Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
18757/23.9T8PRT-A.P1.S1
Nº Convencional: 4ª SECÇÃO
Relator: JOSÉ EDUARDO SAPATEIRO
Descritores: PROCEDIMENTO DISCIPLINAR
INVALIDADE
PODER DISCIPLINAR
DELEGAÇÃO
DELEGAÇÃO DE PODERES
ADMINISTRADOR
Data do Acordão: 04/30/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Sumário :
I - Os vícios específicos invocados pela trabalhadora não cabem, de uma forma direta e imediata, no elenco de invalidades que se mostram descritas nas diversas alíneas do artigo 382.º do Código do Trabalho de 2009 e que, em si e só por si, implicam a nulidade do procedimento disciplinar e a ilicitude do correspondente despedimento.

II - Se for determinada a instauração um dado procedimento disciplinar por quem, dentro da organização do empregador, não tiver competência disciplinar, originária ou delegada, e se tal cenário se mantiver até ao termo daquele processo, sem que ocorra a sua oportuna sanação por quem é efetivamente titular daquele poder disciplinar, tal pode inquinar jurídica e totalmente este último.

III - Verifica-se, com efeito e em rigor, que, apesar de física e materialmente tal processo existir, não possui, contudo, verdadeiramente, essa natureza jurídica, por não ter sido desencadeado ou ratificado por quem tinha aquela competência, podendo tal situação ser equiparada e reconduzida, afinal, à falta de procedimento disciplinar por referência ao trabalhador visado pelo mesmo [alínea c) do artigo 381.º do CT/2009].

IV - Também podemos nos deparar com uma decisão disciplinar que, ao não ser subscrita ou ratificada por quem, em nome e representação da empregadora, tem os poderes legais e necessários para obrigar a mesma, implica a sua invalidade, dado a mesma não possuir genuinamente essa precisa natureza [afigura-se-nos que, em regra e conforme tem sido entendido pela nossa doutrina e jurisprudência, quaisquer vícios dessa índole mostrar-se-ão sanados se os órgãos com competência disciplinar acolherem a proposta do instrutor do procedimento disciplinar e despedirem legitimamente o trabalhador arguido].

V – Afigura-se-nos que o referido Administrador da Ré possuía genuínos poderes delegados para instaurar e decidir o procedimento disciplinar da Autora, como veio a acontecer, o que significa que não nos encontramos perante qualquer um dos cenários antes traçados e que, com base na «ineficácia jurídica» [que se verificará relativamente ao trabalhador e ao empregador ou apenas quanto ao primeiro, caso se conclua que o segundo ratificou, de forma pelo menos tácita, dos atos praticados em tal procedimento disciplinar] poderia determinar, a jusante, a invalidade de todo o procedimento disciplinar ou, pelo menos, da decisão final disciplinar.

VI - Sem prejuízo do que o Código das Sociedades Comerciais estipula quanto à forma como as sociedades anónimas podem ser representadas e se obrigar perante terceiros, o Código do Trabalho, quanto ao exercício do poder disciplinar da empregadora introduz um regime jurídico especial muito mais flexível [número 4 do artigo 329.º], que consente mesmo que tal poder seja delegado e assumido por um seu trabalhador hierarquicamente responsável [diretor dos recursos humanos, gerente, encarregado, etc.].

Decisão Texto Integral:
RECURSO DE REVISTA N.º 18757/23.9T8PRT-A.P1.S1 (4.ª Secção)

Recorrente: AA

Recorrida: PRIO ENERGY, S.A.

(Processo n.º 18757/23.9T8PRT – Tribunal Judicial da Comarca do Porto - Juízo do Trabalho ... - Juiz ...)

ACORDAM NA SECÇÃO SOCIAL DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:

I – RELATÓRIO

1. AA (trabalhadora), preencheu o formulário a que alude os artigos 98.º-C, e 98.º-D do Código de Processo do Trabalho, contra “PRIO, ENERGY, S.A.” (empregadora), dando início, no dia 31/10/2023, à presente ação de impugnação judicial de regularidade e licitude do despedimento, pedindo que seja declarado ilícito o despedimento de que foi alvo com as legais consequências.


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2. Realizada a Audiência de Partes não foi possível solucionar consensualmente o pleito, e o processo prosseguiu com o articulado a motivar o despedimento apresentado pela empregadora e junção do respetivo procedimento disciplinar.

Nesse articulado (em síntese) a empregadora pugna que os comportamentos infracionais que imputa à trabalhadora consubstanciam graves violações culposas de deveres laborais, designadamente, os identificados nas alíneas a), d), e) e h) do n.º 2 do artigo 351.º do Código do Trabalho, bem como das alíneas a), b), d) e l) do n.º 1, da Cláusula 13.ª do Contrato Coletivo de Trabalho entre a ANAREC e a FEPCES., pelo que a presente ação deve ser julgada totalmente improcedente.

Se assim não se entender opõe-se à reintegração da trabalhadora, nos termos previstos no artigo 392.º do Código do Trabalho.


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3. A trabalhadora contestou defendendo-se, em síntese, nos seguintes moldes:

- Defesa por exceção (ineptidão do articulado motivador de despedimento).

- Da falta de junção do processo disciplinar.

- Da falta de poderes do emitente para a decisão de despedimento (v.g. o administrador da Ré que proferiu a decisão de despedimento não tinha poderes para tal pelo que a mesma não só não vincula aquela, como é uma decisão nula).

Formula ainda pedido reconvencional, pedindo que a empregadora seja condenada a reintegrar a trabalhadora no seu posto de trabalho com todos os direitos, incluindo os inerentes à sua categoria profissional e à sua antiguidade (ou, se essa for a opção feita até ao termo da discussão em audiência final de julgamento, a pagar-lhe a indemnização prevista no artigo 391.º do Código do Trabalho); e ainda condenada a pagar, as retribuições intercalares desde a data do despedimento até ao trânsito em julgado da decisão; juros moratórios à taxa legal calculados sobre cada uma das prestações pedidas; e ainda a quantia de € 2.000,00 a título de indemnização por danos morais.


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4. A última sessão da Audiência Prévia teve lugar no dia 19.04.2024, tendo-se gorado a tentativa de conciliação das partes.

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5. A Meritíssima Juíza a quo fixou o valor da ação em € 30.000,01.

