Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
01P4454
Nº Convencional: JSTJ00042841
Relator: LOURENÇO MARTINS
Descritores: CRIME CONTINUADO
Nº do Documento: SJ200203130044543
Data do Acordão: 03/13/2002
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: T J ALMADA
Processo no Tribunal Recurso: 242/01
Data: 10/19/2001
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REC PENAL.
Decisão: NEGADO PROVIMENTO.
Área Temática: DIR CRIM - TEORIA GERAL.
Legislação Nacional: CP95 ARTIGO 30 N2.
Sumário : Não é de ter por prefigurado crime continuado, quando as situações favoráveis à reiteração criminosa, em vez de exógenas, são criadas pelo próprio delinquente, inclusive por via de tendências da sua personalidade.
Decisão Texto Integral: Acordam, em conferência, na Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça:
I
1. No P.º comum n° 242/01.1GCALM, do 3° Juízo Criminal de Almada, mediante acusação do Ministério Público, foi submetido a julgamento pelo Colectivo, o arguido:

A, casado, pedreiro, nascido a 13.6.1962, filho de ... e de ..., natural de St.ª Maria Suaçui, Minas Gerais, Brasil, de nacionalidade brasileira, actualmente preso no EPR de Setúbal, sob imputação da prática de um crime de abuso sexual de crianças, na forma continuada, pp. pelos artigos 172º, n° 1, e 30, n° 2, do Código Penal.
Após audiência, o Colectivo julgou o arguido autor de dois crimes de abuso sexual de crianças, pps. pelo citado artigo 172º, n° 1, condenando-o na pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão por cada um deles; em cúmulo jurídico, condenou-o na pena de 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão.
2. Não se conformou o arguido com a decisão, dela interpondo recurso, formulando as seguintes conclusões (transcrição):
I - Tendo-se mantido inalterada a base factual, não tendo havido alteração dos factos, o recorrente acusado por um crime de abuso sexual de crianças, na forma continuada, (172°, nº1 e 30°, n° 2 do C. Penal), acabou condenado por 2 (dois) crimes de abuso sexual de crianças (172°, n° 1 ).
II - É inquestionável a liberdade de qualificar juridicamente os factos, subsumidos, a montante e a jusante, à norma do artº 172°, n° 1 do C. Penal, com a diferença de que a jusante, o julgador "a quo", entendeu fundamentar, não haver crime continuado porque, não obstante estarem inequivocamente reunidos os requisitos da continuação criminosa, ter dúvidas quanto à persistência de uma situação exterior que facilitasse a execução e que diminuísse consideravelmente a culpa do agente.
III - Depois de considerar ter havido plúrima violação do mesmo tipo legal, e tendo em conta que só pode dar como certas duas condutas criminosas do agente em 15 ( quinze) dias, considera o Douto Acórdão, o tempo curto e poucas as vezes para se poder falar em persistência de uma situação exterior que facilita a execução.
IV - Ousamos discordar:
Está em causa a repetição de uma conduta dentro do mesmo quadro; para o efeito, o recorrente coabitou com a vítima durante 15 dias que são uma eternidade; em todo o tempo persistiu o quadro de solicitação de uma mesma solicitação exterior, razão porque o Douto Acórdão não está em consonância com o n° 2 do art° 30° do C. Penal, nem com a Jurisprudência, entre outros os Acórdãos desse venerando STJ de 27 de Abril de 1983 e de 25 de Setembro de 1996, acima sumariados.
V - Tal como discordamos da consideração, que no Douto Acórdão, leva o julgador a dizer que "a situação exterior que aqui se visualiza não diminui de modo considerável a culpa do agente" depois de, emocionalmente, considerar que o objecto do desejo sexual do arguido é uma criança de tão somente cinco anos de idade e que não se pode conceber um quadro de tentação carnal, de estimulação do desejo, quando estamos perante uma criança de tão tenra idade.
