Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
19/20.5YLPRT.L1.S1
Nº Convencional: 1.ª SECÇÃO
Relator: MARIA JOÃO VAZ TOMÉ
Descritores: NULIDADE DE ACÓRDÃO
OPOSIÇÃO ENTRE OS FUNDAMENTOS E A DECISÃO
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
INTERPRETAÇÃO DO NEGÓCIO JURÍDICO
CONTRATO DE ARRENDAMENTO
ERRO DE JULGAMENTO
Data do Acordão: 01/18/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: INDEFERIDA A RECLAMAÇÃO
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I. Conforme o art. 615.º, n.º 1, al. c), 1.ª parte, do CPC, “É nula a sentença quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão”.
II. Não se verifica essa oposição quando, no dispositivo do acórdão, o Tribunal, coerente e convergentemente com a correspondente fundamentação, julga que o negócio ulteriormente celebrado pelas partes se consubstancia num novo contrato de arrendamento e não num aditamento ou numa mera modificação ao contrato anterior.
III. De acordo com o art. 615.º, n.º 1, al. d), 1.ª parte, do CPC, “é nula a sentença quando: (…) d) o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar”. Esta nulidade decorre do art. 608.º, n.º 2 do CPC.
IV. Se o Tribunal, com base, inter alia, na observância das regras hermenêuticas contidas nos arts. 236.º e ss do CC, conclui que as partes pretenderam celebrar um novo negócio jurídico, dotado de uma nova e diversa economia negocial, regulando de modo diferente os seus interesses, revogando o contrato de arrendamento urbano não habitacional anteriormente celebrado, a falta de desenvolvimento da distinção entre “alterações substanciais” e “elementos acessórios” do contrato de arrendamento não fere o acórdão de nulidade por omissão de pronúncia.
Decisão Texto Integral:

Acordam, em conferência, no Supremo Tribunal de Justiça,



I - Relatório

1. Gerex - Gabinete de Gestão Industrial e Comercial, Lda., Requerida no procedimento especial de despejo intentado por Paradise Pyramid, Lda., com fundamento na oposição à renovação do contrato de arrendamento, deduziu, ao abrigo do art. 15.º-F da Lei n.º 6/2006, de 27 de Fevereiro, oposição com pedido reconvencional.

2. Alegou, em síntese, que:

- a Requerente apresentou no presente procedimento especial de despejo um contrato de arrendamento celebrado, por escritura pública, a 19 de dezembro de 1997, juntando o comprovativo da comunicação prevista no art. 1097.º, n.º 1, do CC; omitiu, todavia, que a relação contratual subjacente ao arrendamento dos autos remonta a 15 de junho de 1989, data da celebração do contrato entre a primitiva proprietária do imóvel - Hufvudsraden International AB - e a primitiva arrendatária - Procomer - Sociedade de Representação e Promoção de Vendas, Lda.;  previa-se, neste contrato, que a arrendatária podia ceder a sua posição contratual à Requerida, o que veio a suceder também a 15 de junho de 1989, por escritura celebrada, outrossim no ….º Cartório Notarial …; deste modo, o documento que serviu de base ao presente procedimento especial de despejo não corresponde ao contrato dos autos, mas sim a uma alteração do mesmo;

- tendo o contrato dos autos sido celebrado antes do início de vigência do DL n.º 321-B/90, de 15 de outubro (RAU), era imperativamente aplicável o regime denominado como vinculístico, sendo o arrendamento sucessivamente renovável, apenas podendo ser denunciado pelo locador nos casos previstos no art. 1096.º do CC, então em vigor;

- com o início de vigência do DL n.º 321-B/90 (RAU), o regime de denúncia deste contrato manteve-se essencialmente inalterado, pelo que o arrendamento dos autos, celebrado em 1989, tem de ser tratado, no atual quadro normativo, como um arrendamento para fins não habitacionais, na modalidade temporal de contrato de duração indeterminada;

- com a Lei n.º 6/2006 (NRAU), que entrou em vigor a 27 de Junho de 2006, os contratos do mesmo tipo daquele dos autos passaram a reger-se pelo NRAU, com as particularidades introduzidas, inter alia, pela norma do art. 28.º, que veda ao senhorio  a oposição à renovação; a Requerente nunca tomou a iniciativa de promover a transição do contrato para o NRAU, pelo que a carta por si enviada a 26 de junho de 2017 carece de fundamento, não sendo válida nem eficaz enquanto comunicação de oposição à renovação do contrato e, não produzindo, por isso, quaisquer efeitos;

- ainda que por mera hipótese se considere que a escritura outorgada a 19 de dezembro de 1997 importou a revogação do anterior contrato de arrendamento, também o novo contrato teria, ainda assim, duração indeterminada, pois que beneficiaria também do regime vinculístico previsto no art. 68.º, n.º 2, do RAU; com efeito, o DL n.º 257/95, de 30 de setembro, reviu o regime do arrendamento urbano para o exercício de comércio, indústria, profissões liberais e outros fins lícitos não habitacionais, tendo previsto, para o futuro, a celebração de contratos de arrendamento urbano de duração limitada para comércio ou indústria, o que não acontecia antes da sua entrada em vigor - 5 de outubro de 1995; os então denominados arrendamentos não habitacionais de duração limitada deveriam conformar-se com as normas previstas nos arts. 98.º-101.º do RAU para os contratos de duração limitada nos arrendamentos urbanos para habitação, com as devidas adaptações;

- entre essas normas que, por remissão expressa do art. 117.º, n.º 2, do RAU, se aplicavam aos arrendamentos não habitacionais de duração limitada estava aquela segundo a qual o prazo mínimo de duração desses contratos não podia ser inferior a cinco anos (art. 98.º, n.º 2, do RAU); por conseguinte, do facto de o contrato de 19 de dezembro de 1997 haver mantido o prazo de duração do contrato de um ano, como previsto no contrato anterior, não mencionando expressamente a sua qualificação como “de duração limitada”, resulta que as partes não quiseram retirar a natureza vinculística ao contrato em causa;

- acresce que a cláusula 2.ª do documento complementar anexo a tal escritura se deveria considerar nula por violar disposição legal imperativa, uma vez que o prazo de duração de tal contrato nunca poderia ser inferior a cinco anos; por isso, encontrando-se ferida de nulidade, essa cláusula nunca seria idónea para produzir quaisquer efeitos e, na falta de estipulação das partes, dever-se-ia considerar o contrato celebrado pelo prazo de cinco anos, automaticamente renovável por iguais e sucessivos períodos de cinco anos cada;

- vigorando inicialmente de 1 de janeiro de 1998 a 31 de dezembro de 2002, e sendo automaticamente renovável por períodos sucessivos de cinco anos, aquando da entrada em vigor, a 27 de junho de 2006, do NRAU, nos termos do art. 26.º,  n.º 3 (na sua redação originária), esse contrato renovou-se por cinco anos e, posteriormente, por três anos; não afetando tal disposição o prazo do contrato que se encontraria a correr, de 1 de janeiro de 2003 a 31 de dezembro de 2007, por força das sucessivas renovações, estaria agora a correr o período contratual de 1 de janeiro de 2018 a 31 de dezembro de 2022, não produzindo, por isso, efeitos a comunicação efetuada pela Requerente.

