Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
799/21.0JAPDL.L1.S1
Nº Convencional: 3.ª SECÇÃO
Relator: LOPES DA MOTA
Descritores: HOMICÍDIO
HOMICÍDIO QUALIFICADO
CÔNJUGE
TENTATIVA
VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
MEDIDA CONCRETA DA PENA
PENA ÚNICA
NULIDADE DE ACÓRDÃO
Data do Acordão: 05/15/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário :

I. As questões colocadas pelo recorrente, condenado na pena de 3 anos e 6 meses de prisão pela prática de um crime de violência doméstica p. e p. pelo artigo 152.º, n.ºs.1, al. a), e 2, al. a), do Código Penal (CP), e na pena 8 anos de prisão pela prática de um crime de homicídio qualificado sob a forma tentada, p. e p. pelos artigos 22.º, 23.º, 73.º, 131.º, 132.º, n.ºs 1 e 2, al. b), do CP, na pessoa do cônjuge, e na pena única de 9 anos e 6 meses de prisão, dizem respeito à medida das penas parcelares e da pena única.

II. Estando em causa uma situação de concurso de crimes (artigos 30.º, n.º 1, e 77.º do CP), é o Supremo Tribunal de Justiça (STJ) o competente para conhecer de todas as questões de direito relativas à pena única e às penas aplicadas a cada um deles, englobadas naquela pena única, inferiores a 5 anos de prisão, se impugnadas (acórdão de fixação de jurisprudência n.º 5/2017, DR I, de 23.6.2017), como sucede no caso presente.

III. O acórdão recorrido foi proferido em cumprimento do decidido no anterior acórdão deste STJ de 15.2.2023, que, nos termos do artigo 379.º, n.º 1, al. c), 1.ª parte, e n.º 2, do CPP, declarou nulo o acórdão da 1.ª instância de 6.3.2022, por omissão de pronúncia quanto à questão da imputabilidade do arguido que era, então, considerado portador de «imputabilidade diminuída», que corresponde a «imputabilidade duvidosa», de modo a apurar-se se o arguido era imputável ou inimputável à data da prática dos factos, para daí se extraírem as necessárias consequência, por via de aplicação de uma pena, a determinar de acordo com o artigo 71.º, n.º 1, do CP, ou de uma medida de segurança, nos termos do artigo 91.º, n.º 1, do CP.

IV. Ponderando os comprovados fatores relevantes para a determinação das penas, nos termos do artigo 71.º do CP, não se encontra fundamento que justifique um juízo de discordância relativamente à decisão sobre a medida das penas, as quais, na consideração desses fatores e das molduras correspondentes aos crimes em concurso, não se mostram fixada em violação dos critérios de proporcionalidade legalmente impostos, em vista da realização das suas finalidades de proteção do bem jurídico protegido e de reintegração (artigo 40.º do CP).

V. Embora a fundamentação se mostre manifestamente escassa, nela não se encontrando uma justificação autónoma da decisão de determinação da pena única, nos termos legalmente exigidos, resultando em falta de fundamentação suscetível de constituir nulidade [artigo 379.º, n.º 1, al. a), do CPP], considera-se, porém, que a decisão recorrida contém os elementos necessários ao suprimento dessa omissão (artigo 379.º, n.º 2, do CPP).

VI. Tendo em conta a moldura da pena aplicável aos crimes em concurso, na consideração, em conjunto, da gravidade dos factos e da personalidade do arguido (artigos 71.º e 77.º, n.º 1, do CP), também não se encontra fundamento que justifique a alteração da pena única, que se conforma ao critério de proporcionalidade que preside à sua determinação.

Decisão Texto Integral:
Proc. n.º 799/21.0JAPDL.L1.S1

3.ª Secção

ACÓRDÃO

Acordam na 3.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça:

I. Relatório

1. AA, arguido, com a identificação que consta dos autos, interpõe recurso do acórdão de ........2023, proferido pelo tribunal coletivo do Juízo Central Cível e Criminal ... – Juiz ..., do Tribunal Judicial da Comarca dos Açores, que o condenou pela prática de:

a) um crime de violência doméstica, agravado, p.p. pelo artigo 152.º, n.ºs.1, al. a), e 2, al. a), do Código Penal, sobre a sua esposa BB, na pena de 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão;

b) um crime de homicídio qualificado na forma tentada, p. e p. pelos artigos 22.º, n.ºs.1 e 2, al. a), 23.º, n.º.1, 72.º, n.º.1, 73.º, n.ºs.1 e 2, 131.º, 132.º, n.ºs.1 e 2, al. b), do Código Penal, sobre a sua esposa BB, na pena de 8 (oito) anos de prisão; e

c) efetuando o cúmulo jurídico destas penas, na pena única (especialmente atenuada) de 9 (nove) anos e 6 (seis) meses de prisão.

2. Discordando do decidido, quer quanto às penas singulares, quer quanto à pena única, apresenta motivação que termina com as seguintes conclusões (transcrição):

«1 – Objeto e delimitação do Recurso

O presente recurso tem como objeto a matéria de Direito – dosimetria das penas parcelares e pena única aplicada – do acórdão condenatório proferido.

2 – O Recorrente foi condenado nas penas parcelares de três anos e seis meses de prisão pela prática de um crime de violência doméstica agravada e de oito anos de prisão pela prática de um crime de homicídio qualificado, na forma tentada,

3 – E, em cúmulo das penas parcelares acima determinadas, na pena única de nove anos e seis meses de prisão.

4 – Ressalvado o respeito devido, não nos parece que assim devesse ter sido.

5 – No caso vertente, haveria de considerar que o recorrente tem 45 anos de idade, está familiar e socialmente inserido. Profissionalmente, encontra-se reformado por invalidez.

6 – Padece de esquizofrenia paranoide o que associada à sua problemática aditiva origina episódios de descompensação e alucinações e condiciona o controlo da agressividade ampliada pelos efeitos da droga.

7 – Em reclusão, mantém-se integrado em programa de substituição/metadona e não regista infrações disciplinares.

8 – Ponderadas a culpa, o grau de ilicitude e as condições pessoais do arguido, ao Recorrente deviam ter sido aplicadas as penas de três anos de prisão pela prática crime de violência doméstica agravado e de seis anos e seis meses de prisão pela prática do crime de crime de homicídio qualificado na forma tentada,

9 – E, atenta a natureza e o idêntico contexto em que foram praticados, pena única nunca superior a oito anos de prisão.

10 – Ao decidir como decidiu o Tribunal “a quo” fez erradas interpretação e aplicação das normas ínsitas no arts. 40.º, 70.º, 71.º, 77.º e 78.º todos do C.P.

Termos em que deve ser dado provimento ao presente recurso e, por via dele, ser o acórdão recorrido substituído por outro que aplique ao Recorrente pena única nunca superior a oito anos de prisão (…)».

3. O Ministério Público, pelo Senhor Procurador da República no tribunal recorrido, pugnando pela manutenção do decidido, apresentou resposta em que conclui:

«1. A prova feita em Tribunal foi devidamente ponderada pelo Tribunal recorrido, que aplicou corretamente ao caso a lei aplicável, e encontrou o sancionamento devido, termos em que nenhuma censura merece o douto acórdão.

2. As exigências de prevenção geral in casu, não é despiciendo salientá-lo, são elevadas, atenta a natureza dos ilícitos em causa.

3. Os factos são graves. Estes tipos de crimes, em razão do bem jurídico que defende, é causa de grande alarme social e elevada nocividade para sentimento de segurança da população, que deve ser acautelado.

4. No caso “sub judice” deve atender-se, em especial, as seguintes circunstâncias para encontrar a pena concreta dentro da moldura penal: o elevado grau de desvalor objetivo e ético-subjetivo demonstrados, sendo o dolo intenso, o grau de ilicitude da conduta e da culpa são elevados atendendo aos contornos da sua atuação, como bem refere o douto acórdão: “ressentido e imbuído de um espírito malino, não hesitou em surpreender a esposa, pelas costas e com o instrumento da agressão escondido na algibeira”.

5. A sua postura durante e após os factos demonstra que o mesmo, revela diminuta consciência crítica, dificuldade de descentração e de responsabilização pelos seus atos, como aliás resulta do seu relatório social.

6. O arguido revela diminuta interiorização dos valores e normas, desvalorização dos comportamentos ilícitos e deixa-nos nota clara da propensão do arguido para a delinquência.

7. No acórdão recorrido a situação concreta foi analisada, de forma adequada, a determinação da pena concreta foi feita dentro destes limites legais. A pena concreta não ultrapassou a medida da culpa, e atendeu às exigências da prevenção geral e especial.

