concordamos.

            Vejamos porquê e qual o nosso entendimento.

Dispõe o art. 30, n.º1 do Código Penal, «o número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efectivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente».

O tipo legal é o portador, o interposto da valoração jurídico-criminal, ante o qual se acham colocados os tribunais e o intérprete. A possibilidade de subsunção duma relação da vida a um ou vários tipos legais de delito é a chave para determinar a unidade ou pluralidade de crimes.

A consideração da culpa, elemento essencial ao conceito de crime, constitui um limite do critério segundo o qual se determinaria a unidade ou a pluralidade de infracções pela unidade ou pluralidade de tipo realizados.

É a violação concreta das normas na sua função de determinação, precisamente a falta da sua eficácia querida, devida e, portanto, possível no domínio da representação e do processo de motivação do agente, que faz nascer aquele juízo de censura em que se estrutura a culpa.

O índice da unidade, ou pluralidade, de determinações volitivas apenas se pode consubstanciar na forma como o acontecimento exterior se desenvolveu, olhando fundamentalmente à conexão temporal que liga os vários momentos da conduta do agente.

Uma pluralidade de factos externamente separáveis deve conformar uma acção unitária quando os diversos actos parciais, que respondem a uma única resolução volitiva, se encontram tão ligados no tempo e espaço que para um observador não interveniente são percepcionados como uma unidade natural.

O crime por cuja unidade e ou pluralidade se demanda é o facto punível e, por conseguinte, uma violação de bens jurídico-penais que integra um tipo legal. A essência de uma tal violação reside no substrato de vida dotado de um sentido negativo de valor jurídico-penal, reside no ilícito típico: é a unidade ou pluralidade de sentidos de ilicitude típica existente no comportamento global do agente submetido à cognição do tribunal que decide, em definitivo, da unidade ou pluralidade de factos puníveis, e, nesta acepção, de crimes.

Constitui um só crime continuado a realização plúrima do mesmo tipo de crime ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico, executada de forma essencialmente homogénea e no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente. (cf. art. 30, n.º2 do Código Penal)

No entanto, o disposto no art. 30, n.º2 do Código Penal, não abrange os crimes praticados contra bens jurídicos eminentemente pessoais.

Considerando que o ilícito de abuso sexual de crianças, como acima se fez notar, atenta contra bem jurídico eminentemente pessoal, qual seja a autodeterminação sexual da vítima, está legalmente afastada a possibilidade de o arguido ter praticado um só crime continuado.

Todavia, com relevo para o caso, como mui bem se relata no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, datado de 29.11.2012, consultável in www.dgsi.pt., “Os crimes sexuais são muitas vezes actos isolados, fruto de circunstâncias irrepetíveis. É assim no caso de violações durante um assalto a uma residência, ou na sequência de um rapto, ou num encontro em local ermo.

Mas, outras vezes seguem um percurso que se prolonga no tempo, isto é, em vez de um ato ou de vários actos ilícitos, há uma actividade sexual ilícita.

É próprio da natureza humana a junção dos mesmos parceiros sexuais por períodos prolongados no tempo. O mesmo se passa, muitas vezes, nos crimes sexuais, sempre que as circunstâncias o proporcionam e a diferença entre estes e as uniões sexuais mais correntes entre as pessoas, é a circunstância de nos casos criminosos existir uma vítima, alguém a quem o agente retira [ou condiciona] a liberdade ou a autodeterminação sexual.

Na “actividade sexual criminosa” o agente aproveita-se sexualmente de outra pessoa que é acessível ao seu contacto, por ser da família, ou do seu círculo de amizades, ou do seu local de trabalho, ou por outra circunstância similar, fazendo-o pela força, ou pela intimidação, ou pela incapacidade da vítima em se defender, por exemplo, por ser menor. Nesses casos, os crimes sexuais tendem a ter uma frequência por um período prolongado no tempo e a juntar os mesmos «parceiros», um deles vitimizado sucessivamente.

Ora, quando os crimes sexuais são atos isolados, não é difícil saber qual o seu número. Mas, quando os crimes sexuais envolvem uma repetitiva atividade prolongada no tempo, torna-se difícil e quase arbitrária qualquer contagem.

O mesmo sucede com outro tipo de crimes que, tal como o sexo, facilmente se transformam numa “actividade”, como, por exemplo, com o crime de tráfico de droga. Pergunta-se, por isso, se nesses casos de “actividade criminosa”, o traficante de rua que, por exemplo, se vem a apurar que vendeu droga diariamente durante um ano, recebendo do «fornecedor» pequenas doses de cada vez, praticou, «pelo menos», 200, 300 ou 365 crimes de tráfico [o que aparenta ser uma contagem arbitrária ou, pelo menos, “imaginativa”] ou se praticou um único crime de tráfico, objectiva e subjectivamente mais grave, dentro da sua moldura típica, em função do período de tempo durante o qual se prolongou a actividade.

A doutrina e a jurisprudência têm resolvido este problema, de contagem do número de crimes, que de outro modo seria quase insolúvel, falando em crimes prolongados, protelados, protraídos, exauridos ou de trato sucessivo, em que se convenciona que há só um crime – apesar de se desdobrar em várias condutas que, se isoladas, constituiriam um crime - tanto mais grave [no quadro da sua moldura penal] quanto mais repetido.  

Ao contrário do crime continuado [cuja inserção doutrinária também nasceu, entre outras razões, da dificuldade em contar o número de crimes individualmente cometidos ao longo de um certo período de tempo], nos crimes prolongados não há uma diminuição considerável da culpa, mas, antes em regra, um seu progressivo agravamento à medida que se reitera a conduta [ou, em caso de eventual «diminuição da culpa pelo facto», um aumento da culpa enquanto negligência na formação da personalidade ou de perigosidade censurável»]. Na verdade, não se vê que diminuição possa existir no caso, por exemplo, do abuso sexual de criança, por atos que se sucederam no tempo, em que, pelo contrário, a gravidade da ilicitude e da culpa se acentua [ou, pelo menos, se mantém estável] à medida que os atos se repetem.

O que, eventualmente, se exigirá para existir um crime prolongado ou de trato sucessivo será como que uma «unidade resolutiva», realidade que se não deve confundir com «uma única resolução», pois que, «para afirmar a existência de uma unidade resolutiva é necessária uma conexão temporal que, em regra e de harmonia com os dados da experiência psicológica, leva a aceitar que o agente executou toda a sua actividade sem ter de renovar o respectivo processo de motivação» (Eduardo Correia, 1968: 201 e 202, citado no “Código Penal anotado” de P. P. Albuquerque).

Para além disso, deverá haver uma homogeneidade na conduta do agente que se prolonga no tempo, em que os tipos de ilícito, individualmente considerados são os mesmos, ou, se diferentes, protegem essencialmente um bem jurídico semelhante, sendo que, no caso dos crimes contra as pessoas, a vítima tem de ser a mesma.

A propósito desta faceta no crime de tráfico de droga, diz-se no Ac. do STJ de 12-07-2006, proc. 1709/06-3ª, que «o crime exaurido é uma figura criminal em que a incriminação da conduta do agente se esgota nos primeiros actos de execução, independentemente de corresponderem a uma execução completa do facto, e em que a imputação dos actos múltiplos e sequentes é imputada a uma realização única. Mas a incidência do tempo naquela unicidade não pode deixar de se tomar em apreço, e até comprometê-la mesmo, se decorrer um largo hiato de tempo entre as múltiplas condutas; não já se interceder um momento volitivo a despoletá-las todas, que aglutine as primeiras e subsequentes, ainda dentro daquela volição, hipótese que exclui o concurso real de infracções, nos termos do art.º 30.º, n.º 1, do CP».

E a propósito de um caso de crime de abuso sexual de crianças, o Ac. do STJ de 23-01-2008, proc. n.º 4830/07-3ª, resume do seguinte modo o que aqui temos vindo a expor: «I - O fundamento da unificação criminosa consiste na diminuição da culpa do agente, resultante da “cedência” a uma solicitação exterior, e não na unidade de resolução criminosa ou na homogeneidade da actuação delitiva. Esta última, assim como a proximidade temporal das condutas, é um elemento meramente indiciário da continuação criminosa, que deverá ser confirmado pela verificação de uma solicitação exterior mitigadora da culpa. Por sua vez, a unidade de resolução criminosa nem sequer existe no crime continuado, pois o que caracteriza esta figura é precisamente a renovação de tal resolução perante as solicitações externas exercidas sobre o agente. Por isso, sempre que a repetição da conduta criminosa seja devida a uma tendência da personalidade do agente, a quaisquer razões de natureza endógena, que ocorra independentemente de qualquer solicitação externa, ou que decorra de oportunidade provocada ou procurada pelo próprio agente, haverá pluralidade de crimes e não crime continuado.