VI - Aqui, não discordamos da emoção, discordamos, e não estamos sozinhos - de que havendo, como houve, uma persistente facilitação no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior - que não diminua de modo considerável a culpa do agente. A este propósito, vejam-se entre outros: M. Maia Gonçalves - C. Penal, anotado, 6ª ed. 1992, pág. 126; Ac. R.P de 6-7-88, BMJ, 379, 645; Ac. STJ de 17-10-96 - 3ª Secção, acima sumariados.
VII - Para efeitos do 30° n° 2 do C. Penal, não parece relevante que o crime seja mais ou menos grave, e que, reunidos os pressupostos da continuação criminosa caiba ao julgador, pontualmente, considerar que diminuem ou não de modo considerável a culpa do agente.
VIII - Por maior que seja o constrangimento, por muito que nos repugnem os actos e mesmo que a vítima seja uma criança de tenra idade, persistindo do primeiro ao décimo quinto dia o mesmo quadro de solicitação de uma mesma situação exterior, isso tem de diminuir a culpa do agente, não distinguindo a lei quadros de solicitação de uma mesma situação exterior, nem catalogando uns como legítimos e outros como ilegítimos.
IX - Com o devido respeito, no caso sub-judice, estão reunidos os requisitos da crime continuado que diminuem consideravelmente a culpa do recorrente.
X - Reunidos todos os requisitos da continuação criminosa e tendo o Tribunal "a quo", considerado que isso, no caso concreto não diminuía de modo considerável a culpa do agente, violou o disposto no n° 2 do arf 30° do C. Penal.
XI - Se o recorrente tivesse sido condenado pelo crime de abuso sexual de crianças na forma continuada e não pelo duplo crime de abuso sexual de crianças, por certo, teria uma pena menos pesada.
XII - Uma vez que já está concluído o seu processo de expulsão para o país de origem (Brasil) por permanência irregular no território nacional e que já cumpriu cerca de oito meses de prisão, uma pena menos pesada podia levar à eventual suspensão da execução e ao seu imediato repatriamento .
XIII - O recorrente, pessoa humilde, confessou os factos, colaborou com a justiça na descoberta da verdade, e em rigor, em julgamento, mostrou profundo arrependimento dos actos praticados.
Pelo exposto...deve ser dado provimento ao presente recurso,,,".
Respondeu a Dig.ma Procuradora da República na comarca de Almada a discordar do recorrente, porquanto os factos praticados e as circunstâncias em que o foram, nomeadamente a idade da vítima, revelam uma tendência da sua personalidade não conciliável com a diminuição da culpa por causa exterior.

Requeridas alegações escritas nelas o recorrente defende a tese do crime continuado, posto que com menor ênfase, admitindo também que, mesmo sem tal construção, a pena lhe seja diminuída e suspensa.
Por seu lado, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto neste Supremo Tribunal foi de opinião que ao recorrente assistiria razão quanto à qualificação jurídica dos factos, mas não quanto à medida da pena, sintetizando assim as suas doutas alegações:
I - Foi a oportunidade e proximidade do agente com a menor que, de fora, e de maneira considerável, facilitou a repetição da actividade criminosa, tornando cada vez menos exigível ao agente que se comportasse de acordo com o direito e que lhe permitiu ser bem sucedido na sua actuação, executada de forma essencialmente homogénea.
II - Mostra-se preenchido o crime na forma continuada, face ao preceituado no art. 30.2 do Cód. Penal.
III - A pena de 3 anos e 6 meses de prisão é adequada à culpa do agente, acatando integralmente os critérios determinantes da sua medida concreta, assegurando com justiça as finalidades das penas".
Entende, assim, que o recorrente cometeu o crime segundo a qualificação da acusação, mas deve a pena ser mantida.
Colhidos os vistos legais, cumpre ponderar e decidir.
II
Comecemos pela matéria de facto que o Colectivo, após audiência de discussão e julgamento, considerou como provada (transcrição):
"O arguido é de nacionalidade brasileira.
Está a viver em Portugal desde data não concretamente apurada, próxima de Junho de 2000.
Não logrou regularizar a sua situação de residência em território português.