8. Como consequência o douto acórdão não viola os preceitos legais invocados pela recorrente.

9. Deve assim improceder a pretensão do recorrente.»

4. Remetido ao Tribunal da Relação de Lisboa, foi determinado por despacho do Senhor Juiz Desembargador relator de ........2023 que o processo fosse transmitido ao Supremo Tribunal de Justiça por ser o competente para conhecer do recurso, que vem limitado a matéria de direito [artigo 432.º, n.º 1, al. c), do CPP].

5. Recebidos, foram os autos com vista ao Ministério Público, tendo o Senhor Procurador-Geral Adjunto neste Tribunal emitido detalhado e proficiente parecer, nos termos do artigo 416.º do CPP, no sentido da improcedência do recurso, de que se extraem os seguintes segmentos:

«Quanto ao crime de violência doméstica:

⎯ Quando está em causa uma vítima cônjuge, como no caso dos autos está, tem‑se identificado a integridade pessoal como núcleo essencial do bem jurídico em questão, aí incluindo a dimensão sentimental do afeto e da confiança, que se traduz assim num desvalor do resultado traduzido na ofensa adicional à igualdade e à integridade moral do cônjuge ou ex-cônjuge, a par de todo o conjunto de bens jurídicos protegidos pelos crimes concomitantes, subsidiários ou conexos.

⎯ Tem-se entendido assim ser complexo ou multidimensional o bem jurídico protegido pela incriminação da violência doméstica (…) por nele se incluir tanto a integridade física e psíquica, como a liberdade pessoal, a honra e a autodeterminação sexual e mesmo a desumanidade, se a violência doméstica tiver laivos de crueldade ou especial censurabilidade, que parece não ser reconduzível singelamente à saúde em todas as suas vertentes e qualificações, pois acaba por ser redutor ao não incluir aspetos morais.

⎯ Esse bem jurídico complexo ou multidimensional é identificável nas diferentes parcelas que integram o bem jurídico em função do caso concreto e que, em concreto, venham a ser ofendidas, mas a essa identificação tem de se adicionar um juízo de valoração global que represente por parte do agente o aproveitamento da diminuição de capacidade de defesa, de reação ou de adaptação da vítima, de modo a perturbar a sua capacidade de determinação ou a livre manifestação de vontade, contrariando por via do desvalor da sua conduta toda a congruência de proteção inerente ao ambiente familiar em que a vítima vive e/ou onde convive ou conviveu.

⎯ Essa valoração global pode ser reconduzida a aspetos subjetivos da motivação censurável do agente refletidos no seu comportamento exterior, colorido por qualificativos de censura ou de carga ética acrescida por maldade, falta de altruísmo, piedade ou de solidariedade, etc., virados contra quem é cônjuge ou ex-cônjuge. (…)

⎯ No crime de violência doméstica estamos perante crime de dano ou de lesão, no que se refere ao bem jurídico, e de resultado, no que respeita ao objeto de ação, que requer um nexo de causalidade adequada na ofensa ao bem jurídico complexo, em qualquer das suas dimensões parcelares típicas, validada essa ofensa de acordo com a valoração global que referimos. (…)

No caso dos autos, e tendo em conta a factualidade provada, [o] juízo de valoração global exigido à integração típica do crime de violência doméstica existe e permite avançar para a ponderação dos fatores pertinentes à determinação concreta da pena e que no caso são os seguintes:

⎯ Quanto ao desvalor da ação, com reflexos ponderativos tanto na ilicitude, como na culpa e na personalidade revelada no facto (lado objetivo e subjetivo do facto), é bastante elevado por o arguido ter agido:

no habitat doméstico, onde a confiança e o respeito devem imperar mutuamente entre os cônjuges e entre pais e filhos;

as agressões físicas e verbais que infligiu à esposa não eram esporádicas, antes foram crescendo de intensidade, culminando na tentativa de assassinato, e tinham por motivação suspeitas de infidelidade;

as expressões verbais com que agredia a esposa não podem deixar de ser tidos por humilhantes (“puta, nojenta, cabra, andas-me a enganar com outros homens”), quando deveria ser suposto o afeto conjugal e a confiança, a igualdade e o respeito pela integridade física e moral do cônjuge, atingindo o auge da intensidade quando foram acompanhadas da ameaça de morte da esposa e depois na tentativa de assassinato.

Todo o comportamento do arguido foi mais do que a mera ofensa à integridade física e da honra do cônjuge, pois não foge à valoração global de uma conduta indigna, arbitrária, abusiva, prepotente, despótica, caprichosa e injusta para com a vítima, que atinge foros de alguma malvadez ou egoísmo, até crueldade, como originalmente o Código Penal adjetivava este tipo de crime. A indiferença emocional perante o sofrimento, dor ou humilhação causado à vítima não podem deixar de ser considerados global e especialmente desvaliosos na ação.

⎯ Quanto ao desvalor do resultado, também com reflexos ponderativos tanto na ilicitude, como na culpa e na personalidade revelada no facto (lado objetivo e subjetivo do facto), também se mostra com bastante gravidade, pois,

a conduta do arguido foi adequada a fazer sofrer na vítima intimidação de grau intenso, que se traduziu contemporaneamente numa eficaz neutralização da sua capacidade de defesa ou reação, causando transtorno emocional grave que o tribunal reconheceu à vítima, nos seguintes termos, nos factos provados “Com a sua atuação AA faz com que a ofendida BB sinta medo dele, receie a sua presença, fique indecisa quanto aos comportamentos a tomar em cada momento, as suas manifestações espontâneas inibidas, tudo para não lhe despertar um acesso de mau humor com as respetivas consequências” (p. 5 do acórdão).

⎯ Ainda no quadro da culpa, o dolo é direto, a motivação não merece qualquer tutela ou compreensão jurídica ou moral, o juízo de censurabilidade global que recai sobre o recorrente não merece qualquer juízo de ajustamento, pois a conflitualidade existente apenas é de imputar àquele.

Tenha–se em conta que o crime de violência doméstica cometido, já por si, é dos crimes que maior alarme e insegurança hoje causam, e que maior temor e consequências físicas e psicológicas, por vezes insuperáveis, causam às suas vítimas e, por isso, é tido, normativamente, como integrando o conceito de criminalidade violenta – artigo 1.º alínea j) do Código de Processo Penal – e leva à qualificação das vítimas desse tipo de crimes como “vítimas especialmente vulneráveis” – artigo 67.º-A n.º 3 do Código de Processo Penal, a que a nossa ordem jurídica concede especial proteção.

O recorrente tem os antecedentes criminais relacionados na decisão recorrida, aparenta deficiente inserção social, desestruturada pelos comportamentos aditivos e pela condição de saúde mental, com implicações negativas tanto no quadro familiar, como laboral, além de constituírem fatores criminógenos, não revelando capacidade de querer controlar os impulsos, nem reflexão sobre os efeitos danosos do seu comportamento.

O tribunal recorrido teve em conta as elevadíssimas exigências de prevenção geral; as exigências de prevenção especial, acentuadas pela dependência incontrolada de drogas; a intensidade da culpa, a elevada ilicitude, a par com a ausência de arrependimento ou interiorização do desvalor da conduta a pretexto de esquecimento dos factos.

Não existindo fatores de atenuação concretos que justifiquem a desnecessidade do quantum da pena concreta aplicada a este crime, julgamos que a mesma é de manter nos 3 anos e 6 meses de prisão fixados.

Afigura-se-nos, assim que, de forma suficiente, na determinação da medida da pena, o tribunal a quo alicerçou-se corretamente na consideração da culpa e da prevenção como princípios regulativos dessa medida, e foi fiel à medida da necessidade de tutela de bens jurídicos face ao caso concreto.

Quanto ao crime de homicídio na forma de tentativa:

Como já se viu, não estando posta em causa a qualificação jurídica dos factos, o crime pelo qual o arguido foi condenado é o de homicídio qualificado, na forma de tentativa, p. e p. pelos artigos 22.º, n.º 1 e 2, alínea b), 23.º, n.ºs 1 e 2, 131.º e 132.º, nºs 1 e 2, alíneas b), todos do Código Penal, a que corresponde uma moldura abstrata da pena de 2 anos, 4 meses e 24 dias a 16 anos e 8 meses de prisão (cf. artigo 73º, nº 1, alíneas a) e b), 1.ª parte, do Código Penal).

⎯ Em concreto, há que atender e ponderar o bem jurídico protegido, que no caso se trata da vida humana, tendo na devida conta que a norma que no Código Penal pune o crime de homicídio pressupõe, como fundamento, o princípio que proíbe dispor da vida humana de outrem, suportando-se este princípio na justificação da vida humana como o valor primordial, com a máxima dignidade constitucional (artigo 24.º da Constituição da Républica Portuguesa) e coerentemente tutelado pela lei (Código Penal); portanto com validade ética material essencial, enquanto suporte da correspondente validade jurídica.