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6. Foi proferido, com data de 17/06/2024, o despacho saneador nele se conhecendo da questão prévia da validade da decisão de despedimento, que culminou com a seguinte decisão:

“No caso que aqui se aprecia, no âmbito da decisão que despoletou a instauração do procedimento disciplinar, a aqui demandada, deveria ter procedido à junção ou da ata avulsa de delegação de poderes, conjuntamente com as cartas que justificam a ausência e representação dos administradores ali indicados, ou ter procedido ao registo desta mesma deliberação, para assegurar a sua eficácia perante as pessoas a quem se dirigia, neste caso, quer a Autora, quer estruturas de representação coletiva de trabalhadores que possam existir na empresa, aplicando-se, ao caso presente, mutatis mutandis as regras referentes à concessão de mandato, já que, na verdade, é essencialmente disso que trata a delegação de poderes – cfr.

Estando, pois, perante uma decisão final que é ineficaz relativamente à Autora, não resta senão concluir pela nulidade do despedimento que lhe foi comunicado, de acordo com o disposto no art.º 61.º, n.º 2 ex vi do art.º 98.º-M, n.º 1, ambos do C.P.T.

Esta nulidade, determina, a reintegração da trabalhadora visada, sem prejuízo da mesma vir optar pelo pagamento de indemnização, até ao encerramento da discussão da causa e o pagamento pela R. das retribuições vencidas desde a data do despedimento e as vincendas até ao trânsito em julgado da presente decisão, subtraído do montante que a mesma tenha, nesse período temporal, auferido, a título de remunerações por exercício de atividade profissional remunerada ou de subsídio de desemprego, a apurar, condenando-se, desde já, a Ré nestes mesmos termos.

Fixa-se a este pedido o valor de € 30.000,01.

Custas pela Ré nesta parte.

Registe e notifique.”.


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7. Foi interposto recurso de Apelação pela Ré, o qual subiu em separado com efeito suspensivo ao Tribunal da Relação do Porto.

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8. Por Acórdão de 01/11/2024 foi decidido pela 2.ª instância o seguinte:

“Pelo exposto, acordam as juízas desembargadoras da Secção Social do Tribunal da Relação do Porto em julgar procedente o recurso de apelação em separado da empregadora e, em consequência, revogar a decisão recorrida, a qual deverá ser substituída por outra que determine a subsequente tramitação regular dos autos.

Custas do recurso nos termos e proporção que vierem a ser definidas na decisão final (artigo 527.º, do Código de Processo Civil).

Valor do recurso: o da ação (artigo 12.º, n.º 2, do Regulamento das Custas Processuais).

Notifique e registe.”.


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9. Foi interposto recurso ordinário de revista.

Foi determinada a subida do recurso por despacho de 17/12/2024.


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10. Vindo a subir este recurso ao Supremo Tribunal de Justiça [STJ], foi objeto de um despacho liminar onde foi entendido se mostrarem reunidos os pressupostos formais de cariz geral que se mostram legalmente previstos para a Revista, muito embora a sua tramitação deveria ter corrido em separado e não nos próprios autos, irregularidade essa cuja sanação foi ordenada pelo Juiz-conselheiro relator e levada a efeito, com a descida dos autos principais ao tribunal da 2.ª instância e a organização deste recurso de revista em Apenso autónomo e que ficou pendente neste STJ.

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11. A recorrente AA veio apresentar alegações e formular as seguintes conclusões:

«1. O Acórdão do Tribunal da Relação do Porto violou a lei substantiva e adjetiva, em concreto o art.º 329/4 do Código do Trabalho (CT), e art.º 61/2 ex vi do art.º 98-M/1 ambos do C.P.T., uma vez que a Recorrida foi despedida por decisão subscrita por quem não tinha poderes para o fazer.

2. Muito bem andou o Tribunal do Trabalho do Porto, em sede de saneador-sentença, em considerar nulo o despedimento da Recorrente, por falta de poderes do emitente da decisão de despedimento, como se verifica pela fundamentação que supra se deixa transcrita, e para a qual se remete integralmente.

3. O n.º 1 do artigo décimo oitavo dos estatutos da Recorrida prevê que “A Sociedade vincula-se: a) pela assinatura do Presidente do Conselho de Administração; b) pela assinatura de dois administradores; c) pela assinatura de uma administrador delegado, no âmbito da delegação de poderes do Conselho de Administração; d) pela assinatura de um ou mais procuradores, nos termos da respetiva procuração”.

4. A decisão de despedimento foi emitida por BB, vogal da Recorrida, o qual não tinha poderes, por si só, para vincular esta.

5. De acordo com o disposto no art.º 329.º do CT, o poder disciplinar é exercido pelo empregador, pelo que, tratando-se o empregador, no caso concreto, uma sociedade anónima, o poder disciplinar deve ser exercido pelo seu conselho de administração (vd. art.º 405.º do CSC).

6. No caso em apreço, temos que a Recorrida, no procedimento disciplinar em causa, obriga-se, de acordo com os seus estatutos, com a assinatura de dois dos membros do seu conselho de administração (sendo norma supletiva a constante do art.º 410.º do C.S.C.), mas, de acordo com a Insc. 23 da sua certidão permanente, a mesma pessoa coletiva deliberou que a forma de obrigar é a mais bem descrita em 3 das presentes conclusões.

7. De modo a justificar a sua legitimidade, a Recorrida juntou ata avulsa do conselho de administração de 20/09/2022, já após a conclusão do processo disciplinar e de ter proferido decisão de despedimento, na qual aquele órgão estatutário deliberou conceder ao vogal do conselho de administração BB, os poderes para intentar procedimentos disciplinares e proferir as respetivas decisões.

8. Esta ata não consta do procedimento disciplinar, tendo surgido nos autos apenas após a apresentação do articulado de contestação/reconvenção pela Recorrente em que suscitou, precisamente, a questão da falta de poderes do vogal para emitir a decisão final de despedimento.

9. Trata-se dum requisito de validade da decisão disciplinar que deveria ter acompanhado a decisão final, e a decisão de instauração do inquérito prévio, já que tem data anterior à decisão de despedimento, de forma a validar a intervenção do administrador-delegado desacompanhado dos demais membros do conselho de administração.