II - Estando em causa um crime de abuso sexual de crianças agravado, não pode aceitar-se que o «êxito» da primeira «operação» e das seguintes possa determinar a diminuição da culpa do arguido: este agiu determinado pela vontade de satisfazer os instintos libidinosos, como se diz no acórdão recorrido, e, para tanto, aproveitou as situações mais favoráveis para esse efeito, nomeadamente a ausência da sua mulher e mãe da ofendida. O aproveitamento calculado de situações em que a reiteração é mais propícia exclui, porque não diminui a culpa, o crime continuado. É, de resto, notório, que o arguido agiu determinado por uma única resolução, por ela levado a aproveitar todas as situações que facilitassem a prática dos actos ilícitos, e não formando sucessivamente novas resoluções perante circunstâncias favoráveis entretanto surgidas.

III - Da mesma forma, a não resistência da ofendida, embora certamente tenha facilitado a repetição do comportamento do arguido, também não pode atenuar a culpa, pois a atitude da ofendida terá normalmente resultado do ascendente que, como pai, o arguido tinha sobre ela, e não de um «acordo» entre ela e o arguido, que não se provou.

IV - Nem sequer se podem considerar homogéneas todas as condutas imputadas ao arguido, uma vez que uma delas, a descrita inicialmente na matéria de facto, assume claramente uma gravidade maior do que as restantes. Quando muito, poderia admitir-se a unificação num crime continuado das três condutas que consistiram em o arguido acariciar e chupar os seios da ofendida, condutas inteiramente homogéneas. Contudo, a homogeneidade não é condição suficiente da continuação criminosa, sendo essencial, como já se disse, que haja uma efectiva diminuição da culpa do agente, o que não sucede, pois que a repetição criminosa ficou a dever-se à persistente vontade do arguido em satisfazer os seus desejos, vontade essa que superou as normais inibições que estão ligadas às relações entre pais e filhos.

V - Em todo o caso, essas três condutas, se não podem ser unificadas em termos de continuação criminosa, podem sê-lo como crime de trato sucessivo, que se caracteriza pela repetição de condutas essencialmente homogéneas unificadas por uma mesma resolução criminosa, sendo que qualquer das condutas é suficiente para preencher o tipo legal de crime. Contrariamente ao que acontece no crime continuado, não há aqui qualquer diminuição de culpa, antes a reiteração criminosa, revelando uma persistência da resolução criminosa, encerra uma culpa agravada, que será medida de acordo com o número de condutas e respectiva ilicitude.””

Volvendo a nossa objectiva para o caso vertente, seguindo o entendimento plasmado no citado acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, que perfilhamos, somos de considerar que o arguido incorreu, tão-só, no cometimento de um crime de abuso sexual de crianças, previsto e punido pelo art. 171, n.º1 do Código Penal, com a agravação da alínea b) do n.º1 do art. 177.º do mesmo diploma legal, na modalidade de crime prolongado ou de trato sucessivo, ao abrigo de uma evidente unidade resolutiva, valorando-se aqui, de forma conjugada e concatenada, em ordem a alcançar tal desiderato, a notória conexão e encadeamento temporal dos actos, o número indeterminado de actos sexuais de relevo praticados pelo arguido sobre a ofendida e a homogeneidade da actuação, o que leva a concluir que o arguido executou toda a sua actividade delituosa (que é una) sem ter de renovar o respectivo processo de motivação.

Em suma, ao arrepio da tese acusatória, incorreu o arguido, tão-só, na prática, em autoria material, na forma consumada e com dolo directo, de um crime de abuso sexual de crianças, previsto e punido pelo art. 171, n.º1 do Código Penal, com a agravação da alínea b) do n.º1 do art. 177.º do mesmo diploma legal, para o que importa operar a respectiva alteração da qualificação jurídica dos factos.”

Analisando:

            Sobre a questão do crime de trato sucessivo.

            Já se entendeu que o crime de trato sucessivo, é figura próxima, mas autónoma, e diferente do crime continuado, por haver unidade da conduta na concreta resolução criminosa, idónea a conduzir ao mesmo resultado, mas sem que haja diminuição da culpa do agente.

Assim resulta, por ex, do  Acórdão deste Supremo de 23.1.2008 (Procº 07P4830)     que  por ausência, em concreto, de diminuição da culpa do agente, se as correspondentes condutas criminosas não podiam ser “unificadas em termos de continuação criminosa, poderão sê-lo como crime de trato sucessivo.

O crime de trato sucessivo caracteriza-se pela repetição de condutas essencialmente homogéneas unificadas por uma mesma resolução criminosa, sendo que qualquer das condutas é suficiente para preencher o tipo legal de crime. Contrariamente ao que acontece no crime continuado, não há aqui qualquer diminuição de culpa, antes a reiteração criminosa, revelando uma persistência da resolução criminosa, encerra uma culpa agravada, que será medida de acordo com o número de condutas e respectiva ilicitude”.

            Também o Acórdão deste Supremo, de 14.5.2009 (Procº 07P0035) refere que “a maioria dos abusos sexuais de menores são praticados sobre vítimas «indefesas», que são violentadas física ou psicologicamente, pelo que o STJ tem muitas vezes entendido que, em regra, existe um agravamento de culpa por cada um dos crimes cometidos, incompatível com o crime continuado. Por isso, nesses casos, tem-se considerado que há um único crime de trato sucessivo (que a moldura penal permite graduar de forma mais intensa) e não um crime por cada contacto sexual”.

           

Não é uma questão a juzante ou a montante das condutas ilícitas típicas e puníveis, mas sim uma questão central da caracterização dessas condutas nos termos do artº 30º do CP, face aos efeitos na aplicação da pena: se uma só pena advinda de um único crime, ou várias parcelares

E daí, que a questão é ainda juridicamente relevante, pelos efeitos que possa implicar na realização do cúmulo, pois que, como é evidente, a realização de cúmulo pressupões a existência das penas parcelares

            Dispõe o artº 30º nº 1 do Código Penal:

            1. O número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efectivamente cometidos, o pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente.

            2. Constitui um só crime continuado a realização plúrima do mesmo tipo de crime ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico executado por forma essencialmente homogénea e no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente.

3. O disposto no número anterior não abrange os crimes praticados contra bens eminentemente pessoais, salvo tratando-se da mesma vítima.

            O crime de trato sucessivo, embora englobe a realização plúrima do mesmo tipo de crime ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico executado por forma essencialmente homogénea, é unificado pela mesma resolução criminosa, bastando a prática de qualquer das condutas para que fique preenchido o tipo legal de crime

Ora. as acções adequadas à produção do resultado, ainda que de forma sucessiva, não se encontram interligadas de forma a que só possam produzir o resultado numa adequação conjunta de todos elas.

 Outrossim, cada acção produz o consequente resultado,

            Inexiste uma unidade típica de acção, a que alude Paulo Pinto de Albuquerque, Paulo Pinto de Albuquerque, no seu Comentário do Código Penal, 2ª edição actualizada, Universidade Católica Editora, p. 158, nota 14

            In casu, a renovação de acção criminosa reiterada desenvolvida, produz o consequente e adequado resultado. Embora haja homogeneidade na violação do mesmo bem jurídico, há uma pluralidade de resolução criminosa na produção do resultado que desencadeia e que se autonomiza como tal.

Como bem salienta o Exmo. Recorrente: “a relevância conceptual do “trato sucessivo” pressupõe, em regra, a referência aos “crimes sem vítima” ou a crimes “complexos”, nomeadamente “tráfico de estupefacientes”, “detenção de arma proibida”, “auxílio à emigração ilegal”, “tráfico de armas”, etc.,;

            Isto é:

 Casos em que, por um lado, a actuação típica a actuação típica se desdobra numa sucessão de comportamentos que se complementam sempre no sentido de um incremento da lesão do bem jurídico respectivo (adquirir, deter, guardar, transportar, ceder, alienar, etc.), e, por outro lado, situações em que ao bem jurídico-penal tutelado não acresce normalmente um concreto objecto da acção protegido.

[…]

            Bem diversamente:

Para além da sempre mais ou menos alheada e abstracta violação do bem-jurídico “autodeterminação sexual”, impõe-se, no caso dos autos, de forma flagrante, concreta e real, um grave e renovado atentado ao saudável, espontâneo, equilibrado e atempado desenvolvimento e formação da sexualidade da menor.