⎯ Verificada uma ou mais do que uma das circunstâncias exemplificativas previstas no n.º 2, do artigo 132.º, do Código Penal, desencadeia-se o denominado “efeito-padrão”, que não é automático, mas resulta de uma ponderação global do facto e do seu autor (especial censurabilidade ou perversidade, enquanto fatores normativos corretores).

⎯ Estamos, então, predominantemente, perante fatores que se referem à culpa, enquanto juízo de censurabilidade do agente pelo facto cometido, conforme entendimento seguido no Supremo Tribunal de Justiça (cf. ac. Supremo Tribunal de Justiça, de 17-4-2013, processo n.º 237/11.7JASTB.L1.S1).

⎯ No que diz respeito ao exemplo-padrão mencionado na alínea b) do n.º 2 do artigo 132.º do Código Penal (cônjuge vítima), trata-se de uma circunstância que está relacionada com a especial censurabilidade da quebra dos laços de respeito impostos pelos vínculos familiares básicos, que deveriam inibir a violência demonstrada no facto, o que implica um maior grau de culpa e não deixa de revelar um desvalor significativo na conduta, tanto em termos de representar uma maior censurabilidade quanto em termos de demonstrar uma maior perversidade, com base em critérios de eticidade pré–jurídica ou de danosidade social.

Avançando para a ponderação dos fatores pertinentes à determinação concreta da pena e que no caso são os seguintes:

⎯ Quanto ao desvalor da ação, com reflexos ponderativos tanto na ilicitude, como na culpa e na personalidade revelada no facto (lado objetivo e subjetivo do facto), é bastante elevado por o arguido ter agido:

com o firme propósito de matar, sem hesitações, surpreendendo a vítima–esposa pelas costas, dissimulando instrumento de agressão;

agarrando a vítima pelo pescoço, tombando–a no solo e colocando–se em cima dela e começando a golpeá–la com um canivete;

com o qual desferiu sucessivos golpes que atingiram a vítima em zonas do corpo onde se alojam órgãos vitais;

só parando quando o filho de ambos afastou o recorrente da mãe.

Tal comportamento, no seu modo de execução, traduz uma forma violenta e cruel de matar, sem hesitações, dirigida a garantir o efetivo resultado, consciente e voluntariamente visado.

⎯ Quanto ao desvalor do resultado, também com reflexos ponderativos tanto na ilicitude, como na culpa e na personalidade revelada no facto (lado objetivo e subjetivo do facto), igualmente se mostra muito elevado, pois,

a vítima sofreu agressões de violência intensa no processo do assassinato tentado, que se traduziu contemporaneamente numa eficaz neutralização da sua capacidade de defesa ao ser agarrada, atirada ao solo e colocada por baixo do agressor;

depois sujeita a sucessivos golpes de faca, de que não adveio a morte (“por um fio”, disse a vítima em julgamento) por ter sido acudida pelo filho;

e foi adequada a fazer sofrer na vítima intimidação e sofrimento físico de grau intenso, que se traduziu contemporaneamente numa eficaz neutralização da sua capacidade de defesa ou reação, causando transtorno emocional grave que o acórdão revela, além das múltiplas feridas cortantes na cabeça, pescoço, tórax;

circunstâncias que acentuam tanto a ilicitude, como não podem deixar de se refletir no juízo de censurabilidade por o arguido se ter assegurado da eficácia dos meios empregados nos seus propósitos criminosos, que só circunstâncias alheias à sua vontade evitaram.

⎯ Ainda no quadro da culpa, o dolo é direto, a motivação não merece qualquer tutela ou compreensão jurídica ou moral e o juízo de censurabilidade global que recai sobre o recorrente não merece qualquer juízo de ajustamento, pois a conflitualidade existente apenas é de imputar àquele.

No contexto acabado de referir, a culpa é elevada e impõe uma moldura concreta que não pode ser a que o recorrente defende, por estar patente tanto o dolo muito intenso, a consciência plena e consonantemente executada da ilicitude da sua conduta e dos meios usados para a levar a cabo, e bem assim dos resultados de dano voluntariamente pretendidos, com os concretos contornos referidos.

O crime de homicídio, ainda que tentado, cometido nestas circunstâncias, é um dos crimes que maior abominação, alarme e insegurança causam – hoje socialmente insuportável quando se refere a contexto de violência doméstica, que tantas vítimas fatais tem gerado – impondo-se um efetivo e significativo reforço da validade das normas violadas aos olhos da comunidade, para mais quando ocorreu em ambiente doméstico, perante filhos, onde e perante quem é suposto haver contenção deste tipo de comportamentos.

É tido, normativamente, como integrando o conceito de criminalidade especialmente violenta – artigo 1.º alínea l) do Código de Processo Penal – e leva à qualificação das vítimas desse tipo de crimes como “vítimas especialmente vulneráveis” – artigo 67.º-A n.º 3 do Código de Processo Penal, a que a nossa ordem jurídica concede especial proteção.

São, pois, muito elevadas as exigências de prevenção geral, que no caso em apreço não consentem que a pena concreta a aplicar fique abaixo dos 8 anos de prisão.

O recorrente tem os antecedentes criminais relacionados na decisão recorrida, aparenta deficiente inserção social, desestruturada pelos comportamentos aditivos e pela condição de saúde mental, com implicações negativas tanto no quadro familiar, como laboral, além de constituírem fatores criminógenos, não revelando capacidade de querer controlar os impulsos, nem reflexão sobre os efeitos danosos do seu comportamento.

O tribunal recorrido teve em conta as elevadíssimas exigências de prevenção geral; as exigências de prevenção especial, acentuadas pela dependência incontrolada de drogas; a intensidade da culpa, a elevada ilicitude, a par com a ausência de arrependimento ou interiorização do desvalor da conduta a pretexto de esquecimento dos factos.

Não existindo fatores de atenuação concretos que justifiquem a desnecessidade do quantum da pena concreta aplicada a este crime, julgamos que a mesma é de manter nos 8 anos de prisão fixados.

Afigura-se-nos, assim, que, de forma suficiente, na determinação da medida da pena, o tribunal a quo alicerçou-se corretamente na consideração da culpa e da prevenção como princípios regulativos dessa medida, e foi fiel à medida da necessidade de tutela de bens jurídicos face ao caso concreto.

*

Posto isto, no que se refere à pena única aplicável ao concurso de crimes, a jurisprudência deste Supremo Tribunal de Justiça entende, em conformidade com a lei (artigo 77.º, do Código Penal), que a moldura do concurso de crimes – no caso é a de 8 anos a 11 anos e 6 meses de prisão – tem especificidades pela maior latitude em relação às penas parcelares dos crimes singulares, das quais é uma síntese, a que acresce nova e específica fundamentação, a par com a que assenta no disposto no artigo 71.º do Código Penal.

Importa, assim, fazer atuar uma visão de conjunto dos factos provados, identificar conexões objetivas e subjetivas na sua prática em conjunto com os demais critérios legais enunciados, que servem de quadro e de síntese das exigências de prevenção geral e especial.

É escassíssima, senão ausente, a fundamentação, na decisão recorrida, sobre a medida concreta da pena única, o que impõe a este tribunal o acionamento dos mecanismos corretivos que se mostrem devidos, por via da omissão de pronúncia sobre os fatores atinentes à pena concreta única do concurso de crimes, pois que, a entender–se que a decisão não esclarece devidamente a conexão e o tipo de conexão existente entre os factos em concurso, não aferindo a gravidade do ilícito global, e não ponderando se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência criminosa ou se revelam apenas uma pluriocasionalidade não radicada na personalidade do arguido, então a decisão é nula por omissão de pronúncia e por falta de fundamentação (artigos 374.º, n.º 2 e 379.º, n.º 1, alíneas a) e c), do Código de Processo Penal).

Caso assim se não entenda, por se considerar que constam da matéria de facto provada os elementos necessários que possibilitam a realização do cúmulo jurídico e a determinação da pena única – designadamente os factos integrantes dos crimes e os relativos à personalidade do arguido – sendo certo que é o próprio recorrente que habilita o tribunal de recurso a conhecer da questão, sem qualquer reserva, pode o tribunal de recurso suprir a nulidade nos termos do n.º 2 do artigo 379.º do Código de Processo Penal, caso se acolha, entre outros, a orientação sustentada no acórdão de 10-12-2014, no processo n.º 18/10.5GBLMG.S1 - 3.ª Secção, relator Pires da Graça ou, do mesmo relator, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 13-04-2016, no processo n.º 294/14.4PAMTJ.L1.S1 – 3.ª Secção.

A ser assim, então julgamos adequada a seguinte ponderação sobre a medida da pena única.