10. Verifica-se ainda que, na reunião em apreço, apenas compareceram o indicado vogal e um outro vogal da mesma sociedade CC, e quando confrontada com a alegação de invalidade da ata pela aqui Recorrente, com esse fundamento, a Recorrida veio juntar novos documentos, desta feita, duas cartas emitidas pelos demais administradores para que os que ali compareceram os representassem na reunião do conselho de administração de 20/09/2022.

11. A Recorrida, à medida em que verificava a violação dos formalismos exigidos para a validade da decisão de despedimento, ia tentando, já em sede judicial, suprir as insuficiências do processo disciplinar.

12. As ditas cartas haviam, igualmente, de ter acompanhado a ata da deliberação que legitima a intervenção do vogal que subscreve a decisão final do procedimento disciplinar em causa, já que se trata de procedimentos prévios que atestam o cumprimento dos formalismos legais.

13. Analisadas as cartas em apreço, verifica-se que não só as mesmas não se mostram dirigidas ao presidente do conselho de administração, como determina o preceituado no art.º 410.º/5 do C.S.C., como resulta do seu teor, que o próprio presidente, a quem as cartas se deveriam dirigir, é o emitente duma destas missivas, ou seja, DD.

14. DD que, de acordo com a certidão permanente da Recorrida junta aos autos, exerce as funções de presidente do conselho de administração e delegou noutro vogal a sua presença na reunião em apreço, pelo que se encontra, desde logo, em clara violação daquele indicado preceito legal - até porque, ainda de acordo com o n.º 1 da mesma norma, sempre a reunião do conselho de administração deveria ter sido convocada pelo próprio.

15. Estamos perante uma reunião do conselho de administração em que apenas estão presentes dois vogais, sendo que nenhum deles é o presidente do conselho de administração, e não estando a respetiva ata (igualmente não inscrita no livro de atas, tal como preceitua o art.º 63.º/5 do C.S.C.), ou as cartas remetidas pelos demais membros do conselho de administração juntas aos autos do procedimento disciplinar.

16. Por tal motivo, e desde logo, a decisão disciplinar em apreço encontra-se ferida de invalidade, por violação do estatuído no art.º 329.º/4 do CT, dado que não se pode concluir que tenha sido o empregador quem exerceu o poder disciplinar relativamente à aqui demandante. Ademais.

17. Decorre do texto da ata avulsa junta aos autos, que os membros do conselho de administração da Recorrida delegam no vogal que subscreve a mesma decisão, vários poderes “para sozinho, em nome e representação da sociedade…” praticar os atos ali descritos, pelo que estaremos perante uma delegação em termos próprios, prevista no art.º 407.º do CSC, ou seja, em que os membros daquele órgão colegial limitam os seus poderes, atribuindo-os a um administrador delegado, que passa a poder, sem a necessidade de intervenção de qualquer outro membro do conselho de administração, exercer atos de gestão que até aí requeriam a assinatura de, pelo menos, outro administrador.

18. Com esta delegação de poderes passam a existir, dentro da mesma empresa, administradores executivos e não executivos, quanto às matérias delegadas e esta circunstância, prevista pela deliberação a que acima se fez menção, de 03/11/2020, ainda que putativamente legítima, determina uma alteração substancial do poder de representação da empresa.

19. Por tal motivo, essa delegação de poderes teria de ter sido inscrita na respetiva certidão permanente, de forma a ser oponível a terceiros, já que de outro modo, não há forma desses terceiros tomarem conhecimento da validade dos atos praticados pelo administrador-delegado, o que é válido para a aqui Recorrida

20. No caso que aqui se aprecia, no âmbito da decisão que despoletou a instauração do procedimento disciplinar, a aqui Recorrida tinha o dever de ter procedido à junção ou da ata avulsa de delegação de poderes, conjuntamente com as cartas que justificam a ausência e representação dos administradores ali indicados, ou ter procedido ao registo desta mesma deliberação, para assegurar a sua eficácia perante as pessoas a quem se dirigia, neste caso, a Recorrente, aplicando-se, ao caso presente, mutatis mutandis as regras referentes à concessão de mandato, já que, na verdade, é essencialmente disso que trata a delegação de poderes – cfr. art.º 407.º do C.S.C.

21. Considera a Recorrente e mantém, respeitosamente, o seu entendimento, de que estamos perante uma decisão final que é ineficaz relativamente a esta, pelo que não restaria senão concluir pela nulidade do despedimento que lhe foi comunicado, de acordo com o disposto no art.º 61.º/2 ex vi do art.º 98.º-M/1 ambos do C.P.T., o que bem se considerou, e que se considera ser a decisão que, com justeza, faz subsumir os factos ao direito, pelo que deve ser declarada a nulidade da decisão de despedimento, com as demais consequências legais.

22. Aliás, a Recorrida sempre tinha o dever de juntar, ao processo disciplinar, todos os elementos mediante os quais a Recorrente tivesse conhecimento de que, dentro dos pressupostos relativos à prática de atos que vinculem esta, sendo que, ao não fazê-lo, nunca pode vir suprir a posteriori as manifestas insuficiências do processo disciplinar e da decisão de despedimento, em sede de impugnação judicial da regularidade e licitude do despedimento.

23. Como alegado nos autos, ao delegar BB nele próprio poderes, neste caso para vincular a sociedade em processos de natureza laboral, por analogia, convocam-se os art.ºs 258.º e 261.º do Código Civil (C. Civ.), ou seja, o outorgante BB efetua um negócio consigo mesmo, o que não é admitido pela Lei, nem pela jurisprudência, até porque existe um manifesto conflito de interesses – isto, caso se entenda que não é legítima a delegação de poderes.

24. As atas que alegadamente legitimam o referido administrador-delegado são meros documentos avulsos, sendo que as mesmas teriam de constar do livro de atas da Recorrida, (vd. art.ºs 16.º, 46.º e 139.º do Código dos Registos e Notariado – CRN), em especial a obrigação de existência de livro de atas, e de sujeição a registo das deliberações ou instrumentos de procuração, ou análogos, o que não acontece.

25. Nessa medida, e pelos argumentos aduzidos, aderindo com a devida vénia a parte substancial da fundamentação da douta sentença proferida pelo Tribunal de Trabalho de Porto, deverá o Acórdão em crise ser revogado por este Venerando Tribunal, e concluir-se pela nulidade do despedimento, nos exatos termos que a referida sentença decidiu.

