Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
95/16.5T8ARC.P1.S1
Nº Convencional: 1.ª SECÇÃO
Relator: JORGE LEAL
Descritores: NULIDADE DE ACÓRDÃO
CONDENAÇÃO EXTRA VEL ULTRA PETITUM
PEDIDO
ALTERAÇÃO DA QUALIFICAÇÃO JURÍDICA
CONVOLAÇÃO
PODERES DO TRIBUNAL
INEFICÁCIA
ANULAÇÃO DA PARTILHA
PRINCÍPIO DISPOSITIVO
Data do Acordão: 01/09/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Sumário :
I. O juiz não deve apreciar causas de pedir e exceções não invocadas, salvas as exceções de que oficiosamente lhe caiba conhecer.

II. Por outro lado, o tribunal “não pode condenar em quantidade superior ou em objeto diverso do que se pedir” (n.º 1 do art.º 609.º do CPC), sob pena de nulidade da sentença (alínea e) do n.º 1 do art.º 615.º do CPC).

III. Estas restrições, a que o tribunal está sujeito na sua função de julgar, não o tolhem na indagação, interpretação e aplicação do direito: jura novit curia (art.º 5.º n.º 3 do CPC).

IV. E, nessa missão, pode o tribunal concluir que a formulação do pedido apresentado pelo autor não se adequa ao regime jurídico aplicável, sem que a disparidade entre o peticionado e o concedido pela ordem jurídica fulmine a ação com a sua improcedência, antes exigindo o direito constitucional à tutela jurisdicional efetiva (art.º 20.º n.ºs 1 e 4 da CRP) que o tribunal harmonize a pretensão formulada, afinando o veredito em consonância com o que dita o direito, desde que o dispositivo conceda o mesmo efeito prático-jurídico pretendido pelo autor.

V. Nesta perspetiva, é possível ao tribunal convolar para declaração de ineficácia do ato, a pretensão da sua anulação.

Decisão Texto Integral:

Acordam os juízes no Supremo Tribunal de Justiça

I. RELATÓRIO

1. AA instaurou a presente ação declarativa constitutiva e de condenação, sob a forma de processo comum, contra (1.º R.) BB, (2.ª R.) CC, (3.ª R.) DD, (4.ª R.) EE, (5.ª R.) FF, (6.º R.) GG e (7.º R.) HH.

A A. alegou, em síntese, que é neta de II e de JJ, por ser filha do filho deles, KK. O referido II – avô da A. – faleceu em ...de outubro de 1943. A referida JJ - avó da A. – faleceu em ...de abril de 1957. O casal deixou os seguintes bens imóveis: prédios rústicos com os artigos matriciais n.º 1071 e n.º 1093 e dois prédios urbanos com os artigos matriciais n.º 43 e n.º 45, sitos no Lugar de ..., na freguesia de ..., concelho de .... Os cônjuges não deixaram testamento, nem outra disposição de última vontade. Pelo que a propriedade destes imóveis passou para os herdeiros legítimos deles, os filhos do casal, entre os quais o pai da A., KK. O pai da A. – KK – faleceu em ... de dezembro de 1992. Por óbito do pai, a A. tornou-se por direito sucessório, herdeira legítima de parte dos bens deixados pelos avós, acima identificados. Estes bens nunca foram partilhados. Nesta conformidade, a A. é parte legítima na presente ação, conforme o disposto no art. 30.º do Código de Processo Civil. Tem, assim, legitimidade para reclamar os direitos sobre os bens que lhe pertencem. Acontece que, em início de dezembro de 2015, a A. tomou conhecimento de que uma das casas de habitação, bem como os terrenos rústicos, propriedade dos avós, tinham sido vendidos a terceiros, os ora 6.º e 7.º RR. Dado que desconhecia tal facto, procurou inteirar-se do que se passava. Das diligências que realizou a A. apurou que os ditos imóveis haviam sido vendidos por BB – 1.º R. - primo da A. e, também neto dos mesmos avós, aos 6.º e 7.º RR.. Para esse efeito os 1.º a 5.º RR. efetuaram uma alegada partilha dos bens deixados pelos seus pais e avós, LL e mulher MM, aí incluindo os referidos imóveis. Obtiveram novas descrições desses imóveis, ocultando que eles já se encontravam descritos no registo predial, fazendo aparecer os imóveis como inscritos apenas em nome de LL, pai e avô dos 1.º a 5.º RR. Após a pretensa partilha, foi realizada a venda a favor do 6.º R. e a venda a favor do 7.º R.. Todos os RR., incluindo os compradores, sabiam que, ao agir como o faziam, estavam a usurpar património que pertencia a todos os herdeiros de II e JJ. Em sede de direito, a A. alegou que, aberta a sucessão pelo falecimento do de cujus, são chamados os seus herdeiros à titularidade das relações jurídicas patrimoniais do falecido. Assim, nunca poderiam ser transmitidos bens, integrados na herança, sem o conhecimento e o consentimento da A. e dos restantes herdeiros. Deverá ser aplicado o disposto no art.º 2075.º do Código Civil, reconhecendo a qualidade sucessória da A. e a consequente restituição de todos os bens da herança, incluindo os que foram objeto das referidas vendas a terceiros. Quer a suposta partilha, quer as vendas subsequentes, são nulas, sendo certo que os adquirentes agiram de má-fé. Em virtude da conduta dos RR. a A. teve despesas e prejuízos que devem ser ressarcidos com indemnização a liquidar em execução de sentença, mas em quantia não inferior a € 8 000,00.