            Cada acto sexual cometido com a menor representou (a mais que uma relevância típica autónoma) para ela (e para a comunidade), inexoravelmente, um novo e diverso atentado à sua sexualidade, uma nova lesão no seu estado somático-psíquico-emocional, que inelutavelmente colocou mais longe de poder vir a gozar, na idade certa, de uma sexualidade sem complexos, sem traumas e de satisfação plena:

            -Uma nova vitimização, com autonomia ético-penal;

-Uma acrescida dimensão qualitativa, que não apenas quantitativa.

            E, reversamente, cada acto de sexo cometido pelo arguido sobre a menor, deu àquele a oportunidade de, repetida, resoluta e pensadamente, ir satisfazendo os seus instintos lascivos mais ímpios e obscenos, em vez de lhe servir como alerta para a sua consciência ética mal-formada, em vez de lhe despertar os factores de inibição que desde o início conseguiu reprimir.”

            Inexiste pois, o crime de trato sucessivo.

<>

O crime de trato sucessivo afasta-se da figura do crime continuado, porque não pressupõe, a característica deste, de ser praticado “no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente.”

Daí que, poderia eventualmente, equacionar-se a questão do crime continuado,

           

A temática do crime continuado, desenvolve-se a partir da influência de Birnbaum e Honig sobre a teoria do bem jurídico, com que se relaciona.

Em termos comparados com o concurso aparente de infracções, poderá questionar-se  no caso de haver pluralidade de resoluções criminosas, se esta, em certas situações e mediante determinados pressupostos não será meramente aparente, em que a justiça e a economia processual aconselhem a verificação de um só crime.

Segundo ensina Eduardo Correia (Direito Criminal, II, reimpressão, Almedina, Coimbra, 1971, p. 203 e segs), a solução da questão passa por duas vias fundamentais: uma ligada à teoria do crime nos seus princípios gerais, em que se procura “deduzir os elementos que poderiam explicar a unidade inscrita no crime continuado – e teremos então uma construção lógico-jurídica dp conceito”, sendo que nesta perspectiva distinguem-se as teorias subjectivas - em que “o elemento aglutinador das diversas condutas que forma o crime continuado seria a “unidade de determinação da vontade “ (Schroeder) ou a “unidade de resolução” ( Mittermaier)” – e, as teorias objectivas, em que o elemento aglutinador residiria “na homogeneidade das condutas (Woeringen), na indivisibilidade (Scwartz) ou na unidade de objecto (Merkel)  “

A outra via encontra-se ligada a uma construção teleológica do conceito e, atende antes a uma diminuição da gravidade revelada pela situação concreta, perante o concurso real de infracções, tentando encontrar a resposta no menor grau de culpa do agente.

A perspectiva teleológica é considerada, metodologicamente a melhor para resolver o problema, sendo que “quando se investiga o fundamento desta diminuição da culpa ele deve ir encontrar-se, como pela primeira vez claramente o formulou Kraushaar, no momento exógeno das condutas, na disposição exterior das coisas para o facto. Pelo que pressuposto da continuação criminosa será, verdadeiramente, a existência de uma relação que, de fora, e de maneira considerável, facilitou a repetição da actividade criminosa, tornando cada vez menos exigível ao agente que se comporte de maneira diferente, isto é, de acordo com o direito.”, desde que “se não trate de um agente com uma personalidade particularmente sensível a pressões exógenas.”

Elenca o mesmo Insigne Autor, como situações exteriores típicas da unidade criminosa da continuação, sem esgotar o domínio dessa continuação, e sendo sempre a “diminuição considerável da culpa”, como ideia fundamental, as seguintes:

“a) assim, desde logo, a circunstância de se ter criado, através da primeira actividade criminosa, uma certa relação, um acordo entre os sujeitos;

b) a circunstância de voltar a verificar-se uma oportunidade favorável à prática do crime, que já foi aproveitada ou que arrastou o agente para a primeira conduta criminosa;

            c) a circunstância da perduração do meio apto para realizar um delito, que se criou ou adquiriu com vista a executar a primeira conduta criminosa;

            d) a circunstância de o agente, depois de executar a resolução que tomara, verificar  que se lhe oferece a possibilidade de alargar o âmbito da sua actividade criminosa.”

            A conexão espacial e temporal das actividades continuadas, não assume papel de especial relevo, apenas podendo ter interesse quando puder afastar a conexão interior de ligação factual entre os diversos actos (derivando esta de a motivação de cada facto estar ligada à dos outros)

“Decisivo é, pelo contrário, que as diversas actividades preencham o mesmo tipo legal de crime, ou pelo menos, diversos tipos legais de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico: este será o limite de toda a construção.”

Como salientava Paulo Pinto de Albuquerque, no seu Comentário do Código Penal, edição, Universidade Católica Editora, p. 139, nota 29: “A diminuição sensível da culpa só tem lugar quando a ocasião favorável à prática do crime se repete sem que o agente tenha contribuído para essa repetição[…]. Isto é, quando a ocasião se proporciona ao agente e não quando ele activamente a provoca.”

            Por outro lado, como salientava Eduardo Correia, (ibidem), “de o mesmo bem jurídico não se pode falar quando se esteja perante tipos legais que protejam bens eminentemente pessoais; caso em que, havendo um preenchimento plúrimo de um tipo legal desta natureza, estará excluída toda a possibilidade de se falar em continuação criminosa”.

O artigo 30º do C.Penal, fundamentou-se no artº 33º do Projecto da Parte Geral do Código Penal de 1963 que acolhia esta doutrina, tendo sido aprovado na 13ª sessão da Comissão revisora em 8 de Fevereiro de 1964, um último período para o nº 2 donde constava: “A continuação não se verifica porém, quando são violados bens jurídicos inerentes à pessoa, salvo tratando-se da mesma vítima.”

Diz Maia Gonçalves em anotação ao artigo 30º no seu Código Penal Português, anotado e comentado, 18ª edição, p. 154, nota 1, que:”A supressão deste período não significou que outra solução devesse ser adoptada, mas tão só que o legislador considerou a afirmação desnecessária, por resultar da doutrina, e até inconveniente, por a lei não dever entrar demasiadamente no domínio que à doutrina deve ser reservado.

            A revisão do Código levada a efeito pelo Dec-Lei nº 48/95, de 15 de Março, manteve intacto o texto do desta artigo, mas a que foi levada a efeito pela Lei nº 59/2007, de 4 de Setembro, introduzindo o nº 3 reproduziu o referido dispositivo que foi rejeitado na versão originária.”

Na verdade estabelecia o nº 3 do artº 30º

“3. O disposto no número anterior não abrange os crimes praticados contra bens eminentemente pessoais, salvo tratando-se da mesma vítima.”

            Contudo, o aditamento constante deste nº 3 não exclui, antes continua a pressupor a verificação dos requisitos do crime continuado,  

Como se considerou no Acórdão. deste Supremo e desta Secção, de 01-10-2008, Proc. n.º 2872/08, a alteração legislativa em causa é, pois, pura tautologia, de alcance limitado ou mesmo nulo, desnecessária, na medida em que é reafirmação do que do antecedente se entendia ao nível deste STJ, ou seja, de que existe crime continuado quando a violação plúrima do mesmo bem jurídico eminentemente pessoal é referida à mesma pessoa e cometida num quadro em que, por circunstâncias exteriores ao agente, a sua culpa se mostre consideravelmente diminuída, não podendo prescindir-se da indagação casuística dos respectivos requisitos.

Esse aditamento não permite, pois, uma interpretação perversa em termos de uma violação plúrima de bens eminentemente pessoais em que a ofendida é a mesma pessoa se reconduzir ao crime continuado, afastando-se um concurso real (cf. Ac. do STJ de 08-11-2007, Proc. n.º 3296/07 - 5.ª, acessível in www.dgsi.pt); só significa que este deve firmar-se se esgotantemente se mostrarem preenchidos os seus pressupostos enunciados no n.º 2, de que se não pode desligar numa interpretação sistemática e global do preceito.

Interpretação em contrário seria até, manifestamente, atentatória da CRP, restringindo a um limite inaceitável o respeito pela dignidade humana, violando o preceituado no seu art. 1.º, comprimindo de forma intolerável direitos fundamentais, em ofensa ao disposto no art. 18.º da CRP. Uma interpretação assim concebida da norma do n.º 3 aditado levaria a que se houvesse de entender que o legislador não soube exprimir-se convenientemente, havendo que atalhar-lhe o pensamento.