A partir do início do mês de Março de 2001, durante cerca de 15 dias, alojou-se na casa do casal B e C, também de nacionalidade brasileira, sita na Rua ..., Monte da Caparica, área desta comarca de Almada.
Estes trabalham e têm três filhos menores: D, de 13 anos de idade; E, de 12 anos de idade e F, de 5 anos de idade, nascida em 5.2.96.
Durante esse período de cerca de 15 dias o arguido não teve qualquer actividade profissional.
Como tinha uma relação de confiança com os pais da F estes, que trabalhavam, permitiam que, quando saíam, ele permanecesse em casa com a menor.
O arguido, no período acima referido, na ausência dos pais da menor e quando os seus irmãos dormiam, deitou-a, por duas vezes, sendo a primeira em data não apurada e a segunda em 16.3.2001, no sofá cama que utilizava na sala.
Estendeu depois o seu corpo sobre o da criança.
A seguir, com o seu pénis erecto, friccionou-o sobre o corpo da F na zona da vagina.
Ejaculou apenas na segunda ocasião, em 16.3..
Após, dava chocolates à criança e dizia-lhe para nada contar aos seus pais e a outras pessoas.
A menor, porém, contou o sucedido à mãe em 16.3.2001, porque esta, vendo sangue nas suas cuecas, a questionou sobre tal.
O arguido conhecia a idade da menor.
Agiu de modo livre, deliberado e consciente, ciente da reprovabilidade da sua conduta.
A menor F encontra-se em estado de virgindade anatómica.
Ao ser examinada, em 26.3.2001, não apresentava vestígios traumáticos externos nos locais genitais e extragenitais observados.
O arguido é casado e tem dois filhos menores.
A sua mulher e os seus filhos encontram-se no Brasil.
Em Portugal trabalhou durante algum tempo na construção civil.
Aquando do sucedido, estava desempregado.
Confessou".
Considerou o Colectivo como não provado que:
- os pais da menor F, quando saíam, a deixavam à guarda do arguido;
- o arguido retirou as cuecas da menor;
- o arguido na casa se alojava num quarto.
Não se provou qualquer outro facto com interesse para a decisão da causa. *
Fundamentando a sua convicção, disse o Colectivo:
"O Tribunal formou a sua convicção com base no conjunto da prova produzida e examinada em audiência, sendo de sublinhar que o arguido, nas suas declarações, confessou a prática dos factos.
Esclareceu, contudo, que o seu tempo de permanência na casa dos pais da menor se circunscreveu a cerca de 15 dias e que a sua conduta, neste período, se restringiu a apenas dois actos de contornos semelhantes, embora só da segunda vez tenha culminado em ejaculação.
Os pais da menor - C e B -, ouvidos como testemunhas, confirmaram o período de permanência do arguido na sua casa - 15 dias - e referiram, apoiando-se no relato da sua filha, três episódios.
A divergência de número - dois ou três - foi solucionada no sentido mais favorável ao arguido, dando-se como provada somente a ocorrência de dois actos. Consideraram-se ainda o depoimento da testemunha ... (de pouco relevo), a fotocópia do passaporte de fls. 29/30 e o auto de exame directo de fls. 31. Quanto à situação familiar do arguido teve-se em atenção o declarado por este, que se nos afigurou verídico".
III
O objecto do recurso, circunscrito pelas conclusões da motivação, visa a qualificação dos factos (1) (Não foi abordada pelo recorrente, qualquer alteração dos factos) como crime continuado de coacção sexual, a consequente diminuição da pena e a sua eventual suspensão (com repatriamento imediato do recorrente pois se encontra terminado o processo de expulsão).
Vejamos primeiramente a fundamentação do acórdão recorrido para depois analisarmos as opiniões do Ministério Público - nesta Instância Superior, de concordância com o recorrente.

1. Diz-se no acórdão recorrido:
"Questão que agora se coloca é a de apurar se o arguido cometeu dois crimes de abuso sexual de crianças ou se, por outro lado, cometeu este crime na forma continuada.
Sublinhe-se, antes de mais, que a figura do crime continuado é compaginável com a criminalidade sexual, desde que a vítima, como aqui sucede, seja a mesma".