No caso concreto, feito o crivo normativo pelo conjunto dos factos e pela personalidade do agente, dever–se–á considerar que:

⎯ A pluralidade de crimes ocorreu como resultado de um processo de crescente agressividade e falta de controlo, no qual a condição de saúde mental do arguido e o seu comportamento aditivo desempenharam um papel não negligenciável. Porém, é importante notar que, como indicado nos factos provados (ponto 1.6.2.) “o arguido tinha ciência de que, sob o efeito de tóxicos, a sua agressividade era exponenciada e nada fez para obviar a ela ainda que para tanto tivesse capacidade cognitiva”.

⎯ Ainda que o recorrente esteja integrado num quadro familiar duradouro, é uma integração desajustada, pois as relações com a sua esposa revelam traços de personalidade caraterizados pela violência, impulsividade, agressividade, desrespeito pela dignidade humana da esposa e pela vida desta, dando à sua personalidade uma coloração identificável com uma tendência criminosa, a que não são alheios os antecedentes criminais (fls. 27 do acórdão: “Os antecedentes criminais do arguido…não tendo natureza idêntica aos destes ilícitos…deixam-nos nota clara da propensão do arguido para a delinquência”), o modo de execução e gravidade dos factos, assim acentuando culpa, exigências de socialização e efeitos necessários da pena no comportamento futuro do recorrente.

⎯ São elevadas as exigências de prevenção especial, designadamente atinentes à prevenção da reincidência e à falta de preparação para manter conduta lícita, até porque o recorrente desvaloriza a doença de que padece, “necessitando de elevado controlo externo” (ponto 2.1., dos factos provados).

Este enquadramento da pena única e dos critérios que lhe subjazem, sendo estes apenas reportados aos factos apreciados, em conjunto, e à personalidade do agente, não negligência, nem pode negligenciar, toda a ponderação que foi efetuada quanto à determinação concreta das penas parcelares e que ficaram, como se viu, próximas do meio da moldura abstrata aplicável a cada um dos crimes, tendo sido refletidos, certamente, as atenuantes relativas às condições pessoais do recorrente.

A pena única aplicada ficou pouco aquém do meio da moldura abstrata aplicável ao concurso dos crimes pelos quais o recorrente foi condenado, pelo que, a aceitar–se a pretensão do recorrente, refletir ainda mais peso às atenuantes gerais na pena única concreta aplicada representaria um desequilíbrio manifesto e incompreensível com a devida proteção de bens jurídicos e as necessidades específicas do caso quanto à prevenção especial de ressocialização, enquanto finalidade principal das penas, sendo certo que também a par dela se deve atender à reintegração tão rápida quanto possível do arguido em sociedade, através do cumprimento efetivo da pena aplicada, e que não é excessiva.

Julgamos que, na determinação da pena única, se faz uma ponderação global de acordo com as melhores soluções possíveis, se tivermos por boa a orientação sustentada por Paulo Pinto de Albuquerque que, no comentário ao artigo 77.º do Código Penal sugere a seguinte operação:

“Em regra, a ponderação da imagem global dos crimes imputados e da personalidade é feita nos seguintes termos: tratando–se de uma personalidade mais gravemente desconforme com o Direito, o tribunal determina a pena única somando à pena concreta mais grave metade (ou, em casos excecionais, dois terços) de cada uma das penas concretas aplicadas aos outros crimes em concurso; tratando–se de uma personalidade menos gravemente desconforme ao Direito, o tribunal determina a pena única somando à pena concreta mais grave um terço (ou, em casos excecionais, um quarto) de cada uma das penas concretas aplicadas aos outros crimes em concurso.”.

Vale isto por dizer que, no caso concreto, avaliando o resultado à luz do critério de ponderação que o referido autor sugere, o tribunal recorrido aditou à pena concreta mais grave (8 anos) pouco mais de um terço da pena parcelar aplicada [18 meses (=1 ano e 6 meses > 14 meses) = ±1/3], o que permite concluir que, na pena única aplicada, a pena acabou por ficar aquém das considerações refletidas a propósito da personalidade do arguido.

Sendo um resultado admissível, que deve ser mantido por respeito à proibição da reformatio in pejus, todos os argumentos esgrimidos pelo recorrente perdem pertinência, pois já nos parecem refletidos na pena aplicada.

Concluindo e repetindo o que se disse em relação a cada uma das penas parcelares, a pena única aplicada respeita os princípios constitucionais da intervenção mínima, da proporcionalidade das penas e da igualdade, e sobretudo o princípio da culpa, pois a realização da justiça penal num Estado de Direito democrático tanto se alcança na proibição da punição sem culpa ou para além da culpa (nulla poena sine culpa – princípio da proibição do excesso), como se cumpre por meio de uma punição adequada dos culpados, quando necessária for, para salvaguarda do interesse púbico subjacente ao respeito pelo Direito do próprio Estado (nulla culpa sine poena – princípio da realização do Estado de Direito); ou seja, a adequada proteção de bens jurídicos, enquanto finalidade principal das penas, deve estar alinhada com a reintegração tão rápida quanto possível do arguido em sociedade.

Afigura-se-nos, assim que, de forma suficiente, na determinação da medida da pena única se está a refletir justificação bastante para a correta consideração da culpa e da prevenção como princípios regulativos dessa medida, e se está a refletir sustentação para manter a fidelidade à medida da necessidade de tutela de bens jurídicos face ao caso concreto, segundo os critérios legais, depois da necessária ponderação a efetuar por este tribunal, se for o caso e se coincidir com a apreciação que efetuámos.

4.2. Conclusão:

Sem prejuízo de melhor análise quanto à (não) fundamentação da pena única aplicada pela instância recorrida e no caso de se entender ser de suprir a invalidade exposta, somos de parecer que o recurso deverá ser julgado improcedente, confirmando–se a condenação.»

6. Notificado para responder, nos termos do artigo 417.º, n.º 2, do CPP, o arguido nada disse.

7. Colhidos os vistos e não tendo sido requerida audiência, o recurso foi apresentado à conferência para decisão – artigos 411.º, n.º 5, e 419.º, n.º 3, alínea c), do CPP.

II. Fundamentação

Factos provados

8. O tribunal coletivo deu como provados os seguintes factos (transcrição):

«Da acusação:

1. O arguido AA foi diagnosticado há cerca de 9 anos com Esquizofrenia Paranoide e desde os 16 anos de idade que consome substâncias estupefacientes, com uma abstinência de cerca de quatro anos após tratamento, mas com a retoma, no ano de 2021, do consumo de “drogas sintéticas”; (…)

1.5. A ofendida BB e o arguido AA casaram entre si no dia ... de ... de 1996, partilhando a residência sita na Avenida ..., juntamente com os seus filhos CC e DD;

O arguido AA sempre foi muito ciumento, dizendo constantemente à ofendida BB que esta o andava a enganar, mantendo relações amorosas com outros homens, o que gerava discussões frequentes entre ambos, chegando o arguido a agredir a ofendida fisicamente (apenas com empurrões) há alguns anos atrás;

Durante o ano de 2021, as agressões verbais do arguido contra a ofendida sofreram um agravamento, passando a chamar-lhe com uma frequência de duas a três vezes por mês “puta, nojenta, cabra, andas-me a enganar com outros homens” e dizia que a iria matar;

Em todas as situações acima descritas AA agiu de forma livre deliberada e consciente, sabendo que as suas condutas eram socialmente desvaliosas e criminalmente puníveis;

As agressões verbais perpetradas pelo arguido sobre a ofendida BB visaram não apenas violar a sua liberdade e a sua honra, mas também humilhá-la perante o arguido e seus filhos;

Com a sua atuação AA faz com que a ofendida BB sinta medo dele, receie a sua presença, fique indecisa quanto aos comportamentos a tomar em cada momento, as suas manifestações espontâneas inibidas, tudo para não lhe despertar um acesso de mau humor com as respetivas consequências;

Mais se provou:

Que as condutas do arguido sobre a ofendida acima faladas ocorriam no interior da casa onde habitam;

1.6. No dia ... de ... de 2021, pelas 5h00, quando acordou, o arguido AA começou a dizer à ofendida BB “não me toques nojenta, não me toques” e quando questionado do porquê da sua atitude pela ofendida respondeu-lhe “tu sabes o que fizeste, nojenta, porca”, provocando receio na ofendida porquanto a mesma verificou que o arguido não se encontrava no seu estado normal, uma vez que o mesmo continuou a dizer que a ofendida tinha amantes dentro de casa e a insistir com ela para lhe dizer quem era o amante;

Quando a BB se levantou e se dirigiu à cozinha, AA foi atrás da mesma acusando-a, aos gritos, de ter um amante em casa, situação que se estendeu até por volta das 7h00;

De repente AA foi à gaveta da cozinha buscar uma faca que encostou ao seu pescoço dizendo que se iria matar;