Aliás, se se considerasse, que se verifica circunstancialismo exterior ao repetido sucumbir, nem por isso deixava de haver diminuição da culpa do arguido e, de forma considerável, nas circunstâncias concretas da sua actuação.

A culpa do arguido é mais acentuada, mais considerável, decorrente dessa relação de natureza idêntica à familiar, com a menor e sua mãe, em que era especialmente exigível ao arguido, por virtude da ascendência que tinha sobre a mesma menor com quem privava em termos familiares, que, na ausência da mãe desta, zelasse pela defesa da menor, de forma a dela cuidar e proteger, nomeadamente de quaisquer ataques aos seus direitos fundamentais.

Como salienta Maia Gonçalves (ibidem, p. 649), “atente-se mais em que, havendo pluralidade de acções naturalísticas e tratando-se de uma só vítima, normalmente não haverá crime continuado, mas concurso de crimes, já que em regra não haverá relevante solicitação exterior a diminuir a culpa do agente, mas desviante personalidade deste a determinar o seu comportamento criminoso.”

E, como referia Paulo Pinto de Albuquerque, no seu Comentário do Código Penal. 1ªedição, 139, nota 28: “A ciência médica e a experiência da vida mostram que o abuso sexual repetido de uma criança provoca uma tortura psicológica na criança que vive no pavor constante de vir a ser mais uma vez abusada pelo seu abusador. A consciência, o aproveitamento e até o gozo do abusador com esta tortura psicológica são incompatíveis com a afirmação de uma culpa diminuída do agente abusador. Quando for esse o caso, não há diminuição sensível da culpa, ao contrário há uma culpa agravada do crime”

Mas,, de forma explícita, e assim se evitando eventuais querelas doutrinais e interpretativas, veio a Lei nº 32/2010, de 2 de Setembro, explicitar de forma clara e inequívoca no seu nº3, outra  redacção:

“O disposto nos número anterior não abrange os crimes praticados contra bens eminentemente pessoais.”

Hoje, como salienta Paulo Pinto de Albuquerque (ibidem, 2ª edição), p.160, nota 22, “O crime continuado, fica pois, restringido à violação plúrima de bens não eminentemente pessoais, independentemente de haver uma ou mais vítimas.”

Inexistem pois os pressupostos de crime continuado, sendo pertinente neste aspecto a conclusão do acórdão recorrido quando refere: “Considerando que o ilícito de abuso sexual de crianças, […], atenta contra bem jurídico eminentemente pessoal, qual seja a autodeterminação sexual da vítima, está legalmente afastada a possibilidade de o arguido ter praticado um só crime continuado.”.

Por conseguinte, e, pelo exposto, assiste, razão ao Recorrente quando conclui:

“Comete 22 crimes de ““abuso sexual de crianças”, agravados, p. e p. nas disposições do arts. 171º/1 e 177º/1-b) do Código Penal, quem (verificados todos os elementos objectivos e subjectivos):

-Durante cerca de dois anos, em, pelo menos, vinte e duas ocasiões, na sala ou no quarto da sua residência, aproveitando as situações em que a ofendida, de 12 e 13 anos de idade, afilhada da sua companheira, que trabalhava por turnos (assim como a sua mãe, que morava no mesmo prédio), ia a sua casa para jantar e se encontrava apenas na sua presença, a apalpava nas pernas, nos seios e na zona da vagina, isto por cima da roupa;

Após o que lhe tirava roupa da cintura para baixo, o que ele fazia também, e voltava a apalpá-la, esfregava o seu corpo nu no corpo dela e friccionava o seu pénis erecto na sua vulva, procurando penetrar a sua vagina, o que apenas não lograva concretizar porque ela não o permitia, empurrando-o para trás;

Sendo que numa dessas ocasiões, procurara penetrar o ânus da ofendida, com o seu pénis erecto, o que não concretizara apenas porque ela lhe pedira para parar, porque lhe doía;

E, pelo menos numa das situações, ejaculara na zona da vagina da ofendida. “

<>

            A questão da medida da pena

Alega o Recorrente:

B)-Medida da pena.

            B1)-Penas parcelares.  

1

            Perante:

            -As circunstâncias apuradas, algumas já evidenciadas;

-A natureza, significação e “intensidade” sexual dos actos cometidos;

            -O dolo intenso;

            -A ausência de confissão;

            -A falta de actos de arrependimento;

            -As prementes exigências da prevenção geral;

            -A amplitude a moldura penal-abstracta (01 ano e 04 meses a 10 anos e 08 meses de prisão);

            -A ausência de antecedentes criminais;

            -A integração familiar e social.

1.1

            Julgamos que in concreto se impõe, porque justas, criteriosas e adequadas às finalidades da punição, a aplicação das seguintes penas de prisão parcelares:

            -03 anos  de prisão por cada um de vinte dos crimes em causa;

-04 anos de prisão por cada um dos dois restantes crimes em questão, relativos às situações em que o arguido ejaculou (pelo menos, uma vez) na zona da vagina e em que procurou introduzir o seu pénis erecto no ânus da ofendida.

1.1.1

            Assim o admite o princípio da culpa e da reprovação penal;

Assim o determinam as exigências da prevenção, especial e geral (à luz dos critérios tipológicos do art. 71º do Código Penal), entendida esta de forma integrada pela ideia de que só a imposição de penas justas e merecidas reforçam o sentimento de adesão íntima dos membros da comunidade aos valores jurídico-penais.

Analisando:

Dispõe o artº 70º do C.Penal sobre o critério de escolha da pena que, se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.

       “Traduz vincadamente o pensamento legislativo do Código de reagir contra penas institucionalizadas ou detentivas, sempre que os fins das penas possam atingir-se por outra via” – MAIA GONÇALVES, Código Penal Português, anotado e comentado, 18ª edição, p. 266. Nota 2.

            Mas a redacção do artº 70º não altera a filosofia da preferência fundamentada da pena não detentiva que a versão originária já consagrava, justificando tal preferência “sempre que ela se mostre suficiente para promover a recuperação social do delinquente e satisfaça as exigências de reprovação e de prevenção do crime.”

            “Trata-se da consagração da “superioridade político-criminal da pena de multa face à pena de prisão no tratamento da pequena e média criminalidade” (FIGUEIREDO DIAS, Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime, Lisboa, 1993, p. 117).”

E, como referia ROBALO CORDEIRO, “Escolha e Medida da Pena”, in Jornadas de Direito Criminal, Publicação do Centro de Estudos Judiciários, págs 237 e segs e, citado por Maia Gonçalves in ob. citada, p. 247, nota 3, “...determinar se as medidas não institucionais são suficientes para promover a recuperação social do delinquente e dar satisfação às exigências de reprovação e de prevenção do crime não é uma operação abstracta ou atitude puramente intelectual, mas fruto de uma avaliação das circunstâncias de cada situação concreta.”

 

A aplicação de penas e de medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade – artº 40º nº 1 do C.Penal.

Escrevia CESARE BECARIA –Dos delitos e das Penas, tradução de JOSÉ DE FARIA COSTA, Serviço de Educação, Fundação Calouste Gulbenkian, p. 38, sobre a necessidade da pena que “Toda a pena que não deriva da absoluta necessidade – diz o grande Monstesquieu – é tirânica.”  (II); - embora as penas produzam um bem, elas nem sempre são justas, porque, para isso, devem ser necessárias, e uma injustiça útil não pode ser tolerada pelo legislador que quer fechar todas as portas à vigilante tirania...” (XXV)

Mas, como ensinava EDUARDO CORREIA, Para Uma Nova Justiça Penal, Ciclo de Conferências no Conselho Distrital do Porto da Ordem dos Advogados, Livraria Almedina, Coimbra, p. 16, “Ao contrário do que pretendia Beccaria, uma violação ou perigo de violação de bens jurídicos não pode desprender-se das duas formas de imputação subjectiva, da responsabilidade, culpa ou censura, que lhe correspondem.

E neste domínio tem-se verificado uma evolução que seguramente não nos cabe aqui, nem é possível, desenvolver.

Essa solução está, de resto, ligada ao quadro que se vem tendo do homem, às necessidades da sociedade que o integra, aos fins das penas a que se adira e à solidariedade que se deve a todos, ainda que criminosos.”