3. A Requerente exerceu o contraditório, tendo pugnado pela improcedência das exceções e pela inadmissibilidade da reconvenção.

4. Foi proferida decisão que não admitiu a reconvenção e decidiu do mérito da ação, concluindo pela improcedência do pedido.

5. Não conformada, a Requerente interpôs recurso de apelação.

6. Por seu turno, a Requerida também interpôs recurso de apelação que, todavia, não foi admitido.

7. Por acórdão, o Tribunal da Relação … decidiu o seguinte:

Pelo exposto acorda-se em julgar a apelação procedente revogando-se a decisão recorrida e julgando-se improcedente a oposição ao pedido de despejo.”

8. Não conformada, a Requerida Gerex - Gabinete de Gestão Industrial e Comercial, Lda., interpôs recurso de revista, apresentando as seguintes Conclusões:

1) Para formalizar o aditamento de um contrato são necessárias as mesmas formalidades legais atribuídas ao contrato original, pelo que não constitui argumento decisivo para a questão de saber se o documento celebrado em 19 de dezembro de 1997 constitui um contrato novo ou um aditamento do anterior o facto de aquele ter sido celebrado por escritura pública (forma legal a que obrigatoriamente estavam sujeitos quaisquer dos atos àquela data).

2) O facto de o documento celebrado em 19 de dezembro de 1997 não ter feito referência ao documento celebrado em 15 de junho de 1989, revogando-o expressamente, leva à conclusão de que as partes não quiseram revogar, dando sem efeito, o contrato original que vinha já desde 1989.

3) Não constando a vontade de revogar o contrato original expressamente prevista no documento celebrado em 19 de dezembro de 1997, haverá que atender às regras normais em termos de interpretação das declarações negociais que, nos negócios jurídicos formais dispõem que não pode ser aceite como válida qualquer interpretação que não tenha no texto escrito um mínimo de correspondência (cfr. art.º 238º do C.C.).

4) A Recorrida não fez referência, nem juntou, qualquer documento subscrito pelas partes a dar expressamente por revogado o contrato anterior.

5) As regras estabelecidas no documento celebrado em 19 de dezembro de 1997 são, na sua quase totalidade, coincidentes com as estabelecidas no documento celebrado em 15 de junho de 1989.

6) Um aditamento a um contrato constitui, precisamente, a alteração de um contrato original, o qual, com as novas alterações, passa a constituir um contrato único, titulador do mesmo e único negócio jurídico, o que manifestamente ocorre na situação dos autos.

7) O facto de a relação contratual, após a alteração consubstanciada no documento celebrado em 19 de dezembro de 1997, ter mantido o mesmo núcleo essencial, sendo apenas alterados elementos acidentais ou acessórios (integração do lugar de estacionamento no contrato de arrendamento, o qual já fazia parte do locado, embora a título gratuito, e a introdução de uma cláusula sobre benfeitorias), significa que tais alterações não têm a virtualidade de transformar o negócio jurídico, que se manteve sem interrupções, num novo e diferente contrato.

8) Para apurar se subjacente à celebração do documento celebrado em 19 de dezembro de 1997está a intenção das partes de celebrar um novo contrato ou de modificar o anterior, deve o Julgador verificar se o negócio assim transformado se apresenta economicamente como uma relação completamente diferente da anterior, chamando à colação a distinção entre os elementos essenciais do negócio, e aqueles que são acessórios ou meramente acidentais.

9) Conforme decorre do simples confronto entre os dois documentos em apreciação, dúvidas não existem de que o documento celebrado em 19 de dezembro de 1997 se apresenta economicamente como a mesma relação jurídica decorrente do documento celebrado em 15 de junho de 1989, o que leva à conclusão de que aquele constitui uma mera modificação do contrato original, e não consubstanciou um novo contrato, ao contrário da qualificação que dele erroneamente fez o Acórdão recorrido.

10) Em ambos os documentos, o período contratual decorre do dia 1 de janeiro ao dia 31 de dezembro, sendo que o dia 1 de janeiro de 1998 que consta como data de início do contrato no documento celebrado em 19 de dezembro de 1997 coincide, precisamente, com o início de um novo período contratual após a renovação automática que já se impunha nos termos previstos no contrato original.

11) O facto de não ter ocorrido nenhuma interrupção entre a vigência do contrato original e a data de produção de efeitos do documento celebrado em 19 de dezembro de 1997 é mais um argumento a favor da qualificação deste último documento como mera modificação ou alteração contratual, e não como um novo contrato.

12) O Acórdão recorrido violou designadamente o disposto no artigo 238.º do Código Civil, pelo que carece de ser revogado e substituída por outro que decida pela qualificação de ambos os documentos como um único e o mesmo contrato, daí decorrendo as correspondentes consequências jurídicas.

13) Se no decurso de um prazo ao abrigo de uma lei antiga e antes daquele terminar se iniciou a vigência de uma nova lei que o alargou, nos termos do disposto no artigo 297.º, n.o 2, do Código Civil será este novo prazo o aplicável, contando-se, todavia, o prazo entretanto já decorrido.

14) Apenas com o decurso global do prazo o valor de um facto constitutivo de um direito se consolida na ordem jurídica.

15) Quando se dá a alteração de uma lei enquanto uma situação jurídica está em curso de constituição, passa o respetivo processo constitutivo a ficar imediatamente subordinado à lei nova, e isto porque é na vigência da lei nova que a constituição (ou seja, o facto constitutivo completo) se vem a verificar.