A ofendida pediu-lhe que não o fizesse, logrou tirar-lhe a faca da mão e guardá-la na respetiva gaveta, e, quando tentou fugir para fora de casa, o arguido agarrou-a pelo pescoço, atirou-a ao chão, colocou-se em cima dela, pegou numa navalha que retirou do bolso, com a qual desferiu vários golpes na zona da cabeça, pescoço, peito e axila esquerda, junto ao coração, de BB, enquanto gritava que a iria matar;

O arguido AA só não atingiu o coração ou cortou artérias e veias existentes na zona do pescoço da ofendida BB, provocando-lhe a morte, porquanto o filho de ambos, DD, ouviu os gritos da mãe e acorreu em socorro da mesma, afastando o arguido de cima da ofendida;

Em consequência da atuação do arguido AA, BB sofreu dores fortes nas zonas atingidas e uma ferida cortante na têmpora esquerda, escoriações na região do pescoço no sentido ântero-posterior na região submentoniana com 3,05 cm, uma ferida linear superficial na face direita do pescoço no seu terço médio com 4 cm de comprimento transversal a esta região do pescoço, uma ferida punctiforme na região torácica junto à fulecra esternal à esquerda, uma ferida corto-perfurante na região intraclavicular esquerda junto ao externo e uma ferida corto-perfurante de 4 cm na região axilar esquerda ao nível da linha axilar média com trajeto profundo com aproximadamente 7 cm subpeitoral com orientação anterior para posterior e inferior para medial, lesões que demandaram 12 dias para cura com afetação da capacidade para o trabalho geral em 2 dias e para o trabalho profissional em 10 dias;

Tais golpes seriam idóneos a provocar a morte de BB, caso tivessem atingido as artérias e veias existentes na zona do pescoço ou o coração, uma vez que se situam muito próximo dos locais alcançados pelo arguido;

Mais se provou:

1.6.1. Na perícia realizada ao arguido e vertida a fls.319 a 321 verso…percebendo-se que à data dos factos acima descritos (todos de 1. a 1.6.) o arguido AA estava diagnosticado com esquizofrenia paranoide, tendo estado internado na Casa de Saúde ... por três vezes, e encontrava-se medicado com Risperidona 2 mg ao pequeno almoço e 1 mg ao deitar, bromazepan 3 mg 1 ao pequeno almoço, 1 ao jantar e 1 ao deitar, olanzapina 10 mg ao deitar, xeplion 100 mg 1 injeção no dia 18 de cada mês, faz ainda metadona 130 mg/dia…se concluiu:

. que o arguido tem um diagnóstico de Esquizofrenia Paranoide desde há 9 anos e tem, como comorbilidade, uma dependência de substâncias ilícitas desde os 16 anos de idade;

. à data dos factos o arguido teria feito consumo de substâncias ilícitas, nomeadamente “droga sintética”, substância esta que, no entanto, não foi detetada na análise efetuada ao mesmo na data dos factos por não ser detetável;

. na data dos factos o arguido AA estaria sobre influência de substâncias psicoativas que interferiram com a sua capacidade de avaliação dos factos, diminuindo a sua capacidade de se determinar de acordo com essa avaliação, devendo ser considerado que agiu com uma imputabilidade diminuída;

. tendo em conta o historial de consumos, de comportamentos agressivos e a patologia grave de que padece, existe uma forte possibilidade de que se se mantiverem consumos regulares de substâncias psicoativas, atos como os acima descritos se voltem a repetir;

1.6.2. Por via da audição da perita respetiva na audiência de julgamento demandada pelo STJ, resultou:

. mau grado o diagnóstico feito ao arguido e referido em 1.6.1., a esquizofrenia, só por si, não concede ao padecente de forma permanente e absoluta uma incapacidade cognitiva que o coloque, face a todos os factos que pratique, no patamar da inimputabilidade;

. a esquizofrenia, apenas quando associada a surtos psicóticos ou delirantes, terá a virtualidade de retirar ao padecente a capacidade de se determinar de acordo com uma vontade clara e esclarecida;

. de todos os elementos clínicos a que acedeu relativos ao arguido e no contato que com o arguido teve àquela altura, não o percebeu a passar por qualquer surto ou que estivesse delirante, pois viu-o consciente e ciente do que tinha feito, por isso ele se penitenciando;

. a circunstância de, como foi avançado pelo arguido, mas que não foi detetado nas análises que lhe fizeram, na altura estar sob efeitos das drogas sintéticas de que era adito, apenas lhe condicionaram o freio relativo ao controlo da sua agressividade;

. o arguido tinha ciência de que, sob o efeito de tóxicos, a sua agressividade era exponenciada e nada fez para obviar a ela ainda que para tanto tivesse capacidade cognitiva;

. que o arguido, quanto aos factos aqui em causa, é imputável;

1.6.3. Assim…mau grado o que está em 1.6.1.:

. quando agrediu BB na zona da cabeça, da garganta e do coração com uma navalha com diversos golpes, a qual empunhou sem que a ofendida se tivesse apercebido de tal ato, o arguido AA agiu com o propósito de lhe tirar a vida, bem sabendo que o instrumento que utilizou para o efeito, contra as zonas que atingiu no corpo da vítima, era idóneo para alcançar órgãos vitais e a produzir a morte de BB, o que diretamente quis e aceitou;

. situação que acabou por não ocorrer porque o arguido foi impedido pelo filho DD de desferir novos golpes no corpo da ofendida, a qual foi conduzida posteriormente ao hospital onde foi intervencionada, circunstâncias que lhe salvaram a vida contra a vontade do arguido;

. nas circunstâncias acima referidas o arguido AA agiu de modo livre, deliberado e consciente, querendo com a sua atuação tirar a vida à ofendida BB, sabendo que a mesma era sua esposa, utilizando para tanto um meio que sabia impedir que ela se pudesse defender e apenas para extravasar a sua agressividade sem se importar se com isso lhe tirava a vida, coisa que não se deu por razões alheias à sua vontade;

1.6.4. O arguido AA agiu, em tudo acima exposto, de forma deliberada e consciente, sabendo que a sua conduta era socialmente desvaliosa e criminalmente punível;

Extrai-se do relatório social do arguido e do seu CRC:

2.