Nestes termos, e nos mais que doutamente serão supridos, deve ser dado provimento à presente Revista, revogando-se o Acórdão em crise, e manter-se in totum a douta Sentença proferida pelo Tribunal de Trabalho do Porto, doutamente e em preito à JUSTIÇA!»


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12. A Ré PRIO ENERGY, S.A. respondeu a tais alegações, não tendo, contudo, formulado conclusões, limitando-se a pedir, no final so seu articulado, o seguinte:

«Termos em que devem Vossas Excelências julgar inadmissível o presente recurso, não o admitindo, ou, caso assim não seja negar provimento ao mesmo, confirmando integralmente o Acórdão Recorrido, assim fazendo JUSTIÇA.»


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13. O Ministério Público emitiu Parecer no sentido da improcedência da revista, tendo concluído o mesmo nos seguintes termos:

«Somos, assim, de parecer que o presente recurso de revista deverá ser julgado improcedente, mantendo-se o douto acórdão recorrido.»


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14. Satisfeito o disposto no artigo 657.º, n.º 2, ex vi do artigo 679.º, ambos do CPC, cumpre apreciar e decidir.

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II. - FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

15. As instâncias não fixaram, de forma autónoma, os factos que consideram provados e relevantes para o julgamento das questões aqui em recurso, tendo o Tribunal da Relação do Porto remetido simplesmente para os que se mostram descritos no Relatório do seu Aresto, muito embora venha, como ressalta da Fundamentação de Direito que iremos transcrever noutra parte deste Aresto, elencara depois diversos factos que ressaltam essencialmente da documentação junta aos autos pela Ré recorrida.


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III. - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO.

16. É pelas conclusões do recurso que se delimita o seu âmbito de cognição, nos termos do disposto nos artigos 87.º do Código do Processo do Trabalho e 639.º e 635.º, n.º 4, ambos do Novo Código de Processo Civil, salvo questões do conhecimento oficioso (artigo 608.º n.º 2 do NCPC).


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A – REGIME ADJETIVO E SUBSTANTIVO APLICÁVEL

17. Importa, antes de mais, definir o regime processual aplicável aos presentes autos, atendendo à circunstância da presente ação ter dado entrada em tribunal em dia 03/10/2023, ou seja, significativamente depois das alterações introduzidas pela Lei n.º 107/2019, datada de 4/9/2019 e que começou a produzir efeitos em 9/10/2019.

Esta ação, para efeitos de aplicação supletiva do regime adjetivo comum, foi instaurada também muito após a entrada em vigor do Novo Código de Processo Civil, que ocorreu no dia 1/9/2013.

Será, portanto, e essencialmente, com os regimes legais decorrentes da atual redação do Código do Processo do Trabalho e do Novo Código de Processo Civil como pano de fundo adjetivo, que iremos apreciar as diversas questões suscitadas neste recurso de Apelação.

Também se irá considerar, em termos de custas devidas no processo, o Regulamento das Custas Processuais, que entrou em vigor no dia 20 de Abril de 2009 e se aplica a processos instaurados após essa data.

Importa, finalmente, atentar na circunstância dos factos que se discutem no quadro destes autos terem todos ocorrido, essencialmente, na vigência do Código do Trabalho de 2009, que entrou em vigor em 17/02/2009, sendo, portanto, o regime derivado desse diploma legal que aqui irá ser chamado essencialmente à colação, em função da factualidade considerada.

B – OBJETO DA REVISTA

18. Neste recurso de revista há que decidir as seguintes questões:

- Se BB tinha poderes para vincular a Ré na decisão da instauração e decisão final do procedimento disciplinar;

- Se a Ré deveria ter procedido à junção da ata avulsa de delegação de poderes, conjuntamente com as cartas que justificam a ausência e representação dos administradores ali indicados, ou ter procedido ao registo desta mesma deliberação;

- E, consequentemente, se o despedimento é nulo.

C – ENQUADRAMENTO JURÍDICO DO OBJETO DO RECURSO

19. As questões suscitadas neste recurso de revista radicam-se na verificação ou não da invalidade do procedimento disciplinar instaurado pela Ré contra a Autora e que culminou no seu despedimento com invocação de justa causa, por falta de poderes de BB para vincular a empregadora, quer na decisão de abrir o referido procedimento, como na que se traduziu na aludida cessação unilateral da relação laboral firmada entre as partes, que o mesmo assinou.

Não será despiciendo fazer, muito em síntese, o enquadramento jurídico da situação discutida nos autos e que nos remete, em primeiro lugar e no âmbito do Código do Trabalho de 2009, para as disposições legais que regulam o poder disciplinar de que é titular o empregador [artigo 98.º] e que segundo o artigo 329.º, número 4 «pode ser exercido diretamente pelo empregador, ou por superior hierárquico do trabalhador, nos termos estabelecidos por aquele».

Em segundo lugar, há que olhar para a regulamentação legal da instauração e da tramitação do procedimento disciplinar [que, dado a Ré não ser uma microempresa, se acha prevista nos artigos 339.º e 352.º a 357.º, não nos parecendo curial, atento o objeto da revista e com exceção do número 4 do artigo 329.º já antes transcrito, fazer a convocação para aqui das normas dos artigos 328.º a 332.º do mesmo diploma legal, na parte aplicável].

Finalmente, há que atender às disposições legais que nos elencam os fundamentos de cariz formal e substancial que implicam a invalidade do despedimento com justa causa [artigos 381.º e 382.º do CT/2009].

Ora, tendo sido levantado um procedimento disciplinar formal contra a Recorrente, é manifesto que qualquer nulidade jurídica que vicie o mesmo de forma inexorável tem de estar contida no referido artigo 382.º, que possui a seguinte redação:

Artigo 382.º

Ilicitude de despedimento por facto imputável ao trabalhador

1 - O despedimento por facto imputável ao trabalhador é ainda ilícito se tiverem decorrido os prazos estabelecidos nos n.ºs 1 ou 2 do artigo 329.º, ou se o respetivo procedimento for inválido.