A A. terminou formulando o seguinte petitório:

1) Ser reconhecido o direito da A. à co-propriedade dos bens imóveis, deixados pelos avós II e JJ, na parte que lhe cabe;

2) Ser anulada a partilha por óbito de LL e MM.

3) Serem anuladas as vendas feitas a GG e HH, com consequente anulação dos registos.

4) Ser ordenada a actualização das descrições dos imóveis registados a favor de II e JJ, com a composição e inscrição actuais.

5) Serem os RR condenados, solidariamente, a pagar, à A. uma indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais, em valor a apurar e liquidar em execução de sentença, englobando a manifesta má-fé”.

2. Citados, os 1.º a 5.º RR. apresentaram contestação, na qual alegaram que a A. não alegou qualquer facto que suportasse o seu invocado direito de compropriedade sobre os bens. Mais afirmaram que a A. não podia alegar ser titular de uma herança ou de uma quota hereditária, pois já havia caducado o direito de o seu pai e, bem assim, o da A. aceitarem a herança de II e de JJ. O pai e avô dos RR. foi o único filho que aceitou a herança, tendo os restantes filhos a ela renunciado. Por isso, foi o pai e avô dos RR. quem cuidou dos prédios, tornando-os habitáveis e colhendo os seus frutos, com o conhecimento e concordância de todos os interessados, entre os quais a A., pelo que são, ou eram, os únicos proprietários desses bens.

Os RR. concluíram pela improcedência da ação, por não provada, com as consequências legais.

3. Também os 6.º e 7.º RR. contestaram, alegando terem agido de boa-fé, convictos que os vendedores estavam legitimados para procederem às aludidas vendas.

Os RR. concluíram pela improcedência da ação, por não provada, e consequente absolvição dos RR. dos pedidos.

4. A convite do tribunal, a A. respondeu aos 1.º a 5.º RR., reiterando a sua legitimidade, enquanto titular, tal como os seus irmãos, na sequência da morte do seu pai, do direito à herança dos avós paternos, a qual não foi alvo de partilha por todos os herdeiros. Mais negou a cessação da sua qualidade de herdeira e afirmou que o seu pai, KK, aceitou tacitamente a herança dos seus pais.

5. Em 19.01.2017 foi proferido despacho em que, após se ponderar que a A. pretendia que se declarasse, para além do mais, a nulidade de partilha e venda efetuada pelos outros herdeiros, que não da sua estirpe, que demandava como RR., além dos compradores, pelo que estavam em causa direitos relativos à herança que só podiam ser exercidos por todos os herdeiros ou conjuntamente por todos os herdeiros, convidou-se a A. a deduzir incidente de intervenção principal provocada tendo em vista suprir a preterição de litisconsórcio necessário ativo.