2.1. AA, à data dos factos, vivia com o seu agregado constituído, o qual era composto pelo próprio, reformado por invalidez, com 46 anos de idade, pela esposa, BB, de 47 anos, e pelos dois filhos do casal, CC e DD, de 26 e 21 anos, respetivamente. Este núcleo familiar reside em habitação de familiares (herdeiros), dispondo de razoáveis condições de habitabilidade. AA iniciou as atividades escolares em idade normal, tendo concluindo o 6º ano de escolaridade, abandonando o sistema de ensino aos 16 anos de idade. Nessa altura, iniciou atividade laboral como ajudante de ..., realizando trabalhos pontuais, sem qualquer vínculo contratual. O agregado constituído de AA era beneficiário do rendimento social de inserção, sendo a esposa do arguido a responsável pela gestão do quotidiano familiar. Entretanto, perante o diagnóstico de esquizofrenia do arguido, resultou na atribuição da reforma por invalidez desde há cerca de 9 anos, cuja quantia mensal é de €464,00. No decorrer do matrimónio vivenciaram períodos conturbados e de grande tensão emocional no seio familiar, aliados à problemática aditiva do arguido e do filho CC. AA iniciou o consumo de substâncias de estupefacientes em idade adulta, inicialmente de canabinoides e heroína, e recentemente o consumo de substâncias sintéticas. AA realizou várias tentativas de tratamento tanto na Clínica ..., como em contexto privado. O arguido encontra-se há alguns anos integrado no programa de tratamento opiáceo com cloridrato de metadona, na Associação ..., no qual se mantém. Ao nível do acompanhamento psicológico, AA não era uma figura assídua, apresentando uma postura resistente. Em ..., AA foi internado na Casa de Saúde ...- Unidade de Psiquiatria devido a episódio de descompensação, onde permaneceu cerca de 3 meses (período em que registaram dois episódios de fuga), mantendo desde então acompanhamento psiquiátrico regular, por lhe ter sido diagnosticado esquizofrenia. Decorrente do seu percurso desajustado em seio familiar, o arguido no passado dia ........2021, por intermédio da Autoridade de Saúde ..., foi internado compulsivamente, resultante de alterações do comportamento com risco para a integridade física de terceiros, nos serviços de Unidade de Agudos - Psiquiatria, tendo o mesmo obtido alta clínica, no dia ........2021. De acordo com informação veiculada pelos serviços de psiquiatria do Hospital ... AA teve consulta de psiquiatria no passado dia ........2021, na qual foi prescrita medicação (Bromazepam - 3mg; Risperidona - 2mg; Olanzapina - 10mg), paralelamente, mantendo-se com a toma injetável (Xeplion), com a periocidade mensal. Perante a emergência dos presentes autos, AA encontra-se preso preventivamente desde o dia ........2021. Segundo informação veiculada pelos Serviços de Acompanhamento da Execução da Pena do Estabelecimento Prisional ..., o arguido mantém-se integrado no programa de substituição/metadona, não tendo ainda sido submetido a testes de despiste toxicológico internos. O arguido não regista de infrações disciplinares e recebe visitas do filho DD. O arguido é o segundo elemento de uma fratria de seis. O progenitor era agente da Polícia de Segurança Pública, e a mãe doméstica, atualmente com 71 anos de idade. O seu desenvolvimento psicossocial desenrolou-se num ambiente familiar desestruturado resultante de maus tratos infligidos pelo progenitor à mãe e à fratria. O arguido regista contactos com o sistema formal de justiça desde os 25 anos de idade, vindo a ser condenado em vários processos, pela prática de crimes contra a propriedade, e nesse âmbito foi acompanhado pela DGRS em razão das medidas comunitárias, de substituição de multa por trabalho a favor da comunidade a que foi condenado, tendo a sua execução sido envolta em anomalias desencadeadas pela sua problemática aditiva. Segundo informação veiculada pela Polícia de Segurança Pública, no período da medida probatória, o condenado encontra-se indiciado pelo NPP .../2021, Comportamentos Inadequados, em 2021... participação por alucinações; NUIPC 000387/21.1... e NUIPC 000389/21.8... ..., pela prática do crime de perigo comum - posse de arma proibida, por factos datados de 2021....; NUIPC 000329/21.4..., indiciado pelo crime contra a integridade física, em 2021....; NUIPC 000139/21.9..., indiciado pelo crime de ofensa à integridade física voluntária simples, por factos datados de 2021....; NUIPC 000141/21.0..., indiciado pelo crime de condução sem habilitação legal, por factos datados em ...2....3; NUIPC 000799/21.0... e NUIPC 000441/21.0..., indiciado pela prática do crime contra a vida, em 2021.... e 2021...., respetivamente; NUIPC 000118/21.6..., pela prática do crime contra a integridade física (crime de Violência doméstica contra cônjuge ou análogos), por factos praticados em ...2....3. No que toca aos factos aqui em causa…o arguido diz deles não se recordar em razão de terem ocorrido na altura em que estava sob efeito do consumo de substâncias sintéticas, substância que, pelas suas características nem sempre é detetável nos testes de despiste. AA padece de esquizofrenia paranoide que associado à problemática aditiva e ao consumo de substâncias sintéticas ocorre episódios de descompensação e alucinações. Paralelamente, AA desvaloriza a doença que padece (esquizofrenia), assumindo que é cumpridor da terapêutica prescrita. AA de 46 anos de idade, reformado por invalidez, residia com o seu agregado constituído. Com contacto com o mundo da toxicodependência desde o início da idade adulta, nunca se conseguiu projetar adequadamente nas várias dimensões da sua vida, estando associado à adoção de conduta criminal a partir dos 25 anos. Apesar de integrado no programa terapêutico no âmbito da problemática aditiva (programa de tratamento opiáceo com cloridrato de metadona), o consumo paralelo de substâncias sintéticas associado à medicação prescrita da doença que padece (esquizofrenia paranoide) é promotor de instabilidade do comportamento dele, com forte impacto quer no seio familiar, quer para a integridade física do outro, pelo que, o arguido necessita de um elevado controle externo;

2.2. O arguido já foi condenado:

• por sentença de ........2000, relativamente a factos de ........2000, consubstanciadores do crime de condução sem habilitação legal, em pena de multa;

• por sentença de ........2000, relativamente a factos de ........2000, consubstanciadores do crime de condução sem habilitação legal, em pena de prisão substituída por multa;

• por sentença de ........2004, relativamente a factos de ........2002, consubstanciadores dos crimes de resistência e coação sobre funcionário e injúria qualificada, em pena de prisão suspensa;

• por sentença de ........2005, relativamente a factos de ........2005, consubstanciadores do crime de condução sem habilitação legal, em pena de prisão substituída por multa;

• por sentença de ........2008, relativamente a factos de ........2006, consubstanciadores do crime de furto qualificado, em pena de prisão suspensa;

• por sentença de ........2016, relativamente a factos de ........2016, consubstanciadores do crime de condução sem habilitação legal, em pena de multa; e

• por sentença de ........2020, relativamente a factos de ........2019, consubstanciadores do crime de ofensa à integridade física qualificada, em pena de prisão suspensa;».

Âmbito e objeto do recurso

9. O recurso tem, assim, por objeto um acórdão proferido pelo tribunal coletivo da 1.ª instância que aplicou uma pena de prisão superior a 5 anos, diretamente recorrível para o Supremo Tribunal de Justiça [artigo 432.º, n.º 1, al. c), do CPP]

Limita-se ao reexame de matéria de direito (artigo 434.º do CPP), não vindo invocado qualquer dos vícios ou nulidades referidos nos n.ºs 2 e 3 do artigo 410.º do CPP, nos termos da alínea c) do n.º 1 do artigo 432.º, na redação introduzida pela Lei n.º 94/2021, de 21 de dezembro.

O âmbito do recurso, que circunscreve os poderes de cognição deste tribunal, delimita-se pelas conclusões da motivação (artigos 402.º, 403.º e 412.º do CPP), sem prejuízo, se for caso disso, dos poderes de conhecimento oficioso, em vista da boa decisão de direito, dos vícios da decisão recorrida a que se refere o artigo 410.º, n.º 2, do CPP (acórdão de fixação de jurisprudência n.º 7/95, DR-I, de 28.12.1995), de nulidades não sanadas (n.º 3 do mesmo preceito) e de nulidades da sentença (artigo 379.º, n.º 2, do CPP, na redação da Lei n.º 20/2013, de 21 de fevereiro).

Estando em causa uma situação de concurso de crimes (artigos 30.º, n.º 1, e 77.º do Código Penal), pode este tribunal conhecer de todas as questões de direito relativas à pena conjunta aplicada aos crimes em concurso e às penas aplicadas a cada um deles, englobadas naquela pena única, inferiores àquela medida, se impugnadas (acórdão de fixação de jurisprudência n.º 5/2017, DR I, de 23.6.2017), como sucede no caso presente.

10. Em síntese, tendo em conta as conclusões da motivação do recurso, este Tribunal é chamado a apreciar e decidir da adequação e proporcionalidade das penas aplicadas a cada um dos crimes em concurso (penas parcelares) e da pena única, que o recorrente pretende ver reduzidas.

Quanto às penas aplicadas aos crimes em concurso (penas parcelares)

11. Como observa o Ministério Público em seu parecer, mostra-se corretamente efetuada a qualificação jurídica dos factos, que constitui o primeiro momento de determinação da pena, pela definição da sua moldura (limites mínimo e máximo) em função dos tipos de crime efetivamente preenchidos, nos seus elementos subjetivos e objetivos, pelos factos provados (artigo 71.º, n.º 1, do Código Penal).

Observa-se que o acórdão recorrido foi proferido em cumprimento do decidido no anterior acórdão deste Supremo Tribunal de Justiça de 15.2.2023, que, nos termos do artigo 379.º, n.º 1, al. c), 1.ª parte, e n.º 2, do CPP, decidiu declarar nulo o acórdão da 1.ª instância de 6.3.2022, «por omissão de pronúncia quanto à questão da imputabilidade do arguido», determinando que «realizadas as diligências necessárias», fosse proferido «novo acórdão que conheça e decida sobre esta questão, nos termos dos n.ºs 2 e 3 do artigo 20.º do Código Penal, com as necessárias consequências legais».

Resultou essa decisão da circunstância de o tribunal da condenação ter dado como provado que o arguido era portador de «anomalia psíquica» no momento da prática dos factos e, consequentemente, de «imputabilidade diminuída», o que corresponde a imputabilidade duvidosa, pelo que haveria que esclarecer a dúvida e decidir se o arguido era imputável ou inimputável, para, daí, se poderem extrair as necessárias consequências ou por via da aplicação de uma pena, a determinar de acordo com o artigo 71.º, n.º 1, do CP, no caso de se concluir pela imputabilidade, ou por via da aplicação de uma medida de segurança, nos termos do artigo 91.º, n.º 1, do CP, no caso de o tribunal concluir pela inimputabilidade.

Como se extrai do ponto 1.6.2. da matéria de facto provada, concluiu o tribunal a quo que o arguido «é imputável», não subsistindo, por conseguinte, qualquer obstáculo à comprovação da culpa, o que se requer como pressuposto e cujo grau se impõe como limite da pena (artigo 40.º, n.º 2).

12. De acordo com o disposto nos artigos 71.º, n.º 3, do Código Penal e 375.º, n.º 1, do CPP, que concretizam o dever de fundamentação das decisões judiciais estabelecido no artigo 205.º da Constituição, na sentença são expressamente referidos e especificados os fundamentos da medida da pena.

