Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
551/21.3T8ELV.E2-A.S1
Nº Convencional: 3.ª SECÇÃO
Relator: JORGE RAPOSO
Descritores: RECURSO PARA FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
OPOSIÇÃO DE JULGADOS
IDENTIDADE DE FACTOS
COVID-19
SUSPENSÃO DA PRESCRIÇÃO
REJEIÇÃO DE RECURSO
Data do Acordão: 03/19/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO DE FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA (PENAL)
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário :
Não existe identidade de legislação à sombra da qual foram proferidas ambas as decisões e não se verifica a oposição de julgados numa situação em que:

• o acórdão fundamento não se pronunciou sobre os prazos de suspensão de prescrição das Leis 16/2020 e 13-B/2021.

• Se o acórdão recorrido tivesse aplicado apenas os prazos de suspensão de prescrição previstos nas Leis 1-A/2020, de 19.3 (86 dias) e 4-B/2021 de 1.2 (74 dias), à semelhança do acórdão fundamento, teria declarado a prescrição e, consequentemente, não haveria decisões opostas.

• Foi apenas por causa da aplicação dos prazos de suspensão da prescrição das Leis 16/2020 e 13-B/2021 – sobre as quais o acórdão fundamento não se pronunciou – que o acórdão recorrido decidiu pela “inexistência da aludida prescrição do procedimento contraordenacional”.

Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, no Supremo Tribunal de Justiça

I. Relatório

Agro-Pecuária da Defesa do Gato, Lda., arguida nos autos, veio interpor recurso extraordinário para fixação de jurisprudência, nos termos dos art.s 437º e seguintes do Código de Processo Penal, com fundamento na oposição de julgados entre o acórdão proferido no processo 551/21.3T8ELV.E2-A.S1 do Tribunal da Relação de Évora, em 10 de Setembro de 2024 (acórdão recorrido) e o acórdão de 23 de Janeiro de 2024, do Tribunal da Relação de Évora, no proc. 6/23.1T8FTR.E1 (acórdão fundamento) apresentando a seguinte argumentação: (transcrição)

O Acordão proferido nestes autos de procedimento por contra-ordenação “concedeu provimento ao recurso”, do Mº Pº, revogando a sentença proferida em 1ª instância, que tinha o seguinte dispositivo:

“Concluindo: dado que se mostra verificado o prazo prescricional máximo em 15/02/2024 sem que tenha ocorrido, previamente, qualquer causa de suspensão juridicamente relevante, impõe-se declarar, conforme requerido, a prescrição do procedimento contra-ordenacional dado o decurso do prazo máximo admissível e, consequentemente, determinar o arquivamento dos autos.”

O Acordão revogatório da Sentença proferida em 1ª instância considerou que não deveria ser tido em conta, na contagem do prazo de prescrição deste procedimento contraordenacional, o período de tempo de suspensão extraordinária do prazo de prescrição determinado pela situação de excepção baseada na existência de uma pandemia, mais precisamente, da pandemia do Covid 19.

Acrescentando o mesmo Acordão revogatório da decisão proferida em 1ª instância que

O quadro normativo das chamadas Leis COVID teve como escopo a proteção de todos 12, inclusive dos arguidos e, como tal, afigura-se-nos incorreto afirmar que a suspensão da prescrição prejudicou estes últimos. Como pode ler-se no Acórdão do TRP de 07.02.2024 proferido no processo n.º 935/23.2Y2MTS.P1, “[n]ada obsta a que o disposto no art. 7º, n.º 3 da Lei 1-A/2020 de 19 de março, e da Lei 4-A/2020, de 6 de abril, quanto à suspensão da prescrição ali prevista, possa ser aplicado retroativamente aos prazos iniciados anteriormente à respetiva vigência, não obstante tratar-se de lei posterior, dado que a mesma é desfavorável por alargar o prazo de punição, mas teve como objetivo a proteção sanitária de todos os cidadãos e nessa parte não se pode considerar desfavorável, mas antes benéfica a todos os utentes da justiça aqui se incluindo os arguidos e seus mandatários.”