Após citar o artigo 30º, n° 2, do Cód. Penal, e resumir os requisitos da continuação criminosa, o Colectivo pondera particularmente sobre a persistência de uma situação exterior que facilita a execução e que diminui consideravelmente a culpa do agente, explicitando:
"Em primeiro lugar, a conduta do agente verificou-se apenas por duas vezes e durante um curto período de tempo ( cerca de 15 dias ), o que se nos afigura algo insuficiente para que possamos falar da persistência de uma situação exterior que facilita a execução.
Logo por aí seria de afastar a continuação criminosa (2) Cremos que os casos de continuação criminosa no terreno da criminalidade sexual se compreendem mais em situações que perduram por longos períodos de tempo - anos, por vezes - e em que os actos se repetem de forma quase contínua.
No entanto, poderá entender-se que esse circunstancialismo exterior, apesar de tudo, se verifica, embora de forma pouco acentuada, pois, conforme resultou provado, durante o período referido o arguido habitava na mesma casa da menor e quando os seus pais saíam permanecia com ela nessa casa.
Mas, então, admitindo esta hipótese, aquilo que agora se questiona, num segundo momento, é se tal situação exterior diminui consideravelmente a culpa do agente e aqui a nossa resposta será negativa.
Com efeito, num quadro de criminalidade sexual, a diminuição da culpa está, a nosso ver, ligada a uma situação exterior que estimula e aguça o apetite sexual do agente. Dir-se-á que uma pessoa do sexo masculino vivendo uma fase de alguma privação nesse domínio e compartilhando o mesmo espaço, em termos de criação de intimidade, com alguém do sexo feminino, poderá sentir-se impelido a satisfazer o seu apetite sexual, porventura recalcado, com esse alguém.(...).
Mas aqui a situação não é essa.
O objecto do desejo sexual do arguido - cuja mulher se encontra distante, no Brasil - é uma criança de tão somente cinco anos de idade.
Ora, não se pode conceber um quadro de tentação carnal, de estimulação do desejo, quando estamos perante uma criança de tão tenra idade.
A situação exterior que aqui se visualiza não diminui de modo considerável a culpa do agente, antes nos desperta para uma outra realidade - a personalidade deformada do próprio arguido, capaz de actos que, em elevado grau, ferem os sentimentos gerais de pudor sexual".
2. Em contraponto, o recorrente esgrime que o actos criminosos não foram praticados num curto espaço de tempo, e que o quadro de solicitação exterior persistente levou à diminuição da culpa, sem relação com a gravidade e até a hediondez do crime praticado.
Por seu turno, a Dig.ma Representante do Ministério Público na 1.ª Instância refuta a posição do recorrente, invocando a doutrina (Eduardo Correia): não basta demonstrar que o elemento unificador não implica maior gravidade penal, sendo necessário demonstrar que esse elemento importa uma reprovabilidade menor. Ficando a reiteração a dever-se a uma certa tendência de personalidade do agente não poderá falar-se em atenuação da culpa, pelo que fica excluído o crime continuado. Para além da dúvida que se levanta se é possível a continuação criminosa quando estão em causa bens jurídicos inerentes à pessoa humana.
2.1. Porém, como já vimos, neste Supremo Tribunal, o Ex.mo Representante do Ministério Público discorda do aresto recorrido e da Colega da 1.ª Instância no plano estrito da continuação criminosa - matéria a que considera confinado o presente recurso.
Acentuando o peso específico das circunstâncias exógenas como diminuidoras da culpa do agente e aceitando que apesar do bem jurídico ser de natureza eminentemente pessoal pode haver crime continuado desde que seja a mesma vítima (3) Figueiredo Dias, Comentário Conimbricense do Código Penal - Parte especial, I, Coimbra Editora, § 32º, p. 553., procura refutar os argumentos do Colectivo, o espaço temporal e número de actos, bem como a idade da menor (5 anos) inidónea a despertar o "apetite sexual" do recorrente.
Por um lado, um dilatado espaço temporal traz uma dificuldade de sentido oposto por afastar a conexão interior da actividade continuada; o número de violações do tipo legal será irrelevante.