As penas como instrumentos de prevenção geral são “instrumentos político-criminais destinados a actuar (psiquicamente) sobre a globalidade dos membros da comunidade, afastando-os da prática de crimes através das ameaças penais estatuídas pela lei, da realidade da aplicação judicial das penas e da efectividade da sua execução”, surgindo então a prevenção geral positiva ou de integração “como forma de que o Estado se serve para manter e reforçar a confiança da comunidade na validade e na força da vigência das suas normas de tutela de bens jurídicos e, assim, no ordenamento jurídico-penal; como instrumento por excelência destinado a revelar perante a comunidade a inquebrantabilidade da ordem jurídica, pese todas as suas violações que tenham tido lugar (,v. FIGUEIREDO DIAS, in Temas Básicos da Doutrina Penal, Coimbra Editora, 2001,p. 84)

Ensina o mesmo Ilustre Professor  –As Consequências Jurídicas do Crime, §55 - que “Só finalidades relativas de prevenção geral e especial, e não finalidades absolutas de retribuição e expiação, podem justificar a intervenção do sistema penal e conferir fundamento e sentido às suas reacções específicas. A prevenção geral assume, com isto, o primeiro lugar como finalidade da pena. Prevenção geral, porém, não como prevenção geral negativa, de intimidação do delinquente e de outros potenciais criminosos, mas como prevenção positiva ou de integração, isto é, de reforço da consciência jurídica comunitária e do seu sentimento de segurança face à violação da norma ocorrida: em suma, como estabilização contrafáctica das expectativas comunitárias na validade e vigência da norma ‘infringida’”

Por outro lado, a pena também tem uma função de prevenção geral negativa ou de intimidação, como forma estadualmente acolhida de intimidação das outras pessoas pelo mal que com ela se faz sofrer ao delinquente e que, ao fim, as conduzirá a não cometerem factos criminais. Porém, “não constitui todavia por si mesma uma finalidade autónoma de pena apenas podendo” surgir como um efeito lateral (porventura desejável) da necessidade de tutela dos bens jurídicos.” (Figueiredo Dias, Direito Penal –Questões fundamentais – A doutrina geral do crime - Universidade de Coimbra – Faculdade de Direito, 1996,, p. 118)

“1) Toda a pena serve finalidades exclusivas de prevenção, geral e especial. 2) A pena concreta é limitada, no seu máximo inultrapassável, pela medida da culpa. 3) dentro deste limite máximo ela é determinada no interior de uma moldura de prevenção geral de integração, cujo limite superior é oferecido pelo ponto óptimo de tutela dos bens jurídicos e cujo limite inferior é constituído pelas exigências mínimas de defesa do ordenamento jurídico. 4) Dentro desta moldura de prevenção geral de integração a medida da pena é encontrada em função de exigências de prevenção especial, em regra positiva ou de socialização, excepcionalmente negativa ou de intimidação ou segurança individuais.

A moldura de prevenção, comporta ainda abaixo do ponto óptimo ideal outros em que a pressuposta tutela dos bens jurídicos “é ainda efectiva e consistente e onde portanto a pena pode ainda situar-se sem que perca a sua função primordial de tutela de bens jurídicos. Até se alcançar um limiar mínimo – chamado de defesa do ordenamento jurídico – abaixo do qual já não é comunitariamente suportável a fixação da pena sem se pôr irremediavelmente em causa a sua função tutelar de bens jurídicos.” (idem, Temas Básicos…, p. 117,  121):

Tal desiderato sobre as penas integra o programa político-criminal legitimado pelo artº 18º nº 2 da Constituição da República Portuguesa e que o legislador penal acolheu no artigo 40º  do Código Penal, estabelecendo contudo, o nº 2 que em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa.

O artigo 71° do Código Penal estabelece o critério da determinação da medida concreta da pena, dispondo que a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevencão.

O ponto de partida das finalidades das penas com referência à tutela necessária dos bens jurídicos reclamada pelo caso concreto e com significado prospectivo, encontra-se nas exigências da prevenção geral positiva ou de integração, em que a finalidade primária da pena é o restabelecimento da paz jurídica comunitária posta em causa pelo comportamento criminal.

O ponto de chegada está nas exigências de prevenção especial, nomeadamente da prevenção especial positiva ou de socialização, ou, porventura a prevenção negativa  relevando de advertência individual ou de segurança ou inocuização, sendo que a função negativa da prevenção especial, se assume por excelência no âmbito das medidas de segurança.

Todavia em caso algum pode haver pena sem culpa ou acima da culpa  (ultrapassar a medida da culpa), pois que o princípio da culpa, como salienta o mesmo Insigne Professor – in ob. cit. § 56 -, “não vai buscar o seu fundamento axiológico a uma qualquer concepção retributiva da pena, antes sim ao princípio da inviolabilidade da dignidade pessoal. A culpa é condição necessária, mas não suficiente, da aplicação da pena; e é precisamente esta circunstância que permite uma correcta incidência da ideia de prevenção especial positiva ou de socialização.”

Ou, em síntese: A verdadeira função da culpa no sistema punitivo reside efectivamente numa incondicional proibição de excesso; a culpa não é fundamento de pena, mas constitui o seu limite inultrapassável: o limite inultrapassável de todas e quaisquer considerações ou exigências preventivas – sejam de prevenção geral positiva de integração ou antes negativa de intimidação, sejam de prevenção especial positiva de socialização ou antes negativa de segurança ou de neutralização. A função da culpa, deste modo inscrita na vertente liberal do Estado de Direito, é por outras palavras, a de estabelecer o máximo de pena ainda compatível com as exigências de preservação da dignidade da pessoa e de garantia do livre desenvolvimento da sua personalidade nos quadros próprios de um Estado de Direito democrático. E a de, por esta via, constituir uma barreira intransponível ao intervencionismo punitivo estatal e um veto incondicional aos apetites abusivos que ele possa suscitar.”- idem, ibidem p. 109 e ss.

É no âmbito do exposto, que este Supremo Tribunal vem interpretando sobre as finalidades e limites da pena de harmonia com a actual dogmática legal.

Como resulta, v. g. do Ac. deste Supremo de  15-11-2006, Proc. n.º 3135/06 - 3.ª Secção,  o modelo de prevenção acolhido pelo CP - porque de protecção de bens jurídicos - determina que a pena deva ser encontrada numa moldura de prevenção geral positiva e que seja definida e concretamente estabelecida também em função das exigências de prevenção especial ou de socialização, não podendo, porém, na feição utilitarista preventiva, ultrapassar em caso algum a medida da culpa.

Dentro desta medida de prevenção (protecção óptima e protecção mínima - limite superior e limite inferior da moldura penal), o juiz, face à ponderação do caso concreto e em função das necessidades que se lhe apresentem, fixará o quantum concretamente adequado de protecção, conjugando-o a partir daí com as exigências de prevenção especial em relação ao agente (prevenção da reincidência), sem poder ultrapassar a medida da culpa.

As circunstâncias e critérios do art. 71.º do CP devem contribuir tanto para co-determinar a medida adequada à finalidade de prevenção geral (a natureza e o grau de ilicitude do facto impõe maior ou menor conteúdo de prevenção geral, conforme tenham provocado maior ou menor sentimento comunitário de afectação dos valores), como para definir o nível e a premência das exigências de prevenção especial (as circunstâncias pessoais do agente, a idade, a confissão, o arrependimento), ao mesmo tempo que também transmitem indicações externas e objectivas para apreciar e avaliar a culpa do agente.

As imposições de prevenção geral devem, pois, ser determinantes na fixação da medida das penas, em função de reafirmação da validade das normas e dos valores que protegem, para fortalecer as bases da coesão comunitária e para aquietação dos sentimentos afectados na perturbação difusa dos pressupostos em que assenta a normalidade da vivência do quotidiano.

Porém tais valores determinantes têm de ser coordenados, em concordância prática, com outras exigências, quer de prevenção especial de reincidência, quer para confrontar alguma responsabilidade comunitária no reencaminhamento para o direito do agente do facto, reintroduzindo o sentimento de pertença na vivência social e no respeito pela essencialidade dos valores afectados.

O artigo 71° do Código Penal estabelece o critério da determinação da medida concreta da pena, dispondo que a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção.

O n ° 2 do artigo 71º do Código Penal, explicita, que:

Na determinação concreta da pena o tribunal atende a todas as circunstâncias que não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou, contra ele, considerando nomeadamente:

a) O grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente;

b) A intensidade do dolo ou da negligência:

c) Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram;

d) As condições pessoais do agente e a sua situação

e) A conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime;

f) A falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena

Refere o acórdão recorrido:    

“O crime de abuso sexual de crianças, previsto e punido pelo art. 171, n.º1 do Código Penal, cometido pelo arguido, em autoria material e na forma consumada, é punido com pena de prisão de um a oito anos.