16) A questão da aplicação retroativa da lei e, eventualmente, do carácter interpretativo ou não da lei nova, apenas será de colocar se, quando da entrada em vigor da lei nova, esteja já esgotado o prazo face à lei antiga.

17) Dispõe o n.º 2 do artigo 297.º do Código Civil que «a lei que fixar um prazo mais longo é igualmente aplicável aos prazos que já estejam em curso, mas computar-se-á neles todo o tempo decorrido desde o seu momento inicial».

18) A alínea c) do artigo 1101.º do Código Civil foi alterada pelo artigo 2.º da Lei n.º 13/2019, de 12 de fevereiro, que entrou em vigor no dia 13 de fevereiro de 2019, passando a denúncia do contrato de duração indeterminada pelo senhorio dever observar uma antecedência não inferior a cinco anos (substituindo o anterior prazo que era de dois anos).

19) A comunicação de oposição à renovação rececionada pela Recorrente em 29 de junho de 2017 não é – em qualquer circunstância – apta a produzir a cessação do contrato de arrendamento dos autos uma vez que nem sequer havia decorrido à data da instauração do procedimento de despejo pela Recorrida o prazo de cinco anos a que alude a alínea c) do artigo 1101.º do Código Civil.

20) Para que uma alteração legislativa ponha em causa o princípio da proteção da confiança torna-se necessário que tal alteração constitua uma mutação da ordem jurídica com que, razoavelmente, os destinatários das normas dela constantes não possam contar, e que a mesma não seja ditada pela necessidade de salvaguardar direitos ou interesses constitucionalmente protegidos que devam considerar-se prevalecentes, de acordo com o critério consagrado no artigo 18.º, n.o 2, da C.R.P.

21) A Lei n.º 13/2019, de 12 de fevereiro, que alterou a redação da alínea c) do artigo 1101.º do Código Civil visou, precisamente, introduzir “medidas destinadas a corrigir situações de desequilíbrio entre arrendatários e senhorios, a reforçar a segurança e a estabilidade do arrendamento urbano e a proteger arrendatários em situação de especial fragilidade”.

22) Face à contínua modificação das opções legislativas em matéria de arrendamento urbano, não se afigura que a alteração do prazo de denúncia se mostre não expectável para os contraentes de relações locatícias que perduram no tempo, como é o caso dos autos.

23) No juízo de ponderação imposto pela proteção da confiança deverá prevalecer, em face do interesse do senhorio em fazer cessar o contrato, o superior interesse de proteção de inquilinos e arrendatários, que em regra se encontram numa situação de maior fragilidade negocial face aos senhorios.

24) O Acórdão recorrido fez uma incorreta interpretação e aplicação do disposto nos artigos 297.º, n.º 2, e 1101.º, alínea c) do Código Civil, e ainda dos princípios da segurança jurídica e da proteção de confiança.

Termos em que, nos mais do douto suprimento de Vossas Excelências, que se impetra e requer, deve o presente recurso de revista ser julgado procedente por provado e, em consequência, revogando-se o Acórdão recorrido, ser julgada procedente a oposição ao despejo e improcedente o procedimento especial de despejo e, em consequência, ser a Recorrente absolvida do pedido, com as legais consequências.

Assim se fará

JUSTIÇA!”

9. A Requerente Paradise Pyramid, Lda., por sua vez, apresentou contra-alegações com as seguinte Conclusões:

44. Por tudo quanto antecede, improcedem inteiramente as conclusões da Recorrente.

Decidiu bem o douto Acórdão recorrido, no que concerne ao entendimento perfilhado de que o contrato apresentado com o requerimento inicial é um novo contrato de arrendamento e não uma mera alteração do contrato anterior, assim como que a Lei 13/2019 de 12.02 não é pois aplicável ao caso em concreto, tendo a denúncia efetivada pela Recorrida sido válida e eficaz e os seus efeitos sido totalmente consolidados à data da comunicação, uma vez que tal direito não se traduz num prazo no sentido técnico-juridico.

Nestes termos e nos demais de direito, não deve a revista apresentada ser (parcialmente) admitida, e mesmo que assim não se entenda, sempre deve ser negado provimento ao presente recurso, confirmando-se, a douta decisão recorrida.

Tudo como é de Direito e de JUSTIÇA!

10. Por acórdão de 30 de novembro de 2021, o Supremo Tribunal de Justiça decidiu o seguinte:

“Nos termos expostos, acorda-se em julgar totalmente improcedente o recurso interposto por Gerex - Gabinete de Gestão Industrial e Comercial, Lda., confirmando-se o acórdão recorrido.

Custas pela Recorrente.”

11. A Recorrente Gerex- Gabinete de Gestão Industrial e Comercial, Lda., notificada do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30 de novembro de 2021, vem arguir a sua nulidade por oposição entre os fundamentos e a decisão (art. 615.º, n.º 1, al. c), 1.ª parte, do CPC), de um lado e, de outro, por omissão de pronúncia (art. 615.º, n.º 1, al. c), 1.ª parte, do CPC).

12. A Recorrida Paradise Pyramid, Unipessoal, Lda., respondeu, pronunciando-se no sentido da improcedência das nulidades invocadas pela Recorrente.

II – Questões a decidir

Está em causa a questão de saber se o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30 de novembro de 2021 enferma ou não de nulidade por oposição entre os fundamentos e a decisão (art. 615.º, n.º 1, al. c), 1.ª parte, ex vi dos arts. 666.º, 679.º e 685.º do CPC), de um lado e, de outro, por omissão de pronúncia (art. 615.º, n.º 1, al. c), 1.ª parte, ex vi dos arts. 666.º, 679.º e 685.º do CPC).


III – Fundamentação

A) De Facto

Foram considerados como provados os seguintes factos:

1. No dia 15 de Junho de 1989, a sociedade Hufvudsraden International AB e a sociedade Procomer - Sociedade de Representação e Promoção de Vendas, Limitada, no ….º Cartório Notarial …, conforme cópia da escritura junta com a oposição como documento n.º 1, cujo teor se dá aqui por reproduzido, declararam perante notário: a primeira dar de arrendamento à segunda, para loja, escritório e armazém desta, “uma área determinada na planta anexa, de cerca de cento e noventa e sete metros quadrados do rés-do-chão” do prédio urbano sito em …, na Rua …, números … a … e …, da freguesia …, inscrito na respectiva matriz urbana sob o artigo …32, pelo prazo de um ano, com início a 1 de Janeiro de 1988, sucessivamente renovável por períodos de seis meses, “nos termos legais”, autorizando a “arrendatária a utilizar gratuitamente, na cave do prédio, uma parte suficiente para a aparcagem de um automóvel ligeiro”; tendo os representantes da segunda declarado aceitar o arrendamento nos termos exarados.