6. Em 20.02.2017 a A., alegando que “os direitos à herança só podem ser exercidos por todos os herdeiros”, e que “a aqui Autora, sozinha, como herdeira, deu entrada em juízo de uma acção a pedir que fosse declarada a nulidade de uma partilha, com posterior venda, efectuada por determinados herdeiros relativamente a um conjunto de bens que pertencem à herança aberta por óbito dos seus avós de que era herdeiro o seu pai, KK, entretanto falecido”, requereu a citação, para intervirem nos autos como intervenientes principais, de NN, casado com OO, PP e filhos, QQ e RR, e ainda SS e TT.

7. Citados, os chamados nada disseram.

8. Realizou-se audiência prévia, tendo sido fixado à ação o valor de € 58 000,00, foi proferido despacho saneador tabelar, foi identificado o objeto do litígio e foram enunciados os temas da prova

9. Procedeu-se a audiência de julgamento e em 07.11.2021 foi proferida sentença, em que se julgou a ação improcedente por não provada, e consequentemente se absolveu os RR. dos pedidos, com custas pelos AA.

10. A A. apelou da sentença, limitando o seu inconformismo à improcedência dos pedidos que formulara em segundo e quinto lugar, e apenas quanto aos 1.º a 5.º RR..

11. Em 21.4.2022 a Relação do Porto julgou a apelação parcialmente procedente e, consequentemente, declarou ineficaz em relação à A. a partilha de bens efetuada pelos 1.º a 5.º RR. em 27.11.2015 dos bens imóveis descritos no ponto 4 da fundamentação de facto da sentença, com custas por ambas as partes, na proporção do decaimento.

12. Os 1.º a 5.º RR. interpuseram recurso de revista desse acórdão, tendo apresentado alegações em que formularam as seguintes conclusões:

“1.ª Na presente acção formulou a A. os seguintes pedidos:

1) Ser reconhecido o direito da A. à co-propriedade dos bens imóveis, deixados pelos avós II e JJ, na parte que lhe cabe.

2) Ser anulada a partilha por óbito de LL e MM.

2.ª Como causa de pedir para o primeiro daqueles pedidos, alegou a recorrida ser comproprietária dos imóveis que identifica na P.I.;

3.ª Como causa de pedir do segundo pedido, alega a simulação de uma escritura de partilha, bem como a legitimidade para arguir a nulidade por ser comproprietária dos bens partilhados;

4.ª Configurada a acção pela A. da forma descrita, julgou o Tribunal de Primeira Instância a acção improcedente, por não provada, em resumo, por não considerar provado que a Autora fosse comproprietária e, ao que acresce quanto ao segundo pedido, o facto de não ter sido junto aos autos a escritura cuja simulação foi arguida, cuja prova só poderá ser documental;

5.ª Em sede de recurso, julgou o Tribunal de Segunda Instância a acção parcialmente procedente por provada e declarou ineficaz em relação à autora a partilha de bens efectuada pelos 1º a 5º RR. em 27-11-2015 dos bens imóveis descritos no ponto 4 da fundamentação de facto da sentença;

6.ª Considerando que a causa de pedir teria sido (i)Alegada qualidade de sucessora da Autora na herança indivisa aberta por morte de seu pai, que integra o direito deste à herança, ainda indivisa, aberta por morte dos avós da Autora. (ii) Partilha dos bens pertencentes à herança dos avós da Autora, pelos RR (também herdeiros na herança dos avós, por serem netos) com preterição da Autora e Intervenientes no processo) e subsequente alienação dos imóveis que compõem a herança os 6º e 7º RR.”;

7.ª O que não corresponde em nada à forma como a A. configurou a sua acção e levou a que, ao assim decidir, tivesse o Tribunal recorrido proferido uma decisão distinta daquelas que poderiam ser o resultado da efectiva causa de pedir e do pedido expressamente formulado, suprindo oficiosamente e sem fundamento legal, as deficiências da acção, tal qual esta foi configurada pela A;