Todavia, como o crime foi cometido com aproveitamento de uma relação familiar e de dependência económica, há lugar à agravação prevista na alínea b) do n.º1 do art. 177.º do Código Penal, ou seja, a pena de prisão prevista no citado art. 171, n.º1 do Código Penal é agravada de um terço nos seus limites mínimos e máximo.

Aplicando, então, a agravação prevista no art. 177, n.º1, alínea b) do Código Penal, temos que a moldura penal abstractamente aplicável ao arguido pelo cometimento do ilícito de abuso sexual de crianças, na forma consumada, tem por limite mínimo a pena de 1 (um) ano e 4 (quatro) meses de prisão e por limite máximo a pena de 10 (dez) anos e 8 (oito) meses de prisão.

Definida a moldura abstractamente aplicável ao caso, há que determinar a medida concreta da pena.

Com efeito, o n.º2 do aludido art. 71.º do Código Penal, estabelece que “na determinação concreta da pena o tribunal atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo legal de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele.”

Para avaliar da medida da pena há que indagar, no caso concreto, factores que se prendam com o facto praticado e com a personalidade do agente que o cometeu.           

Como factores atinentes ao facto e por forma a efectuar-se uma graduação da ilicitude do facto, podem referir-se o modo de execução deste, o grau de ilicitude e a gravidade das suas consequências, a intensidade do dolo, o grau de perigo criado e o seu modo de execução.

Para a medida da pena e da culpa, o legislador considera como relevantes os sentimentos manifestados na preparação do crime, os fins ou motivos que o determinaram, o grau de violação dos deveres impostos ao agente, as circunstâncias de motivação interna e os estímulos externos.

No que tange ao agente, o legislador manda atender às condições pessoais do mesmo, à sua condição económica, à gravidade da falta de preparação para manter uma conduta ilícita e a consideração do comportamento anterior ao crime.

Descendo ao caso concreto, para a determinação da pena concreta a aplicar ao arguido, por reporte a cada um dos crimes por si cometidos, como efeito agravante, temos que valorar:

- O elevado desígnio delituoso do arguido (já que o mesmo agiu com culpa intencional, na sua modalidade mais gravosa, ou seja, com dolo);

- A clara consciência da ilicitude da actuação;

- A personalidade do arguido, plasmada no seu comportamento, fortemente alheada da necessidade de respeito pelo valor jurídico violado;

- A intensidade do dolo, que é directo, pois que o arguido representou os factos como crime e agiu com a intenção de os concretizar;

- As exigências de prevenção geral, já que as condutas assumidas pelo arguido, para além de fortemente censuráveis e reprováveis, são geradoras de um acentuado alarme social, pela sua gravidade, o que é revelador da necessidade de reafirmação da norma jurídica repetidamente violada junto da comunidade, de modo a corresponder às expectativas desta; 

- O grau de ilicitude do facto, que é elevado, tomando em consideração a idade da criança, o modo da execução dos factos (valorando-se aqui o tipo e natureza dos actos sexuais de relevo), a reiteração das condutas criminosas (não menos de 20), o período temporal longo em que as mesmas foram praticadas;

- As consequências das condutas do arguido, designadamente ao nível do estado emocional e psíquico da vítima; e,

- A ausência de arrependimento do arguido que, em declarações prestadas em 1º interrogatório judicial (reproduzidas em julgamento, onde se remeteu ao silêncio no exercício de um direito que lhe assiste), negou ter abusado sexualmente da ofendida DD, o que revela que o mesmo não interiorizou o desvalor da sua conduta. 

Como efeito atenuante da pena concreta a aplicar ao arguido, por reporte a cada ilícito, temos que considerar as seguintes circunstâncias:

            - A ausência de antecedentes criminais registados, o que revela que o arguido, conduziu a sua vida de modo exemplar, em conformidade ao direito e às leis pelas quais se rege a sociedade. Doutro modo, os actos pelos quais o arguido ora vai ser condenado assumem um carácter isolado;

            - A positiva inserção social e familiar do arguido;

- O positivo comportamento do arguido em meio institucional, já que no estabelecimento prisional onde se encontra em prisão preventiva) vem assumindo uma postura normativa e ajustada, participando nas actividades propostas e frequentando o Curso EFA 2/3 de forma a habilitar-se com o 9º ano português;

            - A positiva trajectória de vida do arguido, marcado por um global ajustamento e inserção social nos diversos contextos em que se envolveu:

            - Os hábitos laborais do arguido e o positivo plano futuro que traça para o período pós-reclusão.

Sopesados os circunstancialismos acima enunciados e salvaguardas as finalidades da pena e as exigências de prevenção que se fazem sentir no caso concreto, temos por justa, adequada e proporcional, a aplicação ao arguido de uma pena de 6 (seis) anos de prisão, pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de abuso sexual de crianças, previsto e punido pelo art. 171, n.º1 do Código Penal, com a agravação da alínea b) do n.º1 do art. 177.º do mesmo diploma legal.”

Tendo em conta:

A elevada gravidade dos factos e circunstâncias da infracção:

 A situação delituosa ocorreu não menos de vinte vezes, sempre nos termos descritos e mediante o aproveitamento da ausência (da residência) da companheira do arguido, sendo que em data concreta que não se logrou apurar, mas no quadro temporal referido em 9), no seguimento dos contactos físicos descritos em 9) a 11), o arguido procurou penetrar o ânus da ofendida DD com o seu pénis erecto, todavia não o concretizou, pois que a mesma lhe pediu para parar, porque lhe doía.  Em todas as situações, o arguido não usou preservativo. Em algumas das situações, o arguido ejaculou na zona da vagina da ofendida.

A gravidade das consequências:

Em consequência directa e necessária da actuação do arguido sobre a ofendida, esta sofreu desgosto, aborrecimentos e revolta.

Tornou-se menos comunicativa e desinteressada, quer na escola, quer nos contactos com os seus familiares e amigos.

Sofreu perturbações do sono e ficou transtornada, sendo frequentes os pesadelos durante noite, acordando aos gritos, por vezes, exclamando “para!... para!...”

Em razão disso passou a dormir diariamente com a sua mãe, quando antes apenas o fazia esporadicamente.

Sente vergonha e vexame, pois que o assunto é comentado pelas pessoas conhecidas, nomeadamente na aldeia onde habitualmente passa os seus fins-de-semana.

 A ofendida DD só contou à sua progenitora o sucedido por ter tido um atraso no período menstrual e ter receado estar grávida do arguido, e não antes por o arguido lhe ter dito que se contasse a alguém o sucedido ninguém acreditaria nela.

A específica intensidade do dolo:

Ao actuar da forma descrita, o arguido agiu de forma livre, deliberada e consciente, com o propósito concretizado de praticar actos sexuais de relevo com a ofendida DD, com idade inferior a catorze anos de idade, bem sabendo que punha em causa o livre desenvolvimento da personalidade da mesma na esfera sexual

. Apesar de saber que a conduta que protagonizou ofendia os mais elementares princípios da moral sexual e atentava contra a liberdade de determinação sexual da menor e o seu são desenvolvimento, bem sabendo a idade da mesma.

. . O arguido agiu sempre de forma livre, voluntária e consciente, sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei Penal.O que, ainda assim, não o demoveu de actuar da forma descrita.

           

Os fins ou motivos determinantes e sentimentos manifestados na prática dos crimes:

. O arguido agiu ainda e sempre movido pela excitação e satisfação do seu instinto lascivo.

 À medida que praticava os actos descritos, o arguido, em algumas ocasiões, dizia à ofendida que aquilo “era para ela aprender.”

Para a prática dos factos descritos, o arguido aproveitou-se do fácil contacto que tinha com a ofendida DD, fruto das boas relações familiares existentes e da habitualidade da permanência da mesma na sua residência, bem como da sua dependência económica em relação a si e à sua companheira, ao nível da alimentação

A condição pessoal e económica do arguido:

O arguido AA é natural de Angola e o mais velho de três filhos de um casal de situação socioeconómica humilde mas estável, exercendo o seu pai as funções de responsável pela pecuária e agricultura do Estabelecimento Prisional de Malanje e a sua mãe pela gestão do quotidiano da família. O seu processo de desenvolvimento e formação decorreu no seio da família de origem, de forma harmoniosa, contudo foi marcado pela morte precoce da sua progenitora, quando o arguido contava apenas seis anos de idade, vítima de um acidente de viação.Apesar deste facto, o seu progenitor, bem como as suas posteriores companheiras, sempre lhe proporcionaram o acompanhamento aos diversos níveis.

Foi em Malanje que o arguido AA iniciou a escolaridade obrigatória, acusando um percurso regular a este nível, sem problemas de integração e/ou rendimento escolar.