A medida das penas vem fundamentadas nos seguintes termos:

«BB - Determinação da medida da pena:

O crime de violência doméstica, agravado, cometido pelo arguido é punível com pena de prisão de 2 a 5 anos e o de homicídio qualificado na forma tentado, com pena de prisão de 2 anos 4 meses e 24 dias a 16 anos e 8 meses.

Aqui volvidos não podemos olvidar que o arguido, tal como se demonstrou, atuou de alguma forma condicionado em razão dos efeitos que os consumos de tóxicos nele provocaram e que o impediram de atuar sobre a agressividade que daí adveio. Contudo, mau grado essa circunstância, que foi avançada pelo arguido e demais testemunhas, mas que não foi detetada nas análises que lhe fizeram, apenas lhe condicionaram o freio relativo ao controlo da sua agressividade, sendo certo que ele tinha ciência de que, sob o efeito de tóxicos, a sua agressividade era exponenciada e nada fez para obviar a ela ainda que para tanto tivesse capacidade cognitiva

Face a esta realidade, percebemos que não implica uma diminuição na sua culpa a ponto de ser de justiça chamar à colação o instituto da atenuação especial da pena a que se reporta o artº.72º, nº.1 do CP, que, assim, se afasta, devendo essas circunstâncias relevarem para os efeitos atenuantes gerais.

A determinação da medida concreta da pena faz-se em função da culpa do agente e das exigências da prevenção, tendo em conta todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor ou contra o arguido (artº.71º do CP). Sendo que, em caso algum, a medida da pena pode ultrapassar a medida da culpa (artº.40º, nº.2, do CP)…sendo que esta, como acima se mencionou e mau grado a atuação do arguido sob efeitos de tóxicos não redundou no abaixamento das molduras abstratas. Coisa que, apesar disso, não deixará de ser ponderada como circunstância atenuante geral.

Os factos são graves. Este tipo de crimes, em razão do bem jurídico que defende, é causa de grande alarme social e elevada nocividade para sentimento de segurança da população, que deve ser acautelado.

Agiu de forma dolosa.

A ilicitude, tendo em conta os contornos da atuação do arguido, é significativa…pois, ressentido e imbuído de um espírito malino, não hesitou em surpreender a esposa, pelas costas e com o instrumento da agressão escondido na algibeira…ainda que a mitigar essa realidade, como já referido, o arguido tenha atuado afetado por tóxicos.

Não foi beneplácito ao escolher as partes do corpo que pretendia atingir…selecionando as mais sensíveis…junto ao coração, no pescoço e na cabeça…atuando, assim, como se disse com dolo.

Os antecedentes criminais do arguido…não tendo natureza idêntica aos destes ilícitos…deixam-nos nota clara da propensão do arguido para a delinquência.

No que respeita à sua personalidade e condições socioeconómicas, importa salientar que é pessoa integrada familiar e socialmente…contudo, a falta de integração laboral, sabendo nós que isso não se deve a vontade sua, mas à sua invalidez, não deixa de pôr a nu a sua fragilidade e pouca consistência em se conduzir numa vida longe dos tóxicos a que recorre por falta de ocupação…sendo pessoa com uma conotação negativa associada ao universo das drogas.

Assim, afiguram-se como adequadas:

. para o crime de violência doméstica agravado a pena de 3 anos e 6 meses de prisão; e

. para o crime de homicídio qualificado na forma tentada a pena de 8 anos de prisão.»

13. Nos termos do artigo 40.º do Código Penal, que se refere às finalidades das penas, “a aplicação de penas e de medidas de segurança visa a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade” e “em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa”.

Como repetidamente se tem afirmado em acórdãos anteriores (por todos, o acórdão de 21.06.2023, Proc. n.º 257/13.7TCLSB.L1.S1, em www.dgsi.pt, que agora se segue de perto), estabelece o n.º 1 do artigo 71.º do Código Penal que a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, devendo o tribunal atender a todas as circunstâncias relacionadas com o facto praticado (facto ilícito típico) e com a personalidade do agente (manifestada no facto) – fatores relativos à execução do facto, à personalidade e à conduta do agente, anterior e posterior ao facto –, relevantes para avaliar da medida da pena da culpa e da medida da pena preventiva, que, não fazendo parte do tipo de crime (proibição da dupla valoração), deponham a seu favor ou contra ele, considerando, nomeadamente, as indicadas no n.º 2 do mesmo preceito.

Encontra este regime os seus fundamentos no artigo 18.º, n.º 2, da Constituição; a privação do direito à liberdade, por aplicação de uma pena (artigo 27.º, n.º 2, da Constituição), submete-se, tal como a sua previsão legal, ao princípio da proporcionalidade ou da proibição do excesso, que se desdobra nos subprincípios da necessidade ou indispensabilidade, adequação e da proporcionalidade em sentido estrito. A projeção destes princípios na determinação da pena justifica-se pela necessidade de proteção do bem jurídico tutelado pela norma incriminadora violada, em conformidade com um critério de proporcionalidade entre a gravidade da pena e a gravidade do facto praticado, em função da culpa do agente e das exigências de prevenção (artigos 40.º e 71.º do Código Penal). A aplicação da pena exige que o agente do crime tenha agido com culpa, devendo ser censurado pela violação do dever de atuar de acordo com o direito e “pelas qualidades desvaliosas da personalidade que se exprimem no facto” (assim, entre outros, o acórdão de 29.6.2023, Proc. 15/11.3PEALM.L5.S1, em www.dgsi.pt, que agora se segue de perto)

Para a medida da gravidade da culpa, de acordo com o artigo 71.º, há que considerar os fatores reveladores da censurabilidade manifestada no facto, nomeadamente, nos termos do n.º 2, os fatores capazes de fornecer a medida da gravidade do tipo de ilícito objetivo e subjetivo (grau de ilicitude do facto, modo de execução e gravidade das suas consequências e intensidade do dolo ou da negligência), os sentimentos manifestados no cometimento do crime e fins ou motivos que o determinaram e o grau de violação dos deveres impostos ao agente [als. a), b) e c)], bem como os fatores atinentes ao agente, que têm que ver com a sua personalidade (condições pessoais e situação económica, conduta anterior e posterior ao facto, e falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto [als. d), e), f)].

Na consideração das exigências de prevenção, destacam-se as circunstâncias relevantes em vista da satisfação de exigências de prevenção geral – traduzida na proteção do bem jurídico ofendido mediante a aplicação de uma pena proporcional à gravidade dos factos, reafirmando a manutenção da confiança comunitária na norma violada – e, sobretudo, de prevenção especial, as quais permitem fundamentar um juízo de prognose sobre o cometimento, pelo agente, de novos crimes no futuro, e assim avaliar das suas necessidades de socialização. Aqui se incluem as consequências não culposas do facto (v.g. frequência de crimes de certo tipo, insegurança geral ou pavor causados por uma série de crimes particularmente graves, comportamento anterior e posterior ao crime (com destaque para os antecedentes criminais) e a falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto [als. a) e) e f)]. O comportamento do agente [als. e) e f)] adquire particular relevo em vista da satisfação das exigências de prevenção especial, em função das necessidades individuais e concretas de socialização do agente, devendo evitar-se a dessocialização.

Como se tem sublinhado, é na determinação e consideração destes fatores que deve avaliar-se a concreta gravidade da lesão do bem jurídico protegido pela norma incriminadora, materializada na ação levada a efeito pelo arguido pela forma descrita nos factos provados, de modo a verificar se a pena aplicada respeita os critérios de adequação e proporcionalidade constitucionalmente impostos, que devem pautar a sua aplicação.

14. Em síntese, discorda o arguido, argumentando que «tem 45 anos de idade», «está familiar e socialmente inserido», se encontra «reformado por invalidez», «padece de esquizofrenia paranoide, o que associada à sua problemática aditiva origina episódios de descompensação e alucinações e condiciona o controlo da agressividade ampliada pelos efeitos da droga» e que, «em reclusão, mantém-se integrado em programa de substituição/metadona e não regista infrações disciplinares».

15. Como se extrai da fundamentação (supra, 12), todas estas circunstâncias, relativas ao agente, foram expressa ou implicitamente consideradas na determinação da pena, em confronto com as circunstâncias relativas ao facto, em particular no que respeita à tentativa do crime de homicídio. Sendo que as circunstâncias os factos provados (supra, 8) evidenciam o seu elevado nível de gravidade, como certeiramente sublinha o Senhor Procurador-geral Adjunto no seu parecer, quer quanto ao crime de violência doméstica, quer quanto ao crime de homicídio tentado (supra, 5), seja na perspetiva do desvalor da ação, seja na do desvalor do resultado, em opinião merecedora de concordância.