Mais se refere no douto Acordão revogatório, em apreço, que:

Do exposto flui que, acrescentando-se os aludidos alargamentos do prazo prescricional ao terminus acima mencionado (15.02.2024, ou seja, 86 dias + 86 dias + 74 dias + 74 dias), ainda não ocorreu a prescrição, devendo os atos prosseguir a sua tramitação.”

Donde o Acordão, ora em apreciação, julgou que o recurso interposto da sentença proferida em 1ª Instância “Procede, assim, totalmente o recurso” não considerando prescrito o procedimento contraordenacional, embora com voto de vencido de um dos Srs. Juízes Desembargadores;

Por outro lado

No Acordão do Tribunal da Relação de Évora proferido em 23.01.2024 no recurso penal com o nº6/23.1T8FTR.E1, cujo relator foi o meritíssimo Juiz Desembargador, AA, os Meritíssimos Juízes Desembargadores julgaram “prescrito o procedimento contraordenacional” nas mesmas exatas circunstâncias de facto e de tempo que os referidos no Acordão revogatório atrás mencionado, ou seja, o proferido nos presentes autos.

No caso do Acordão do Tribunal da Relação de Évora proferido no mencionado recurso penal nº 6/23.1T8FTR.E1, cuja cópia fiel e integral se junta a final (Doc. Nº1), consideraram os Meritíssimos Juízes Desembargadores o seguinte:

Ainda que as Leis 1-A/2020 e 4-B/2021 sejam leis temporárias, na medida em que tiveram em vista vigorar durante um período determinado e excepcional, o que se discute é se o ali disposto se aplica aos processos pendentes à data da sua entrada em vigor, em face do disposto no 4 do art. 29º da Constituição da República Portuguesa que proíbe a aplicação retroactiva de leis penais mais gravosas para os arguidos e aqui cabe dizer que entendemos estarem abrangidas leis penais in lato sensu, ou seja, também, leis contraordenacionais.

Ora independentemente de estarmos perante uma lei temporária, defendo que essa lei não pode afectar os prazos de natureza substantiva ou material em curso, designadamente, os prazos de prescrição do procedimento criminal/contraordenacional e da pena, alargando-os (repare-se ainda que o 6 do art. 19º da Constituição da República Portuguesa expressamente consagra que a “declaração do estado de sítio ou do estado de emergência em nenhum caso pode afectar (...) a não retroactividade da lei criminal, o direito de defesa dos arguidos (...)”.

Assim sendo, discordando-se do decidido no acórdão do tribunal constitucional acima referido, entende-se que as normas sobre suspensão da prescrição aqui em causa se aplicam aos factos ocorridos posteriormente à sua entrada em vigor, o que não é o caso.

A cópia integral deste Acordão, para além de junta a final, está publicada em diário da república-https://diariodarepublica.pt/dr/detalhe/acordao/6-2024-878658475

Face ao exposto torna-se por demais evidente que no domínio da mesma legislação, aplicada a factos exatamente iguais, em idênticos circunstancialismos temporais e processuais da sua aplicação -Prazo de prescrição de procedimento contraordenacional – foram proferidos pelo mesmo Tribunal da Relação de Évora acórdãos que, relativamente à mesma questão de direito, assentam e prolatam soluções opostas, no domínio da mesma legislação já que a mesma não sofreu, no entretanto temporal, qualquer alteração.

No caso “sub judice” dos presentes autos não cabe nem é admissível recurso ordinário (Artº 432 “a contrario” do C.Proc.Penal);

Não existe nem se conhece, quanto à questão ora em apreciação, jurisprudência já anteriormente fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça (Artº 437, nº1, 2 e 3 do C.Proc.Penal).

A recorrente tem legitimidade para a interposição do presente recurso de “Uniformização de Jurisprudência” (Artº 437, nº5 do C.Proc. Penal), sendo certo que o Acordão anteriormente proferido pelo Tribunal da Relação de Évora com o Nº 6/23.1T8FTR.E1 transitou em julgado.