Nos seus tempos livres, sempre se dedicou à prática desportiva, designadamente nas modalidades de futebol e ginástica, bem como ao convívio com os seus familiares e amigos.

Após terminar o 8º ano de escolaridade, e com aproximadamente 16 anos de idade, o arguido AA deslocou-se para a cidade de Luanda, com o objectivo de dar continuidade aos seus estudos, dada a instabilidade sentida em Malanje por causa da guerra em curso. Nesta altura ficou a viver integrado no agregado familiar de um amigo do seu pai, também ele trabalhador dos serviços prisionais, completando o 9º ano de escolaridade com sucesso.

Posteriormente abandonou os estudos, ficando alguns anos desempregado, já que mais uma vez o clima de guerra sentido no país não facilitava a sua inserção a este nível, apesar de permanecer em Luanda, localidade onde haveria maior oferta de emprego .Foi neste contexto que se deu a sua iniciação sexual, já após a maioridade, referindo o mesmo que a informação obtida a este nível foi no seio do grupo de amigos, já que não seria na altura usual falar com os progenitores sobre assuntos desta natureza.

Durante o período em que permaneceu em Luanda, o arguido AA refere duas relações afectivas, de curta duração e sem grande impacto no seu quotidiano.

Em 1996, o arguido AA decidiu emigrar para Bragança - Portugal, localidade onde viviam há já vários anos os seus tios IIe JJ, que se dispuseram a acolhê-lo e a dar-lhe ocupação profissional. Passou a residir com estes e a trabalhar, primeiro com uma máquina de ceifar que estes detinham, mais tarde no corte comercialização de madeira, e, mais recentemente na empresa “........- C........., Lda.”, primeiro como operador de máquinas e posteriormente como chefe de equipa de trabalho.

Paralelamente, em 2009, o arguido AA conhece e inicia uma relação afectiva com GG, com quem há aproximadamente sete anos vive em união de facto, tendo em 2013 nascido o primeiro e único filho do casal, actualmente com quase três anos de idade.

A partir deste momento o arguido AA autonomizou-se do agregado familiar dos tios, passando a viver só com o seu agregado constituído, em apartamento arrendado no Bairro de S. Sebastião em Bragança.

No meio social de residência, o arguido AA beneficiava de uma imagem social ajustada, não sendo alvo de estigmatização e/ou rejeição, sendo identificado como um individuo com hábitos de trabalho e afável.

À data a que se reportam os factos que deram origem ao presente processo judicial penal, o arguido AA vivia com a companheira e o filho de ambos em apartamento arrendado de tipologia ... sito na Rua ......, em Bragança, zona urbana não conotada com problemas sociais específicos.

Até o ano 2014, o arguido AA encontrava-se a trabalhar na empresa “........- C........, Lda.”, propriedade dos seus tios, como chefe de equipa.

A sua companheira também trabalhava desde agosto de 2014, de forma regular, na Obra Social HH.

A partir do mês Novembro de 2014, o arguido AA ficou desempregado, dado a empresa para a qual trabalhava atravessar um período de dificuldades económicas, pelo que passou a dedicar-se à criação do seu próprio negócio, tendo elaborado e apresentado um projecto para financiamento de um Snack-Bar, a abrir na cidade de Bragança, projecto este que não chegou a executar dado a sua prisão.

O seu dia-a-dia era centrado desta forma, numa primeira fase, no exercício da sua actividade profissional e numa 2ª fase nos procedimentos necessários à concretização do seu próprio negócio.

Nos seus tempos livres dedicava-se sobretudo à família, nomeadamente ao acompanhamento do seu filho, sendo que às vezes tinha que garantir esta tarefa sozinho, dado que a sua companheira exercia a sua actividade profissional por turnos.

Havia uma relação de amizade e interajuda entre o agregado familiar do arguido e a mãe da ofendida DD (tia materna de GG, sua companheira), a qual trabalhava à noite e se encontrava divorciada, pelo que recorria a ao arguido e à sua companheira para o acompanhamento da menor.

O arguido AA refere o seu quotidiano como estável e a relação que mantinha com a companheira como harmoniosa.

Actualmente e desde 04.08.2015, o arguido AA encontra-se preso preventivamente à ordem dos presentes autos no Estabelecimento Prisional de Bragança.

Os seus familiares em Portugal sabem da sua situação jurídico-penal atual e dispõem-se a apoiá-lo no que vier a revelar-se necessário, partilhando tal como o arguido a sua indignação face o presente processo judicial.

Tem beneficiado do apoio da sua companheira, bem como dos seus tios, que o visitam com regularidade A companheira do arguido tem vivido com penosidade este período privativo de liberdade do companheiro, já que se encontra a criar sozinha o filho de ambos e a vítima e a mãe desta são seus familiares directos, facto que se tem repercutido no afastamento das relações entre estes membros da família.

O pai e os irmãos do arguido, que ainda vivem em Angola, desconhecem a sua actual reclusão, por opção do primeiro, já que considera que para estes seria uma grande vergonha a sua situação processual.

Em Bragança o presente processo judicial não teve reflexos negativos na imagem social do arguido, dado que os factos não são muito conhecidos da população brigantina.

Os elementos contactados que têm conhecimento da acusação denotaram alguma expectativa face ao desenvolvimento deste processo judicial, já que ficaram surpresos com este facto, não identificando o arguido AA como um possível agente de crimes desta natureza.

O comportamento anterior e posterior aos factos:

O arguido não possui antecedentes criminais registados.

Em meio institucional tem mantido um comportamento normativo e ajustado, participando nas actividades propostas e frequentando o Curso EFA 2/3 de forma a habilitar-se com o 9º ano português.

O arguido AA verbaliza vontade de em liberdade centrar a sua vida no acompanhamento dos que lhe são mais próximos, nomeadamente a companheira e o filho.

É também sua intenção retomar actividade profissional, por conta própria ou voltar a trabalhar com os seus tios.

O arguido AA ficou bastante surpreso com o seu envolvimento no presente processo judicial penal, evidenciando preocupação com a existência do mesmo, aguardando com expectativa o seu desfecho.

Salientou que o mesmo já teve um impacto muito negativo no seu quotidiano, já que se vê privado da sua família, bem como não pôde executar o projecto profissional que tinha em curso.

Denotou alguma indignação, referindo que sempre procurou agir de acordo com as normas socialmente aceites e que não se revê na acusação que contra si é formulada.

Em abstracto e relativamente a factos da mesma natureza dos subjacentes aos presentes autos, o arguido AA identifica a ilicitude e censurabilidade dos mesmos.

Embora apresente um discurso predominantemente autocentrado no que se refere ao impacto do processo, verbaliza reconhecer os danos causados a vítimas deste tipo de crimes, apesar de considerar que por vezes tais situações ocorrem pela expectativa das vítimas e seus familiares obterem benefícios económicos.

O arguido AA referiu que apenas consegue antecipar um desfecho positivo para o presente processo pelo que não consegue perspectivar a adesão a uma medida de execução na comunidade.

As exigências de prevenção geral são prementes, face à necessidade de protecção e defesa da dignidade e liberdade da pessoa na sua autodeterminação sexual, mormente quando crianças.

A prevenção especial é forte, apesar da delinquência primária, face às circunstâncias da infracção e necessidade de dissuasão da reincidência.

Intensa é a culpa, face à acção desvaliosa querida e assumida pelo arguido e o período de tempo em que decorreu.

Note-se que a ausência de confissão não é elemento, - nem pode ser - de valoração para a determinação da medida da pena, uma vez que o arguido é livre de se exprimir ou não, de harmonia com a sua vontade, perante os factos confessados, dimensão da dignidade e liberdade de afirmação pessoal da pessoa. –v. artº 26º nº 1, da Constituição da República. Vide aliás artº Artigo 343.º, nº 1,  do CPP, sobre Declarações do arguido: “O presidente informa o arguido de que tem direito a prestar declarações em qualquer momento da audiência, desde que elas se refiram ao objecto do processo, sem que no entanto a tal seja obrigado e sem que o seu silêncio possa desfavorecê-lo. “

Ponderando o exposto e os limites legais abstractos da pena aplicável, de 1 ano e 4 meses a 10 anos e 8 meses de prisão; conclui-se que se revela justa a pena de dois anos e três meses de prisão por cada um dos vinte crimes em causa; e de  3 anos  de prisão por cada um dos dois restantes crimes em questão, relativos às situações em que o arguido ejaculou (pelo menos, uma vez) na zona da vagina e em que procurou introduzir o seu pénis erecto no ânus da ofendida.