Como se vê da narração dos factos, comprovando esta avaliação, no que respeita à violência doméstica, «as agressões verbais do arguido contra a ofendida», que «ocorriam no interior da casa onde habitam», «sofreram um agravamento, passando a chamar-lhe com uma frequência de duas a três vezes por mês “puta, nojenta, cabra, andas-me a enganar com outros homens” e dizia que a iria matar», «visaram não apenas violar a sua liberdade e a sua honra, mas também humilhá-la perante o arguido e seus filhos», «com a sua atuação AA faz com que a ofendida BB sinta medo dele, receie a sua presença, fique indecisa quanto aos comportamentos a tomar em cada momento, as suas manifestações espontâneas inibidas, tudo para não lhe despertar um acesso de mau humor com as respetivas consequências».

No que releva para a ilicitude e intensidade do dolo da tentativa de homicídio sobressai o fator surpresa e o modo de execução do crime: «arguido agarrou-a pelo pescoço, atirou-a ao chão, colocou-se em cima dela, pegou numa navalha que retirou do bolso, com a qual desferiu vários golpes na zona da cabeça, pescoço, peito e axila esquerda, junto ao coração, de BB, enquanto gritava que a iria matar», «golpes seriam idóneos a provocar a morte de BB, caso tivessem atingido as artérias e veias existentes na zona do pescoço ou o coração», e «só não atingiu o coração ou cortou artérias e veias existentes na zona do pescoço da ofendida BB, provocando-lhe a morte, porquanto o filho de ambos, DD, ouviu os gritos da mãe e acorreu em socorro da mesma, afastando o arguido de cima da ofendida».

A avaliação dos fatores relativos à personalidade e ao comportamento do arguido, na consideração das exigências de prevenção especial, mostra-se adequada, não se identificando razão de crítica.

16. Assim, ponderando os comprovados fatores relevantes para a determinação das penas, nos termos do artigo 71.º do Código Penal, não se encontra fundamento que justifique um juízo de discordância relativamente à decisão sobre a medida das penas, as quais, na consideração desses fatores e das molduras correspondentes aos crimes em concurso, não se mostram fixada em violação dos critérios de proporcionalidade legalmente impostos, em vista da realização das suas finalidades de proteção do bem jurídico protegido e de reintegração (artigo 40.º do Código Penal).

Pelo que improcede o recurso nesta parte.

Quanto à pena única

17. Realizando o cúmulo jurídico das penas aplicadas aos crimes em concurso, o tribunal a quo aplicou a pena única de 9 (nove) anos e 6 (seis) meses de prisão.

Na fundamentação, limitou-se o tribunal a quo a dizer:

«Em cúmulo jurídico, pegando nas razões de facto e de direito acabadas de expor e para as quais se remete sem as repetir aqui, para se evitarem tautologias, a pena única de 9 anos e 6 meses de prisão (numa moldura abstrata que vais dos 8 aos 11 anos e 6 meses de prisão).»

18. Nos termos do artigo 77.º, n.º 1, do Código Penal, que estabelece as regras da punição do concurso de crimes (artigo 30.º, n.º 1), quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa única pena, formada a partir da moldura do concurso, para cuja determinação, seguindo-se os critérios da culpa e da prevenção atrás mencionados (artigo 71.º), são considerados, em conjunto, como critério especial, os factos e a personalidade do agente (n.º 1 do artigo 77.º, in fine), com respeito pelo princípio da proibição da dupla valoração. Aqui se incluem, designadamente, as condições económicas e sociais, reveladoras das necessidades de socialização, a sensibilidade à pena, a suscetibilidade de por ela ser influenciado e as qualidades da personalidade manifestadas no facto, nomeadamente a falta de preparação para manter uma conduta lícita (Figueiredo Dias, As Consequências Jurídicas do Crime, 3.ª reimp., 2011, p. 248ss; por todos, o acórdão de 17.4.2024, Proc. 251/22.7PCRGR.L1.S1, que agora se segue).

Recordando jurisprudência constante deste Supremo Tribunal de Justiça e o que se tem consignado em acórdãos anteriores, com a fixação da pena conjunta pretende-se sancionar o agente, não só pelos factos individualmente considerados, mas também, e especialmente, pelo seu conjunto, enquanto revelador da dimensão e gravidade global do seu comportamento. É o conjunto dos factos descritos na sentença que evidencia a gravidade do ilícito perpetrado (o “grande facto”), sendo decisiva, para a sua avaliação, a conexão e o tipo de conexão que se verifique entre os factos que constituem os tipos de crime em concurso.

Há que atender ao conjunto de todos os factos e ao fio condutor presente na repetição criminosa, estabelecendo uma relação desses factos com a personalidade do agente, ter em conta a caracterização desta pela sua projeção nos crimes praticados, levando-se em consideração a natureza dos crimes e a verificação ou não de identidade dos bens jurídicos violados, tudo isto «tendo em vista descortinar e aferir se o conjunto dos factos praticados é a expressão de uma tendência criminosa, isto é, se significará já a expressão de algum pendor para uma “carreira”, ou se, diversamente, a repetição emergirá antes e apenas de fatores meramente ocasionais» [assim, o acórdão de 25.10.2023, Proc. 3761/20.7T9LSB.S1, em www.dgsi.pt, e jurisprudência nele mencionada, retomando-se o que se afirmou em anteriores acórdãos].

Convocando o afirmado em decisões anteriores: “Tudo deve passar-se, por conseguinte, como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique. Na avaliação da personalidade – unitária – do agente relevará, sobretudo, a questão de saber se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência (ou eventualmente mesmo a uma «carreira») criminosa, ou tão-só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade: só no primeiro caso, já não no segundo, será cabido a atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta». «A personalidade do agente – se bem que não a personalidade no seu todo, mas só a personalidade manifestada no facto», – «é um factor da mais elevada importância para a medida da pena e que para ela releva, tanto pela via da culpa como pela via da prevenção» (Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, Coimbra Editora, p. 291).

19. A favor da sua pretensão invoca o recorrente as razões que convoca para a redução das penas parcelares, entendendo-se, assim, a sua argumentação nesses termos dirigida à pena única.

20. Como nota o Senhor Procurador-Geral Adjunto é manifestamente escassa a fundamentação, nela não se encontrando uma justificação autónoma da decisão de determinação da pena única, nos termos legalmente exigidos, o que resulta em falta de fundamentação suscetível de constituir nulidade [artigo 379.º, n.º 1, al. a), do CPP].

Considera-se, porém, que a decisão recorrida contém os elementos necessários ao suprimento dessa omissão (artigo 379.º, n.º 2, do CPP).

21. De acordo com as regras de punição do concurso, a pena única deve fixar-se entre 8 anos (pena mais elevada) e 11 anos e 6 meses de prisão (correspondente à soma das penas aplicadas).

Revelam os factos provados uma conexão íntima entre os crimes em concurso, em violação de bens jurídicos pessoais, de idêntica natureza, no mesmo contexto de relação familiar e espacial, «como resultado de um processo de crescente agressividade e falta de controlo no qual a condição de saúde mental do arguido e o seu comportamento aditivo desempenharam um papel não negligenciável».

As relações do arguido com a vítima «revelam traços de personalidade caraterizados pela violência, impulsividade, agressividade, desrespeito pela dignidade humana da esposa e pela vida desta».

A repetição, o modo de execução e o contexto dos factos, bem como o comportamento anterior aos crimes, embora de natureza diversa, são reveladores de caraterísticas de personalidade desvaliosas, revelando falta de preparação para manter uma conduta lícita, tudo evidenciando elevadas necessidades de prevenção especial, a requerer particular intervenção exigida pela doença de que sofre e pelo consumo de substâncias psicoativas enquanto fator de risco de reincidência (ponto 1.6.1 dos factos provados).

22. Assim, tendo em conta a moldura da pena aplicável aos crimes em concurso, na consideração, em conjunto, da gravidade dos factos e da personalidade do arguido, também não se encontra fundamento que justifique a alteração da pena única, que se conforma ao critério de proporcionalidade que preside à sua determinação.

Pelo que improcede também o recurso nesta parte.

Quanto a custas

23. De acordo com o disposto no artigo 513.º do CPP (responsabilidade do arguido por custas), só há lugar ao pagamento da taxa de justiça quando ocorra condenação em 1.ª instância e decaimento total em qualquer recurso. A taxa de justiça é fixada entre 5 e 10 UC, tendo em conta a complexidade do recurso, de acordo com a tabela III anexa ao Regulamento das Custas Processuais.

III. Decisão

24. Pelo exposto, acorda-se na Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em julgar improcedente o recurso do arguido AA, mantendo-se a decisão recorrida.

Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 5 UC.

Supremo Tribunal de Justiça, 15 de maio de 2024

José Luís Lopes da Mota (relator)

Ana Maria Barata de Brito

Maria Teresa Féria de Almeida