8.ª Efectivamente, pedida nulidade de uma escritura não pode o Tribunal declarar a sua anulação, tal como, pedida a anulação por ter havido simulação, por pessoa que se arroga comproprietário, não pode o Tribunal decidir pela existência de um efeito jurídico distinto, o da ineficácia em relação à A - o qual, nem a título subsidiário, foi formulado - ou entender que a legitimidade para a causa de pedir deixou de ser a compropriedade e entender que afinal a A. é herdeira;

9.ª Pelo que, ao condenar os recorrentes num pedido distinto do formulado pela A., que nunca pediu que fosse reconhecida como herdeira, mas pugnou pela existência de uma compropriedade, é o acórdão proferido nulo por violação do princípio da estabilidade da instância e, como tal, terá de ser revogado;

10.ª Ao assim não decidir violou o Tribunal “a quo” o preceituado nos art.ºs 260.º, 564.º, n.º 1, al. b) e 615.º, n.º 1, al. e) do CPC;

11.ª Se Vossas Excelências, em face das conclusões atrás enunciadas julgarem procedente por provado o presente recurso e, em consequência disso, proferirem acórdão que declare nulo o acórdão proferido o Tribunal da Relação, ou ainda que assim não o entendam, o revoguem, mantendo a sentença proferida pelo Tribunal de primeira instância,

Farão uma vez mais serena, sã e objectiva JUSTIÇA.”

13. Não houve contra-alegações.

14. Foram colhidos os vistos legais.

II. FUNDAMENTAÇÃO

1. Estando em causa ação com valor superior à alçada da Relação (€ 30 000,00, art.º 44.º da LOSJ), tendo os 1.ºs RR. nela decaído parcialmente, por força de acórdão que revogou parcialmente a decisão da primeira instância, o recurso é admissível, com o objeto que, por força das conclusões, os recorrentes cingiram à seguinte questão: a da alegada nulidade do acórdão recorrido, por ter condenado os recorrentes em pedido distinto do formulado pela A. (cfr. artigos 629.º n.º 1, 671.º n.º 1, 635.º n.º 4, 674.º n.º 1 al. c) do CPC).

2. A Relação realçou, de entre a constante na sentença, a seguinte

Matéria de facto

1. A A. é neta de II e de JJ, sendo filha do filho deles, KK.

2. O referido II – avô da A. – faleceu em ... de Outubro de 1943.

3. A referida JJ - avó da A. – faleceu em ... de Abril de 1957.

4. O casal deixou os seguintes bens imóveis: prédios rústicos com os artigos matriciais n.º 1071 e n.º 1093 e dois prédios urbanos com os artigos matriciais n.º 43 e n.º 45, sitos no Lugar de ..., na freguesia de ..., concelho de ....

5. Os cônjuges não deixaram testamento, nem outra disposição de última vontade.

6. A propriedade destes imóveis passou para os herdeiros legítimos deles, os filhos do casal, entre os quais o pai da A., KK.

7. O pai da A. – KK – faleceu em...de Dezembro de 1992

8. Por óbito do pai, a A. sucedeu-lhe como herdeira legítima de parte dos bens deixados pelos avós, acima identificados.

9. Estes bens nunca foram partilhados.

10. No início de Dezembro de 2015, a A. tomou conhecimento de que uma das casas de habitação, bem como os terrenos rústicos, propriedade dos avós, tinham sido vendidos a terceiros, os ora 6.º e 7.º RR.

(…)

20. No dia 7 de Janeiro de 2016, a A. recebeu a resposta do Serviço de Finanças de ..., informando que: “… foi efetuado o averbamento dos prédios em nome de BB, com base na escritura de partilha, exarada em ...-11-2015 Livro D ...15, Fls. 4 e seg.,

b) uma escritura de habilitação de herdeiros, lavrada em ... de Outubro de 2015, a fls. 19 do livro ...74, do Cartório Notarial de ..., a cargo da Notária UU.

c) um documento particular de “Partilha”, autenticado pela referida Solicitadora VV, em 27 de Novembro de 2015

d) um documento particular denominado “compra e venda”, autenticado pela referida Solicitadora, no mesmo dia 27 de Novembro de 2015.

e) um documento particular denominado “compra e venda”, autenticado pela referida Solicitadora, na mesma data.