2 - O procedimento é inválido se:

a) Faltar a nota de culpa, ou se esta não for escrita ou não contiver a descrição circunstanciada dos factos imputados ao trabalhador;

b) Faltar a comunicação da intenção de despedimento junta à nota de culpa;

c) Não tiver sido respeitado o direito do trabalhador a consultar o processo ou a responder à nota de culpa ou, ainda, o prazo para resposta à nota de culpa;

d) A comunicação ao trabalhador da decisão de despedimento e dos seus fundamentos não for feita por escrito, ou não esteja elaborada nos termos do n.º 4 do artigo 357.º ou do n.º 2 do artigo 358.º.

Diremos que duma leitura atenta dos diversos motivos para o legislador laboral considerar irremediavelmente inválido o procedimento disciplinar, não ressalta dos mesmos, de forma direta ou indireta, qualquer menção à falta de poderes de representação da empregadora - quer esta última seja uma pessoa singular ou coletiva – por parte do indivíduo ou entidade que subscreve, em nome daquela, os diversos atos em que se desdobra o procedimento disciplinar e que, grosso modo, se traduzem na sua abertura, com precedência ou não de autos de averiguações [para quem os admita] e inquérito prévio ou até com a realização posterior de diligências de diversa natureza, dedução de Nota de Culpa e comunicação da intenção de despedimento, Resposta à Nota de Culpa, com consulta ou não dos autos, instrução [produção de prova] e elaboração pelo instrutor nomeado do relatório final e decisão final de despedimento e correspondente notificação ao trabalhador arguido.

Ora, a ser assim, os vícios específicos invocados pela trabalhadora não cabem, de uma forma direta e imediata, no elenco de invalidades que se mostram descritas nas diversas alíneas do artigo 382.º do Código do Trabalho de 2009 e que, em si e só por si, implicam a nulidade do procedimento disciplinar e a ilicitude do correspondente despedimento.

É, no entanto, evidente que se for determinada a instauração de um dado procedimento disciplinar por quem, dentro da organização do empregador, não tiver competência disciplinar, originária ou delegada, e se tal cenário se mantiver até ao termo daquele processo, sem que ocorra a sua oportuna sanação por quem é efetivamente titular daquele poder disciplinar, tal pode inquinar jurídica e totalmente este último.

Verifica-se, com efeito e, em rigor, que, apesar de física e materialmente tal processo existir, não possui, contudo, verdadeiramente, essa natureza jurídica, por não ter sido desencadeado ou ratificado por quem tinha aquela competência, podendo tal situação ser equiparada ou reconduzida, afinal, à falta de procedimento disciplinar quanto ao trabalhador visado pelo mesmo [alínea c) do artigo 381.º do CT/2009].

Também podemos nos deparar com uma decisão disciplinar que, ao não ser subscrita ou ratificada por quem, em nome e representação da empregadora, tem os poderes legais e necessários para obrigar a mesma, tem de ser considerada inválida, dado a mesma, à semelhança do que referimos atrás para o procedimento disciplinar, não possuir genuinamente essa precisa natureza [afigura-se-nos que, em regra e conforme tem sido entendido pela nossa doutrina e jurisprudência, quaisquer vícios dessa índole mostrar-se-ão sanados se os órgãos com competência disciplinar acolherem a proposta do instrutor do procedimento disciplinar e despedirem legitimamente o trabalhador arguido].

Afigura-se-nos que a Autora pretende discutir, neste preciso plano, as diversas questões que deixámos acima enunciadas e que mereceram julgamento oposto por parte das instâncias pois que, ao passo que o tribunal de comarca entendeu que se verificava a nulidade do procedimento disciplinar que levou ao despedimento da Autora com base na falta dos necessários poderes de índole disciplinar, o Tribunal da Relação do Porto já perspetivou tal matéria de maneira radicalmente diferente, considerando juridicamente válido o dito procedimento disciplinar.

Importa não olvidar, por outro lado e no que toca a esta problemática, que a entidade empregadora é uma sociedade anónima e que, nessa medida e para a devida análise dos órgãos ou pessoas que podem agir em nome e representação daquela e dos meios legais através dos quais a mesma se obriga juridicamente perante terceiros [como será o caso dos seus trabalhadores] há que lançar mão ao Código das Sociedades Comerciais [CSC] e ao Código Civil [CC], na parte supletivamente aplicável [cf., por exemplo, os artigos 162.º a 164.º e 996.º].

Ora, basta compulsar o regime jurídico relativo à administração das sociedades anónimas e que, para o aqui releva, se mostra previsto nos artigos 390.º, 391.º, 395.º e 405.º a 409.º do CSC para ficarmos com uma ideia mais ou menos exata da maneira como tal tipo de sociedades são representadas e se vinculam [muito embora não se possa olvidar aqui a norma especial do número 4 do artigo 329.º do CT/2009, que se sobrepõe, de uma maneira muito relevante, a este regime geral societário muito mais exigente e formalista].

D – POSIÇÃO OPOSTA DAS INSTÂNCIAS

20. O tribunal da 1.ª instância, para declarar a invalidade do procedimento disciplinar instaurado contra a Autora desenvolveu a seguinte argumentação jurídica:

«Em primeiro lugar, cumpre salientar que, de acordo com o disposto no art.º 329.º do Cód. do Trabalho, o poder disciplinar é exercido pelo empregador; ora, tratando-se o empregador, no caso concreto, uma sociedade anónima, não se pode deixar de concluir que o poder disciplinar, deve ser exercido pelo seu conselho de administração, órgão que, no seguimento do estatuído no art.º 405.º do C.S.C. gere a empresa e a representa.