Por outro lado, é errado situar como elemento exógeno facilitador do crime o eventual estímulo sexual que a vítima pode constituir.
A pedofilia, uma das espécies da parafilia, constituirá "uma perturbação sexual do próprio agente" - continua - portanto endógena e não exógena, sendo que a criança constitui o seu "foco parafílico". E acrescenta: "O arguido, com apetência para actividade sexual com menores...deparando-se e aproveitando a ausência dos pais da menor da casa onde autorizadamente se encontrava e em momentos em que os irmãos menores dormiam", repete a conduta por duas vezes servindo-se da oportunidade oferecida.
Citando também Eduardo Correia, foi a oportunidade que, de fora, e de maneira considerável, facilitou a repetição da actividade criminosa, tornando cada vez menos exigível ao agente que se comportasse de acordo com o direito.
Apesar dessa diferente qualificação, preconiza a aplicação da mesma pena.
IV
Decidindo.
1. Não vem posto em causa que os factos imputados ao arguido integram a prática de um crime pp. no artigo 172, n° 1, do Código Penal ("Abuso sexual de crianças"), onde se diz:
«Quem praticar acto sexual de relevo com ou em menor de 14 anos, ou o levar a praticá-lo consigo ou com outra pessoa, é punido com pena de prisão de 1 a 8 anos» .
O que se discute é se a actividade do arguido preenche ou não a figura da continuação criminosa, prevista no artigo 30º, n° 2, do mesmo diploma:
«Constitui um só crime continuado a realização plúrima do mesmo tipo de crime ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico, executada por forma essencialmente homogénea e no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente».
2. Permitimo-nos aqui acompanhar o que se disse, em termos gerais, em recente acórdão (de 29.11.00 - P.º n.º 2779/2000, do mesmo Relator).:
"Não tem sido uniforme o tratamento teórico da figura do crime continuado quer pela doutrina, quer também pela jurisprudência (Cfr., v. g., os acórdãos de 8.03.95 e de 12.10.95, no BMJ n.º 445/p.101, e n.º 451/p.314, respectivamente, e o acórdão de 17.04.97 - Rec. n.º 1073/96 - 3ª Secção. Acompanhamos por momentos o que se disse no acórdão de 20.07.99) - P.º n.º 774/99., reflectindo aliás a ficção originária de tal figura (Figueiredo Dias - Direito Penal Português - Parte Geral, II, Aequitas, 1993, p. 296 - fala numa "unidade jurídica construída por sobre uma pluralidade efectiva de crimes".), que releva mais da praticabilidade de resultados que evitem lacunas de julgamento e intermináveis investigações, num efeito de carácter simplificador, do que da sua fundamentação dogmática.
Especialmente depois de um texto legal, como é o do código português, consagrando formalmente a figura, em princípio não haverá discrepância quanto à necessidade de ofensa do mesmo bem jurídico, ainda que protegido por vários tipos legais (não tem que ser violada a mesma disposição legal, bastando que o seja uma próxima na protecção dos bens jurídicos), e à exigência da homogeneidade das formas de comissão da acção.
O enfrentamento de opiniões surge no que toca ao aspecto subjectivo do nexo de continuidade (Cfr. Günter StratenWerth, Derecho Penal - Parte General, I, Edersa, trad., 1982, p. 353 e sgs..), o modo como preencher o elemento homogeneidade do dolo (a unidade do injusto pessoal da acção).
Como informa Hans-Heinrich Jescheck (Tratado de Derecho Penal - Parte Geral, 4.ª edição, Comares, Granada, 1993, p.654.), a jurisprudência (alemã) tem exigido um genérico dolo global "que deve abarcar o resultado total do facto nos seus rasgos essenciais, conforme o lugar, o tempo, a pessoa do lesado e a forma de comissão, no sentido de que os actos individuais não são mais que a realização sucessiva de um todo, querido unitariamente" (sublinhado agora), o que raramente acontecerá na realidade, pelo que os tribunais se vêem obrigados a recorrer a "fundamentações artificiosas se pretendem que a acção continuada alcance relevância prática" (Como bem adverte StratenWerth, op. cit., p. 355, "quando o agente actua realmente com dolo total, baseado num plano pré-concebido, resultará que, em geral, é mais perigoso, isto é, põe a descoberto uma maior energia criminal do que aquele que cede a repetidas tentações", não tendo sentido político-criminal "premiá-lo" com a aplicação da figura do crime continuado.).