2. Da cláusula quinta do escrito referido em 1. consta: “Fica expressamente proibida a sublocação, total ou parcial, dos locais arrendados, podendo, todavia, ceder a sua posição contratual à sociedade “Gerex - Gabinete de Gestão Industrial e Comercial, Limitada”.

3. No mesmo dia 15 de Junho de 1989, por escritura celebrada no também …. Cartório Notarial …, cuja cópia foi junta como documento n.º 2 com a oposição, a Procomer - Sociedade de Representação e Promoção de Vendas, Limitada cedeu a sua posição no contrato referido em 1. à ora Requerida.

4. No dia 19 de Dezembro de 1997, no ….º Cartório Notarial …, conforme cópia da escritura junta com o requerimento inicial como documento n.º 1 e que se dá aqui por reproduzida, a sociedade comercial holandesa Asmto Holding, BV., à data proprietária e senhoria do prédio urbano situado em …, na Rua …, números … a … e …, freguesia … (anterior freguesia …), concelho …, inscrito na respectiva matriz urbana sob o artigo …04 que proveio do anterior artigo …32, através dos seus representantes, na qualidade de primeiros outorgantes, e os representantes da requerida, em representação desta, na qualidade de segundos outorgantes, declararam perante notário o seguinte: a primeira dar de arrendamento à segunda “uma área determinada, com a zona de cento e noventa e sete metros quadrados no rés-do-chão” do prédio referido em 1. e “uma vaga de garagem na cave”, pelo prazo de “doze meses, com início no dia um de Janeiro de mil novecentos e noventa e oito, pela renda mensal de duzentos e trinta e três mil e quinhentos escudos, nos termos e cláusulas constantes do documento complementar”; e os segundos, em representação da requerida, declararam aceitar o arrendamento nos termos exarados.

5. Da cláusula segunda do documento complementar mencionado em 4. consta: “O presente contrato é feito, pelo prazo de um ano, tendo o seu início em um de Janeiro de mil novecentos e noventa e oito e termo a trinta e um de Dezembro de mil novecentos e noventa e oito, supondo-se sucessiva e automaticamente renovado por períodos de um ano se a segunda outorgante não o denunciar, por carta registada e com aviso de recepção, até noventa dias antes do termo do prazo ou do termo de qualquer uma das renovações”.

6. No dia 29 de Dezembro de 1997, por escritura pública de compra e venda, a sociedade Asmto Holding, BV., vendeu ao IMOVEST – Fundo de Investimentos Imobiliários o prédio urbano descrito em 1.

7. O IMOVEST – Fundo de Investimentos Imobiliários foi objecto de operação de fusão, por incorporação no NOVIMOVEST – Fundo de Investimento Imobiliário, com transferência integral do património e consequente extinção do Fundo incorporado, com efeitos a partir de 19 de Março de 2010.

8. No dia 29 de Maio de 2015, por escritura pública de compra e venda, mútuo com hipoteca e consignação de rendimentos, o NOVIMOVEST – Fundo de Investimento Imobiliário vendeu à Requerente o prédio urbano referido em 1.

9. A Requerida e a Requerente outorgaram, em 1 de Fevereiro de 2017, a “Adenda ao Contrato de Arrendamento para Fins Não Habitacionais celebrado em 19/12/1997”, junta com o articulado de resposta às excepções como documento n.º4, cujo teor se dá aqui por reproduzido.

10. Mediante carta registada, com aviso de recepção, datada de 26 de Junho de 2017, junta com o requerimento inicial como documento n.º 5 e cujo teor se dá aqui como reproduzido, a Requerente comunicou a sua intenção de se opor à renovação do referido contrato de arrendamento, com efeitos a partir de 31 de Dezembro de 2019, tendo a requerida recepcionado a carta a 29 de Junho de 2017.

11. Por carta registada, com aviso de recepção, datada de 16 de Abril de 2019, enviada pela requerente à requerida aquela reiterou a sua intenção de se opor à renovação do contrato.


B) De Direito

Das nulidades

1. Importa, nesta sede, recordar a distinção entre causas de invalidade do acórdão recorrido (arts. 615.º, 666.º, e 674.º, n.º 1, al. c), do CPC), de um lado e, de outro, erro de julgamento da matéria de facto (art. 662.º do CPC), que apenas é sindicável pelo Supremo Tribunal de Justiça nos termos do art. 674.º, n.º 3, do CPC, e erro de julgamento na apreciação do direito, amplamente sindicável por este Tribunal, nos termos do art. 674.º n.º 1, al. a), do CPC.

2. Enquanto a consequência de erro de julgamento dos factos e/ou de direito das decisões judicias é a sua revogação, a da violação de regras próprias da sua elaboração e/ou estruturação, ou daquelas que delimitam o conteúdo e/ou estabelecem os limites do poder ao abrigo do qual são decretadas, é a da nulidade (art. 615.º do CPC).

3. Na primeira hipótese, diferentemente da segunda, trata-se de erro de julgamento (error in judicando), que se traduz em vício no julgamento da matéria de facto ou da decisão de mérito. Esse vício resulta de distorção, por parte do julgador, da realidade factual julgada provada e/ou não provada, em virtude de a prova produzida impor julgamento de facto diverso do realizado pelo tribunal a quo (error facti) e/ou de erro na aplicação do direito (error juris).

4. No erro de julgamento assiste-se a uma deficiente análise crítica da prova produzida e/ou a uma deficiente enunciação e/ou interpretação/aplicação das normas jurídicas aos factos provados e não provados. Esse erro, por não respeitar a deficiências que afetam a própria estrutura da decisão em si mesma considerada (vícios formais), ou aos limites à luz dos quais é proferida, não a inquina de invalidade, mas sim de error in judicando, suscetível de ser invocado em sede de recurso.