Pois bem, no caso em apreço, temos que a aqui demandada, no procedimento disciplinar em causa, obriga-se, de acordo com os seus estatutos, com a assinatura de dois dos membros do seu conselho de administração (sendo norma supletiva a constante do art.º 410.º do C.S.C.), mas, de acordo com a Insc. 23 da sua certidão permanente, a mesma pessoa coletiva deliberou que a “Forma de obrigar: a) pela assinatura do presidente do conselho de administração; b) pela assinatura de dois administradores; c) pela assinatura de um administrador delegado, no âmbito da delegação de poderes do conselho de administração; d) pela assinatura de um ou mais procuradores.”. Ora, de modo a justificar a sua legitimidade, a demandada juntou ata avulsa do conselho de administração de 20/09/2022, na qual aquele órgão estatutário deliberou conceder ao vogal do conselho de administração BB, os poderes para intentar procedimentos disciplinares e proferir as respetivas decisões. Sucede que, desde logo, esta ata não consta do procedimento disciplinar, tendo surgido nos autos apenas após a apresentação do articulado de contestação/reconvenção pela Autora em que suscitou, precisamente, a questão da falta de poderes do vogal para emitir a decisão final de despedimento. Trata-se dum requisito de validade da decisão disciplinar que, em nosso entender, deveria ter acompanhado a decisão final, ou até mesmo a decisão de instauração do inquérito prévio, já que tem data anterior a esta decisão da Ré, de forma a validar a intervenção do administrador-delegado desacompanhado dos demais membros do conselho de administração.

Mas, mesmo que assim não fosse, verifica-se ainda que, na reunião em apreço, apenas compareceram o indicado vogal e um outro vogal da mesma sociedade CC, e novamente confrontada com a alegação de invalidade da ata pela aqui demandante, com esse fundamento, a Ré veio juntar novos documentos, desta feita, duas cartas emitidas pelos demais administradores para que os que ali compareceram os representassem na reunião do conselho de administração de 20/09/2022, pelo que, desde logo, estas cartas haviam, igualmente, de ter acompanhado a ata da deliberação que legitima a intervenção do vogal que subscreve a decisão final do procedimento disciplinar em causa, já que se trata de procedimentos prévios que atestam o cumprimento dos formalismos legais.

Mas, analisadas as cartas em apreço, verifica-se que não só as mesmas não se mostram dirigidas ao presidente do conselho de administração, como determina o preceituado no art.º 410.º n.º 5 do C.S.C., como resulta do seu teor, que o próprio presidente, a quem as cartas se deveriam dirigir, é o emitente duma destas missivas, ou seja, DD, que de acordo com a certidão permanente da Ré junta aos autos exerce as funções de presidente do conselho de administração delegou noutro vogal a sua presença na reunião em apreço, o que, cremos se encontra, desde logo, em clara violação daquele indicado preceito legal. Até porque, ainda de acordo com o n.º 1 da mesma norma, sempre a reunião do conselho de administração deveria ter sido convocada pelo próprio, mas quanto a esta convocação a Ré nada veio invocar.

Temos, assim, uma reunião do conselho de administração em que apenas estão presentes dois vogais, sendo que nenhum deles é o presidente do conselho de administração, e não estando a respetiva ata (igualmente não inscrita no livro de atas, tal como preceitua o art.º 63.º, n.º 5 do C.S.C.), ou as cartas remetidas pelos demais membros do conselho de administração juntas aos autos do procedimento disciplinar, o que, em nosso entender, seria, desde já, suficiente para se considerar que a decisão disciplinar em apreço se encontra ferida de invalidade, por violador do estatuído no art.º 329.º, n.º 4 do Cód. do Trabalho, dado que não se pode concluir que tenha sido o empregador quem exerceu o poder disciplinar relativamente à aqui demandante. Mas, a estas considerações acresce ainda uma outra constatação que, em nosso entender, inquina igualmente a decisão final aqui em apreço.

Decorre do texto da ata avulsa, acima indicada, que os membros do conselho de administração da Ré delegam no vogal que subscreve a mesma decisão, vários poderes “para sozinho, em nome e representação da sociedade…” praticar os atos ali descritos, pelo que estaremos perante o que doutrinariamente se denomina de delegação em termos próprios, prevista no art.º 407.º do mesmo diploma legal, ou seja, em que os membros daquele órgão colegial limitam os seus poderes, atribuindo-os a um administrador delegado, que passa a poder, sem a necessidade de intervenção de qualquer outro membro do conselho de administração, exercer atos de gestão que até aí requeriam a assinatura de, pelo menos, outro administrador. Com esta delegação de poderes passam a existir, dentro da mesma empresa, administradores executivos e não executivos, quanto às matérias delegadas e esta circunstância, prevista pela deliberação a que acima se fez menção, de 03/11/2020, parece-nos legítima, mas determinando uma alteração substancial do poder de representação da empresa, deveria ter sido inscrita na respetiva certidão permanente, de forma a ser oponível a terceiros, já que de outro modo, não há forma desses terceiros tomarem conhecimento da validade dos atos praticados pelo administrador delegado, o que é válido para a aqui demandante, como para os próprios acionistas da sociedade que, de outro modo, não poderão tomar conhecimento da delegação de poderes e das respetivas consequências jurídicas.

No caso que aqui se aprecia, no âmbito da decisão que despoletou a instauração do procedimento disciplinar, a aqui demandada, deveria ter procedido à junção ou da ata avulsa de delegação de poderes, conjuntamente com as cartas que justificam a ausência e representação dos administradores ali indicados, ou ter procedido ao registo desta mesma deliberação, para assegurar a sua eficácia perante as pessoas a quem se dirigia, neste caso, quer a Autora, quer as estruturas de representação coletiva de trabalhadores que possam existir na empresa, aplicando-se, ao caso presente, mutatis mutandis as regras referentes à concessão de mandato, já que, na verdade, é essencialmente disso que trata a delegação de poderes – cfr. art.º 407.º do C.S.C.

Estando, pois, perante uma decisão final que é ineficaz relativamente à Autora, não resta senão concluir pela nulidade do despedimento que lhe foi comunicado, de acordo com o disposto no art.º 61.º, n.º 2 ex vi do art.º 98.º-M, n.º1 ambos do C.P.T.

Esta nulidade, determina, a reintegração da trabalhadora visada, sem prejuízo da mesma vir optar pelo pagamento de indemnização, até ao encerramento da discussão da causa e o pagamento pela Ré das retribuições vencidas desde a data do despedimento e as vincendas até ao trânsito em julgado da presente decisão, subtraído do montante que a mesma tenha, nesse período temporal, auferido, a título de remunerações por exercício de atividade profissional remunerada ou de subsídio de desemprego, a apurar, condenando-se, desde já, a Ré nestes mesmos termos.»