Durante o intervalo de tempo que mediou a prolação de ambos Acordãos não ocorreu modificação legislativa que interfira, direta ou indirectamente, na resolução da questão de direito controvertida (Prazo de Prescrição “versus” Leis da suspensão dos prazos judiciais por causa da pandemia Covid 19).

De forma clamorosa ocorre oposição de ambos julgados nos dois citados Acordãos que ora se invocam;

Enquanto no Acordão proferido nestes autos se decidiu que os períodos de suspensão extraordinária dos prazo a que se referem as Lei nºs 1-A/2020 de 19/03 e a Lei nº4-A/2020 de 06/04 não devem ser levados em conta para efeitos de contagem de prazo de prescrição das infracções contraordenacionais, naquele outro Acordão proferido no Proc, nº6/23.1T8FTR.E1 decidiu-se que os citados prazos de suspensão Covid 19 devem ser contados para efeitos de prescrição exatamente em sentido oposto ao do proferido nos presentes autos.

A arguida recorrente entende e considera que a interpretação correta é aquela que foi adoptada no Acordão proferido no Proc. Nº6/23.1T8FTR.E1, devendo ser a adoptada nestes autos, nos termos da qual a infracção contraordenacional, ora em causa, deve ser considerada prescrita, da mesma forma, aliás, que o foi na sentença proferida em 1ª instância nestes mesmos autos.

CONCLUSÃO:

Solicita a este Venerando Supremo Tribunal de Justiça profira o competente Acordão de Fixação de Jurisprudência.

Pede a V.Exas Deferimento

Assim se fazendo JUSTIÇA

O Ministério Público, junto do Tribunal da Relação de Évora, respondeu ao recurso, considerando verificados os pressupostos formais e mais sustentando:

Quanto à verificação dos pressupostos substanciais:

No caso em apreço estamos perante uma situação de oposição entre dois acórdãos do Tribunal da Relação de Évora, referentes à própria decisão e a uma identidade fatual que, não sendo sobreposta na sua concreta verificação, corresponde a uma identidade fundamental no essencial que justifica o apelo quer às decisões tomadas e em confronto, quer à questão jurídica em apreço e normas expressamente aplicadas.

A questão de direito subjacente constitui determinar o prazo da prescrição contraordenacional por efeito da aplicação do regime resultante das denominadas Leis COVID - Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, na redação dada pela Lei n.º 4-A/2020, de 6 de abril, Lei n.º 16/2020, de 29 de maio, Lei n.º 4-B/2021, de 1 de fevereiro, e Lei n.º 13-B/2021, de 5 de abril.

Quer o acórdão recorrido, quer o acórdão fundamento começam por abordar a questão por apelo a uma análise prévia na natureza jurídica do instituto da prescrição e, em particular, no caso da responsabilidade contraordenacional, embora em níveis de profundidade diferenciadas.

No entanto, enquanto que no caso do acórdão fundamento, dessa análise resulta uma decisão de não aplicabilidade daquele regime apenas genericamente fundamentada em:

• Violação do artº 2º, nº 4, do CP e 29º, nº 4, da C.R.P.;

• A aplicação retroativa das referidas leis contraria o disposto no artº 19º, nº 6, da C.R.P.;

• O que tanto se aplica aos crimes como às contraordenações, não se vislumbrando fundamento bastante para se distinguirem as duas situações;

Já no que se refere ao acórdão recorrido, a decisão de aplicabilidade do regime em referência resulta de fundamentação concreta, por apelo a especifica análise interpretativa dos dispositivos legais determinantes – artigos 5.º e 6.º, sem dispensar o prévio caminho sobre a natureza jurídica do instituto, análise das respetivas implicações constitucionais e observação jurisprudencial crítica.

Assim, entendemos que na verdade as decisões tomadas e em confronto só aparentemente se encontram em oposição, porquanto não configuram uma verdadeira situação de oposição de julgados, nos termos supra descritos, enquanto pressuposto substantivo, devendo, consequentemente, ser considerado rejeitado o recurso.