5. Por seu turno, na última hipótese, estão em causa vícios formais que atingem a própria validade  da decisão judicial.

Da nulidade – ou não, do acórdão recorrido por oposição entre os fundamentos e a decisão (art. 615.º, n.º 1, al. c), 1.ª parte, ex vi dos arts. 666.º, 679.º e 685.º do CPC)

1. Segundo a Recorrente/Reclamante Gerex- Gabinete de Gestão Industrial e Comercial, Lda.:

(…)

3. Entende-se haver uma manifesta oposição entre os fundamentos e a decisão quando o Acórdão alude às alegadas alterações substanciais que considera terem sido introduzidas no contrato de 1997. 4. É que a qualificação das alterações como substanciais foi um elemento relevante para a decisão, porquanto no Ponto 23. do Acórdão se defende que “Levando as alterações substancias introduzidas no novo contrato de arrendamento, ainda que as partes não tenham expressamente revogado, por mútuo consenso, o primeiro contrato, sempre se afiguraria bastante discutível concluir no sentido da continuidade da relação contratual anterior. É que, em geral, no silêncio das partes quanto à manutenção do contrato originário, no caso de as alterações não se limitarem a elementos acessórios, entende-se que as partes extinguiram o primitivo contrato e celebraram um novo contrato.

(…)

2. Conforme o art. 615.º, n.º 1, al. c), 1.ª parte, do CPC, “É nula a sentença quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão”.

3. Entre os fundamentos e a decisão não pode haver contradição lógica. Se, na fundamentação, o julgador segue determinado percurso de raciocínio, apontando para determinada conclusão e, apesar dela, decide noutro sentido, oposto ou divergente, a contradição é causa de nulidade da decisão[1].

4. A nulidade baseada na contradição entre os fundamentos e a decisão pressupõe, pois, um erro ou vício lógico na argumentação jurídica, retirando conclusão inesperada e oposta à linha de raciocínio adotada. Apenas se verifica quando os fundamentos invocados pelo Tribunal deviam logicamente conduzir a resultado oposto ou divergente do adotado no dispositivo do acórdão: “os fundamentos invocados pelo juiz conduziriam logicamente não ao resultado expresso na decisão mas a resultado oposto[2].

5. A referida oposição não se confunde com o erro na subsunção dos factos à norma jurídica ou com o erro na interpretação da regra jurídica. No caso de o julgador, embora mal, entender que dos factos apurados resulta determinada consequência jurídica e esta sua compreensão se encontrar expressa na fundamentação, ou dela decorrer, verifica-se a existência de erro de julgamento e não a oposição enquanto causa de nulidade da decisão. Por seu turno, na hipótese de o raciocínio constante da fundamentação apontar para determinada consequência jurídica e na conclusão surgir outro resultado, ainda que este seja aquele que é juridicamente correto, existe nulidade[3].

6. Não se verifica, no caso dos autos, a existência de oposição entre os fundamentos e a decisão, porquanto, no acórdão reclamado, o Supremo Tribunal de Justiça, depois de analisar as circunstâncias do caso concreto, respondeu de modo adequado.

7. Com efeito, no dispositivo do acórdão de 30 de novembro de 2021, o Supremo Tribunal de Justiça, coerente e convergentemente com a correspondente fundamentação, julgou que o negócio celebrado pelas partes em 1997 se consubstanciava num novo contrato de arrendamento e não num aditamento ou numa mera modificação ao contrato de 1989.

8. Na verdade, a Recorrente/Reclamante não indica sequer, concretamente, qualquer contradição entre a decisão e os fundamentos, porque ela não existe.

9. Os pontos 16 (“As partes pretenderam celebrar um novo negócio jurídico, dotado de uma nova e diversa economia negocial, regulando de modo diferente os seus interesses.”), 20 (“Na verdade, as partes poderiam ter apenas introduzido variações no conteúdo do contrato de arrendamento inicialmente celebrado, sem tornar inútil a subsistência da disciplina contratual anteriormente estabelecida. Porém, não foi isso que fizeram. Também não renegociaram nem renovaram o contrato inicial. Não quiseram a manutenção da relação locatícia anterior, pois substituíram-na por outra.“), 21 (“A observância das regras hermenêuticas contidas nos arts. 236.º e ss do CC conduz precisamente a esse resultado. A intenção das partes não se afigura compatível com a conservação, total ou parcial, da relação pré-existente. Não existe uma manifestação de vontade das partes dirigida a modificar a disciplina dos seus interesses estabelecida no acordo inicial, introduzindo-lhe mutações que não incidissem sobre a fisionomia originária da relação jurídica locatícia, na qual funcionalmente se inseririam e que visariam regular, numa relação de complementaridade com o negócio primitivo. Está antes em causa uma regulamentação inovadora da relação jurídica que diz respeito à própria existência ou subsistência dessa mesma relação jurídica, não concernindo apenas e tão somente à sua disciplina. Não pode, por isso, afirmar-se que, no segundo contrato de arrendamento, as partes, apesar de terem reformulado a disciplina contratual, mantiveram o primeiro contrato de arrendamento e, assim, a relação locatícia anterior, ainda que sujeita a regras diferentes.”) e 23 (“Levando em linha de conta as alterações substanciais introduzidas no novo contrato de arrendamento, ainda que as partes não tenham expressamente revogado, por mútuo consenso, o primeiro contrato, sempre se afiguraria bastante discutível concluir no sentido da continuidade da relação contratual anterior. É que, em geral, no silêncio das partes quanto à manutenção do contrato originário, no caso de as alterações não se limitarem a elementos acessórios, entende-se que as partes extinguiram o contrato primitivo e celebraram um novo contrato.”), da fundamentação do acórdão reclamado, elencados pela Recorrente/Reclamante, sustentando a celebração de um novo contrato de arrendamento em 1997 (como resulta da interpretação da declaração negocial), conduzem necessariamente à decisão adotada pelo Supremo Tribunal de Justiça de improcedência do recurso de revista.

10. Não procede, assim, a arguição da referida nulidade pela Recorrente Gerex - Gabinete de Gestão Industrial e Comercial, Lda..