Uma outra corrente, em dissensão quanto àquele dolo global, contenta-se com um dolo continuado, entendido criminologicamente, que se apresenta como uma fracasso psíquico e sempre homogéneo do autor na mesma situação fáctica. O nexo de continuidade requererá só a identidade específica da total situação externa e interna.
Pensamos ser esta última a posição que melhor se coaduna com a letra e a teleologia do preceito do n.º 2 do artigo 30º do CPenal, tal como provem da doutrina defendida pelo seu inspirador e que, predominantemente, este Supremo Tribunal tem adoptado (Disse-se no ac. do STJ, de 12.01.94, CJ, Ano II, Tomo I, p. 190 - apud Leal-Henriques e Simas Santos, Código Penal, 1.º Vol., Rei dos Livros, 1995, p. 299 - que haverá prática de vários crimes se houve um renovar da resolução criminosa, salvo se esse renovar do propósito criminoso for devido a uma situação exterior ao agente, que a facilite.
Acrescentamos agora, mais dirigido para hipótese semelhante, o ac. de 9.10.96 - P.º n.º 047545, assim sumariado: "Havendo o arguido praticado durante cerca de um ano e meio actos integradores de um crime de abuso sexual de menor previsto nos artigos 172 n. 1 e 177 n. 1, alínea a) do CP95, o facto de não ter havido por parte daquele uma só resolução criminosa a presidir à prática de todos os seus actos, o que decorre não é que exista o dolo típico, mas sim, que não se está perante uma única violação do tipo legal. Justamente, porque a cada acto presidiu uma resolução criminosa, verifica-se uma realização plúrima do mesmo tipo legal (que só é juridicamente unificada, crime continuado), por ter sido executada por forma essencialmente homogénea e no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminui consideravelmente a culpa do agente.).
Como é sabido, a punição do crime continuado, em comparação com a do concurso real de infracções, assenta no menor grau de culpa do agente. Apesar de haver uma pluralidade de resoluções, factores exógenos ao agente foram determinantes da sua conduta, na medida em que o convocaram para a prática dos factos, de modo progressivamente menos resistível.
Conhecidos exemplos-tipo desse circunstancialismo exógeno costumam ser mencionados pela doutrina, se bem que o teste decisivo da verificação de tais situações, tendo como efeito o tratamento pelo regime mais favorável do crime continuado, haja sempre de ser efectuado com recurso à ideia fundamental da diminuição considerável do grau de culpa do agente (Cfr. Eduardo Correia - Direito Criminal, Vol. ll, Almedina, 1968, p. 210/11, Teoria do Concurso em Direito Criminal I - Unidade e Pluralidade de Infracções, Almedina, 1963, pp. 246 e sgs..").
3. Na verdade, o busílis essencial da questão aparece em regra projectado sobre o momento em que se procura avaliar se houve ou não esta diminuição considerável do grau de culpa do agente, ou seja, quando se faz a indagação dentro do pensamento "elástico-casuístico" - Expressão de Eduardo Correia, in Unidade e Pluralidade..., op. cit, p. 271., ligado ao conceito de crime continuado.