Neste Supremo Tribunal de Justiça o Senhor Procurador-Geral Adjunto emitiu o seu douto parecer em que depois de apreciar os pressupostos formais, sustenta:

(…)

Quanto aos pressupostos substanciais torna-se necessário comparar as decisões em confronto.

Abrindo com o acórdão recorrido.

A recorrente Agro Pecuária da Defesa do Gato Ld.ª foi condenada pela Inspeção-Geral da Agricultura, do Mar, do Ambiente e do Ordenamento do Território (IGAMAOT), na coima única de 25.000 Euros pela prática, em 15 de fevereiro de 2016, de duas contraordenações ambientais muito graves e uma contraordenação ambiental grave.

Na sequência da impugnação judicial da decisão administrativa, o Juízo Local Criminal de Évora conclui:

"(…) dado que se mostra verificado o prazo prescricional máximo em 15/02/2024 sem que tenha ocorrido, previamente, qualquer causa de suspensão juridicamente relevante, impõe-se declarar, conforme requerido, a prescrição do procedimento contraordenacional dado o decurso do prazo máximo admissível e, consequentemente, determinar o arquivamento dos autos".

O Ministério Público recorreu da sentença e o Tribunal da Relação de Évora, concedendo provimento ao recurso, revogou a decisão recorrida por entender que os períodos de suspensão do prazo de prescrição do procedimento contraordenacional resultantes dos arts. 7.º, n.ºs 3 e 4, e 10.º da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, 5.º da Lei n.º 4-A/2020, de 6 de abril, 6.º, 8.º e 10.º da Lei n.º 16/2020, de 29 de maio, 6.º-B n.ºs 1 e 3, da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, na redação da Lei n.º 4-B/2021, de 1 de fevereiro, e 5.º da Lei n.º 13-B/2021, de 5 de abril, no total de 320 dias (86 + 86 + 74 + 74), são aplicáveis aos prazos de prescrição iniciados anteriormente à respetiva vigência e que, nessa medida, «ainda não ocorreu a prescrição, devendo os autos prosseguir a sua tramitação».

Avançando para o acórdão fundamento.

Na situação aí analisada, a arguida foi condenada pela IGAMAOT pela prática, em 22 de abril de 2015 e em 30 de setembro de 2015, de uma contraordenação ambiental grave, na coima de 12.000 Euros.

A decisão administrativa foi mantida pelo tribunal da 1.ª instância.

Na decorrência do recurso interposto pela arguida, o Tribunal da Relação de Évora declarou prescrito o procedimento contraordenacional por entender que os períodos de suspensão estabelecidos nos arts. 7.º da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, na interpretação dada pelo art. 5.º da Lei n.º 4-A/2020, de 6 de abril, e 2.º e 4.º da Lei n.º 4-B/2021, de 1 de fevereiro, em vigor até à sua revogação pela Lei n.º 13-B/2021, de 5 de abril, apenas são aplicáveis «aos factos ocorridos posteriormente à sua entrada em vigor, o que não é o caso», pelo que o respetivo período máximo se encontrava ultrapassado.

Ora, salvo melhor opinião, a paridade das situações de facto subjacentes aos acórdãos em confronto é inquestionável.

Em ambas os arguidos cometeram contraordenações ambientais antes da entrada em vigor da denominada legislação COVID e, sem considerar a aplicação dessa legislação, o prazo máximo de prescrição do procedimento contraordenacional já havia decorrido aquando da prolação das decisões judiciais.

Pronunciando-se expressamente quanto à aplicação dos normativos das Leis n.ºs 1-A/2020, de 19 de março, 4-A/2020, de 6 de abril, 16/2020, de 29 de maio, 4-B/2021, de 1 de fevereiro, e 13-B/2021, de 5 de abril, que previam a suspensão dos prazos de prescrição do procedimento contraordenacional, o acórdão recorrido entendeu que os mesmos abrangiam os factos praticados antes da sua entrada em vigor e o acórdão fundamento, ao invés, sustentou a sua aplicação e limitação aos factos ocorridos no período da sua vigência.

Ou seja, para idênticas situações de facto, os dois acórdãos perfilharam diferente interpretação acerca da amplitude e abrangência do regime da suspensão dos prazos de prescrição delineado na mencionada legislação.