Da nulidade – ou não - do acórdão recorrido por omissão de pronúncia (art. 615.º, n.º 1, al. d), 1,ª parte, ex vi dos arts. 666.º, 679.º e 685.º do CPC)

1. A Recorrente/Reclamante invoca ainda a nulidade do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça por omissão de pronúncia em virtude de não ter apreciado devidamente, no caso concreto, a distinção entre “alterações substanciais” e “elementos acessórios” do contrato. Assim:

“(…)

6. O Acórdão considera relevante a distinção entre alterações substanciais e elementos acessórios do contrato.

7. Decorre do entendimento subjacente ao Acórdão que as alterações introduzidas em 1997 não se limitarem a elementos acessórios, porquanto se tais alterações fossem apenas acessórias já a conclusão seria de que as partes não haviam extinguido o contrato primitivo, tendo-se limitado a modificá-lo.

8. Sendo esta uma parte da decisão, deveria o Acórdão ter-se pronunciado sobre as alterações introduzidas em 1997 e explanado o seu entendimento sobre o motivo pelo qual tais alterações integram o núcleo essencial do contrato, e não constituem apenas elementos acidentais ou acessórios do mesmo.

(…)

11. A omissão a que se alude é fundamental uma vez que no entendimento do Acórdão “As partes quiseram celebrar um novo negócio jurídico, dotado de uma nova e diversa economia negocial, regulando de modo diferente os seus interesses” (Cfr. Ponto 16.), o mesmo é dizer que o novo contrato se apresenta, de acordo com o Acórdão, economicamente como uma relação completamente diferente da anterior.

12. Salvo melhor opinião, de forma a justificar essa conclusão, importa esclarecer por que motivo a alteração de dois elementos – que a Recorrente entende serem meramente acessórios e não integrarem o núcleo essencial do contrato – correspondem à celebração de “um novo negócio jurídico dotado de uma nova e diversa economia negocial” e a uma regulação diferente dos “interesses” das partes.

13. Os fundamentos de facto que constituem as alterações introduzidas pelo contrato de 1997 em relação ao regime que já vinha da relação locatícia anterior contradizem, além do mais, a afirmação constante do Ponto 20. do Acórdão de que …” poderiam ter apenas introduzido variações no conteúdo do contrato de arrendamento inicialmente celebrado, sem tornar inútil a subsistência da disciplina contratual anteriormente estabelecida. Porém, não foi isso que fizeram.” No entendimento da Recorrente, foi precisamente isso que as partes fizeram, razão pela qual a disciplina do contrato se manteve praticamente igual, salvo duas modificações que não podem deixar de ser qualificadas como acessórias, e que não integram o núcleo fundamental da relação locatícia.

(…)

2. As Instâncias convergiram no entendimento de que o acordo celebrado pelas partes em 1997 constituía um novo contrato de arrendamento e não uma mera modificação daquele de 1989.

3. Na decisão do Tribunal de Instância, entendeu-se que:

 “de acordo com as regras de hermenêutica negocial, recorrendo, em primeira linha, à chamada teoria da impressão do destinatário, tal como consagrada no artigo 236.º, n.º 1 do Código Civil, julga-se não ter um mínimo de correspondência com o texto do escrito em apreciação, de acordo com o artigo 238.º do Código Civil, a interpretação de que as partes não quiseram, em 1997, celebrar um novo contrato, mas apenas alterar o contrato anteriormente celebrado.

Com efeito, da escritura mencionada em 4., resulta que as partes nada referem sobre o contrato de arrendamento anteriormente celebrado, estabeleceram todas as regras aplicáveis ao contrato de arrendamento, que não são integralmente coincidentes com as estabelecidas no contrato anterior – veja-se v.g. que no primeiro o lugar de garagem é cedido gratuitamente e no segundo integra o objecto da locação, assim como no primeiro não se estabelece regras para as benfeitorias -, sendo que se estabelece no segundo contrato uma data de início de vigência para futuro, não pressupondo a existência e manutenção do contrato anterior.

Deste modo, de acordo com as mencionadas normas e atendendo ao estipulado pelas partes no contrato de 1997, impõe-se concluir que o contrato apresentado com o requerimento inicial é um novo contrato de arrendamento e não uma mera alteração do contrato anterior.

4. Por seu turno, o Tribunal da Relação … sufragou idêntico entendimento, acrescentando que:

 “nada permite concluir que este contrato de 1997 constitua uma alteração ao contrato anterior. Não é feita qualquer menção a esse contrato e este contrato tem em si todos os elementos necessários para se considerar um verdadeiro contrato de arrendamento.”.

5. O Supremo Tribunal de Justiça, por sua vez, acolheu a posição adotada pelas Instâncias.

6. De acordo com o art. 615.º, n.º 1, al. d), 1.ª parte, do CPC, “é nula a sentença quando: (…) d) o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar”. Esta nulidade decorre do art. 608.º, n.º 2 do CPC, segundo o qual “o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, excetuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras; não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras.

7. Na aferição da nulidade por omissão de pronúncia deverá levar-se em consideração o disposto no art. 608.º, n.º 2, do CPC, segundo o qual o Juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceto aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras, não podendo ocupar-se senão de questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras.

8. Por conseguinte, a nulidade por omissão de pronúncia, representando a sanção legal para a violação do preceito do art. 608.º, n.º 2, do CPC, apenas se verifica quando o Juiz deixe de pronunciar-se sobre as “questões” submetidas pelas partes ao seu escrutínio, ou de que deva conhecer oficiosamente, como tais se considerando as pretensões formuladas por aquelas. Como é pacífico na jurisprudência e na doutrina, o Juiz não tem de apreciar os argumentos, razões ou juízos de valor invocados, nem a mera qualificação jurídica dos factos oferecida pelos litigantes, a quem não tem de dar resposta individualizadamente a cada um desses argumentos, razões, etc.. Essencial é que o Tribunal se contenha no âmbito do objeto do recurso, delimitado pelas conclusões (cf. arts. 608.º, nº 2, 635.º, nº 4 e 639º, do CPC).

9. Com efeito, «“Resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação” não significa considerar todos os argumentos que, segundo as várias vias, à partida plausíveis, de solução do pleito, as partes tenham deduzido ou o próprio juiz possa inicialmente ter admitdo (…); por outro lado, o juiz não está sujeito às alegações das partes quanto à indagação, interpretação e aplicação das normas jurídicas (art. 5-3) e, uma vez motivadamente tomada determinada orientação, as restantes que as partes hajam defendido, nomeadamente nas suas alegações de direito, não têm de ser separadamente analisadas»[4].