            Sobre a pena única

            Refere o Recorrente

            Considerando:

            Todas as circunstâncias já sopesadas;

            Os factos na sua globalidade; e

            A personalidade do arguido.

            Operando o cúmulo jurídico das penas parcelares, adentro da moldura do concurso, deverá o arguido, ao abrigo do disposto no art. 77º do Código Penal, ser condenado na pena única de 09 anos de prisão.

Como se sabe, o artigo 77º nº 1 do Código Penal, ao estabelecer as regras da punição do concurso, dispõe: “Quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa única pena. Na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente.”

E, estabelece o nº 2 que: A pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos tratando-se de pena de prisão e 900 dias tratando-se de pena de multa: e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes.

Não tendo o legislador nacional optado pelo sistema de acumulação material (soma das penas com mera limitação do limite máximo) nem pelo da exasperação ou agravação da pena mais grave (elevação da pena mais grave, através da avaliação conjunta da pessoa do agente e dos singulares factos puníveis, elevação que não pode atingir a soma das penas singulares nem o limite absoluto legalmente fixado), é forçoso concluir que com a fixação da pena conjunta se pretende sancionar o agente, não só pelos factos individualmente considerados, mas também e especialmente pelo respectivo conjunto, não como mero somatório de factos criminosos, mas enquanto revelador da dimensão e gravidade global do comportamento delituoso do agente, visto que a lei manda se considere e pondere, em conjunto (e não unitariamente), os factos e a personalidade do agente: como doutamente diz Figueiredo Dias (Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime, págs. 290-292), como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado.

Importante na determinação concreta da pena conjunta será, pois, a averiguação sobre se ocorre ou não ligação ou conexão entre os factos em concurso, a existência ou não de qualquer relação entre uns e outros, bem como a indagação da natureza ou tipo de relação entre os factos, sem esquecer o número, a natureza e gravidade dos crimes praticados e das penas aplicadas, tudo ponderando em conjunto com a personalidade do agente referenciada aos factos, tendo em vista a obtenção de uma visão unitária do conjunto dos factos, que permita aferir se o ilícito global é ou não produto de tendência criminosa do agente, bem como fixar a medida concreta da pena dentro da moldura penal do concurso.- (Ac. deste Supremo e desta Secção de 06-02-2008, in Proc. n.º 4454/07

Será, assim, o conjunto dos factos que fornece a gravidade do ilícito global perpetrado, )sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique. Na avaliação da personalidade – unitária – do agente relevará, sobretudo, a questão de saber se o conjunto dos factos é recondutível a uma tendência (ou eventualmente mesmo a uma «carreira») criminosa, ou tão-só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade: só no primeiro caso, não já no segundo, será cabido atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta. De grande relevo será também a análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente (exigências de prevenção especial de socialização).

Importa, contudo, realçar que na determinação da medida das penas parcelar e única não é admissível uma dupla valoração do mesmo factor com o mesmo sentido: assim, se a decisão faz apelo à gravidade objectiva dos crimes está a referir-se a factores de medida da pena que já foram devidamente equacionados na formação das penas parcelares.

Por outro lado, afastada a possibilidade de aplicação de um critério abstracto, que se reconduz a um mero enunciar matemático de premissas, impende sobre o juiz um especial ónus de determinar e justificar quais os factores relevantes de cada operação de formação de pena conjunta, quer no que respeita à culpa em relação ao conjunto dos factos, quer no que respeita à prevenção, quer, ainda, no que concerne à personalidade e factos considerados no seu significado conjunto.

Um dos critérios fundamentais em sede deste sentido de culpa, numa perspectiva global dos factos, é o da determinação da intensidade da ofensa e dimensão do bem jurídico ofendido, sendo certo que assume significado profundamente diferente a violação repetida de bens jurídicos ligados à dimensão pessoal, em relação a bens patrimoniais. Por outro lado, importa determinar os motivos e objectivos do agente no denominador comum dos actos ilícitos praticados e, eventualmente, dos estados de dependência, bem como a tendência para a actividade criminosa expressa pelo número de infracções, pela sua permanência no tempo, pela dependência de vida em relação àquela actividade.

Na avaliação da personalidade expressa nos factos é todo um processo de socialização e de inserção, ou de repúdio pelas normas de identificação social e de vivência em comunidade, que deve ser ponderado. (v. Ac. deste Supremo e desta 3ª Secção, de 09-01-2008 in Proc. n.º 3177/07).

O concurso de crimes tanto pode decorrer de factos praticados na mesma ocasião, como de factos perpetrados em momentos distintos, temporalmente próximos ou distantes. Por outro lado, o concurso tanto pode ser constituído pela repetição do mesmo crime, como pelo cometimento de crimes da mais diversa natureza. Por outro lado ainda, o concurso tanto pode ser formado por um número reduzido de crimes, como pode englobar inúmeros crimes.

A decisão recorrida.:nada referiu a propósito, porque obviamente nada tinha a referir, já que condenou por um único crime e por conseguinte, aplicou uma só pena.

Tendo em conta:

 - A natureza homogénea e gravidade dos crimes e penas parcelares ora aplicadas, o período temporal do cometimento dos referidos crimes:

- Que os factos se encontram interligados, por resoluções e meio de actuação idênticos, em que o arguido revelou uma conduta particularmente desvaliosa da sua personalidade pois que o arguido, ao adoptar as condutas descritas, actuou com intenção alcançar prazer e de satisfazer os seus desejos sexuais,

            - Nada consta no certificado de registo criminal do arguido

            - À data dos factos em causa neste processo, o arguido mantinha uma vida familiar estruturada, integrado familiar e socialmente.

- Nos seus tempos livres dedicava-se sobretudo à família, nomeadamente ao acompanhamento do seu filho, sendo que às vezes tinha que garantir esta tarefa sozinho, dado que a sua companheira exercia a sua actividade profissional por turnos.

 -Havia uma relação de amizade e interajuda entre o agregado familiar do arguido e a mãe da ofendida DD (tia materna de GG, sua companheira), a qual trabalhava à noite e se encontrava divorciada, pelo que recorria a ao arguido e à sua companheira para o acompanhamento da menor.

           

Valorando em conjunto o ilícito global perpetrado,, sobre uma única pessoa menor, verifica-se que os factos resultaram de actuação pluriocasional e não de tendência para delinquir.

            As exigências de prevenção geral são acutilantes neste tipo de crimes, face à necessidade de protecção da autodeterminação sexual e da defesa e desenvolvimento sadio das vítimas menores.

Já as exigências de prevenção especial não excedem a normalidade necessária á dissuasão da reincidência,

Face ao disposto no artigo 40º nºs 1 e 2 do C. Penal, tendo ainda em conta a intensidade da culpa, a idade do arguido e o efeito previsível da pena a aplicar no seu comportamento futuro, sendo que, verbaliza vontade de, em liberdade, centrar a sua vida no acompanhamento dos que lhe são mais próximos, nomeadamente a companheira e o filho. É também sua intenção retomar actividade profissional, por conta própria ou voltar a trabalhar com os seus tios, e que relativamente a factos da mesma natureza dos subjacentes aos presentes autos, o arguido AA identifica a ilicitude e censurabilidade dos mesmos. Embora apresente um discurso predominantemente autocentrado no que se refere ao impacto do processo, verbaliza reconhecer os danos causados a vítimas deste tipo de crimes.

Tendo em conta ainda moldura penal abstracta concretamente aplicável, que se situa entre 3 anos e 25 anos de prisão,

Conclui-se que a pena de oito anos de prisão se revela justa por ser a proporcionalmente adequada.

O recurso merece parcial provimento.

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Termos em que, decidindo:

Acordam os deste Supremo – 3ª Secção – em dar parcial provimento ao recurso, e revogando a decisão recorrida, condenam o arguido AA, como autor de 22 crimes de ““abuso sexual de crianças”, agravado, p. e p. nas disposições do arts. 171º/1 e 177º/1-b) do Código Penal, na pena de dois anos e três meses de prisão por cada um de vinte dos crimes em causa; e de três anos de prisão por cada um dos dois restantes crimes em questão, relativos às situações em que o arguido ejaculou (pelo menos, uma vez) na zona da vagina e em que procurou introduzir o seu pénis erecto no ânus da ofendida.

Em cúmulo vai o arguido condenado de harmonia com o disposto no artº 77ºs 1 e 2, do CP, na pena de oito anos de prisão.

            Sem custas.

Supremo Tribunal de Justiça, 30 de Novembro de 2016

                                          Elaborado e revisto pelo relator

                                               Pires da Graça (Relator)

                                               Raul Borges