Divergindo, assim, da posição do Sr.ª procuradora-geral-adjunta no Tribunal da Relação de Évora, entendemos que estão reunidos todos os pressupostos de admissibilidade do recurso extraordinário de fixação de jurisprudência, incluindo o da oposição de julgados, devendo o mesmo, por conseguinte, prosseguir (art. 441.º, n.º 1, parte final, do Código de Processo Penal).

Notificado o Recorrente o mesmo respondeu manifestando “a sua admiração e aplauso pelo mérito da posição que o Sr. Procurador Adjunto deste Supremo Tribunal de Justiça manifesta”.

Efectuado o exame preliminar, o processo foi aos vistos e remetido à conferência, nos termos dos n.ºs 3 e 4 do artigo 440.º do Código de Processo Penal.

Cumpre apreciar e decidir.

II. Fundamentação

Sob a epígrafe “Fundamento do recurso”, dispõe o art. 437º do Código de Processo Penal, no que tange à interposição de recurso extraordinário de fixação de jurisprudência:

«1 – Quando, no domínio da mesma legislação, o Supremo Tribunal de Justiça proferir dois acórdãos que, relativamente à mesma questão de direito, assentem em soluções opostas, cabe recurso, para o pleno das secções criminais, do acórdão proferido em último lugar.

2 – É também admissível recurso, nos termos do número anterior, quando um tribunal de relação proferir acórdão que esteja em oposição com outro, da mesma ou de diferente relação, ou do Supremo Tribunal de Justiça, e dele não for admissível recurso ordinário, salvo se a orientação perfilhada naquele acórdão estiver de acordo com a jurisprudência já anteriormente fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça.

3 – Os acórdãos consideram-se proferidos no domínio da mesma legislação quando, durante o intervalo da sua prolação, não tiver ocorrido modificação legislativa que interfira, directa ou indirectamente, na resolução da questão de direito controvertida.

4 – Como fundamento do recurso só pode invocar-se acórdão anterior transitado em julgado.

5 – O recurso previsto nos n.ºs 1 e 2 pode ser interposto pelo arguido, pelo assistente ou pelas partes civis e é obrigatório para o Ministério Público».

Por sua vez o art. 438º, sob a epígrafe “Interposição e efeito”, dispõe:

«1 - O recurso para a fixação de jurisprudência é interposto no prazo de 30 dias a contar do trânsito em julgado do acórdão proferido em último lugar.

2 - No requerimento de interposição do recurso o recorrente identifica o acórdão com o qual o acórdão recorrido se encontre em oposição e, se este estiver publicado, o lugar da publicação e justifica a oposição que origina o conflito de jurisprudência.

3 - O recurso para fixação de jurisprudência não tem efeito suspensivo.»

O recurso extraordinário para fixação de jurisprudência visa a obtenção de uma decisão do Supremo Tribunal de Justiça que fixe jurisprudência, “no interesse da unidade do direito”, resolvendo o conflito suscitado (artigo 445.º, n.º 3, do Código de Processo Penal), relativamente à mesma questão de direito, quando existem dois acórdãos com soluções opostas, para situação de facto idêntica e no domínio da mesma legislação, assim fomentando os princípios da segurança e previsibilidade das decisões judiciais e, ao mesmo tempo, promovendo a igualdade dos cidadãos.

Como se diz no Acórdão de Fixação de Jurisprudência 5/2006 do Supremo Tribunal de Justiça, publicado no DR I-A Série de 6.6.2006, «A uniformização de jurisprudência tem subjacente o interesse público de obstar à flutuação da jurisprudência e, bem assim, contribuir para a certeza e estabilidade do direito.» Por isso se lhe atribui carácter normativo.

Como o Supremo Tribunal de Justiça tem vindo a reiterar, a interposição do recurso para fixação de jurisprudência, depende da verificação de pressupostos formais e materiais.