Já o Tribunal da Relação do Porto, para proferir decisão em sentido contrário, socorre-se, para o efeito, das regras constantes dos artigos 98.º do CT/2009 e 405.º a 412.º do CSC [na parte que entendeu aplicável] e sustenta juridicamente o seguinte:

«B - Da falta de poderes do emitente para a decisão de despedimento

Este é o cerne da questão que nos é colocada.

Para à sua decisão importa trazer à colação os seguintes elementos recolhidos dos autos [1]:

✓ Ata avulsa da deliberação do conselho de Administração da Recorrente (Ref.ª ...46.º CITIUS) datada de 20.09.2022, na qual o Presidente do conselho de administração DD, e os três vogais do conselho de administração, CC, EE e BB, delegam no vogal BB os poderes (entre outros) de dar início, instruir e presidir a processos disciplinares, determinando as respetivas decisões finais.

✓ Ata essa assinada por dois administradores: CC e BB.

✓ Certidão permanente da Recorrente (Ref. ª ...25.º CITIUS).

Forma de obrigar: a) pela assinatura do presidente do conselho de administração; b) pela assinatura de dois administradores; c) pela assinatura de um administrador-delegado, no âmbito da delegação.

✓ Instrumentos de representação do vogal do conselho de administração EE e do presidente do conselho de administração DD (Ref. ª ...50) para a reunião do conselho de administração que teve lugar no dia 20.09.2022.

[…]

Feito este excurso por reporte ao caso sub judice, verifica-se que:

1 - O contrato de sociedade da Recorrente permite a figura do administrador-delegado (artigo 407.º, n.º 1, do Código das Sociedades Comerciais).

2 – No dia 20.09.2022, houve deliberação do conselho de administração, nos termos da qual foram delegados ao administrador BB emitente da decisão de despedimento: “poderes para dar início, instruir e presidir a processos disciplinares, determinando as respetivas decisões finais”.

3 – A deliberação foi tomada no cumprimento do disposto nos n.ºs 4 e 7 do artigo 410.º do Código das Sociedades Comerciais – a) preenchimento do quórum constitutivo (dois administradores presentes e um deles a representar os dois ausentes); b) e do quórum deliberativo (a ata foi assinada pelos dois administradores presentes nessa reunião).

Destarte, impõe-se concluir que a atuação intrassocietária do Administrador BB na decisão da instauração e decisão final do procedimento disciplinar à trabalhadora correspondeu juridicamente à atuação da pessoa coletiva.

Segundo a máxima, não são os administradores que agem pela sociedade; é a sociedade que age por meio dos administradores.

A representação subjacente à relação ou contrato de administração não é uma representação em sentido técnico-jurídico, mas sim uma representação orgânica.

Nas palavras de Luís Brito Correia [2]:

«Considera-se que a pessoa coletiva, como um ente abstrato, embora juridicamente real, não tem uma existência físico-psíquica, e, por isso, só pode agir no mundo do direito na medida em que pessoas físicas ponham ao serviço dela a sua vontade atuante. (...)

O órgão faz parte integrante da pessoa coletiva, do seu modo de ser. A vontade do órgão é atribuída à pessoa coletiva: é a vontade da pessoa coletiva.

Não se trata de pessoas físicas que agem para o ente coletivo, mas é o próprio ente que quer e age. (...). Deste modo a vontade do órgão não substitui a vontade da pessoa coletiva. A vontade do órgão, expressa pelas pessoas físicas nele providas no exercício das suas funções, é atribuída, em si mesma à pessoa coletiva, vale como vontade desta.» (Fim da transcrição)

Aqui chegados, impõe-se concluir que, ao contrário do decidido na decisão recorrida, a decisão final do procedimento disciplinar não é ineficaz relativamente à trabalhadora e o despedimento não é nulo.»

E – LITÍGIO DOS AUTOS

21. Dir-se-á que concordamos com a posição sustentada pelo Tribunal da Relação do Porto [TRP], pois também se nos afigura que o referido Administrador BB possuía genuínos poderes delegados para instaurar e decidir o procedimento disciplinar da Autora, como veio a acontecer, o que significa que não nos encontramos perante qualquer um dos cenários por nós traçados e que, com base na «ineficácia jurídica» [que se verificará relativamente ao trabalhador e ao empregador ou apenas quanto ao primeiro, caso se conclua que o segundo ratificou, de forma tácita, os atos praticados em tal procedimento disciplinar, sem o conhecimento do trabalhador arguido - cf., por exemplo, os artigos 268.º, 269.º, 471.º do Código Civil] poderia determinar, a jusante, a invalidade de todo o procedimento disciplinar ou, pelo menos, da decisão final disciplinar.

O TRP não se debruçou expressamente sobre a questão da ineficácia jurídica dos atos do referido administrador, por a referida delegação própria, nas palavras da 1.ª instância, não ter sido registada na Conservatória do Registo Comercial, como deveria ter acontecido.

A sentença do tribunal de comarca considera que a decisão disciplinar de despedimento é juridicamente ineficaz relativamente à Autora, mas interessa, quanto a essa tese, precisar que uma decisão ineficaz não é uma decisão nula, nos termos e para os efeitos do artigo 382.º do CT/2009.

Por outro lado, sem prejuízo do que o CSC estipula quanto à forma como as sociedades anónimas podem ser representadas e se obrigar perante terceiros, o Código do Trabalho, quanto ao exercício do poder disciplinar da empregadora introduz um regime jurídico especial muito mais flexível [o acima reproduzido número 4 do artigo 329.º], que consente mesmo que tal poder seja delegado e assumido por um seu trabalhador hierarquicamente responsável [diretor dos recursos humanos, gerente, encarregado, etc.], o que suscita, desde logo, dúvidas quanto à obrigatoriedade de qualquer registo [inclusive, comercial] quanto a essa delegação.

Os seguintes Acórdãos deste Supremo Tribunal de Justiça referem-se a casos de delegação do poder disciplinar por parte da empregadora noutras pessoas [advogado e diretor de operações de voo]:

- Aresto do STJ de 21/03/2012, Processo n.º 161/09.3TTVLG.P1.S1 - 4.ª Secção, Relator: Fernandes da Silva, publicado em https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/cf994124238f5920802579cd003881d2?OpenDocument, com o seguinte Sumário:

«I - A titularidade do poder disciplinar, enquanto emanação essencial contida no contrato de trabalho, (que, por definição, conforma a posição de supremacia ou autoridade do empregador, nessa relação, por contraposição à característica subordinação jurídica do trabalhador), está legalmente conferida ao empregador.