10. No caso em apreço, as questões de direito a resolver no âmbito da revista consistiam (unicamente) em saber se:

- se o recurso interposto por Gerex- Gabinete de Gestão Industrial e Comercial, Lda., é ou não admissível;

- se o arrendamento outorgado pelas partes em 1997 se traduz num contrato novo ou antes numa alteração ao contrato anteriormente celebrado;

- se o art. 1101.º, al. c), do CC, na redação que lhe foi conferida pela Lei n.º 13/2019, de 12 de fevereiro, se aplica à denúncia do contrato de arrendamento para fins não habitacionais comunicada ao arrendatário antes do seu início de vigência.

11. Todas estas questões foram apreciadas e fundamentadas à luz das normas jurídicas que se consideraram aplicáveis, concluindo-se não haver fundamento para considerar que, no caso dos autos, o negócio jurídico concluído pelas partes em 1997, em lugar de se traduzir num novo contrato de arrendamento, se consubstanciava numa mera alteração ao contrato celebrado em 1989.

12. Pode, de facto, dizer-se que o Supremo Tribunal de Justiça não se absteve de conhecer da questão de saber se o negócio de 1997 se consubstanciava numa mera alteração ao contrato celebrado em 1989 ou antes num novo contrato de arrendamento. Conheceu-a e tomou a devida posição.

13. Com efeito, conforme o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça:

As partes quiseram declarar o que efetivamente declararam, com o sentido correspondente à adoção de uma nova disciplina contratual.” (cf. Ponto 15);

As partes pretenderam celebrar um novo negócio jurídico, dotado de uma nova e diversa economia negocial, regulando de modo diferente os seus interesses.” (cf. Ponto 16);

No caso sub judice, o “texto” do contrato comporta apenas um sentido, que é o da celebração de um novo contrato de arrendamento. Não resultou provado que a redação do “texto” tivesse atraiçoado o pensamento das partes.”  (Ponto 18);

É, por conseguinte, manifesta a vontade das partes de revogar o contrato de arrendamento urbano não habitacional anteriormente celebrado.” (cf. Ponto 19);

Na verdade, as partes poderiam ter apenas introduzido variações no conteúdo do contrato de arrendamento inicialmente celebrado, sem tornar inútil a subsistência da disciplina contratual anteriormente estabelecida. Porém, não foi isso que fizeram. Também não renegociaram nem renovaram o contrato inicial. Não quiseram a manutenção da relação locatícia anterior, pois substituíram-na por outra.” (cf. Ponto 20);

A observância das regras hermenêuticas contidas nos arts. 236.º e ss do CC conduz precisamente a esse resultado. A intenção das partes não se afigura compatível com a conservação, total ou parcial, da relação pré-existente. Não existe uma manifestação de vontade das partes dirigida a modificar a disciplina dos seus interesses estabelecida no acordo inicial, introduzindo-lhe mutações que não incidissem sobre a fisionomia originária da relação jurídica locatícia, na qual funcionalmente se inseririam e que visariam regular, numa relação de complementaridade com o negócio primitivo. Está antes em causa uma regulamentação inovadora da relação jurídica que diz respeito à própria existência ou subsistência dessa mesma relação jurídica, não concernindo apenas e tão somente à sua disciplina. Não pode, por isso, afirmar-se que, no segundo contrato de arrendamento, as partes, apesar de terem reformulado a disciplina contratual, mantiveram o primeiro contrato de arrendamento e, assim, a relação locatícia anterior, ainda que sujeita a regras diferentes.” (cf. Ponto 22) ;

As partes não salvaguardaram a subsistência de qualquer efeito do contrato anterior, pois que, apesar de o poderem fazer, ao abrigo do princípio da autonomia privada, não ressalvaram qualquer efeito já produzido – ou até a produzir – por esse contrato. Não se trata apenas de uma nova regulamentação contratual de uma relação locatícia anterior, mas antes da sua cessação e da constituição ex novo de outra relação locatícia cujo objeto integra o imóvel em apreço.” (cf. Ponto 22);

Levando em linha de conta as alterações substanciais introduzidas no novo contrato de arrendamento, ainda que as partes não tenham expressamente revogado, por mútuo consenso, o primeiro contrato, sempre se afiguraria bastante discutível concluir no sentido da continuidade da relação contratual anterior. É que, em geral, no silêncio das partes quanto à manutenção do contrato originário, no caso de as alterações não se limitarem a elementos acessórios, entende-se que as partes extinguiram o contrato primitivo e celebraram um novo contrato.” (cf. Ponto 23);

Compulsada a escritura dada como provada sob o n.º 4, verifica-se que as partes nada referem sobre o contrato de arrendamento anteriormente celebrado e que estabelecem integralmente as regras aplicáveis ao arrendamento que, conforme mencionado na sentença do Tribunal de 1.ª Instância, não são sequer coincidentes com aquelas adotadas no contrato de arrendamento anterior. Esta circunstância de facto, conduzindo à conclusão de que as partes quiseram celebrar um novo negócio jurídico, dotado de uma nova e diversa economia negocial e regulando de modo diferente os respetivos interesses (o que vai para além de uma simples vontade de alteração pontual de um contrato pré-existente), afigura-se, pois, incompatível com a subsistência do arrendamento anterior.” (cf. Ponto 24);

Para o “declaratário normal” (declaratário medianamente razoável), colocado na posição do “declaratário real” (segundo o critério do art. 236.º, n.º 1, do CC) – que é uma sociedade comercial – a cessação do contrato de arrendamento anterior resulta clara do texto da escritura referida. É esse o sentido que o destinatário médio – com as características específicas e do mesmo tipo do “destinatário real” - retiraria desse acordo.” (cf. Ponto 25);

Nas declarações formais, o resultado a que o intérprete chegar não pode valer com um sentido que não tenha um mínimo de ressonância no respetivo texto, ainda que imperfeitamente expresso. Com efeito, segundo o art. 238.º, n.º 1, do CC, o sentido da declaração formal, para valer, há-de ter um mínimo de correspondência “no texto do respectivo documento, ainda que imperfeitamente expresso”. (cf. Ponto 26);

É esse o sentido que o intérprete pode atribuir ao acordo em apreço. O sentido da cessação do primeiro contrato de arrendamento funda-se nos factos reveladores ou envolventes do comportamento interpretando. Outro sentido radicaria “no alvedrio do intérprete, alçado a oráculo do sistema jurídico”. A inadmissibilidade de sentidos não fundamentados nos factos decorre, necessariamente, também da existência de um método de interpretação juridicamente devido (e que não se identifica com o arbítrio do intérprete) e da natureza quer da declaração (comportamento exteriorizador da vontade negocial) quer do sentido (valoração jurídica de um comportamento ou facto).” (cf. Ponto 27);