Adiante-se, desde já, que embora o bem jurídico em causa - a autodeterminação sexual, mas aqui sob o especial enfoque da protecção do livre desenvolvimento da personalidade da criança, que nem sequer está em condições de manifestar uma vontade relevante - Diz-se no acórdão de 1.04.98 P.º n.º 1436/97 - este como outros sem indicação de fonte podem ver-se na BD/JSTJ, www.dgsi.pt (Internet) -, "o bem jurídico protegido é a criança como criança"; a "vontade da vítima não é elemento do tipo; este completa-se, haja ou não consentimento da criança". - seja de natureza eminentemente pessoal, a figura do crime continuado pode verificar-se, pois se trata da mesma vítima - Nesse sentido, cfr. os acórdãos deste STJ, de 6.03.91, P.º n.º 041479, no BMJ 405 ANO1991, p.178 e de 28.02.96 - P.º n.º 048589, BD cit.; em contraponto, e por estarem em causa vários ofendidos e crianças - v. acs., de 27.01.94, BMJ 433, ANO1994, p. 31, de 10.12.97 - P.º 1192/97.
Na doutrina - Eduardo Correia, op. cit., p. 256..
Também, por outro lado, a questão do tempo durante o qual perdura a actividade, como a doutrina refere e o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto recorda, "só na medida em que a distância temporal ou espacial que separa vários actos seja tão larga que afasta a possibilidade de a mesma situação exterior presidir a todos, individualizando e diferenciando as várias oportunidades que facilitam a reiteração, só nessa medida se poderá falar de uma influência do espaço e do tempo capaz de excluir a continuação criminosa" - Eduardo Correia, ibidem, p. 252, citando Mayer. Neste sentido o ac. de 25.09.96, no BMJ 459, ANO1996, p. 304, onde se diz (sumário na Internet): "Comete o crime continuado de violação previsto e punido pelos artigos 202 n. 2, 30 n. 2 e 78 n. 5, todos do Código Penal de 1982 - hoje crime continuado de abuso sexual de crianças previsto e punido pelos artigos 172 n. 1, 30 n. 2, e 79 do Código Penal de 1995 - o arguido que, num curto espaço de tempo, acariciou por diversas vezes uma menor de 13 anos, apesar de saber a sua idade, com ela mantendo mais de uma vez relações de sexo". Este último é um dos acórdãos citados pelo recorrente em abono da sua tese..
Também o escasso número de actos não tem sido razão inibidora da integração da figura - Ac. de, de 28.02.96 - P.º n.º 048589 : «IV - Face ao actual C.Penal, comete um crime continuado de violação, do artigo 164º, o arguido que manteve com a ofendida, por meio de violência, por duas vezes, em momentos diferentes, cópula e coito anal com a ofendida". Idem no ac. de 6.03.91, no BMJ 405, ANO1991, p. 178: "I - Comete o crime de violação, na forma continuada, previsto e punível pelo artigo 202, n. 1 do Código Penal, aquele que, sem usar de violência ou grave ameaça para manter a copula, num período relativamente curto e aproveitando um quadro de circunstancias exteriores que lhe facilitavam a reiteração das suas condutas, manteve relações de cópula, por três vezes, com uma menor de 13 anos de idade.
4. Centrados, então, sobre o "segmento" da diminuição considerável do grau de culpa do agente, aquilo com o que o julgador se depara não é tanto a construção doutrinária - hoje consagrada legislativamente - mas com as dificuldades que muitas vezes têm que ver com os sinais insuficientemente seguros da estrutura da personalidade do agente.
Até onde - passando já para o caso em apreço - se pode afirmar que o arguido agiu predominantemente determinado ou influenciado pelas circunstâncias exteriores - ficava em casa, desocupado, de modo confiante, pelos pais da menor, que lhe vinham concedendo abrigo há cerca de 15 dias, com a menor e os seus dois irmãos - ou se, ao invés, os actos praticados se ficam a dever menos à disposição exterior das coisas e antes ou predominantemente a "uma certa tendência da personalidade do criminoso"?
Pode dizer-se que o caso dos autos não tem um paralelo flagrante com um outro, também de abuso sexual de criança, em que se excluiu a continuação criminosa porque a renovação sucessiva da resolução criminosa não foi facilitada por qualquer situação exterior ou exógena e, antes, foi ele próprio que criou as condições que lhe permitiram concretizar os seus propósitos, designadamente, perseguindo, assediando e ameaçando a ofendida" Ac. de 16.02.2000 - P.º 24/00. .