E, sendo um direito potestativo ambivalente, (com reconhecido carácter gravoso nesta sua mais característica manifestação de poder punitivo), importa reconhecer que o seu exercício – conferindo embora ao seu titular uma certa margem de natural elasticidade/discricionariedade – acarreta simultaneamente uma acrescida responsabilidade ante os limites gerais decorrentes da boa fé e do abuso do direito.

II - No que tange ao seu exercício, o empregador pode delegar os seus poderes punitivos, quer seja ao superior hierárquico do trabalhador, ou a outra pessoa, nos termos consentidos pelo art. 329.º do CT/2009, sendo certo que tal exercício há-de respeitar os termos estabelecidos pelo empregador, ou seja, sempre estes poderes estarão sujeitos, no seu exercício, à conformação do legítimo titular desse direito.

III - Não é de afirmar a invalidade do procedimento disciplinar, (com o fundamento de que a decisão final não foi proferida diretamente pela Ré/empregadora), quando está demonstrado que esta nomeou, para o efeito, como seu procurador, um advogado, a quem conferiu “os mais altos poderes em direito permitidos, e os especiais de dar sequência a um processo disciplinar contra a sua trabalhadora (…), importando esclarecer factos graves ocorridos no local de trabalho no passado dia 07 de Março de 2009, a partir das 14h00”, que, para além de instruir o respetivo processo disciplinar, notificou a A., a final, da decisão de rescindir o contrato de trabalho que a ligava à Ré, com justa causa e efeito imediato.

Desde logo, porque não se verifica a ocorrência de qualquer das omissões elencadas no n.º 2 do art.º 382.º do CT e a Autora, em tempo oportuno, não manifestou que tivesse quaisquer dúvidas sobre a delegação desses poderes, dúvidas que, a existirem, deveria ter dissipado, nos termos determinados no art.º 260.º, n.º 1 do CC, exigindo que o representante deles fizesse prova, sob pena de a declaração não produzir efeitos.»

- Aresto do STJ de 25/06/2014, Processo n.º 1231/09.3TTLSB.L1.S1 - 4.ª Secção, Relator: Melo Lima, publicado em https://juris.stj.pt/ecli/ECLI:PT:STJ:2014:1231.09.3TTLSB.L1.S1.CD?search=KrtQK0hh1zClHpxinLU, com o seguinte Sumário parcial:

«II - A deliberação tomada pelo Conselho de Administração Executivo da ré, sociedade anónima, de aprovação do “Manual de Operações de Voo” que confere poderes ao Diretor de Operações de Voo para o exercício da ação disciplinar, constitui uma verdadeira delegação de poderes que, nos termos do n.º 2 do artigo 365.º do Código do Trabalho de 2003, legitima a aplicação por este de sanções disciplinares.»

Mas ainda que, para o caso dos autos, assim não se conceba, por tal poder disciplinar ter sido atribuído a um dos administradores da Ré, existe doutrina que nega estarmos perante uma genuína delegação de poderes e, para mais, face a uma delegação própria, apesar da epígrafe do artigo 407.º se referir a «Delegação de poderes de gestão».

Tal doutrina começa por falar em «delegação imprópria», para depois desconstruir essa noção e negar à afetação de poderes prevista nos números 1 e 2 daquela disposição legal as características jurídicas de uma delegação, dado os restantes administradores manterem a possibilidade de continuarem a exercer em simultâneo tais poderes atribuídos a esse outro administrador, perspetiva essa que, no entanto, já se modifica para a situação regulada nos números 3 e seguintes do mesmo artigo 407.º do CSC, onde já qualifica tal atribuição dos poderes de gestão corrente da sociedade como constituindo um delegação e ainda como uma delegação própria [3].

Logo, pelos fundamentos deixados expostos, julgamos improcedente o presente recurso de revista, com a inerente confirmação do recorrido Acórdão do Tribunal da Relação do Porto.

IV. - DECISÃO

22. Atento o exposto, acordam os Juízes que compõem a Secção Social julgar improcedente o recurso de revista interposto pela Autora AA, com a inerente confirmação do recorrido Acórdão do Tribunal da Relação do Porto.

Custas a cargo da Autora no que respeita ao presente recurso, nos termos do número 1 do artigo 527.º do CPC/2013.

Notifique e registe.

Lisboa, 30 de abril de 2025


José Eduardo Sapateiro [Juiz-Conselheiro relator]

Mário Belo Morgado [Juiz-Conselheiro adjunto]

Júlio Gomes [Juiz-Conselheiro adjunto]

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1. «NOTA: na decisão da presente questão visualizou-se no sistema Citius o histórico do processo principal (Processo n.º 10057/23.0T8PRT-P1) através do ícone visualizar processo de origem.» - NOTA DE RODAPÉ DO EXCERTO DA FUNDAMENTAÇÃO TRANCRITO, COM O NÚMERO [9].↩︎

2. «Veja-se, por todos, CORREIA, Luís Brito, in “Os Administradores de Sociedades Anónimas”, abril de 1993, Edições Almedina, S.A., p. 202.º» - NOTA DE RODAPÉ DO EXCERTO DA FUNDAMENTAÇÃO TRANCRITO, COM O NÚMERO [15].↩︎

3. Cf., por exemplo, os comentários de ALEXANDRE SOVERAL MARTINS ao artigo 407.º do Código das Sociedades Comerciais em «Código das Sociedades Comerciais em Comentário», Volume IV [artigos 373.º a 480.º], coordenação de JORGE M. COUTINHO DE ABREU, novembro de 2013, Almedina, páginas 421 e seguintes

Ver, no mesmo sentido, PAULO OLAVO CUNHA, “Direito das Sociedades Comerciais”, maio de 2010, 4.ª edição, Almedina, páginas 748 a 750, com especial relevo para a Nota de Pé de Página 973 [«A delegação de poderes não se confunde com a prática de o Conselho solicitar a um administrador, sem limitação dos poderes normais dos demais administradores, que pratique certos atos no âmbito do objeto social, nomeadamente aqueles que se reconduzem a assuntos de mero expediente [cfr. art.º 407.º, n.º1»].↩︎