São requisitos de ordem formal:

i. a legitimidade do recorrente (sendo esta restrita ao Ministério Público, ao arguido, ao assistente e às partes civis) e interesse em agir, no caso de recurso interposto pelo arguido, pelo assistente ou pelas partes civis (já que tal recurso é obrigatório para o Ministério Público);

ii. a identificação do acórdão com o qual o acórdão recorrido se encontre em oposição e, se este estiver publicado, o lugar da publicação, com justificação da oposição entre os acórdãos que motiva o conflito;

a. o trânsito em julgado de ambas as decisões;

iii. tempestividade (a interposição de recurso no prazo de 30 dias posteriores ao trânsito da decisão proferida em último lugar).

São requisitos de ordem material:

i. a existência de oposição entre dois acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, ou entre dois acórdãos das Relações, ou entre um acórdão da Relação e um do Supremo Tribunal de Justiça;

ii. verificação de identidade de legislação à sombra da qual foram proferidas as decisões;

iii. oposição referente à própria decisão e não aos fundamentos;

iv. as decisões em oposição sejam expressas;

v. a identidade de situações de facto.

Pressupostos formais

Legitimidade e interesse em agir: a ora recorrente é arguida no processo em que foi proferida a decisão recorrida, pelo que tem legitimidade e interesse em agir (art. 437º nº 5 do Código de Processo Penal).

Tempestividade: O acórdão recorrido foi proferido pelo Tribunal da Relação de Évora em 10.9.2024 e transitou em julgado a 26.9.2024 (refª citius ...42).

O presente recurso entrou em dia 28.10.2024, que corresponde ao 1º dia útil subsequente ao termo do prazo de 30 dias após o trânsito em julgado, nos termos admitidos pelo art. 138º nº 2 do Código de Processo Civil, aplicável por força do art. 104º nº 1 do Código de Processo Penal.

Assim, o pressuposto da tempestividade mostra-se igualmente preenchido.

Invocação, identificação, cópia do acórdão fundamento (só um) e indicação da sua publicação (art. 438º nº 2 do Código de Processo Penal).

O recorrente invocou apenas o acórdão do Tribunal da Relação de Évora, proferido em 23.1.2024, no proc. 6/23.1T8FTR.E1, transitado em julgado em 6.2.2024 (refª citius ...07) como acórdão fundamento, para a oposição de julgados. Tal acórdão foi junto por cópia e verificou-se a sua publicação no lugar indicado.

Trânsito em julgado dos dois acórdãos contraditórios de tribunais superiores: está em causa a contraditoriedade de dois acórdãos da Relação de Évora e os dois transitaram em julgado (art.s 438º nº 1 e 437º nº 4 do Código de Processo Penal), conforme refªs citius ...42 e ...07.

Justificação da oposição, de facto e de direito (438º nº 2): O arguido na sua motivação e conclusões “justifica a oposição que origina o conflito de jurisprudência”, tal como exige o referido preceito legal, mormente sobre a identidade da situação de facto e de direito.

Estão verificados os requisitos formais.

Pressupostos materiais

Vejamos a identidade de factos e a identidade de legislação à sombra da qual foram proferidas as decisões.

Ambos os acórdãos se reportam a factos que constituem contra-ordenações ambientais praticadas em 2015/2016, no âmbito da mesma legislação.

Ambos apreciaram a questão da verificação ou não da prescrição do procedimento contra-ordenacional, concluindo em sentidos aparentemente opostos, sobre a aplicabilidade ou não aplicabilidade dos prazos de suspensão da prescrição previstos as Leis 1-A/2020, de 19.31 e 4-B/2021 de 1.22, aos factos praticados anteriormente.