25. As irmãs e sobrinhas do 1.º R, ora 2ª,3ª,4ª e 5ª RR, outorgaram procurações para aceitarem que ele partilhasse bens imóveis, que sabiam não pertencer aos pais e avós delas e receberam tornas do 1º R..

26. Os 6º e 7º RR. foram nascidos e criados no aglomerado populacional que engloba ..., ... e ... - uma terra de reduzidas dimensões.

27. O comprador GG tem residência na Suíça, desloca-se a ... por vezes, ficando a habitar na casa dos pais dele e circulando pela terra, onde frequenta os estabelecimentos comerciais, cafés, restaurantes.

28. O comprador HH, primo do GG, reside na localidade “ao lado”, ....

29. Os 1ºs a 5º RR. conseguiram novas descrições prediais em detrimento das existentes, com aquisição registada desde 1934 a favor de II.

30. No dia 27 de novembro de 2015, foi realizada uma “venda” a GG, 6.º R 31. uma outra “venda” a HH, ora 7º R.

32. A aquisição dos prédios descritos na Conservatória do Registo Predial de ... sob os números ...94 (artigo rústico 1093) e ...95 (artigo urbano 45) – da freguesia de ... foi registada a favor do comprador GG, ora 6.º R., em 15 de dezembro de 2015.

33. A aquisição do prédio descrito na citada Conservatória do Registo Predial sob o número ...93 (artigo rústico 1071) – da freguesia de ... foi registada a favor do comprador HH, ora 7.º R., também em 15 de dezembro de 2015.

34. A aquisição do prédio descrito na referida Conservatória sob o número ...92(artigo urbano 43) – da freguesia de ... foi registada a favor de BB, ora 1º R, igualmente em 15 de dezembro de 2015.

(…)

36. Em 9 de Abril de 2004, todos os prédios ora vendidos estavam inscritos na matriz em verbete nº ...43 a favor de II.

37. A 12 de outubro de 2004, o R BB, intitulando-se cabeça de casal na herança do avô dele – II – requereu a criação do NIF da herança indivisa,

38. Ali declarando ser essa “a primeira inscrição para efeitos de atribuição de número fiscal de herança indivisa” .

(…)

41. Os imóveis objeto da presente ação foram averbados a esse NIF de herança indivisa, reconhecendo aquele BB, em 2004, que os bens deixados pelos avós eram propriedade de vários herdeiros, que ele por si enumerados e nos quais se incluiu a ora A. AA, com NIF ...52, bem como os irmãos dela, QQ, PP e NN

(…)

44. Os artigos matriciais urbanos 43 e 45 e os rústicos 1071 e 1093 de hoje correspondem aos artigos matriciais de que era proprietário II.

45. Os RR. tinham perfeito conhecimento que a conduta deles era proibida por Lei.

46. Sabiam que estavam a dispor de um património que pertencia a todos os herdeiros de II e JJ.

47. Não se coibiram de o fazer.

(...)

62. Os Réus, através de documentos particulares autenticados, outorgaram, a 27 de Novembro de 2015, cada um, contrato de compra e venda, tendo adquirido respetivamente, os seguintes prédios:

- GG - prédio rústico, inscrito na matriz sob o artigo n.º 1093, pelo preço de 15.000,00€, e um prédio urbano, inscrito na matriz sob o artigo 45, pelo preço de 10.000,00€, ambos da freguesia de ..., Concelho de ...;

- HH – prédio rústico, inscrito na matriz sob o artigo 1071, pelo preço de 15.000,00€, da freguesia de ..., concelho de ...;

63. Aquisições que ocorreram após terem tido conhecimento através de outro interessado na compra dos referidos prédios de que os mesmos se encontravam à venda, e através de quem obtiveram o contacto do vendedor, que não conheciam.

64. Bem como desconheciam de que modo os referidos prédios tinham vindo à posse do referido vendedor, o que só no momento da outorga dos referidos contratos tiveram conhecimento após a sua leitura.

65. Desconhecendo a existência da A. e a sua alegada relação familiar com os demais RR., designadamente, o Réu BB.

66. Os Réus adquiriram os referidos prédios a título oneroso, tendo pago os respetivos preços e efetuados os respetivos registos de aquisição, convictos que não prejudicavam nem ofendiam qualquer direito de terceiro.