Embora se possa dizer, também aqui, que atendendo à idade da criança a sua supremacia era quase completa, apenas perturbável pela eventualidade de os irmãos da vítima, que estavam em casa, poderem acordar e aperceber-se dos factos.
De qualquer modo, inclinamo-nos para a posição defendida no acórdão recorrido.
À míngua de perícias de personalidade e ainda de recolha de outros elementos de índole social sobre o arguido, com a família localizada no Brasil, a conjectura sobre o despertar ou não do "apetite sexual" alberga algo de especulativo.
Alguém que se encontra abrigado por obséquio em casa dos seus conterrâneos de um país distante, desempregado e com a situação de imigração não regularizada, e aproveita a oportunidade para coagir sexualmente uma criança de cinco anos, nas condições em que o arguido o fez - comportando-se como se fosse um adulto - abusando dela sexualmente numa situação de completa fragilidade, são factos que revelam uma personalidade deformada, como conclui o acórdão. Não se pode considerar o arguido arrastado pela oportunidade: a ausência de freios leva-o a passar por cima de todos aqueles constrangimentos, o maior dos quais devia ser a própria idade da vítima.
Entende-se que a situação se aproxima destoutras em que se afirmou que "não há crime continuado, quando as situações favoráveis à reiteração criminosa, em vez de exógenas, são criadas pelo delinquente, inclusive graças a tendências da sua personalidade" Ac. de 10.12.97 - P.º 1192/97., ou então que "a "considerável diminuição da culpa do agente" tem de aferir-se em função da predominação dos factores exógenos e não da pressão de circunstâncias interiores de natureza endógena" Ac. de 10.01.96, BMJ 453, ANO1996, p.157.

Também nós não consideramos que tenha havido uma diminuição da culpa, muito menos uma diminuição considerável.
V
De harmonia com o exposto, acordam os Juízes do Supremo Tribunal de Justiça em negar provimento ao recurso, confirmando o douto acórdão recorrido.
Fixa-se em 3 UCs a taxa de justiça, com 1/4 de procuradoria.

Lisboa, 13 de Março de 2002
Lourenço Martins,
Pires Salpico,
Leal Henriques.

P.º 4454/2001-3.ª
Descritores: Abuso sexual de criança - crime continuado - dolo - bem eminentemente pessoal - espaço e tempo - personalidade do agente
Sumário (do Relator).

I - A orientação que, na hipótese de crime continuado, se satisfaz com um dolo continuado, entendido criminologicamente, que se apresenta como um fracasso psíquico e sempre homogéneo do autor na mesma situação fáctica, é a que melhor se coaduna com a letra e a teleologia do preceito do n.º 2 do artigo 30º do CPenal, tal como provem da doutrina defendida pelo seu inspirador e que, predominantemente, este Supremo Tribunal tem adoptado.
II - Apesar de haver uma pluralidade de resoluções, factores exógenos ao agente foram determinantes da sua conduta, na medida em que o convocaram para a prática dos factos, de modo progressivamente menos resistível.
III - Embora o bem jurídico em causa seja de natureza eminentemente pessoal, desde que se trate da mesma vítima a figura do crime continuado é configurável; por outro lado, só se a distância temporal ou espacial separadora dos vários actos for tão larga que afaste a possibilidade de a mesma situação exterior presidir a todos, individualizando e diferenciando as várias oportunidades que facilitam a reiteração, se poderá falar de uma influência do espaço e do tempo capaz de excluir a continuação criminosa.
IV - Encontrando-se o arguido abrigado por obséquio em casa dos seus conterrâneos, há cerca de 15 dias, desempregado e com a situação de imigração não regularizada, ao aproveitar a oportunidade de estar quase sozinho para coagir sexualmente uma criança de cinco anos de idade, por duas vezes, comportando-se como se fosse um adulto, abusando dela sexualmente numa situação de completa fragilidade, são factos que revelam uma personalidade deformada, com ausência de freios que o inibam de passar por cima de todos aqueles constrangimentos, o maior dos quais devia ser a própria idade da vítima, o que arreda a continuação criminosa.
Votado em 13.03.02.