Porém, ao contrário do acórdão fundamento, o acórdão recorrido entende que existem 4 suspensões do prazo de prescrição a considerar:

Tendo em atenção que “O prazo de prescrição suspendeu-se pelo período de 86 dias, entre 9.3.2020 e 2.6.2020, por força dos artigos 7.º, n.ºs 3 e 4 e 10.º da Lei 1-A/2020, 5.º da Lei 4-A/2020 e 8.º e 10.º da Lei 16/2020, que entrou em vigor em 3 de Junho de 2020;

O prazo de prescrição foi alargado por mais 86 dias por força do artigo 6.º da Lei 16/2020;

O prazo de prescrição suspendeu-se por 74 dias, entre 22.1.2021 e 5.4.2021, por força do artigo 6.º- B n.ºs 1 e 3 da Lei 1-A/2020, na versão da Lei 4-B/2021, cujo artigo 4.º prevê que artigo 6.º- B n.ºs 1 e 3 da Lei 1-A/2020 produz efeitos a 22.1.2021;

O prazo de prescrição foi alargado por mais 74 dias por força do artigo 5.º da Lei 13-B/2021.”

E conclui: “Do exposto flui que, acrescentando-se os aludidos alargamentos do prazo prescricional ao terminus acima mencionado (15.02.2024, ou seja, 86 dias + 86 dias + 74 dias + 74 dias), ainda não ocorreu a prescrição, devendo os atos prosseguir a sua tramitação”.

O acórdão fundamento considera “que as normas sobre suspensão da prescrição aqui em causa só se aplicam aos factos ocorridos posteriormente à sua entrada em vigor, o que não é o caso”, teve em consideração, apenas, os prazos de suspensão de prescrição previstos nas Leis 1-A/2020, de 19.3 (86 dias) e 4-B/2021 de 1.2 (74 dias), não referindo nem apreciando a aplicabilidade dos prazos de 86 e 74 dias das Leis 16/2020 e 13-B/2021.

Temos assim de colocar obrigatoriamente a questão da identidade de legislação à sombra da qual foram proferidas as decisões porquanto:

O acórdão fundamento não se pronunciou sobre os prazos de suspensão de prescrição das Leis 16/2020 e 13-B/2021; por outro lado, se o acórdão recorrido tivesse aplicado apenas os prazos de suspensão de prescrição previstos nas Leis 1-A/2020, de 19.3 (86 dias) e 4-B/2021 de 1.2 (74 dias), à semelhança do acórdão fundamento, teria declarado a prescrição que, contando o prazo de suspensão dessas Leis teria ocorrido em 25.7.2024, ou seja, antes da prolação do acórdão proferido em 10.9.2024 e, consequentemente, não haveria decisões opostas.

Ou seja, foi apenas por causa da aplicação dos prazos de suspensão da prescrição das Leis 16/2020 e 13-B/2021 – sobre as quais o acórdão fundamento não se pronunciou – que o acórdão recorrido decidiu pela “inexistência da aludida prescrição do procedimento contraordenacional”.

Correspondentemente, pese embora a similitude das normas, não se pode afirmar positivamente qual seria a decisão do acórdão fundamento caso tivesse apreciado da aplicabilidade ou inaplicabilidade dos prazos de suspensão da prescrição das Leis 16/2020 e 13-B/2021.

Consequentemente e em conclusão, apesar da identidade de factos, não existe identidade de legislação à sombra da qual foram proferidas ambas as decisões pelo que, por não se verificar a oposição de julgados, deve o recurso ser rejeitado, nos termos do disposto no art. 441º nº 1 do Código de Processo Penal.

III DECISÃO

Pelo exposto, acordam os Juízes da 3ª Secção Criminal deste Supremo Tribunal de Justiça em rejeitar o presente recurso de fixação de jurisprudência.

Condena-se o arguido recorrente nas custas, com a taxa de justiça fixada em duas unidades de conta.

Jorge Raposo (Relator)

Horácio Correia Pinto

Carlos Campos Lobo

_____________________________________________

1. No acórdão recorrido refere-se: “artigo 7.º da Lei n.º 1-A/2020, de 19 de março, na interpretação que lhe foi dada pelo artigo 5.º da Lei n.º 4-A/2020, posteriormente revogado pelo artigo 8.º da Lei n.º 16/2020, que entrou em vigor no dia 03.06.2020”

2. No acórdão recorrido refere-se: “regime estabelecido pelos artigos 2.º e 4.º da Lei n.º 4-B/2021, de 01/02, em vigor até à sua revogação pela Lei n.º 13-B/2021, de 05/04”.