67. Os Réus, compradores, estavam convictos de que estavam a comprar ao verdadeiro e único proprietário.

3. O Direito

É sabido que no processo comum, como corolário do princípio dispositivo, sobre o autor recai o ónus de alegar os factos que integram a causa de pedir (art.º 5.º n.º 1 do Código de Processo Civil). Estes são os factos concretos, a que a ordem jurídica dá relevância para o reconhecimento do direito invocado pelo autor, ou seja, para a procedência do pedido (artigo 552.º, n.º 1, alínea d); art.º 581.º n.º 4 do Código de Processo Civil). A causa de pedir e o pedido, que devem ser indicados na petição inicial (art.º 552.º n.º 1 alíneas d) e e), formam o objeto do processo.

De acordo com o princípio da estabilidade da instância, “citado o réu, a instância deve manter-se a mesma quanto às pessoas, ao pedido e à causa de pedir, salvas as possibilidades de modificação consignadas na lei” (art.º 260.º do CPC).

Quanto à causa de pedir, as possibilidades de modificação traduzem-se:

- na sua alteração ou ampliação em qualquer altura, se houver acordo das partes, salvo se a alteração ou ampliação perturbar inconvenientemente a instrução, discussão e julgamento do pleito (art.º 264.º do CPC);

- na falta de acordo entre as partes, na sua alteração ou ampliação em consequência de confissão feita pelo réu e aceita pelo autor (art.º 265.º n.º 1 do CPC).

Nos termos do artº 615.º n.º 1, alínea d), segunda parte, do CPC, a sentença é nula se nela o juiz conhecer de questões de que não podia tomar conhecimento. Norma esta que se conjuga com o disposto no art.º 608.º, n.º 2, parte final, do CPC (o juiz “não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras”).

O juiz não deve, pois, apreciar causas de pedir e exceções não invocadas, salvas as exceções de que oficiosamente lhe caiba conhecer.

Por outro lado, o tribunal “não pode condenar em quantidade superior ou em objeto diverso do que se pedir” (n.º 1 do art.º 609.º do CPC), sob pena de nulidade da sentença (alínea e) do n.º 1 do art.º 615.º do CPC).

Estas restrições, a que o tribunal está sujeito na sua função de julgar, não o tolhem na indagação, interpretação e aplicação do direito: jura novit curia (art.º 5.º n.º 3 do CPC).

E, nessa missão, pode o tribunal concluir que a formulação do pedido apresentado pelo autor não se adequa ao regime jurídico aplicável, sem que a disparidade entre o peticionado e o concedido pela ordem jurídica fulmine a ação com a sua improcedência, antes exigindo o direito constitucional à tutela jurisdicional efetiva (art.º 20.º n.ºs 1 e 4 da CRP) que o tribunal harmonize a pretensão formulada, afinando o veredito em consonância com o que dita o direito, desde que o dispositivo se contenha nos limites do pedido.

Manifestação desta perspetiva é exemplo relevante o acórdão de uniformização de jurisprudência proferido pelo STJ em 23.01.2001 e publicado, sob o n.º 3/2001, no D.R., 1.ª série, de 09.02.2001.

Nesse acórdão firmou-se a seguinte jurisprudência:

Tendo o autor, em acção de impugnação pauliana, pedido a declaração de nulidade ou a anulação do acto jurídico impugnado, tratando-se de erro na qualificação jurídica do efeito pretendido, que é a ineficácia do acto em relação ao autor (n.º 1 do artigo 616.º do Código Civil), o juiz deve corrigir oficiosamente tal erro e declarar tal ineficácia, como permitido pelo artigo 664.º do Código de Processo Civil [atualmente, artigo 5.º n.º 3 do CPC].”

Ponderou-se, nesse acórdão, o seguinte:

Tendo invocado as normas legais da impugnação pauliana e os RR contestado nessa base, face ao estatuído no citado artigo 664.º, nada impede que, face ao erro na qualificação jurídica dos efeitos pretendidos, o juiz declare a ineficácia do contrato, em vez da pedida anulação.