Por sua vez, conforme resultou provado sob o n.º 5, a cláusula segunda do documento complementar refere que o contrato de arrendamento teria como data de início de vigência o dia 1 de janeiro de 1998. Daqui decorre, consequentemente, que o entendimento defendido pela Recorrente, de que as partes assumiram que a celebração do contrato de 1997 não consubstanciava mais do que uma mera alteração ao contrato pré-existente, não tem um mínimo de correspondência no texto do respetivo documento.”  (cf. Ponto 28);

É certo que as partes não declararam expressamente revogar o contrato de arrendamento anteriormente celebrado. Contudo, a revogação de um acordo pode ser tácita quando se deduz de factos que com toda a probabilidade a revelem: os factos concludentes em que assenta a declaração tácita não têm, necessariamente, de ser absolutamente inequívocos, sendo suficiente que permitam concluir com bastante segurança uma determinada vontade negocial.” (cf. Ponto 29);

Refira-se, ainda, nesta sede, que, a par dos elementos gramaticais ou literais mencionados supra, resultou ainda provado que a Requerida e a Requerente outorgaram, a 1 de fevereiro de 2017, uma “Adenda ao Contrato de Arrendamento para Fins Não Habitacionais celebrado em 19/12/1997”. Esta designação não parece deixar margem para dúvidas sobre a relação contratual que as partes tinham como referência.” (cf. Ponto 30);

Neste contexto, não pode sustentar-se, como faz a Recorrente, que as partes se basearam no pressuposto da existência e manutenção do contrato anterior, porquanto, na alteração ocorrida ulteriormente - em 2017 –, apenas é feita alusão expressa ao contrato celebrado em 1997. Esta referência mostra-se absolutamente fora do contexto negocial anterior (de 1989) e afasta, por si só, a interpretação segundo a qual o documento outorgado em 1997 constituiu apenas um mero aditamento ao contrato anterior.” (cf. Ponto 31);

Deste modo, levando em linha de conta a factualidade relevante dada como provada, segue-se de perto o juízo decisório formulado a este propósito no acórdão recorrido, que não viola as regras dos arts. 236.º e 238.º do CC.” (cf. Ponto 32).

14. No entendimento do Supremo Tribunal de Justiça, com base na observância das regras hermenêuticas contidas nos arts. 236.º e ss do CC, as partes pretenderam celebrar um novo negócio jurídico, dotado de uma nova e diversa economia negocial, regulando de modo diferente os seus interesses, revogando o contrato de arrendamento urbano não habitacional anteriormente celebrado. Não existe, efetivamente, uma manifestação de vontade das partes dirigida a modificar a disciplina dos seus interesses estabelecida no acordo inicial. As partes também não salvaguardaram a subsistência de qualquer efeito do contrato anterior. Foi igualmente considerada a cláusula segunda do negócio de 1997, segundo a qual o contrato de arrendamento teria como data de início de vigência o dia 1 de janeiro de 1998, assim como a outorga, a 1 de fevereiro de 2017, de uma “Adenda ao Contrato de Arrendamento para Fins Não Habitacionais celebrado em 19/12/1997”. Não se trata apenas, por conseguinte, de uma nova regulamentação contratual de uma relação locatícia anterior, mas antes da sua cessação e da constituição ex novo de outra relação locatícia cujo objeto integra o imóvel em apreço.

15. Não se impunha, pois, ao Supremo Tribunal de Justiça debruçar-se detalhadamente sobre a distinção entre “alterações substanciais” e “elementos acessórios” do contrato de arrendamento, uma vez que a aplicação dos arts. 236.º do CC havia já conduzido à conclusão de que o negócio de 1997 constituía um novo contrato de arrendamento e não um mero aditamento ou modificação da relação contratual anteriormente estabelecida. Em todo o caso, para além de o contrato de 1997 conter toda a disciplina relevante da relação locatícia, a alteração do seu objeto, que passou a integrar o gozo de “uma vaga de garagem na cave”, não pode deixar de ser considerada substancial. No silêncio das partes quanto à manutenção do contrato originário, entende-se que as partes extinguiram o contrato primitivo e celebraram um novo contrato.

16. A este respeito, importa recordar, uma vez mais, que as nulidades de sentença previstas no art. 615.º do CPC sancionam vícios formais, de procedimento, e não deficiências ou até patologias que eventualmente possam ocorrer no plano do mérito da causa.

17. Refira-se ainda que o julgamento jurídico da causa teve em consideração todos os factos dados como provados, no seu conjunto, como não poderia deixar de ser.

18. Nesta conformidade, a arguição de nulidade do acórdão por omissão de pronúncia carece de fundamento, não sendo o mecanismo processual adequado para a Recorrente manifestar a sua discordância quanto à decisão, a fim de, por esta via, reverter o sentido decisório a seu favor.

19. Improcede, por conseguinte, a arguição da mencionada nulidade por parte da Reclamante/Recorrente Gerex - Gabinete de Gestão Industrial e Comercial, Lda..

 IV - Decisão

   Nos termos expostos, acorda-se em julgar totalmente improcedentes as nulidades do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça invocadas pela Recorrente Gerex - Gabinete de Gestão Industrial e Comercial, Lda..

Custas pela Recorrente.


Lisboa, 18 de janeiro de 2022.


Maria João Vaz Tomé (relatora)

António Magalhães

Jorge Dias

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[1] Cf. José Lebre de Freitas, A Acção declarativa comum à luz do Código de Processo Civil de 2013, Coimbra, Gestlegal, 2017, p.381.; Antunes Varela/J. Miguel Bezerra/Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, Coimbra, Coimbra Editora, 1985, p.690

[2] Cf. Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, Volume V, Coimbra, Coimbra Editora, 1952, p.141.

[3] Cf. José Lebre de Freitas, A Acção declarativa comum à luz do Código de Processo Civil de 2013, Coimbra, Gestlegal, 2017, pp.381-382.
[4] Cf. José Lebre de Freitas, Código de Processo Civil Anotado, Volume 2.º, Coimbra, Almedina, 2017, p.713.