É que, como ensina Antunes Varela, na Revista Decana, ano 122.º, p. 255, obrigar-se o autor num caso destes «a sofrer a improcedência da acção, para vir em seguida (dando o nome certo aos bois) requerer a declaração de ineficácia do acto, [...] seria uma violência e a clara denegação prática de tudo quanto se deve ao direito processual, na supremacia relativa do direito substantivo [...] sobre os puros ritos do direito adjectivo».”

Conforme proficientemente se dá conta no acórdão deste STJ de 02.03.2023, processo n.º 21025/19.7T8PRT.P1.S1, de acordo com a doutrina especializada e com a orientação da jurisprudência do STJ, a convolação do pedido é admissível desde que se respeite o princípio de correspondência ou congruência entre o pedido deduzido e a pronúncia jurisdicional obtida pela parte.

Tal ocorrerá quando a convolação conceda o mesmo efeito prático-jurídico pretendido pelo autor, o que sucede quando se declare a ineficácia ou inoponibilidade subjetiva do ato em vez da nulidade ou anulação pedidas (cfr. acórdão do STJ, de 24.11.2020, processo n.º 1977/14.4TJCBR-J.C1.S1).

Na ação sub judice, a A. peticionou (além do mais, que não é objeto deste recurso) que fosse “anulada a partilha por óbito de LL e MM.”

Conforme decorre do Relatório supra (I.1.), a A. alicerçou o seu pedido no facto de a aludida partilha ter sido realizada sem a intervenção da A. e dos outros herdeiros interessados na herança de II e de JJ, pais de LL, sendo certo que os bens partilhados na aludida partilha integravam a herança de II e de JJ e ainda não haviam sido partilhados.

Assim, contrariamente ao aduzido pelos recorrentes, a causa de pedir apresentada pela A. radica no fenómeno sucessório, na sua qualidade de herdeira, sendo por isso, aliás, que foram supervenientemente chamados à ação os restantes herdeiros, sem qualquer oposição dos RR..

A 1.ª instância julgou improcedente o pedido de anulação da referida partilha “pois não resultaram verdadeiramente carreados elementos que permitam concluir pela existência de partilha que os AA. invocam, não podendo este tribunal apreciar e anular um acto que não se consegue apurar que existiu e em que termos”.

Na sua apelação a A. procurou demonstrar que a existência da aludida partilha estava provada, pelo que não havia razão para a improcedência desse pedido (conclusões XXIII a XLIV).

E a Relação, dando de barato a ocorrência da mencionada partilha, e reconhecendo à A. a qualidade de herdeira interessada, ajuizou que a partilha de bens que não pertencem ao acervo hereditário ou sem que nela participem todos os herdeiros, não é nula, mas ineficaz em sentido estrito. E, para fundamentar o dispositivo que veio a emitir, a Relação expressou-se assim:

O facto de ter sido formulado pedido de anulação da partilha não obsta a que o tribunal decrete a ineficácia da mesma de acordo com a jurisprudência do acórdão uniformizador n.º 3/01, de 23 de Janeiro (DR I-A, de 9-2-01), que facultou ao juiz a correção oficiosa, em ação de impugnação pauliana, do pedido de «declaração de nulidade ou anulação» do negócio impugnado para o de «ineficácia» do ato em relação ao autor”.

Tal fundamentação harmoniza-se com o acima exposto, acerca dos poderes do tribunal na qualificação jurídica da pretensão formulada, no sentido de ser possível, por exemplo, convolar para declaração de ineficácia do ato, a pretensão da declaração da sua nulidade.

O acórdão recorrido não padece, pois, da nulidade que lhe é assacada.

A revista é, assim, improcedente.

III. DECISÃO

Pelo exposto, julga-se a revista improcedente e, consequentemente, mantém-se o acórdão recorrido.

As custas da revista, na componente de custas de parte, são a cargo dos recorrentes, que nela decaíram (artigos 527.º n.ºs 1 e 2, e 533.º, do CPC).

Lx, 09.01.2024

Jorge Leal (Relator)

Manuel Aguiar Pereira

Pedro de Lima Gonçalves